Dos Anjos
Por Angelo Brás Fernandes Callou
Entretinha-se numa conversação sentada na cozinha. Emoldurado pela janela, via-se, do quintal, o perfil dessa mulher e seu indefectível cocó.
Como dois diabinhos, espetávamos com palitos aquela porção de cabelo em rodilha. À medida que ela ia retirando um a um, sob protestos distraídos e sem perder o fio da conversa, íamos repondo os espetos, cada vez mais rápido, à medida que tendia a zero. Por fim, possivelmente exausta, desfaz a rodilha e diz à minha mãe: veja, dona Nair, eles colocaram 32 palitos no meu cabelo.
Ríamos, eu e minha irmã, como só as crianças de 8 e 9 anos de idade são capazes de rir dos outros e de si mesmas, sem distinção de intensidade, pelos feitos realizados.
Dos Anjos era o seu nome. Trabalhava na nossa casa. Sempre me lembro dela quando quero falar de pessoas boas que passaram pela minha vida. Devia ter uns 40 anos. Parecia uma índia. Ou era uma índia, já que estávamos em Pesqueira? Era bonita, riso fácil, dentes perfeitos, conversação frouxa. À noite, saía com seus óculos escuros de gato e lábios pintados com batom vermelho.
As histórias contadas por Dos Anjos eram o que mais gostava da rotina dela na casa. Não apenas pela capacidade interpretativa do texto, o que já revelava, por si só, o privilégio de tê-la por perto, mas, sobretudo, pelo realismo fantástico das suas histórias.
Algumas cenas relatadas diziam respeito a homens nus correndo sobre telhados, calças à mão, fugidos pelo flagrante em camas alheias; outras, de homens assassinados que falam ao seu interpelador: “Tem gente viva aí? Pergunta alguém do portão da casa. Responde o assassinado: – Tem não, Borges me matou.” A mais lembrada de todas: “como eu vou pagar 10 conto ao medicó, se eu tenho uma subalena pra drumir diretamente?”
Muitas vezes, a encontrava sentada num banco baixo, pernas escancaradas de par a par, com as bordas...
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Dos Anjos
Por Angelo Brás Fernandes Callou
Entretinha-se numa conversação sentada na cozinha. Emoldurado pela janela, via-se, do quintal, o perfil dessa mulher e seu indefectível cocó.
Como dois diabinhos, espetávamos com palitos aquela porção de cabelo em rodilha. À medida que ela ia retirando um a um, sob protestos distraídos e sem perder o fio da conversa, íamos repondo os espetos, cada vez mais rápido, à medida que tendia a zero. Por fim, possivelmente exausta, desfaz a rodilha e diz à minha mãe: veja, dona Nair, eles colocaram 32 palitos no meu cabelo.
Ríamos, eu e minha irmã, como só as crianças de 8 e 9 anos de idade são capazes de rir dos outros e de si mesmas, sem distinção de intensidade, pelos feitos realizados.
Dos Anjos era o seu nome. Trabalhava na nossa casa. Sempre me lembro dela quando quero falar de pessoas boas que passaram pela minha vida. Devia ter uns 40 anos. Parecia uma índia. Ou era uma índia, já que estávamos em Pesqueira? Era bonita, riso fácil, dentes perfeitos, conversação frouxa. À noite, saía com seus óculos escuros de gato e lábios pintados com batom vermelho.
As histórias contadas por Dos Anjos eram o que mais gostava da rotina dela na casa. Não apenas pela capacidade interpretativa do texto, o que já revelava, por si só, o privilégio de tê-la por perto, mas, sobretudo, pelo realismo fantástico das suas histórias.
Algumas cenas relatadas diziam respeito a homens nus correndo sobre telhados, calças à mão, fugidos pelo flagrante em camas alheias; outras, de homens assassinados que falam ao seu interpelador: “Tem gente viva aí? Pergunta alguém do portão da casa. Responde o assassinado: – Tem não, Borges me matou.” A mais lembrada de todas: “como eu vou pagar 10 conto ao medicó, se eu tenho uma subalena pra drumir diretamente?”
Muitas vezes, a encontrava sentada num banco baixo, pernas escancaradas de par a par, com as bordas laterais das saias trazidas para o entrepernas, a sacrificar galinhas, depená-las e eviscerá-las. Hoje, nem em sonho, assistiria a uma cena dessas. Era pura alegria estar com Dos Anjos.
Anos depois, vi Gal Costa, no Teatro do Parque, no Recife, cantando no show Índia, sentada num banco alto, com as pernas abertas e expostas, apenas mediadas por um pedaço de sua longa saia. Claro que me lembrei de Dos Anjos, como me lembro dela ao me surpreender com óculos escuros à noite.(Gal Costa https://www.youtube.com/watch?v=JjJL9hVooeM).
Hoje, por acaso, também me lembrei dela. Conversava há pouco ao telefone com um amigo de São Paulo, sobre o falecimento da atriz Tônia Carrero. Ele teve a oportunidade de conversar com ela algumas vezes, em virtude de ter sido ator. Achei interessante ele me dizer que a atriz era uma pessoa boa, antes de se referir à beleza de Tônia e à importância do trabalho dela na história das artes cênicas do Brasil.
Sem dúvida, a perda das pessoas boas é muito mais lamentável, ou pelo menos deveria ser, do que o esmaecimento da beleza física.
Tomara sermos lembrados como pessoas boas, porque isto é imorredouro!
Bairro de Campos Elíseos, São Paulo, 5 de março de 2018.
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