IDENTIFICAÇÃO: Meu nome é Nelson Alves da Cruz, e eu nasci em Belo Horizonte, em junho de 57.
PAIS: Meu pai chamava Sebastião Sebastião Alves da Cruz, e minha mãe de chamava Maria da Conceição Pires da Cruz. E eles eram conhecidos por Sr. Tonzinho e dona Sinhá. Eles eram de P...Continuar leitura
IDENTIFICAÇÃO: Meu nome é Nelson Alves da Cruz, e eu nasci em Belo Horizonte, em junho de 57.
PAIS:
Meu pai chamava Sebastião Sebastião Alves da Cruz, e minha mãe de chamava Maria da Conceição Pires da Cruz. E eles eram conhecidos por Sr. Tonzinho e dona Sinhá. Eles eram de Ponte Nova e nos anos 40, se casaram e foram pra Belo Horizonte.
O meu pai trabalhava em Ponte Nova, e ele chegou a trabalhar na fazenda do Arthur Bernardes como canavieiro. Minha mãe era empregada doméstica na mesma fazenda. E quando ele foi pra Belo Horizonte, foi pra trabalhar numa estrada que estava sendo construída, era a estrada que ia pro Rio de Janeiro. E minha mãe sempre foi dona de casa.
A minha mãe conta é que meu pai jogava futebol, e pelo que meu pai conta, ele era muito bom de futebol; era um ponta de lança daqueles goleadores. Só que de futebol amador, lá em Ponte Nova. E ela ia com as amigas dela e ficavam gritando do lado de fora: “Ê, Tonzinho, ê Tonzinho”, e tal. Então, ele acabou um dia ouvindo a voz dela e parece que eles se conheceram dessa forma, num campo de futebol. Eles se casaram em Ponte Nova. Daí foram pra Belo Horizonte. Parece que antes ele tentou trabalhar numa outra fazenda, na região de Ponte Nova, mas não deu certo. Então foram pra Belo Horizonte dos anos 40.
IRMÃOS E FAMÍLIA: Eu tenho mais quatro irmãos. Minha irmã mais velha, a Maria da Graça, que desde de criança eu eu chamo de Taía e três irmãos. Eu sou o intermediário. Eu tinha também uma irmã de 12 anos, que faleceu com problemas respiratórios. Eu tinha 14, ela tinha 12. Então, eu fiquei ali no meio tem; abaixo de mim tem o Nilton, que é professor da rede pública da cidade de Neves, que é uma cidade da grande BH. O meu outro irmão que é metalúrgico, o César, metalúrgico da Fiat. O meu irmão mais velho, que é motorista da Rádio Inconfidência, e a minha irmã, que é dona de casa. Agora, por que eu fui nascer artista nessa família, eu não sei. Não, não entendo, é uma incógnita pra mim, até hoje eu não consigo saber, nem responder, assim claramente, porque na minha casa não tinha.
BAIRRO DA INFÂNCIA:
A minha casa dos anos 60, na Nova Cintra, onde eu nasci lá era um bairro de periferia mesmo, com uma vida criminal bastante pesada. Mas era um bairro onde as pessoas tinham uma convivência muito boa, de interior. Mas como era muito vizinha a Belo Horizonte, tinha um desequilíbrio social e uma criminalidade. Foi um bairro bastante interessante onde eu via quadrilhas, eu via procissões e todas as pessoas que se cruzavam na rua davam bom dia ou boa noite. São coisas assim que eu, que me marcaram, coisas que eu não entendia naquela época: por que as pessoas se cumprimentavam se elas não se conheciam. Mas sempre que eu estava com meu pai na rua, ele falava: “Bom dia, senhor”. Então são lembranças do meu bairro que me marcaram. Além das brincadeiras de rua com os meninos. Por exemplo, era uma casa que nos anos 60 não tinha televisão e nós tínhamos um rádio onde às vezes à noite nós escutávamos um programa, na Rádio Inconfidência, que se chamava Alma Cabocla, onde se contava histórias sobrenaturais. Então, eu me lembro que eu devia ter sete ou oito anos, devia ser nesse período, e eu cobria a cabeça com o travesseiro ou um cobertor pra não ouvir as histórias. Mas ouvia; não tinha como ouvir.
PRIMEIRO DESENHO: NO CHÃO:
Meu pai era pedreiro, então ele foi trabalhar na construção civil e nós ficávamos em casa. Era aquela típica família, com os irmãose aquela meninada e a mãe cuidando. E então nós brincávamos ali no terreiro; eu subia na mangueira; vendo os pés de milho crescerem, e vendo meu pai plantando, minha mãe plantando flores e cozinhando. E eles sempre falando que o dinheiro estava curto e tal; também, só uma pessoa trabalhando pra cuidar de uma família inteira E nos fins de semana, juntávamos os irmãos pra poderem fazer algum trabalho em casa. Tipo: fazer mais um quarto, puxar mais um quarto pra um irmão ou outro que estava crescendo. Eu via, por exemplo, os homens furando uma cisterna e chegava na beira daquele buraco de quinze, vinte e sempre correndo esses riscos. Mas a gente ficava solto pelo terreiro. E eu desenhando pelo chão. Eu gostava de desenhar. Então pegava um graveto, desenhava no chão, e, sem dar muita importância a isso. Só que eu me lembro que um dia eu fiz um desenho e aquilo me chamou a atenção, porque era uma coisa que eu podia fazer. Eu percebi que eu conseguia fazer um desenho no chão com um graveto. Mas isso era uma coisa entre outras tantas coisas.
Difícil de precisar a idade que eu tinha nessa época. Eu sei que era nessa faixa talvez de seis, sete anos, porque eu só lembro de mim desenhando, eu não lembro de mim fazendo outra coisa assim. Além, de construir os próprios brinquedos, devido à condição da família. Nós não ganhávamos brinquedos, fazíamos. E aquilo era uma festa. Sobrava uma lata, esvaziava uma lata, nós fazíamos um carrinho; metíamos a faca, abríamos o fundo e inventávamos um brinquedo com aquilo. Isso era junto com os irmãos, era junto com os outros meninos vizinhos. Então de forma que esse tipo de convivência foi uma extensão de um laboratório de criação.
OUTROS DESENHOS: NO PAPEL:
Era uma coisa diferente dos outros meninos, que os outros meninos não desenhavam. E, de uma hora pra outra, eu comecei a pegar os meus cadernos de escola e desenhava no cantinho da folha, lá em cima, desenhava em baixo, desenhava na outra ponta, e de repente a página do caderno estava cheia de desenhos pequenos. E eu me lembro de um dia que eu tinha feito um desenho num papel lá qualquer, e quando meu pai chegou do trabalho eu mostrei pra ele... - eu até me emociono, porque é uma coisa legal, é uma lembrança boa que eu tenho - eu mostrei pra ele e falei assim: “Pai, olha aqui o desenho que eu fiz” Ele pegou e falou assim: “Ah, muito bonito mesmo”, e virou pra mim e falou “Era isso que você devia fazer em casa em vez de ir pra rua brincar com os meninos”. Então, fiquei um pouco assustado, porque ele foi um pouco enfático, mas foi o primeiro incentivo que eu recebi. E eu gostava e continuei a desenhar em todo tipo de papel, e mostrava pra ele, e mostrava pra minha mãe e tal, e aí guardei um tanto de desenhos durante um tempo.
ESCOLA:
Eu estudava numa escola chamada Professor Magalhães Drummond. Hoje existe uma outra escola, mas é uma segunda construção. Essa primeira, dos anos 60 não existe mais. E eu fui um péssimo aluno, péssimo. Eu era tímido, extremamente tímido, tão tímido que eu era gago. Eu fui gago até os 17 anos, 18 anos. E na minha infância eu era bom numa matéria: português. Nas outras eu era péssimo. Matemática, então...eu me lembro que uma vez eu ganhei um zero na prova, eu só acertei o lugar que eu devia escrever meu nome, o restante eu errei absolutamente tudo. Fiquei supertriste, fui contar pra minha mãe uns três dias depois. Talvez por causa da minha gagueira, eu era muito comportado na sala de aula. Conversava pouco, então sempre ganhei nota boa em comportamento, e isso me ajudava no final do ano a passar. Tanto que eu não levei nenhuma bomba em nenhum ano, e essa nota por bom comportamento sempre me ajudava. Mas, na verdade, era porque eu era tímido mesmo, e as professoras gostavam de mim por causa disto.
E eu me lembro de todas elas, embora não me lembre mais dos nomes. Mas eu me lembro bem da última, que era a Emília, uma professora muito aberta e que conversava muito comigo, era muito sorridente. Mas marcante pra mim na escola, sabe o que era? Eram dois policiais que tinham lá, que eles tomavam conta da escola. E, e a diretora da escola pegava os meninos que faziam muita bagunça e colocava nas mãos deles e eles castigavam os meninos. Isso, pra mim, foi uma coisa terrível porque eles tinham lá um quarto e os policiais levavam os meninos lá pra dentro e batiam nos meninos. Isso foi uma coisa que me traumatizou na escola. Aí, pelo meu aspecto emocional, eu gostava de desenhar, então eu me liguei ao silêncio. Eu não tinha com quem conversar sobre desenhos, porque nenhum menino desenhava. Então eu ficava envolvido com aquela questão, amando desenhar, desenhava no chão, desenhava num pedaço de papel que sobrava em casa, desenhava no caderno, e me dedicava ao desenho. E, e na escola eu só ia pra baixo. Mas também gostava da rua brincar, brincar de correr, ir pro mato, inventar brincadeiras no mato, recolher varas pra fazer arapucas e essas coisas todas. Essas coisas eram o que me moviam. Quando eu ia pra escola era um suplício. Eu sofria na escola. Principalmente quando eu tinha que fazer leitura na frente. Era terrível, porque eu era gago; como eu ia fazer leitura lá na frente? Mas a professora até eu me posicionar melhor, me chamava pra eu ler. Aí eu tinha uma técnica: eu respirava e engolia o ar e ia lendo. Engolia todas as pontuações.
Quando acabava o ar, aí era terrível, eu começava a tropeçar nas frases, ficava vermelho, e aí conduzia daquela forma aos tropeços.
Mas as professoras sempre foram condescendentes comigo. Por causa dos desenhos que eu fazia, os trabalhos de escola eram sempre bem ilustrados, então eu sempre ganhava uma pontuação nisso aí. E foi até que um dia, já não agüentando mais enfrentar a escola, eu cheguei pra minha mãe e falei que não ia voltar mais pra escola. Eu tinha de 12 pra 13 anos. Foi um alvoroço lá em casa, meu pai falou: “Você vai pra escola, sim e você não vai sair da escola. Se não, você vai ser burro” e minha mãe sofreu, mas eu não voltei pra escola, eu não conseguia mais entrar na escola. Eu sempre via aqueles policiais, eu sempre via as professoras más. Tinha uma professora chamada dona Marta. Eu escutava os gritos dela da minha sala. A sala dela era uns três blocos distante e eu ouvia os gritos dela. E eu sabia que se eu passasse de ano eu poderia um dia ser aluno dela, e eu não ia suportar ser aluno de professoras assim.
Então, sentindo aquela pressão da presença daqueles policiais e das professoras que castigavam, e eu imaginando que eu poderia cair na mão dos policiais e apanhar deles, aí eu não voltei mais pra escola. Só que eu era gago, e eu não conseguia falar isso em casa. Então aí, pronto, não voltei mais pra escola. Aí o que que meu pai falou assim: “Se você não voltar pra escola, você vai trabalhar comigo” trabalhar pesado. Meu pai era pedreiro. E eu preferi trabalhar com meu pai. Aí eu fui. Então, ele pegou e me levou pra trabalhar com ele numa obra onde ele era chefe de grupo. Lá eu peneirava areia, carregava tijolo, pregava tacos, esses tacos antigos, e fazia esse trabalho. Mas eu não dava muito pra aquilo também, não.
Fazia as coisas errado. Trabalhei uns nove meses. Eu tinha 12 pra 13 anos. Eu acho que aí começou a minha errança pela vida. Mas nunca deixando de desenhar. Então, um dinheiro, comprava um caderno, comprava um lápis e ficava desenhando. E fiquei conhecido no bairro na Nova Cintra como o desenhista. As, as pessoas que precisavam de um trabalho pra escola iam lá em casa pra eu fazer, pra eu desenhar. Então, eu ia praticando sem saber o que que era aquilo, o que que era o desenhar.
JORNAIS DA CASA:
Nos anos 60 o mundo estava vivendo uma revolução de costumes morais e políticos e tudo. E nós não tínhamos televisão. Os nossos vizinhos não tinham televisão. Então nós não tínhamos conhecimento de nada de ditadura. Eu não tinha conhecimento disto. Então nós brincávamos à noite, sentávamos na frente do portão, encontrava com os amigos da mesma faixa de idade, e a gente ficava conversando, jogando bola, jogando bolinha de gude, brincando com bolinha de meia. E os meus pais ali, sentados, também conversando com os vizinhos. Então, nós não tínhamos uma noção do que tava acontecendo no mundo. Acontecia uma coisa também bastante interessante nessa época, porque a minha mãe encerava a casa e forrava com jornais, pra ninguém sujar imediatamente. Então o meu irmão comprava ali uns jornais e lia e depois que descartava a minha mãe guardava. E no final de semana se encerava a casa. Nós ajudávamos, eu também ajudava a encerar a casa, e depois cobríamos com jornais. De repente, eu olho pra baixo e percebo que o jornal é recheado de desenhos. Então, eu ficava vendo ali os desenhos e achava aquilo bacana. E o que eu estava vendo era o Pasquim. Meu irmão mais velho comprava, lia, e não dava a maior importância àquilo. E aí eu comecei a ver desenho do Henfil, do Ziraldo, do Jaguar, todos esses caras eu via, e aquilo me incentivou mais ainda ao traço. Eu via que era possível, que alguém fazia um desenho de uma forma diferente. Isso abriu uma outra percepção pra mim do que que era desenho.
ESTER GILDA MENICUCCI:
Eu já tinha aí chegando nos 14 anos, e de tanto desenhar, uma senhora que era amiga da minha mãe e que era presidente do clube de mães lá da Nova Cintra, de tanto ouvir falar que minha mãe tinha um filho que desenhava, ela foi lá em casa pra ver os desenhos, e falou assim: “Sinhá, eu vou arrumar uma escola de pintura pro seu filho”. Então, ela conversou com uma pintora que já tinha uma fama em Belo Horizonte, que é a Ester Gilda Menicucci, e marcou um horário pra eu ir levar meus desenhos pra ela ver. E ali, com uns 13, 14 anos, eu reproduzia uma pessoa com todas as suas semelhanças. Eu sempre fui um bom, perdoa a falta de humildade, de retratar as pessoas. Então, de uma certa forma, eu dominava o desenho. E a Ester Gilda ficou impressionada e me aceitou como aluno dela, como aluno que não pagava. Então eu fiquei dois anos com a Ester Gilda aprendendo o uso das tintas. Então isso foi também um outro na minha vida, que se abriu.
ADOLESCÊNCIA:
Eu sempre gostava de desenhar. Nessa fase da adolescência, onde eu descobria arte, era novidade pra mim. Eu me lembro assim que eu não sabia andar no centro de Belo Horizonte, mas eu já tinha que cruzar a cidade pra sair da Nova Cintra e ir até Savassi, que era zona sul. Eu, às vezes, não tinha dinheiro pra passagem, então eu descia no centro da cidade e ia a pé até a Savassi. No meio do caminho, eu descobri que havia a biblioteca pública e que lá se emprestava livros de graça. Então, foi uma outra coisa, que foi a grande revolução da minha vida. Eu passei a freqüentar a biblioteca, pegava livros pra ler e descobria a parte de arte. Eu vi Goya, eu descobri Picasso, Salvador Dali, descobri todos os artistas que nunca entraram na minha casa em nenhum tipo de livro, porque não havia livros na minha casa. Aliás, quando eu tinha 12 anos, meu irmão levou um livro lá chamado 2455, eu acho, A cela da morte, o Estado quer me matar, que é a biografia do Caryl Chessman, que foi aquele bandido que morreu na cadeira elétrica. E o Chessman, no corredor da morte, decidiu escrever a biografia. E, então, eu li aquele livro até aonde eu conseguia ler. Era um livro de umas 500 páginas. E ali eu li tudo sobre os assaltos, sobre os seqüestros, o uso de armas e tudo. Foi o primeiro livro que eu li. Quando ele chega na parte onde ele resolve estudar Direito, eu já não tinha capacidade pra ler, eu não entendia; eu tentava, mas não conseguia entender. Mas então eu lia, relia. Foi o primeiro livro que eu li, e nem por isso me tornei um bandido. Tinha todas as possibilidades ali, tudo que ele relatava, como ele assaltava os postos de gasolina, até os assaltos a banco. Então, tudo isso era muito interessante pra mim. Imagina, eu tinha acabado de sair da escola, morava num bairro onde a criminalidade era alta e um livro desses cai na minha mão. Mas eu sou um milagre, eu acho que eu sou um milagre brasileiro.
PRIMEIROS LIVROS MARCANTES:
O que eu conseguia ler com muita facilidade era poesia e crônicas. Aí eu descobri Vinicius de Moraes, Fernando Sabino. Um dia eu descobri aquele livro A idade da razão, tentava ler e não conseguia. Peguei ele emprestado da biblioteca umas quatro vezes pra eu tentar ler e não conseguia ler. Achava que um dia eu ia entender Sartre, mas não. Com 14, 15 anos, eu não tinha suficiência pra ler.
Mas eu achava aquilo muito legal, muito bacana, muito bonito. Achava bacana, bonito, mas eu não conseguia ultrapassar aquela profundidade e tal. Mas, enfim, aí lia quase todos os livros do Fernando Sabino e aquilo pra mim talvez fosse a minha passagem para o humor, porque lá na minha infância eu via o desenho dos cartunistas no Pasquim e mais adiante eu vi o Fernando Sabino tratando a crônica com aquele humor que ele tinha. E logo mais adiante eu conheci um grupo de cartunistas, que aí já é uma outra passagem.
COMEÇO DA CARREIRA:
O que acontece é que nos anos 70, foi quando eu tive essa aula com a Ester Gilda mais ou menos entre 72 a 74, e logo em seguida, a Ester Gilda me lançou como pintor. Ela achava que eu tinha condições de fazer uma exposição, e eu fiz uma exposição no ateliê dela com um outro pintor de Belo Horizonte chamado Eraldo Pinheiro. Isso pra mim foi uma novidade e uma experiência diferente, porque aí saíram fotografias minhas no jornal e saiu fotos de quadro. Teve a vernissage, eu vendi quadros. Aí eu vi que era possível ganhar dinheiro com arte, com pintura. Então, fiz a primeira exposição em 77, e fiz a segunda em 78 e vi que era bom pintar pra vender. Nesse meio tempo eu tentei uma autorização pra expor junto com os artistas na praça da Liberdade, onde tinha a Feira de Arte e Artesanato, onde nessa época ainda tinha os pintores de Belo Horizonte expondo. Então, foi também onde eu entrei em 74. Aí eu já estava entrando no meio artístico. Estavam lá todos os pintores que eram conhecidos em Belo Horizonte. Eu tinha 18 anos. E morava com os meus pais. Nós sempre fomosuma família legal, amigos. Nunca houve uma coisa que separasse irmão, que irmão saísse de casa brigando. Meu pai sempre deu broncas na gente, mas ele era um pai legal também, sentava, conversava. Eu fiquei morando lá ainda bastante tempo. Como eu falo sempre, a minha casa, a minha casa de família, era de amigos. Apesar da pouca instrução escolar dos meus pais, eles sempre souberam conduzir a convivência com os filhos.
Aí eu fiquei somente trabalhando com pintura. Mas acontecia uma coisa também de eu descobrir que eu poderia desenhar marcas, rótulos e etiquetas. Então, então eu comecei a fazer isso pra pequenos ateliês de silk screen, essas coisas. Eu fazia essas coisas além de pintar e de expor na praça, onde eu tentava vender os quadros, porque nunca fui um bom vendedor de quadros. Eu não cheguei a viver de venda de quadros, nunca. Mas quando eu começo a me dedicar a trabalhar pra silk screens, fazendo essas coisas, eu passei a ganhar dinheiro com isso. Eeu sempre investindo em exposições, me inscrevendo em salões de arte fazer o trabalho aparecer, o trabalho de pintura.
NA FEIRA DA LIBERDADE:
Lá havia uma grande divisão não só física, como também comercial, porque a praça da Liberdade tem uma alameda central, e de um lado ficava os artistas e do outro lado ficava os artesãos. E a parte dos artistas ficava muito mais vazia do que a outra parte dos artesãos. O artesanato sempre vendeu mais. E os artistas ficavam ali conversando sobre isso. Ocorre que um pintor ou outro, às vezes, pintava um determinado tema como, por exemplo, o barroco mineiro, e vendia imediatamente. Aí esse assunto logo corria entre os outros pintores. E no domingo seguinte já tinha vários pintores também fazendo aquele tema.
E, então, ficava-se conversando sobre o que é que se vende, o que é que não se vende, e isso era uma coisa interessante. E eu sempre com um desenho que vamos se chamar de investigativo. Eu nunca fui de fazer esses temas. Resultado: eu não vendia quadro. Então, eu sempre experimentando novas linhas, nova figuração e não caía no gosto de quem ia à feira para comprar quadros. Havia, por exemplo, um pintor que um dia pintou um Dom Quixote, e esse rapaz vendeu quase imediatamente. E no domingo seguinte ele apareceu com vários Dom Quixotes. Resultado: vendeu todos. Então, isso virou o grande assunto da feira, porque a partir desse dia, ele só levava Dom Quixote, e ele vendia todos os Dons Quixotes que ele fazia.
E, então havia gravadores que expunham na feira, que tinham um trabalho sério, eram professores de escola e tal e que expunham no domingo por uma questão de grupos, tal como encontro de artistas. Com isso acontecendo, outros pintores também foram se tornando comerciais e esses artistas sérios foram abandonando a praça da Liberdade. Aquela proposta inicial foi se modificando. E um certo ano lá, quatro anos depois, eu passei oito meses sem vender um trabalho. Aí um dia eu falei assim: “Gente, tchau”.
ILUSTRAÇÃO:
Passei 8 meses sem vender um trabalho. Nesse meio tempo, como a praça da Liberdade era um ponto de encontro de artistas, eu conheci um grupo de cartunistas que era o Aragão, o Celinho e o Fábio Leite; uns escreviam, como o Fábio Leite. O Pasquim ainda era forte, e lá havia muito aquelas frases de rodapés. E em Belo Horizonte havia vários escritores vários humoristas, que faziam frases; eram os frasistas. O Fábio Leite, que é um amigo que eu tenho até hoje, ele era um frasista bastante interessante, e bastante mordaz e humorado. Então, eu fiquei amigo deles, me aproximei a eles, porque eles tinham uma outra proposta, eram mais ágeis no pensamento e ágeis no traço. Eu gostei do traço de humor, que eu já havia visto na minha infância, eu vi que era possível fazer, era possível fazer cartum.
Só que os meus cartoons não eram muito engraçados, eu não tinha graça. Eu sabia desenhar, eu sabia construir um boneco de humor, mas eu não tinha um texto pra aquilo. Mas eu percebi que eu sabia fazer caricaturas. E com essas caricaturas, eu procurei o suplemento literário do Minas Gerais, que era o órgão oficial lá do estado e que era dirigido na época pelo Duílio Gomes, o escritor. Mostrei pra ele, e ele falou assim: “Eu vou te convidar pra você ilustrar algumas matérias aqui do suplemento literário”. E eu achei muito bacana “Puxa, bacana, é dinheiro”. E aí comecei a ilustrar o Suplemento Literário, depois ilustrei outros jornais alternativos que existiam lá em Belo Horizonte, e isso foi uma experiência fantástica. Aí eu entrei no desenho de ilustração.
Quando eu ia na redação do Suplemento Literário, eu levava um texto pra casa pra fazer a caricatura, e aí eu começo a interpretar. Eu saio um pouco daquela condição do criador enquanto artista plástico completamente isolado, e ali na criação individual, eu tenho que participar de uma outra forma de criação unindo o texto ao desenho. Então isso pra mim foi também uma outra mudança de vida, porque além do trabalho com o Suplemento Literário, que me levou uns 4 anos, eu comecei a ter contato com outros jornais, jornais alternativos, e começou meu trabalho na ilustração, minha experiência. Isso na década de 80.
Eu já vinha participando de alguns salões de humor tal e comecei a ganhar alguns prêmio, então isso pra mim foi um grande alívio, porque eu via que além do meu trabalho na imprensa, eu poderia também investir nessas participações de salões de humor. Porque eu tinha - eu vou confessar - eu tinha, no princípio, um certo preconceito de usar a cor na caricatura, porque a cor eu usava na pintura e não no desenho de humor. Desenho de humor era aquele de linhas. E até eu vencer um pouco esse preconceito eu levei um certo tempo, mas consegui fazer isso e consegui aplicar a pincelada do pintor na caricatura. Aí é que aconteceu esse prêmio em Piracicaba, e que me orgulho até hoje, porque é um Salão de muita relevância. E a partir daí, de 87 até o início da década de 90, eu mantive esse trabalho, sempre de pintor e de caricaturista. Aí acontece que em 87 eu fui fazer um curso de gravura alternativa no Festival de Inverno de São João del Rei, e lá eu conheci a Marilda Castanha, que hoje nós somos casados e temos dois filhos. E em 88 eu resolvi morar em São Paulo pra aprofundar o contato com editores, já que a Marilda já tinha um princípio de trabalho na ilustração e ela me incentivou que eu fizesse contatos com editoras e saísse um pouco do mercado só de jornais, só de imprensa.
BREVE PASSAGEM POR SÃO PAULO:
Em São Paulo, meu coração de mineiro não agüentou muito tempo. Mas, me aconteceu uma coisa fabulosa, porque a minha formação profissional foi feita em São Paulo: eu ia numa editora e às vezes não tinha trabalho pra mim, mas o editor sempre me dava dois telefones ou endereços e falava “Procura essa pessoa aqui que ela pode ter trabalho pra você”. E eu ia, se não tivesse, ele me indicava mais dois. Então nisso aí, eu nunca fiquei sem trabalho em São Paulo, nunca fiquei. Mas a minha solidão era muito grande, eu sentia muita falta dos amigos de Minas, e da família também, e acabei voltando um ano e meio depois pra Belo Horizonte. Aí eu já tinha estruturado os contatos com editoras.
PRIMEIRA EXPERIÊNCIA COM LIVROS:
A minha experiência foi com um livro de inglês, que eu fiz pra FTD, e foi um livro que foi um trabalho simplesmente horroroso. E eu estava fora daquela linguagem. Eu me esforçava, porque eu precisava de trabalho, e aí apareceu esse livro de inglês pra ilustrar. E achei que o resultado não foi bom, mas o editor foi muito compreensivo comigo. Foi a minha primeira experiência em São Paulo.
Quando eu voltei pra Belo Horizonte, um ano e meio depois, ilustrei lá, pra Editora Formato, o primeiro livro infantil. O título me fugiu agora, mas é sobre um passarinho. Eu me lembro que pra fazer este livro eu entrei num conflito, porque eu tentei unir o desenho de humor com o desenho de artes plásticas, que era uma linha de desenho completamente diferente do que eu fazia no desenho de humor. Então, eu sempre tive essa dualidade: eu conseguia lidar com duas linguagens diferentes e dominar as duas. E aí tentei unir as duas. Eu acredito que deu certo, o livro tá impresso até hoje. Masnão era bem a direção que eu queria fazer. Unir as duas coisas, o desenho de artes plásticas e o desenho de humor, não era uma coisa que eu pretendia conduzir. Porque eu e a Marilda já namorávamos aí no final dos anos 80 e o desenho dela era um desenho que poderia se aproximar do meu de artes plásticas, e o dela ilustração mesmo, e nós dois não poderíamos nos misturar. Era uma proposta minha e uma proposta dela. Nós tínhamos que ser diferentes. Então ocorre que, voltando pra Belo Horizonte, logo eu fui convidado pra trabalhar como ilustrador do Diário da Tarde, do jornal Diário da Tarde, e eu trabalhei cinco anos nesse jornal. Eu trabalhei de janeiro de 90 até março de 94. Então, isso aí foi uma outra coisa fantástica. E paralelamente eu continuei ilustrando os livros, porque já tinha feito os contatos em São Paulo, e fiquei fazendo esse trabalho. À noite eu trabalhava no jornal, mais ou menos de 18h até às 23 eu trabalhava no jornal, e durante o dia eu ilustrava.
MARILDA CASTANHA:
Me marcou muito uma primeira experiência da Marilda. Eu sempre admirei o desenho dela, eu sempre gostei daquilo que é diferente de mim. E o processo dela de criação e o desenho dela é completamente diferente do meu. Eu sempre parti de um modelo, no caso com caricaturista, eu sempre parti de uma coisa pronta. E o desenho, o desenho de humor também, sempre voltado pra construção de um personagem humanizado, cabeça, tronco, membros, pernas. E a Marilda sempre ficcionando as formas. Então a Marilda partia da cor, da pincelada, e eu partia do desenho.
Com isso aí, ela um dia é convidada pra ir à Itália, pra participar de uma mostra de ilustradores europeus na cidade de Sarmede, que é um distrito de Treviso - eu vou chamar de distrito, mas lá eu não sei como chama. Então, ela foi convidada pra participar dessa mostra e foi muita felicidade pra nós, porque ela foi convidada um ano, depois foi convidada no outro ano, e nós começamos a receber os catálogos dessa mostra. Então, me chamou atenção a linguagem dos ilustradores estrangeiros. Aquele domínio de uma idéia e aquela condução precisa pra linguagem do livro. Ocorre que eu tinha aquele preconceito ainda de conduzir a minha pincelada do pintor pra ilustração, e eu vi que eu tinha que fazer essa passagem, que seria um grande ganho pra minha ilustração.
Então eu comecei a fazer isso, abandonei aquela idéia de fundir os dois desenhos de pintor, de pintura e de humor, e fiquei só com o desenho de humor. Ocorre que o desenho de humor, ele tem limitações devido a essa questão da linha. Eu acho que o desenho de humor, no meu caso, precisava ganhar um acréscimo, e o acréscimo seria essa pincelada. Então, aí eu consigo quebrar esse preconceito em mim e partir pra essa fusão, sabe, pintar o desenho de humor. E o meu personagem necessitava de uma ambientação porque, enquanto eu fazia caricaturas, sempre gostava do fundo branco. E no personagem de humor também sempre trabalhei com fundo branco. Pra ilustração, o personagem precisa de uma vida própria, ele precisa respirar, ele precisa ter uma ambientação, um cenário. E então, durante um bom período, uns cinco anos eu, eu vou me dedicando a desenvolver uma linguagem pro personagem da ilustração. Então, aí é que eu descubro o desenho dos arquitetos. Na rua, eu começo a perceber que o desenho pode circular dentro daquelas linhas rígidas e transformar aquelas linhas rígidas da arquitetura em ilustração.
CARREIRA TAMBÉM DE ESCRITOR:
Eu recebia textos pra ilustrar, ilustrei muitos escritores. E sempre tive uns insights. Fazendo, lendo livros, sempre vinha umas idéias de ilustração. E algumas idéias nunca me largavam. Por exemplo, quando eu li sobre Guimarães Rosa e que ele participou da condução de uma boiada no sertão de Minas, eu comecei a imaginar ele montado na mula balalaica aí andando pelo sertão mineiro junto com a boiada. Quer dizer, desde que eu li isto, eu imaginei ele em cima de uma mula. Isso nunca me saiu da cabeça. E fazendo também outras leituras, imagens me vêm, e essas imagens nunca me abandonam. Então, enquanto eu não faço alguma coisa com aquilo, a idéia não me abandona. Então, eu tenho que escrever sobre aquilo. E ninguém escreve as histórias que eu quero escrever, que eu quero ilustrar. Então, aí eu parti pra escrever.
Em 1997 eu criei uma história sem texto, que é a história do Matheus, que é um menino que brinca na rua. Eu acho que é aí que eu começo a a dar passagem às minhas lembranças de infância
e começo a trazer tudo pros livros. É a história de um menino que brinca na rua e de repente encontra um ferro velho e, dentro desse ferro velho, ele encontra uma nave espacial. Ou seja, tudo que me passava pela cabeça quando era menino. E então, eu criei essa história do, do Matheus. Em seguida recriei a história da Arca de Noé. Isso em 1997 e tal. Então, a Editora Paulinas lançou esses livros teve uma repercussão boa os livros de imagem, que era a minha linguagem. Os livros chegaram a ganhar, a ganhar alguns prêmios, inclusive em Paris, o Prêmio Octogonal de um instituto lá, francês. Aí eu vi que eu poderia continuar a criar histórias e aí eu tinha que escrever também, porque me vinha histórias que eu não poderia levar só pra imagem, tinha que ter texto. E ninguém escreve as histórias que estão na minha cabeça, é realmente muito difícil. Então eu tinha que escrever sobre elas. Aí comecei a escrever.
O primeiro livro que eu escrevi foi sobre Tomás Antônio Gonzaga, que é Dirceu e Marília, porque ele é um outro autor marcante pra mim. E a história de Minas começa a aparecer na minha vida, que é uma história que se passa na, em Ouro Preto, e todas aquelas imagens ali do barroco mineiro que inspiram muito a gente. Então, a primeira história foi essa. Mas tinha que ser uma história curta, porque eu não dominava, em 1998, 99 eu não dominava textos. Acho que até hoje também não domino textos muito longos. Então, eu tinha que escrever um livro que teria que ser um meio a meio entre um texto curto e imagem. E criei essa história e logo em seguida tive a idéia de criar um segundo, que é o Chica e João, que é sobre a Chica da Silva e o João Fernandes, e Bárbara e Alvarenga, que é um terceiro livro. Então, criei uma série, sabe. O Bárbara e Alvarenga é sobre a Bárbara Eliodora e Alvarenga Peixoto. Então, criei uma trilogia sobre o amor no século XVIII, mas tinha que ser textos curtos. E esses livros começam com uma grande ilustração e terminam com uma grande ilustração. Eles têm um conceito, eles começam na imagem e terminam na imagem. Tinham que ser livros de ilustrador. Aí é o meu melhor, é a minha entrada no texto.
GUIMARÃES ROSA:
Eu começo a lidar com uma coisa que me fugiu ao controle, que é o texto, o tamanho do texto. Eu comecei a escrever algo que teria que ser também com um texto curto, e quando eu começo a ler sobre o Rosa, quando volto a ler os livros dele, eu senti como ele é rico em imagens -
foi meu reencontro com João Guimarães Rosa. Porque eu já havia lido o Miguilin e Manuelzão e me marcou muito o primeiro parágrafo do Miguilin, quando ele traça o cenário. No primeiro parágrafo, o Rosa cria o cenário do Miguilin quando ele fala que um certo Miguilin morava na Vereda do Frango, atrás de morro e morro e lá chove sempre. Então, isso me jogou também na minha mente a imagem do lugar, eu vi o lugar. Então, unindo isso à da imagem do Rosa montado na mula, na mula balalaica, eu falei: “Eu tenho que fazer alguma coisa com isto”. E aí decidi fazer um projeto quee eu não poderia investir no projeto por conta própria e a Cosac & Naify topou. Apresentei o projeto pro Augusto Massi, e o Augusto topou fazer. Eu fiz um projeto com todos os custos e apresentei pro editor e falei: “Eu só posso começar se a editora me adiantar o direito autoral”. Então ele acreditou no projeto começou a me pagar.
Aí eu fui pro sertão. Peguei o meu fusquinha , preparei ele, fui até Três Marias, que é onde tem a Fazenda do Chico Moreira. E lá da Capelinha do cemitério do Manuelzão, comecei. Aí fui me ambientando. Eu fiz isso em três viagens, não fiz isso direto. Não era possível. Então eu fiz três viagens. Fui primeiro em Três Marias, desci um pouquinho até a Vereda do Catatau, até próximo da Vereda, não cheguei até a Vereda, porque a plantação de eucaliptos fecha todo o caminho hoje, e também porque os caminhos, as trilhas, já não existem já não são as mesmas. Então, visitei algumas fazendas que existem, e sempre fotografando, e sempre desenhando, conversando com as pessoas. Sozinho, sozinho. As viagens duravam, em média, 4 dias.
Na segunda eu fui pra Cordisburgo, e aí subi um pouco fui até a fazenda do Juvenal. Isso eu fiz, isso fiquei três dias. E visitei o museu, visitava a casa, também visitei a casa do Rosa, é claro, que é o museu. E na terceira viagem, eu voltei a Cordisburgo pra conversar e desenhar as peças do museu, os objetos do Rosa. Nessa terceira viagem, eu fiz isso de sentar no museu e ouvir os meninos contadores de história, e me emocionar com eles. Como foi emocionante ouvir um adolescente contar uma página inteira do Rosa Então isso tudo fez parte de uma decisão minha de não conduzir somente o projeto dentro de uma postura racional. Eu preciso me emocionar com as coisas. E fui até Morro da Garça. Depois de passar pelo museu e de ouvir os meninos, eu fui até o Morro da Garça onde havia uma história de que o Rosa teria ido até o Morro da Garça pra ver se via assombração, se via duas bolas de fogo que aparecem lá durante a noite, umas coisas sobrenaturais que ocorrem nesse lugar. Então, eu fui lá pra também sentir isso, o que era isso, e pra desenhar o lugar, desenhar o Morro da Garça.
Eu conversei muito com o Tião Leite, que foi um dos vaqueiros dessa boiada do Rosa, e era o último vaqueiro vivo. Eu conversei com ele no portão da casa dele, porque ele estava proibido pelos filhos de tocar nessa história, porque eles achavam que a mídia, a imprensa, todo mundo só lembrava do Manuelzão e esquecia os outros vaqueiros. O Zito, que é um outro vaqueiro bastante falante também, que era outro contador de histórias, era poeta também, ele foi esquecido, ele foi apagado pelo brilho do Manuelzão, pela luz que o Manuelzão tinha. E o Tião Leite também. Na época que eu passei em Três Marias, o Zito já havia morrido e o Tião Leite era o único sobrevivente dessa época. Então, ele conversou comigo parado no portão, me falou que os filhos dele haviam proibido a ele de contar aquela história, mas que ele ia me contar algumas coisas. E eu carregava uma dúvida na questão do texto, porque o Zito falava de um menino que havia participado da boiada, mas que não havia entrado na entrevista na matéria da revista Cruzeiro e ele não entendia por quê. Já a matéria da revista Cruzeiro, falava que um menino havia acompanhado a boiada, mas da Vereda da Ponte Firme, o menino voltou pra fazenda com dois vaqueiros, que eram vaqueiros lá do Chico Moreira,. Aí me veio uma dúvida, porque a minha narrativa era a do menino, e eu me conduzi pela entrevista do Zito, aí eu tive uma grande dúvida. E conversando com o Tião Leite, ele falou assim: “Não, o menino acompanhou sim, levou, foi, foi até o final”. E eu perguntei se ele sabia o nome do menino, e ele falou assim: “Era o Nilson, era o filho do Manuelzão”. E ocorre que o Manuelzão já havia morrido e o Nilson também já havia morrido.
Então eu tive uma grande dúvida: como é que eu ia conduzir isto? Então, indo até Andrequicé e conversando com a, com a Dona Didi e os familiares do Manuelzão, eles não sabiam que o Nilson havia participado da condução da boiada. Então eu falei: “Mas como assim, ele, o Manuelzão, nunca falou disto pra vocês?”. Ele falou: “Não, porque eram muitas boiadas”. Aquela boiada era apenas mais uma. “Então se ele foi, se ele não foi, eu não sei dizer, só sei dizer que ele saía em várias”. Na dúvida de um e outro, e na minha esperteza, eu adotei o menino como narrador da história. Então, isso aí é um dos meus troféus desse contato com alguém que participou daquela boiada, que era apenas mais uma boiada. Ocorre que naquela boiada havia uma pessoa especial que era o João, que eles chamavam de João Rosa.
DEPOIS DESSA JORNADA:
Eu sou do durante, eu desejo fazer, eu preciso fazer, aí eu vou e faço. Tanto que esse livro No Longe dos Gerais, quando ele ficou pronto, eu não li o livro, porque eu tinha medo de ler o livro. Eu vim a ler um ano depois, porque são coisas que são muito grandes, às vezes, e eu tenho medo de não ter dado conta daquilo. Mas era algo que eu precisava fazer, que até faz parte de mim. Por eu não ter cursado uma escola superior, faz parte da minha, da minha formação precisar ler pra saber, pra conhecer as coisas. Eu acho que eu faço essas coisas pra eu conhecer mais sobre elas. Aí eu vou ler, vou pesquisar, vou desenhar, mas tudo porque eu li sobre essas pessoas e me vieram imagens na cabeça. Então, eu preciso fazer alguma coisa com essas imagens. Mas depois eu tenho medo de avaliar. Confesso.
CONTATO COM O LEITOR:
Quando eu fui convidado pra participar da Feira do Livro de Brasília, eu fui a uma escola pública lá da periferia. E essa Feira do Livro de Brasília tem esse projeto que todo autor que vai tem que ir numa escola pública. E eu fui numa escola lá chamada Recanto das Emas, e chegando lá, os meninos montaram uma peça de teatro com esse livro, No Longe dos Gerais. E eles deitaram, colocaram mesas em pé, mesas compridas, mesas altas, de mais ou menos 1,80, e um menino estendeu papéis e um dos alunos reproduziu os personagens do livro. E eu fiquei impressionado com a capacidade do menino. Ele tinha, na época, 13 anos. E eu fiquei impressionado com a capacidade dele de, olhando os desenhos, reproduzir naquele tamanho. Aí eu chamei ele num canto e expliquei pra ele sobre materiais, falei assim: “Olha, eu tenho pouco tempo aqui, e, mas eu preciso te falar de materiais e de papéis e de tudo, porque você tem capacidade pro traço, pra arte, você tem. Então a única coisa que eu posso te falar é isso, porque daqui a pouco eu vou embora. E eu admirei o que você faz, isso aqui eu não vou esquecer nunca”. E realmente, eu me vi com 13 anos, com toda a capacidade, mas que eu não sabia o que ia acontecer comigo. Por exemplo, lá com 12 anos eu tinha saído da escola, abandonado a escola, estava morando numa periferia violenta, eu não sabia o que ia, o que ia acontecer comigo. Mas eu sempre entendi também que desenhos são como mensagens em garrafas, que você joga na água e uma hora vai parar em alguém. No meu caso foi a dona Mariana, que era a amiga da minha mãe, e eu espero que eu tenha sido pra esse menino um outro passo.
Essas coisas me tocam, eu não poder voltar pra poder orientar e ver o que tá acontecendo com ele, porque o que me abriu a visão de mundo foi o desenho. Então, por isso é que eu me emociono sempre quando eu vejo alguém que tem capacidade pra arte, pra desenho, e eu vi muito isso por aí, eu vejo muito quando eu vou na escola. Sempre tem dois, três meninos que desenham bem, mas não tem como desenvolver, não tem uma escola.
PARTICIPAÇÃO NO PROJETO:
Nunca falei tanto da minha vida. Falei de coisas que me emocionaram, por exemplo, da minha família. A gente nunca abandona família; a gente nasce, a gente cresce, a gente sai, mas a gente tá sempre na família. Quando a gente casa, aí sai de casa, é como se a gente voltasse pra família. Eu tenho isso. Porque minha relação com minha família, com minha mãe, com meu pai, com meus irmãos sempre foi legal, então eu sinto falta, mas a família que eu tenho hoje é muito bacana também. Então, coisas que aconteceram comigo de ruim na infância, eu não quero reproduzir hoje. Então, eu acho que a gente vive é pra felicidade, a gente vive é pra ser feliz. Então eu quero dar felicidade pros meus filhos. Eu posso dar isso em livros, histórias, desenhos e ir relatando isso. E relatar minha vida é falar de desenho, porque, como eu falei no princípio, eu só lembro de mim desenhando, e permaneço desenhando até hoje.
Então minha vida é uma inteira formação eu estou sempre me formando. Então, quando eu leio um livro novo, pra mim é como se eu estivesse estudando a vida. Quando eu quero fazer um livro novo, quando eu tenho que sair pra pesquisar, é como se eu estivesse na escola, eu estou aprendendo coisas que não tive condição de aprender lá atrás, que eu saltei, mas que agora eu vou voltando. Isso me emociona, porque além de ser um trabalho bastante difícil esse de pesquisar o texto, eu tenho que pesquisar imagem também, então eu tenho que refletir sobre aquilo, eu tenho que ter idéias, eu tenho que executar, eu tenho que realizar aquilo. Tudo isso dá um volume de dedicação grande, mas é gratificante. Poder dar esse depoimento agora, pra mim, é gratificante; quando eu vejo que alguém se interessa pelo que eu venho fazendo. Eu não consigo avaliar o que eu fiz, eu não consigo parar pra avaliar porque é um desafio. Fazer um livro novo é um desafio. Por isso que eu tenho medo de ler os meus livros depois.
Mas quando alguém me convida pra falar disso, eu penso assim: “Não, tá valendo a pena, tá dando certo”. Então, como eu sou mineiro e gosto de um bom papo,
acho que vale a pena, foi legal.Recolher