P/1 – Rosana, seja bem-vinda. Obrigada pela sua presença aqui com a gente. Em nome do Museu da Pessoa e do Programa Nutrir Nestlé. Pra gente deixar registrado, por favor, seu nome completo, data e local de nascimento.
R – Meu nome é Rosana Padial da Silva. Eu nasci em Agudos, interior do estado de São Paulo, no dia 18 de julho de 1963.
P/1 – Conta um pouquinho desses sobrenomes, Padial, Silva.
R – É uma mistura mesmo de uma descendência espanhola, para o lado da minha mãe e, até onde eu sei, uma descendência africana. Agora, como esse Silva chegou no Afro eu não sei. Porque segundo as histórias que meu pai me contava, e eu cheguei a conhecer meu bisavô, ele foi fruto da lei do Ventre Livre, então meu bisavô nasceu livre. Ele casou com uma primeira mulher, da qual meu avô nasceu, depois ficou viúvo e casou de novo com uma outra, que pasmem, era austríaca. E dessa segunda união teve outros irmãos do meu avô, outras pessoas, e foi assim. Meu pai vem com esse Rodrigues da Silva, que é muito próximo dos portugueses, não dos africanos, e a minha mãe vem com o Padial. Minha mãe veio com a descendência espanhola, eu também conheci meus bisavós espanhóis.
P/1 – Que sorte.
R – Foi. Não os quatro, mas a mãe e o pai da minha avó, mãe da minha mãe. Ela só falava espanhol. Todos vieram de uma herança de trabalho da terra mesmo. A minha bisavó da Espanha, esssa espanholinha, até o final da vida morou num sitiozinho no Paraná cuidando de terra, cuidando de galinha, de horta, de roça. E o meu bisavô, o africano, esse já veio para cidade, saiu da roça, mas trabalhou na roça também. E eu o conheci, na época ele era já velhinho, e ele vivia de fazer canecões, tachos, com latas de óleo. Na época os óleos eram vendidos em latas, latão. E meu bisavô transformava essas latas em latões, canecas, tinha muita canequinha, muito tacho feito de lata de óleo. Veio daí esses...
Continuar leituraP/1 – Rosana, seja bem-vinda. Obrigada pela sua presença aqui com a gente. Em nome do Museu da Pessoa e do Programa Nutrir Nestlé. Pra gente deixar registrado, por favor, seu nome completo, data e local de nascimento.
R – Meu nome é Rosana Padial da Silva. Eu nasci em Agudos, interior do estado de São Paulo, no dia 18 de julho de 1963.
P/1 – Conta um pouquinho desses sobrenomes, Padial, Silva.
R – É uma mistura mesmo de uma descendência espanhola, para o lado da minha mãe e, até onde eu sei, uma descendência africana. Agora, como esse Silva chegou no Afro eu não sei. Porque segundo as histórias que meu pai me contava, e eu cheguei a conhecer meu bisavô, ele foi fruto da lei do Ventre Livre, então meu bisavô nasceu livre. Ele casou com uma primeira mulher, da qual meu avô nasceu, depois ficou viúvo e casou de novo com uma outra, que pasmem, era austríaca. E dessa segunda união teve outros irmãos do meu avô, outras pessoas, e foi assim. Meu pai vem com esse Rodrigues da Silva, que é muito próximo dos portugueses, não dos africanos, e a minha mãe vem com o Padial. Minha mãe veio com a descendência espanhola, eu também conheci meus bisavós espanhóis.
P/1 – Que sorte.
R – Foi. Não os quatro, mas a mãe e o pai da minha avó, mãe da minha mãe. Ela só falava espanhol. Todos vieram de uma herança de trabalho da terra mesmo. A minha bisavó da Espanha, esssa espanholinha, até o final da vida morou num sitiozinho no Paraná cuidando de terra, cuidando de galinha, de horta, de roça. E o meu bisavô, o africano, esse já veio para cidade, saiu da roça, mas trabalhou na roça também. E eu o conheci, na época ele era já velhinho, e ele vivia de fazer canecões, tachos, com latas de óleo. Na época os óleos eram vendidos em latas, latão. E meu bisavô transformava essas latas em latões, canecas, tinha muita canequinha, muito tacho feito de lata de óleo. Veio daí esses dois nominhos (risos), essa mistura, os dois sangues muito quente.
P/1 – E como esse povo todo foi parar em Agudos, tem alguma história aí?
R – Isso eu não sei, essa parte eu não sei. Sei que se conheceram...
P/1 – Seus pais, você lembra do nome dos seus pais? Sabe o nome dos seus pais? Sim, né? (risos). Geralmente essa pergunta é pros avós, você lembra dos avós? Você deve saber até dos bisavós, não é, porque...
R – Então! Eu sei mesmo. Esse meu bisavô que mexia com as latas, que era o avô do meu pai, era Roberto, o sobrenome eu não lembro. A segunda mulher dele chamava-se Maria, a conhecíamos como Maria, que vinha desse austríaco aí. E da minha mãe, a minha bisavó que era mãe da minha avó chamava Bernabella e o meu bisavô se chamava José, era Martins o sobrenome dos dois, esses dois eu sei. A minha mãe chama Dorcinda Padial da Silva, que era o nome de uma tia dela também, porque esse nome é inédito, não é? E meu pai chamava-se Valdir Rodrigues da Silva. Desses dois nasceram eu e mais quatro irmãos, somos cinco filhos dessa união.
P/1 – Todos nasceram em Agudos?
R – Todos nasceram em Agudos.
P/1 – Conta um pouquinho da sua infância lá, você lembra da sua casa?
R – A minha infância foi uma infância de uma criança dos anos 60, 70, muito tranquila. Uma infância de muita brincadeira, uma infância de muita vida na rua, sem medo. Uma infância de muito desbravamento do município com bicicleta (risos), conhecíamos toda a cidade com bicicleta. Descobríamos cachoeira no meio do mato, de bicicleta. E era muito legal porque eu acho que é isso que me deu na vida adulta uma noção de espacialidade muito interessante, é muito difícil eu me perder, não saber de onde que eu vim para onde eu vou (risos), geograficamente falando. E isso era das nossas férias de bicicleta, então brincávamos mesmo de subir em árvore, o quintal da casa da minha avó é um quintal maravilhoso, um quintal enorme, sou apaixonada por esse quintal. Tinha árvore frutífera, horta, galinheiro. Minha avó nunca comprou ovo, sempre teve galinhas, sempre produziu os ovos. Agora a minha mãe que está assim. A minha avó está com 94 anos, vai fazer 95. A minha mãe está com 73 e desde o ano passado começou a produzir ovos, verduras, é como se a minha avó tivesse aberto uma última herança e minha mãe assumido essa herança. Estou tentando chegar perto dela, mas tá difícil (risos) porque eu sou muito da cidade. Apesar de ter tido uma infância numa cidade pequena e ter até entrado no meio do mato, eu sempre tive medo do mato (risos), eu ia com os amigos, mas não ia sozinha. É uma escola que estou tentando chegar perto, tentando.
P/1 – Seus pais faziam o quê?
R – O meu pai era contador, trabalhava com Contabilidade, trabalhou por muito tempo. Em Agudos a gente tinha uma única empresa grande, que era a Brahma, tem ainda. Meu pai trabalhou no setor de Contabilidade dessa empresa. Depois ele saiu e foi para uma outra empresa, que é a única que tem em Agudos até hoje. Hoje chama-se Duratex, mas antes era Freudenberg, era uma empresa de alemães. Meu pai trabalhava na Contabilidade. E depois foi trabalhar em escritórios pequenos. O meu avô não tinha deixado minha mãe estudar porque, segundo o meu avô, mulheres não precisavam estudar. Minha mãe sempre gostou muito, sempre quis estudar e só conseguiu voltar a estudar depois de casada. Porque quem a incentivava a estudar era o meu pai. A minha mãe tinha feito até o quarto ano primário, meu pai incentivou e minha mãe voltou a estudar quando ela tinha dois filhos já. Ela voltou para quinta série, fez todo o ginásio da época, depois fez o colegial, não era supletivo, foi regular. Casada, com filhos. No colegial, no segundo grau tinha uma opção, você faria Magistério ou continuaria no segundo grau normal. A minha mãe optou pelo Magistério, fez o Magistério e começou a carreira de professora. Aí ela já com três filhos terminou o Magistério, não parou, na época era especialização em pré-primário, fez especialização. Não parou, fez Pedagogia. E terminou fazendo uma carreira nas escolas estaduais lá em Agudos. Foi professora, assistente de direção, inspetora de alunos e se aposentou na Educação. O meu pai faleceu e não lembro o ano, mas sempre como contador. E a minha mãe fez um caminho na Educação.
P/1 – Ele foi para lá, para trabalhar na Brahma?
R – Não, acho que eles já eram de lá. Meu avô, pai do meu pai, trabalhava na CPFL, que era Companhia Paulista de Força e Luz, hoje Eletropaulo aqui em São Paulo, mas no interior ainda é CPFL. Meu avô trabalhava na CPFL, então eles trabalhavam em Agudos.
P/1 – Já era de lá.
R – É, já era de lá. Eu não sei como eles foram parar lá, nunca perguntei isso (risos).
P/1 – Sua mãe foi professora sua?
R – Minha não. Quando ela começou a dar aula, eu já estava no segundo grau. Ela nunca foi professora dos filhos.
P/1 – Conta um pouquinho dessa história da educação, como foi a primeira infância educacional.
R – Da minha?
P/1 – É, da sua.
R – Eu estudei em escola pública durante todo o primeiro grau. No Fundamental II, antiga quinta a oitava série, estudei numa escola particular lá em Agudos mesmo, era um colégio de freiras. Era uma tentativa de se preparar paro o segundo grau. Aí estudei nessa escola a partir da sétima série. Foi uma formação de freiras, um colégio de freiras, uma formação diferente da escola pública. Já tinha algumas diferenças, era sempre considerada a melhor, mais exigente. E no segundo grau optei por fazer como a minha mãe, e fiz magistério. Em vez de fazer colegial, fiz magistério. E durante meu curso de magistério, comecei a trabalhar na área social como monitora em uma casa de idosos. Tinha uma assistente social que precisava de uma monitora para acompanhar e eu fui ser essa monitora junto com ela. Eu gostei dessa profissão de assistente social. E aí, com o apoio dessa assistente social, que tinha feito faculdade em Lins, eu falei: “Ah, eu também quero fazer. Acho que quero fazer esse curso”. E aí fui fazer. Passei no vestibular, comecei a trabalhar, a estudar e fui sair de Agudos, em 1983. Eu fiz faculdade de Serviço Social em Lins. Terminando a faculdade vim para São Paulo, com o coração na mão e com o mapa do metrô na outra (risos). Porque eu só sabia andar de metrô (risos). Tudo o que eu precisava fazer tinha que ser na linha do metrô, desde banco, tudo, tudo. E na época o ônibus de Agudos parava na rodoviária do Tietê e lá tinha banco. Então abri minha conta bancária lá (risos), eu recebia por lá, só andava com o mapinha do metrô na mão e o coração na outra. E assim foi a minha vinda em São Paulo, em 86 eu cheguei em São Paulo. Eu trabalhei na Zona Leste por vários anos.
P/1 – Mas por que você veio pra São Paulo?
R – Eu vim para trabalhar.
P/1 – Você veio procurar emprego?
R – Não, eu já vim com trabalho. Eu era assistente social formada e estavam precisando de uma assistente social numa comunidade lá no Burgo Paulista, perto da Vila Ré, Vila União, do E. Carvalho, aquela região. Eu cheguei a São Paulo em 86, no auge das ocupações de terra e fui trabalhar numa comunidade ligada à Igreja Católica. Na época as Comunidades Eclesiais de Base estavam fervendo, o Serviço Social estava passando por uma influência forte de revisão de postura e assumindo uma postura mais combativa, estava num movimento de reconceituação do Serviço Social. Estávamos começando a discutir, no Serviço Social, a absorção das políticas sociais pelo Estado. Estava começando essa conversa. A Luíza Erundina era uma precursora dessa conversa, dessa discussão, e assim cheguei para fazer esse trabalho nessa comunidade, em convênio com a prefeitura de São Paulo. Foi meu primeiro trabalho em São Paulo, foi meu primeiro começo em São Paulo, aí fui conhecendo várias pessoas, várias assistentes sociais. Logo em seguida a Luíza Erundina foi eleita. E quando ela foi eleita, a Zona Leste fervia de movimento e eu estava lá, no meio de todas aquelas pessoas. Fazíamos campanhas para apoiar o pessoal que tinha feito a ocupação na E. Carvalho, no Jardim São Carlos. Eu era marxista assim, temos que fazer a virada dessa sociedade, vamos fazer. Se for para fazer, vamos fazer. Vinte e poucos anos, olha que delícia! Aí, a Marta Bruno, que era uma assistente social da mesma equipe, da mesma região que eu, no governo da Luíza Erundina, assume a Supervisão Regional de Bem-Estar Social de São Miguel Paulista e monta uma equipe para trabalhar com ela. E nessa de montar uma equipe, me convida. Eu saí desse trabalho da comunidade do Burgo Paulista e fui para um cargo de comissão na administração do município de São Paulo, na Zona Leste, na região de São Miguel e assumi a coordenação. Na época estávamos organizados em microrregiões, então São Miguel era uma grande região e comportava cinco microrregiões. Eu coordenava uma microrregião. Nesse período de coordenação de uma microrregião o nosso trabalho da assistência social era diretamente com criança e adolescente. As creches em São Paulo pertenciam à assistência social. Tínhamos os programas, os CJs, que eram os contraturnos para as crianças maiores e a educação infantil, que na verdade eram as creches. E foi nesse período que também começou uma grande discussão na educação e uma nova concepção de criança. A Emília Ferreiro vem com a teoria da Psicogênese da Escrita. Piaget “bomba” no sentido da formação que essa criança é um ser pensando, ela tem reconhecimento de mundo, ela se posiciona no mundo. E aí fui descobrir a educação no social. Aí foi a coisa mais gostosa do mundo. A minha formação de magistério, me deixava algumas lacunas com relação a esse caminho na Educação. Mas como nunca estamos sozinhos e tudo acontece junto, descobri a Madalena Freire nessa época, que estava voltando a trabalhar com grupo de formação. E me engajei e me entreguei para a formação da Madalena. Então a minha formação na área de Educação é totalmente de autoria da Madalena.
P/1 – Formação de professores?
R – É, ela fazia formação de educadores. E para ela educador nunca foi só professor. Educador é todo mundo que está atento nisso. E aí uma assistente social caberia nesse grupo. E até para poder pensar nas escolas, pensar na educação infantil, pensar naquela concepção nova de criança, compreender isso, eu precisava estudar. E eu pude fazer a formação com a Madalena. Fizemos acho que dois ou três anos, encontros mensais que eram as Noitadas Pedagógicas. Nesses encontros mensais a Madalena ia conhecendo o grupo, e ia trabalhando o grupo porque ela é muito artesanal no trabalho de formação, no sentido de construção de grupo. Ela confia muito na formação a partir do grupo. Depois das Noitadas Pedagógicas ela abriu o Espaço Pedagógico, que era um curso de formação de três anos, regular, de encontro semanal de educadores. E algumas pessoas só poderiam ir para lá se tivessem passado pelas Noitadas, porque aí você já tinha um tato do caminho a ser percorrido. E aí foi a revolução na minha formação, um curso de formação de três anos, que foi onde construí o meu conceito de gente mesmo.
P/1 – Mas ao mesmo tempo você estava na microrregião.
R – Estava na microrregião, eu comecei na microrregião a fazer esses cursos. Depois a Luíza perdeu a eleição seguinte, e tivemos que sair, todo mundo deixou o cargo e eu fui parar na Secretaria do Menor na época, porque era a que tinha o projeto mais adequado para educação infantil, eram as creches, que ainda têm uns equipamentos na linha do metrô, eram umas creches bonitas que a Tomie Ohtake tinha desenhado. Eram bem bonitas, coloridas, e tinham uma estrutura ideal para educação infantil. Quando saí da prefeitura já tinhamos conhecido outras pessoas e fui trabalhar na Secretaria do Menor. Na época era o Fleury o governador, a Alda Marco Antônio a secretária, e eu fiz parte da equipe de direção da creche do Metrô Patriarca. Mas ali eu continuei estudando. Nesse período trabalhei diretamente, então fiz um caminho muito interessante, pois fui do grande para o pequeno, então eu vim da Política Pública, do que eu defendia como Política Pública, depois tentei operacionalizar o que eu defendia como Política Pública, dentro do equipamento, e toda a questão era essa relação dessa educação formal, proposta pela política de educação, com a comunidade. Como é que isso se dava? Era sempre isso que eu me perguntava. Como fazemos um trabalho na instituição que se sustenta? Porque a criança vai ficar aqui até os seis anos, e depois vai embora. Como é que fica essa comunicação? Estava sempre perseguindo isso. E foi no Espaço Pedagógico que formei a minha concepção de sujeito, como sujeito social. Todos nós somos sociais, cognitivos, ou seja, temos uma capacidade de aprendizagem e de lógica, de funcionamento cognitivo importantíssimo. Somos estéticos e somos afetivos. Eu não consigo ainda rever essa concepção, acho que todo homem é assim, ele é social, ele é cognitivo, ele é estético e afetivo. E esse curso era ministrado por quatro professores. A Madalena Freire que dava a questão metodológica de como operar essa concepção, de como compreender isso, como fazer isso. A Juliana Davine, que era psicanalista e colocava a Psicanálise em função da Educação. A Miriam Celeste, que era professora de Artes e que nos alfabetizou no mundo das artes. E a Fátima Camargo que também era pedagoga e trabalhava com as questões cognitivas. O curso era dividido em Metodologia, Psicanálise, Arte e Desenvolvimento Infantil. Foi a maior revolução da minha vida essa formação, então sempre falo, tem duas Rosanas, uma antes do Espaço e uma depois do Espaço. E com essa depois do Espaço é que eu fui caminhando porque...
P/1 – Como é que chama? É Espaço de Formação?
R – Chamava-se Espaço Pedagógico. Depois ele fechou, ele se desmanchou, elas foram trabalhar separadas e fizeram outros caminhos. Mas até hoje encontramos com essas professoras, encontramos as ex-alunas, as meninas que faziam parte do meu grupo. As meninas, as mulheres (risos) que faziam parte do meu grupo. Nós nos reconhecemos. É fácil saber quem fez Espaço Pedagógico e quem não fez. Era uma proposta muito viva para Educação. Muito viva.
P/1 – Era particular?
R – Era. Completamente fora do sistema educacional. Elas também tinham uma liberdade muito grande de exercitar várias possibilidades de criação. De currículo, de metodologia e nos entregávamos para isso porque valia muito a pena. Valia muito a pena.
P/1 – Você sabe a história de como elas se juntaram?
R – Não sei, não sei. Elas se conhecem de outras esferas, não sei como se juntaram.
P/1 – Você foi uma das primeiras turmas ?
R – Fui. Acho que fomos a segunda ou terceira turma do Espaço.
P/1 – Você lembra quando foi isso?
R – Isso foi 90? A minha história com o Espaço foi longa porque tiveram as Noitadas Pedagógicas, e em seguida o curso de três anos...
P/1 – Ah, tudo isso era dentro desse espaço?
R – Era. Foi longo o meu processo com eles, foi muito longo. Depois tentamos rearticular o grupo de ex-alunas, de nos reencontrarmos para falar dessa revisão metodológica, dar esse feedback de quanto dava, como que apoiava, como não estava dando de apoio. E foi nessa época que tentamos fazer um grupo de ex-alunas. Eu estava trabalhando em um outro projeto, havia saído da Secretaria do Menor, pois foi um estresse horrível quando Mario Covas, maldito, destruiu toda aquela proposta de educação porque, segundo ele, não era viável economicamente. E não era mesmo, do ponto de vista do custo das creches para a Secretaria do Menor. Na época o custo dava 180 reais por criança. E a per capita das políticas públicas era de 16, 20, 40 no máximo. Então, por uma questão econômica ele desmontou todo o esquema. Elas eram um oásis também, não uma política social. Ao invés de transformar isso em política, não, resolveu sucatear. Então foi muito estressante, aí fiquei um semestre sem trabalhar (risos). Foi um semestre que precisei não trabalhar, quase tive um infarto. E no final do ano de 92, início de 93, reencontrei numa vernissage, numa exposição de artes de uma amiga em comum, a Adriana Teixeira, que eu havia conhecido na época da prefeitura em São Miguel. E a Adriana havia feito um trabalho com a minha microrregião. Nessa vernissage nos encontramos rapidinho, e ela falou: “O que você está fazendo?”. Eu falei: “Nada. Você tem alguma coisa aí, legal para fazer?”. Ela falou: “Eu tenho. As condições são péssimas, mas a ideia é boa” (risos). Falei: “Então vamos conversar”.
P/1 – Você já estava acostumada.
R – Ah, já estava acostumada. Então falei: “Vamos conversar”. Foi quando a Adriana me apresentou um projeto que havia criado e que estava dentro do Núcleo de Trabalhos Comunitários da PUC, o projeto do Ônibus Ludicidade. E nessa época estava acontecendo uma explosão de discussão do brincar e das brinquedotecas em São Paulo, no mundo. O IPA estava se organizando. Só se ouvia falar de se brincar e desses espaços de se brincar, que eram as brinquedotecas.
P/1 – Situe-nos apenas de quando foi, você lembra?
R – 92, 93. No início dos anos 90 chega ao Brasil o “raio” da ideia do Terceiro Setor, e algumas empresas se organizam. Então o Instituto C&A começa a financiar projetos, e tatear um pouco essa história. O Instituto C&A era de fato o mais expressivo. A Adriana Teixeira, essa minha amiga, já era consultora para os programas de Responsabilidade Social do Instituto C&A na sua primeira fase. E por meio deste projeto do Ônibus Ludicidade, ela havia feito sua inscrição na Ashoka para se tornar uma fellow da empresa. Quem foi o padrinho da Adriana e apresentou o seu projeto na Ashoka foi o Tião Rocha, que é de Araçaí. Então, em 88, 89, 90, 91, 92, tinha tudo isso acontecendo. E no final de 92 foi que reencontrei com a Adriana e ela me falou desse projeto: “Ah, eu tenho um projeto. Tenho um trabalho, as condições são péssimas, mas a ideia parece que é boa”, que era o Ônibus Ludicidade. Falei: “Então vamos conversar”. E ela me explicou o que era. Essa amiga da vernissage já havia me contado que a Adriana tinha inventando uma moda por aí que estava bem legal. E a Adriana veio e me contou, ela falou: “Olha, é assim. É um ônibus que é uma brinquedoteca que vai para a comunidade e volta durante o período de dois anos. No final desses dois anos ele não vai mais para a comunidade, mas se a comunidade quiser um espaço comum de brincar para essas crianças, ajudamos a constituir. Lá em Itaquera a comunidade quis, e acabamos de construí-lo e estamos precisando de um educador para ficar lá por mais três anos para fazer a passagem da propriedade dessa brinquedoteca para a comunidade, porque ela tem que ser da comunidade, não adianta ser nossa”. Eu falei: “Noooosssaaaa, era tudo o que eu queria”. Porque eu sempre estava nessa relação institucional e comunitária e de como é que isso se dava. Então falei: “Eu topo”.
P/1 – Mas esse projeto era financiado...
R – Então, a Adriana criou esse projeto dentro do NTC, que era o Núcleo de Trabalho Comunitário da PUC. Na época a Adriana estava fazendo mestrado em História, ela fez Psicologia e agora estava no mestrado lá da PUC. Então ela estava no mestrado e no Núcleo de Trabalhos Comunitários da Universidade. Esse projeto, o Ônibus Ludicidade, era mantido pelo dízimo de uma comunidade da Alemanha. Então a comunidade da Alemanha arrecadava o dízimo, dava em médio acho que dez mil dólares/ano, e esses dez mil dólares/ano bancavam o Ônibus Ludicidade lá em Itaquera. Eu passei a receber 600 dólares.
P/1 – O projeto Ônibus Ludicidade era financiado por quem?
R – Ele era financiado por uma comunidade na Alemanha. Uma cidadezinha pequena arrecadava o dízimo e o mandava para Estela Graziani, que era a coordenadora do Núcleo de Trabalhos Comunitários da PUC. E a Estela investia esse dinheiro no projeto. Era uma coisa muito confusa esse NTC da PUC, ele era dentro da PUC, mas a PUC não dava dinheiro, tinha que captar dinheiro. A Estela sempre teve uma relação forte com a Pastoral da Criança, com o Júlio, então ele apresentava a Estela, a Estela captava recursos, era uma confusão, mas eu não sabia de nada disso. O que eu sabia era: “Nós temos um projeto dentro do Núcleo de Trabalhos Comunitários da PUC, estou precisando dessa pessoa para fazer essa segunda fase, você topa?”, eu falei: “Eu topo”. E por 600 dólares/mês (risos) topei fazer essa segunda etapa. Quando topei fazer essa segunda etapa, a Adriana entrou como fellow da Ashoka, então recebia bolsa da Ashoka. A Adriana recebia essa bolsa para coordenar o projeto e eu recebia a parte da Adriana para executar o projeto lá. E a Adriana ainda era consultora dos programas sociais no Instituto C&A, então estava acompanhando o movimento da implantação desse Terceiro Setor, ou o que viria a ser isso. Nesse período começamos a trabalhar juntas e acho que foi a maior coisa que fizemos na vida. E foi no terceiro ano do projeto, quando a brinquedoteca já estava como propriedade da comunidade, que já tinha constituído uma pessoa jurídica na comunidade e uma associação para tomar conta da brinquedoteca, que a Nestlé apareceu na nossa vida. Foi aí que apareceu. Por quê? Estava havendo a implantação do Terceiro Setor, as empresas estavam se organizando. A Nestlé não tinha programas com identidade, ela tinha ação comunitária e para se comunicar no Terceiro Setor, ela precisava de um projeto que fosse seu e que desse a identidade que precisava enquanto empresa. Na época era o Francisco Garcia o Gerente de Assuntos Corporativos, era o professor Faccina o diretor. E era o Chico que teve a missão de procurar esses projetos. Ele estava a fim de achar o que a Nestlé podia fazer e foi pesquisar para tudo quanto é lado, inclusive na PUC. Chegou a PUC, o projeto que estava dando certo do NTC era o Ônibus Ludicidade, então ele conheceu a Adriana e a mim. A Adriana como a idealizadora e coordenadora do projeto do ônibus e eu como educadora lá da ponta, nos conhecemos nesse contexto. O Chico gostou do projeto e a primeira proposta foi comprar o Ônibus Ludicidade da PUC. Essa foi a questão, por isso que o Chico é uma pessoa importante. A primeira ideia é um projeto que está funcionando, então vamos pagar por esse projeto, ele passa a ser nosso, mas só que tem que ser essas duas para tocar esse projeto, porque se não for essas duas quem que vai tocar esse negócio? (risos).
P/1 – Vocês já o conheciam, não?
R – Exatamente. E chamou a Adriana Teixeira para pensar um programa para Nestlé. Então, essa fase foi muito forte viver tudo isso assim. E a Adriana é muito valente, muito criativa. A Adriana é danada. Ela topou. A única coisa que ela perguntou foi assim: “Se eu topar você me ajuda?” “Uai, claro, né? Lógico”. E aí fomos lá, as duas mosqueteiras, mais ela do que eu, numa reunião na Nestlé. Foi quando o Chico propôs se ela não queria realizar, criar e fazer a consultoria oficial para um novo programa para a Nestlé. Eu gelava, eu tinha um medo que falava: “Gente do céu! Para Nestlé? Um gigante desse, duas formigas dessas fazendo um negócio para Nestlé? Como é que nós vamos fazer” (risos). E fiquei muito chocada, o primeiro tombo na minha existência foi que a iniciativa privada, representada pelo Chico, foi muito sensível a uma trama que a universidade deveria ter sido...
P/1 – E que eram suas escolhas, não é?
R – E que eram as nossas escolhas. Essa foi a primeira rasteira nas mudanças de paradigma da minha existência.
P/1 – O marxismo pegou e “Ôpa” (risos).
R – Ele revirou do túmulo (risos). Eu falei: “Não é possível. O que está acontecendo neste mundo que um cara dessa empresa protege a gente quando a universidade que tinha que proteger?”. E a universidade que quis “fu”. Olha, foi a primeira rasteira teórica, paradigmática, existencial. Foi uma coisa. E naquele momento, naquela circunstância, eu acho que pessoalmente, fiz um pacto de, acho que o Chico [Garcia] não sabe disso, mas fiz um pacto de lealdade com ele. Não com a Nestlé, mas com o Chico [Garcia]. Porque era o Chico [Garcia] tinha que dar certo. Porque para mim sempre foram as pessoas que pesaram. Sempre foram as pessoas. E a postura dele foi de valentia porque ele apostou em duas formigas, exatamente uma formiga, para pensar no carregar aquele elefante. Era uma formiga para carregar um elefante. Uma formiga valente, porque a Adriana é valente, que topou o negócio. E foi assim que a Adriana criou o Programa Nutrir. Ela já tinha uma bagagem como consultora a partir da C&A. E a criação do Nutrir, a ideia, a gênese do Nutrir, como ele foi concebido, ele é da Adriana. É lógico que ela fez para Nestlé, é um programa da Nestlé, é da Nestlé. É desse Nutrir que eu tenho orgulho de falar. Não é do Nutrir que tem hoje, que hoje ele tem uma outra cara que nem conheço. Mas é desse que a gente ajudou a fundar. E que por discursos ditos e não ditos fomos criando um pacto de lealdade, então, o programa tinha que dar certo, e faríamos dar certo. E para o Chico [Garcia], corporativamente, ele precisava dar certo. Então, enquanto fui para a operacionalidade, fizemos escalas de desenvolvimento desse programa. Fizemos o lançamento do programa, que era uma cara nova, que era o Programa Nutrir.
P/1 – Deixa só eu marcar algumas coisas, daí voltamos para o lançamento.
R – Ok.
P/1 – Você lembra quando foi essa primeira reunião?
R – Foi em 99. Em 93 eu entrei, em 98 deu cinco anos, 99 aconteceu toda essa bagunça.
P/1 – De saída da PUC e o Chico [Garcia] abraçar?
R – Isso. Em 99 aconteceu tudo isso. Quando foi final de 99 a lançamos o programa Nutrir na empresa.
P/1 – E conta um pouquinho dessa reunião, desse frio na barriga que você ficou (risos).
R – Eu fiquei com esse frio na barriga por conta desse tamanho de desafio, pois sempre tivemos a empresa como uma empresa muito mega. Eu nunca tinha pisado numa empresa, eu trabalhava do lado de fora, na comunidade, trabalhava na faculdade. Eu já tinha até dado aula em universidade, estava sempre para o lado de fora. E a empresa, para uma marxista, é um monstro, então nunca tinha pisado. E aí comecei a ter uma quebrada de coluna atrás de outra, não é? Pois era tudo gente também do lado de cá. Eram pessoas que tinham poder, que ditavam regras. Então, era importante também que essas pessoas (risos) tivessem assessoradas por outras pessoas legais. E aí que fui ficando, e aí que fui me acalmando com relação à relação institucional corporativa. Eu não sou calma com eles ainda, mas bem mais calma do que eu era eu sou (risos). E isso foi muito... Agora eu não sei se naquela época existia uma possibilidade de existir isso na Nestlé porque eles estavam procurando esse programa, uma identidade. O presidente era o Ricardo Gonçalves, que era um presidente muito fino, muito gentil também. Muito sensível. E conseguimos fazer o Nutrir nascer na mão do Ricardo Gonçalves. Acho que ele ficou uns dois anos. O fundamos em 99, acho que o Ricardo Gonçalves saiu da Nestlé em 2001. Acho. Não sei. Final de 2000 ou 2001, saiu logo. E logo chegou o seu Ivan Zurita. Esse período foi “trash”.
P/1 – Nessa reunião você lembra quem estava? Nessa primeira reunião quando vocês foram lá apresentar, negociar?
R – Nessa reunião era o Chico [Garcia], a Sandra Campos, que não está mais na Nestlé, nem sei, mas era uma pessoa difícil. A Adriana [Teixeira] e eu. Conversávamos com o Chico, o Chico conhecia muito bem a empresa, sua diretoria e todo mundo, e ele levava, não éramos nós que levávamos. Apresentávamos o conteúdo, ele fazia a baliza e levava. Porque era para aquele setor que estávamos trabalhando, então não éramos nós.
P/2 – Você falou que a passagem do Ricardo Gonçalves para o Ivan Zurita foi um período meio crítico?
R – Meio não, foi totalmente.
P/2 – Por quê?
R – Porque eram gestões completamente diferentes. O Doutor Ivan [Zurita] nunca foi uma pessoa generosa, nem foi uma pessoa sensível. Sempre foi uma pessoa muito interesseira, muito vaidosa. E imprime isso na gestão. Reza a lenda que se ele encontrasse alguém no elevador que ele não fosse com a cara ele mandava embora. Reza a lenda que ele mandou desinfetar a sala, trocar a cadeira, sabe essas coisas? Lenda. Mas lenda, o que é uma lenda? (risos) A lenda é para explicar o inexplicável, não é? Então assim, eles eram perfis muito diferentes. E ouvíamos a comparação nos bastidores: “Nossa...”. As pessoas tinham medo de encontrar com ele. Sabe quando uma autoridade é muito prepotente e tirana e ao invés dela implantar o respeito ela implanta o medo e você se relaciona com ela a partir do medo? Então era sempre isso. Foi muito essa marca que gerou depois, na outra gestão. Mas isso é muito perigoso até de usar porque eu não sou interna, estou falando das minhas impressões.
P/1 – Mas como chegou isso em vocês?
R – Isso chegava por conta dos voluntários. Isso não chegava explicitamente, chegava pela tensão como o voluntário vinha, chegava pela maneira como os chefes se portavam. Para quem é educador lê, não é? Esqueceu que eu fiz lá atrás o meu curso (risos) de sujeito afetivo?
P/1 – Mas o programa não chegou a balançar, ele continuou.
R – Então, essa foi a questão. Por quê? O mercado exigia um programa com identidade e conseguimos trabalhar tanto que quando ele chegou o programa já estava forte e tinha uma identidade. E na escala de implantação do programa, fizemos o seu lançamento e trabalhamos a sede administrativa, em São Paulo. Depois, os chefes de RH. Depois todo o voluntariado e sua implantação. Depois da implantação do voluntariado, começou-se a fazer a formação dos professores e a divulgação do programa para fora. Então a Adriana era muito astuta nesse sentido, e o Chico muito valente porque a defesa corporativa do programa e como ele deveria se manter era feita pelos funcionários diretos da Nestlé, era o Chico, a equipe dele, a equipe de Comunicação. E eu não sei como eles faziam isso, mas até a chegada do Helvio, que para mim foi um desastre, o Nutrir foi protegido institucionalmente. Por isso que ele conseguiu fundar de verdade e virar essa referência internacional que virou. Quando o Helvio chegou e o Nutrir existia com consistência, essa é a minha leitura e a minha história, ele achou que deveria projetar isso. Na medida que ele fez essa projeção, ele desprotegeu o programa.
P/2 – Isso foi por volta de qual ano?
R – 2009, 2010. Foi muita mudança. Foram mudanças de pessoas dentro do setor porque o Helvio entrou no lugar da Silvia Zanotti, a Silvia Zanotti fazia também essa proteção. Ela trabalhou um tempo com o Chico, ela entrou depois no lugar do Chico, então para mim as duas pessoas mais importantes mesmo que eu falei no workshop continuam sendo a Adriana como criadora, é inquestionável, mas o Chico e a Silvia foram duas pessoas que protegiam institucionalmente aquele programa que não era valorizado pela empresa, mas tinha conteúdo na hora que pedia. E na hora que precisava acionar, você entrava com pata de elefante na mesa e mostrava, entendeu?
P/1 – No sentido que eu faço?
R – É. Eles faziam muito exercício de tentar mostrar que era uma coisa que dava certo, que era uma coisa que fazia, que isso, que aquilo. Então quando vinha uma cobrança eles motravam, mas ninguém... Eu não sei como eles faziam essa proteção institucional, mas nos sentíamos muito protegido, entendeu?
P/1 – Você e a Adriana nunca foram colaboradoras da Nestlé?
R – Não.
P/1 – Sempre foram...
R – Terceiras.
P/1 – Consultoras.
R – Sempre, sempre. A hora que a Adriana viu que o programa estava rodando, que é uma característica dela, que o programa estava implantado, ela foi saindo do programa, foi fazendo outras coisas. Eu é que sou mais de raízes, aí fui ficando. Eu sou aquela que vai ficando, vai ficando, vai ficando (risos) e sempre saio meio traumatizada das histórias porque vou brigando, vou brigando (risos). Com a chegada do Helvio, fui um ponto de resistência muito forte para ele, porque tinha toda essa história, eu sabia dessa proteção. “Não faz isso, não mostra. Faz de um outro jeito”. Eu não sabia como era o outro jeito, entendeu? Eu não sabia como a Silvia fazia, como o Chico fazia, mas eu sabia que não era daquele jeito. Nossa, foram grandes embates. Aí eu saí. Eu falei: “Olha, o programa é seu, pode fazer o que você quiser”, foi aí que saí do programa. Com a chegada dele e com as mudanças que ele foi pondo que, para ele, dentro da direção nova, do novo contexto, estava justo. Eu acho que as coisas mudam mesmo, mudam. Mas esse programa do qual eu falo, do programa no qual trabalhei, o programa que ajudei a fundar, é esse que é bem artesanal. E criamos muito dentro dele. Criamos currículo, criamos o diferencial da Pastoral da Criança no sentido que a Pastoral da Criança lida só com a comunidade, e o Nutrir lidava com a comunidade, mas com duas pessoas muito importantes, com a diretora da escola e com a merendeira. Ou só com a comunidade. Então, quando os voluntários faziam a Folia Culinária, ela era muito próxima da ação da Pastoral, ela não era muito diferente da ação da Pastoral. Mas nas capacitações dávamos um tom mais requintado, tanto é que a Pastoral veio procurar também o programa, nós trabalhamos com gente da Pastoral. E foi muito gostoso criar todo aquele conteúdo, aquele trabalho, aquela produção, por as coisas para acontecer, testar, cuidar, fundar. Mas isso a gente fazendo lá na ponta, sabe Deus o quanto as pessoas que estavam lá dentro estavam apanhando, entendeu? Não sabíamos, não sabíamos o quanto que o Chico apanhava, quanto que a Silvia apanhava, porque ali que estava o ponto nevrálgico. Porque o doutor Ivan nunca valorizou o programa, tanto é que ele tinha um orçamento que se manteve o mesmo a vida toda, nunca se aumentou o orçamento, nunca se investiu, sempre se fez aquilo que era o permitido. Até aqui você faz, daqui para frente não. Nunca foi de grandes coisas, mas dava muito prazer em criar, dava muito prazer em fundar, dava muito prazer em produzir. Aí foram vindo histórias e mais histórias. E foi uma descoberta. E pudemos acompanhar pela Nestlé, todo o processo de implantação da política de abastecimento da alimentação escolar no Brasil de Norte a Sul, de Leste a Oeste por causa do Nutrir. E assim, ela não só pôde acompanhar isso, como ela poderia estar na frente. Ela estava na frente. Quando as coisas começavam a acontecer no município, nós íamos e já sabíamos onde iria dar, entendeu? A gente chegava, e trabalhava, contornava, ajeitava o grupo, ajustava as funções, incluía nutricionista, minimizava a distância entre a merendeira, a nutricionista e a diretora. Esclarecia as confusões todas que aconteciam do ponto de vista da política de abastecimento. Promovia o diálogo entre a nutricionista do município, a merendeira e a diretora, então o que a merendeira não conseguia entender de jeito nenhum, no encontro que fazíamos, ela passava a compreender.
P/1 – Eu vou querer saber um pouquinho dessas histórias mais marcadas. Porque você falou no macro, que já foi incrível, deu para termos esse conceito macro que foi, então vou um pouquinho para o micro, ok? Posso voltar um pouquinho?
R – Pode.
P/1 – Eu vou voltar lá na comunidade de Itaquera. Você pegou o antes Nestlé e o depois Nestlé. Antes da Nestlé estar lá nessa comunidade que era da PUC e tudo mais.
R – Sim. Lá foi o nosso primeiro laboratório com voluntários.
P/1 – Conta um pouquinho dessas histórias. Como foi antes, como estava esse projeto quando a Nestlé abraçou.
R – Quando fizemos a formação dos voluntários da sede, precisávamos de organizações que desenvolvessem essa parceria. E o modelo de ação do voluntário se é aceito para ver se estava dando certo ou não, então precisávamos de lugares em que isso acontecesse. Acontecer só em Itaquera não era justo porque seria desleal, nós já estávamos lá, sabíamos do programa, sabíamos o que queríamos, ainda estávamos na comunidade, e fazíamos tudo, é lógico que ali tinha mais chance de dar certo. Então foi feito em duas organizações. Uma, lá na Casa das Crianças em Itaquera, um grupo foi para lá. E o outro grupo foi para o Gotas de Flor com Amor, que era uma entidade da Denise, que a Denise também era fellow da Ashoka, era um abrigo perto da Nestlé.
P/1 – Isso quando vocês já estavam na Nestlé ?
R – É, foi a primeira ação do primeiro grupo de voluntários que formamos. Então quando a Sueida fala do teatro, é nessa fase aí que eles estavam produzindo esse teatro, estavam fervendo. E fizemos nessas duas organizações a Folia Culinária. E percebíamos, lógico, que quando você tinha uma organização que assumia o tema na sua pauta, esse efeito era melhor. E a ação do voluntário era uma ação que agregava, não era uma coisa a mais, um anexo, era uma potência. Quando você tinha uma organização que visava, porque as grandes empresas sofrem muito isso na sua ação voluntária, quando tem um voluntariado da Nestlé: “Oba, é dinheiro que vem”. Se não vem em dinheiro vem em produto, vem em campanha. Quando o assunto da educação alimentar não entrava na pauta essa parte financeira pesava mais e os voluntários ficavam mais desmotivados, eles quebravam mais rápido. No caso de Itaquera, como estávamos lá, a questão da alimentação era uma coisa importante mesmo para nós. E já estávamos numa outra fase em Itaquera. Tínhamos recebido a visita da Cooperação Internacional Italiana e ela tinha aqui um apoio de uma agência de adoção internacional aqui no Brasil, chamada AIB, Aiutare I Bambini. As agências de adoção internacional tinham acabado de assinar o acordo de Haia que era, para que uma agência internacional possa operar em países que elas queiram, precisam investir em projetos que previnam a adoção. Então, a AIB estava procurando projetos para fazer investimento e recebemos a visita dessa insituição através da indicação da Federação das Obras Sociais. A AIB curtiu o projeto da Brinquedoteca, curtiu o projeto de fazer uma brinquedoteca comunitária, de deixar aquilo na comunidade, daquilo ser o território da infância, da criança ser cuidada pela comunidade, ou seja, era tudo que eles precisavam para justificar a continuidade da operação da agência de adoção. E isso veio através do apoio da cooperação internacional. Então fizemos um projeto junto com a AIB. Na época o Bolsa Família não existia, só o Suplicy defendendo o Renda Mínima, e queríamos saber se esse programa de Renda Mínima iria funcionar. O que fizemos? Vamos começar aqui para ver se isso funciona, vamos ver? E começamos. Primeiro com o apoio de um número muito pequeno de pessoas da sociedade civil porque a nossa brinquedoteca comunitária tinha sentido para as crianças que haviam crescido dentro dela, não para os adultos daquela comunidade. Então, a propriedade desse lugar só iria ser feita por aquelas crianças que cresceram nela. E aquelas crianças que cresceram nela estavam todas ameaçadas, parar de brincar, e começar a empacotar no mercado e estudar de noite. Isso eles tinham 14, 15 anos. E falamos: “Não, não, não, não, não! Deixa ele estudando de dia, ele fica aqui na brinquedoteca quando ele não está na escola e a gente consegue essa ajuda de custo para você em lugar que ele não vá trabalhar”. Essa ajuda de custo na época, gente, era 30 reais. E por 30 reais as famílias toparam.
P/1 – Isso antes Nestlé ?
R – Junto. Junto ou antes? Não, antes da Nestlé. Antes Nestlé porque estávamos encerrando o nosso ciclo com o NTC na passagem de propriedade da brinquedoteca. Então conseguimos apoio de algumas pessoas da sociedade civil e quando a AIB nos conheceu a já estávamos com os meninos, a partir da quinta série, recebendo essa bolsa. Eram muitos poucos que estavam ali naquela faixa, mas eram fundamentais aqueles meninos, aquelas crianças. Tínhamos ali um grupo, acho que sete meninos, sete mães, que já recebiam por ter mantido o filho na escola no período diurno e deixado ele na brinquedoteca, recebiam mensalmente 30 reais. E levávamos essa mulherada ao mercado. Elas tinham 30 reais cada uma, sabiam disso e faziam a compra que queriam. Só que íamos junto porque na hora do cheque éramos nós que fazíamos o cheque. A AIB viu isso e achou uma coisa interessante como uma possibilidade de adoção à distância. De famílias italianas apoiarem a AIB e adotarem esse projeto, então elas passariam a financiar esse “Bolsa Família”. E foi isso que aconteceu. A parceria com a Cooperação Internacional se deu no apoio financeiro do apadrinhamento à distância, que era como chamávamos. Aí quando aconteceu o convênio com a AIB, aconteceu a parceria com a Nestlé. Então, chegou o dinheiro para fazer compras e a questão da qualidade dessa compra também precisava ser conversada, então era pauta para a gente.
P/1 – Mas eu não entendi o lado da Renda Mínima.
R – Estávamos pautados no projeto da Renda Mínima. O projeto de Renda Mínima que o Suplicy defendia era que se a criança se mantinha na escola, a família recebia uma ajuda de custo, que é o Bolsa Família. Bolsa Família é isso. Mas ele não era política ainda, ele era projeto. Mas queríamos saber como isso ia funcionar, entendeu? Nós, no nosso afã de pesquisa.
P/1 – Ah entendi, na teoria, você queria ver se isso funcionava.
R – Eu e a Adriana, queríamos saber como isso ia funcionar e como ia impactar.
P/1 – Não que isso foi abraçado pelo governo, mas que...
R – Imagina! Naquela época não, ele era projeto de lei. Mas nós, muito audaciosas, porque a Adriana é uma formiga muito valente, falou: “Nós vamos fazer e vamos ver como funciona. Mas vamos fazer do nosso jeito”. E o nosso jeito era, essa criança na escola, essa família com esse recurso na mão para comprar o que ela quiser e além disso um fórum de adultos para conversar sobre isso e sobre essa criança. Porque o espaço da infância não se funda sem essa conversa com esses adultos, da importância da compreensão dessa criança. E aí começou a nossa dinâmica. Então antes da compra tínhamos a reunião do Fórum de Adultos. Acabava a reunião do Fórum de Adultos, a mulherada ia para o mercado, isso era uma vez por mês. E na brinquedoteca, por uma questão educativa, comecei a servir o suco para as crianças, mas era ki-suco porque era a única coisa que eu conseguia comprar. Era ki-suco mesmo, de pacotinho. Era aquilo. Eu comprava o pacotinho, eram centavos, uma mãe fazia e tinha uma hora que eu parava para servir esse suco para a criança. Esse suco tinha um sentido de comer junto, todo mundo parava, comia junto e mudava o ritmo da atividade, porque eu precisava organizar esse tempo para essa criança tomar conta desse lugar. Muita coisa, não? Isso tudo está no Ludicidade. Aí, à medida que esse dinheiro começou a entrar para melhorar a vida dessa criança o suco da brinquedoteca passou a ser o suco natural, de fruta. Não tínhamos mais o suco de ki-suco, tínhamos vários problemas de pele nas crianças, vários problemas de feridas, eu fui pesquisar e tinha a ver com falta de vitamina C, com baixa resistência, então no Fórum de Mães, falamos: “Olha, agora o suco vai ter que ser natural porque a criança Fulana de tal tá com isso, Fulano de tal está com aquilo, e a gente tá preocupado, acha que pode ser uma deficiência de vitamina”.
P/1 – Até então a Nestlé não tinha encaminhado nutricionista, nada?
R – O Nutrir começou sem nutricionista por dois ou três anos, só comigo e com a Adriana. A nutricionista que tínhamos era um vídeo da filha do Franciscato falando dos grupos de alimentos porque ninguém mais aguentava esse assunto de nutricionista, ninguém aguentava a pirâmide alimentar mais. Ninguém aguentava! (risos) Você chegava com esse assunto todo mundo falava: “Ah, essa pirâmide, ah ninguém aguenta”, entendeu? Então, quando eu falo que fundar o currículo foi importante foi porque tivemos que criar um outro caminho para falar desse assunto. Mas aí esse outro caminho, sem o aval da nutricionista nos deixava muito fragilizado, por isso chegou a nutricionista. E nesse período Itaquera exigiu mais de mim. Eu deixei o Nutrir nesse período. Ficou a Adriana como educadora, e a Marcia como nutricionista.
P/1 – Marcia?
R – Kitagawa. Ficou a Adriana, a Marcia e a Ana Maria, então fizeram o trio.
P/1 – Ana Maria?
R – D’Angelo. A educadora, a nutricionista e a culinarista. Nesse período tive que sair porque a cooperação internacional exigia muito de nós no sentido da entrada do dinheiro. Você não podia fazer esse dinheiro entrar de uma vez, você quebrava uma família. O pai ganhava um salário mínimo, ele tinha sete filhos na escola, cada filho ganhava 40 reais. Sete, 280. O salário mínimo era 210 na época. Então os filhos teriam mais dinheiro que os pais e eu não podia quebrar a autoridade desse pai. Então, colocamos esse dinheiro muito devagar nessa comunidade. E com muito destino. Tinha projeto para esse dinheiro. Era o suco da brinquedoteca que era para todas as crianças, ele tinha que ser suco natural, sempre uma mãe que fazia, que se comprometia de fazer durante o mês. O dinheiro ia para compra do supermercado, que continuava sendo feita pela mãe e pelas crianças, elas levavam as crianças junto. E também ela poderia guardar para comprar material de construção porque chegaria o momento de fazer melhoria na casa. Esse dinheiro tinha dois destinos.
P/1 – Mas vocês que organizaram isso?
R – Eu fui banco, eu fui tudo. Eu e a Adriana que fizemos tudo.
P/1 – O fundo mesmo não falava: “Ó, você vai ter que gastar com isso, isso e isso”.
R – A italiana?
P/1 – É.
R – Não, ela acompanhava tudo. Planejávamos e apontávamos para ela. Não posso por esse dinheiro de uma vez. Quem fazia milagre com 30 reais ganhar de uma hora para outra 280? Era muito dinheiro, era para dar vertigem, entendeu?
P/1 – Mas no sentido que os italianos não falavam: “Ah, você tem que gastar de tal jeito”. Vocês que tiveram noção.
R – Não. Quando escrevemos o projeto, já direcionamos, senão... E aí teve intercâmbio, as crianças escreveram para Itália, a Itália escreveu para as crianças. Vieram casais visitar as crianças, recebemos visita dos italianos, foi muito legal. Foi um processo bem gostoso. E aí que foi o levante econômico que deu, e aí foi outra quebrada de paradigma na minha vida. Dinheiro não resolve. Que é isso que nós estamos vivendo hoje. Isso descobrimos em 99, 2000, 2001. Quase morri, eu quase morri. Aí foi duro, esse tombo foi muito difícil. Porque até então uma assistente social diria o seguinte: “As condições sociais e materiais interferem na qualidade de vida. À medida que isso melhora, a qualidade de vida também melhora”. Aham. Não necessariamente. E aí, quando estávamos acabando esse processo, foi em 2003, eu consegui sair de Itaquera. Em 98 eu tinha concluído já, mas de 98 até 2003, mais cinco anos, foram exatamente dez anos, tivemos que ficar lá porque o processo de propriedade não era uma coisa tão simples como imaginávamos. E aí teve esse apoio, teve esse recurso, teve reforma das casas. Em um ano eu e um grupo de homens, foi quando os homens chegaram no trabalho comunitário. Foi muito gostoso trabalhar com os homens. Eu e um grupo de homens, coordenado por um deles, fizemos 36 pequenas obras na casa em um ano. 36. Laje, encanamento, eletricidade, muro de arrimo, pequenos reparos baseado em projetos. E simultaneamente a isso era como um financiamento. Então tínhamos o orçamento, cada família fazia o seu projeto, aí ela falava com o pedreiro da comunidade, ele dava a lista. Aí, ela ia com a lista na loja de material de construção, fazia o levantamento de quanto iria custar. Aquele valor, a Associação Casa das Crianças, que naquela época já era uma pessoa jurídica, ela repassava integralmente para aquela família. Só que daquele total, aquela família tinha que devolver 30% para associação, em prestações. Ela não ficava com 100% do dinheiro, ela devolvia 30%. Porque com esses 30% a Associação Casa das Crianças manteria a brinquedoteca. Então era para devolver para manutenção da brinquedoteca. E todo mundo pagou. Todo mundo pagou. Foi um ano de projetos nessa dinâmica.
P/1 – E eles procuravam saber da prestação de contas?
R – Prestação de contas no Fórum de Adultos sempre. Só não ficava falando quem tava atrasado, não é? Mas eles viam as obras acontecendo, então era tudo na mesma comunidade, era visível. E foi muito interessante aí também porque antes de começarmos as obras, tivemos que chamar um engenheiro, porque pensamos que ia ter que pagar um engenheiro para fazer certas coisas (risos). O engenheiro falou assim: “Derruba tudo porque não tem saída”. Eu falei: “Danou-se. Tudo bem, muito obrigado, pode ir embora”. “Fulano!”, que era o pedreiro deles, “o que você acha assim, assim?” “Não, isso dá para fazer assim, isso aqui se fizer essa coluna assim, puser mais ferro, fizer isso, fizer aquilo. Não, aqui bota uma laje, aqui faz não sei o quê”. Ele deu saída para tudo. Para tudo. Esse homem é maravilhoso (risos), ele é maravilhoso.
P/1 – Você lembra o nome dele?
R – O Ailtinho. Claro.
P/1 – Ailtinho?
R – É. E ele ficou sendo coordenador de todas as obras. E ele que coordenava os homens, que chamava os caras, distribuía o serviço, falava o que tinha que fazer. Então eu e ele fazíamos reunião, aí no dia que eu recebia o dinheiro das pessoas ele ficava comigo porque ele tinha medo que eu saísse e alguém me assaltasse, ele ficava comigo. Aí recebíamos o dinheiro, ele me acompanhava até o ponto de ônibus, eu levava o dinheiro embora, depositava e aí ia fazendo a prestação de contas. E quando saímos da Casa das Crianças, o fundo que ficou lá foi o fundo que eles mesmos fizeram, por conta desse dinheiro que circulou. Aí aprendemos que o dinheiro circulante é o que mantém uma sociedade, não adianta você reter, que ele melhora materialmente sim, mas não estávamos mais brigando com esse material, estávamos brigando com uma cultura que era muito pior. E essa cultura intangível, não tinha dinheiro que desse conta. Então a menina que queria ser prostituta, ela continuou sendo mesmo e não era materialmente, simplesmente ela tinha mais dinheiro para comprar roupa para ficar mais bonita. Mas ela foi e continuou, e daí? Entendeu. A criança que sofria violência continuou sofrendo violência doméstica, não conseguimos mexer. O cara que o crack já tinha ganhado continuou no crack, não deu jeito, tinha comida, mas não interessa, vou fazer o quê? E aí, aí isso foi difícil. Foi muito choro nessa vida. Foi muito choro.
P/1 – Conta alguns casos (risos). Conta da Lu.
R – Da Lucilene?
P/1 – Da Lucilene.
R – Mas a Lucilene é um caso de sucesso, na verdade. A família dela era a que tínhamos medo de quebrar o pai porque o pai era uma pessoa muito forte, o pai e a mãe. Era um casal que tinha uma presença muito forte de pai e de mãe, mas eles tinham acho que oito filhos. Oito. Os oito iam receber recurso. E nós iríamos quebrá-lo. Então, pensando na família deles como modelo que fomos devagar implantando, dosando esse recurso. E a Lucilene, era uma menina muito viva, muito, sempre teve um dom para o teatro, sempre brincava, puxava as crianças. A família brincante era a família dela. Os oito brincavam muito, muito. O menino que deixaria de ir para a escola de dia para estudar à noite era o irmão mais velho dela. E que era o menino mais criativo que eu tinha, o que fazia cabana na árvore, o que inventava brincadeira com qualquer sucata na mão. Ele inventou um brinquedo chamado guia-guia, que eles tinham aquele córrego, não é? Toda favela tem seu córrego. Ele inventou um brinquedo que era assim, um cabo de vassoura aqui, uma linha aqui, um barbante, outro cabo de vassoura aqui, certo? Então ele jogava um cabo de vassoura na correnteza do córrego e o outro, a força da água, fazia com que ele dirigisse o cabo de vassoura que estava no córrego. E a brincadeira era segurar os entulhos do córrego com aquele cabo (risos). O Jadiel era demais, entendeu? Ele era demais. E era uma criança que tinha quase morrido de desnutrição. Ele tinha uma deficiência cognitiva causada pela desnutrição que acompanhamos muito de perto, era muito interessante. Mas, ao mesmo tempo, era gentil, generoso, criativo e lindo. Então assim, em nome desse menino, esse ícone, foi que fez com que ficássemos mais cinco anos naquela favela para cuidar desse processo. Então eu inventei o Passeio Prêmio, eu tinha que manter essa molecada na escola, não é? Porque as famílias não davam conta, nem com a bolsa. Eu falei: “Olha, vai ter Passeio Prêmio. Passeio Prêmio é o seguinte: quem não tiver falta nenhuma no semestre, nas férias vai ter o Passeio Prêmio”. Vai ter o passeio de férias para todo mundo, pois fazíamos essa marcação de tempo, não? Porque quando chegamos lá eles não tinham noção de tempo: “Você vai vir aqui ontem?”, eles falavam. Eles não tinham noção de sujeira. Isso tudo está no Ludicidade, não sei se você viu. Você leu? Aquilo me deixava desnorteada, então falava: “Porque tem o passeio das férias, férias são férias, aula é aula. Criança tem que brincar e estudar. Vocês estão estudando, ótimo. Acabou o estudo, vamos passear, são férias. Só que além das férias tem o Passeio Prêmio” “Aí, o que é o Passeio Prêmio?” “Passeio Prêmio é para quem não tem falta. Não tem falta vai ter Passeio Prêmio” “E aí ele não vai nas férias?” “Vai nas férias também porque é prêmio, prêmio são dois, vai lá e vai cá” (risos) E a Lucilene foi a primeira que ganhou o Passeio Prêmio. Ela e o Keuer, o irmão dela.
P/1 – Esse criativo?
R – Um outro, que também era muito assim, adorava música, adorava fotografia. Hoje já é pai, é um paizão, eu adoro eles, eu adoro. E aí ela foi a primeira que ganhou o Passeio Prêmio. E o Passeio Prêmio era o seguinte: “O que você quer? Você quer ir numa lanchonete? Você quer ir ao cinema, você quer ir à cidade? Você quer ir a Paulista? Você escolhe, é prêmio, é seu” (risos).
P/1 – Nossa, eles devem ter ficado doidos.
R – Piravam, eles piravam. E assim eu fui apresentando a cidade para eles também. Os levei a Paulista. O sonho era ir ao McDonald’s, não é? Cinema. Teatro. Éramos nós que apresentávamos esses recursos da cidade e enriquecíamos o repertório deles. Foi o trabalho mais apaixonante da minha vida, mais apaixonante.
P/1 – E quando a Nestlé entra como que...
R – Quando a Nestlé entra, nós já estamos com esse “bolsa família” implantado, sendo investido gradativamente, e com essa discussão da melhoria da alimentação. Porque o dinheiro no mercado é para uma melhor compra. E a melhoria do suco da brinquedoteca. Então, as Folias Culinárias dos voluntários caíram dentro de um território cheio de sentido para nós. Como fazer uma comida gostosa, ser um prato bom, não gastar muito, isso tudo veio nesse caldo. Foi aí que a Renatinha mordeu a isca de participar do Fórum de Adultos. Porque a Renata sacou...
P/1 – Renata?
R – A Renata Ribeiro, que era voluntária da Nestlé. A Renata sacou, por ela, que o eixo não estava na Folia Culinária, mas na discussão da pauta sobre alimentação. Isso era responsabilidade minha, não era responsabilidade do voluntário. O voluntário faria a Folia Culinária. Só que a Renata falou: “Ôpa, pera aí. Esse fórum aí é mais importante e é nesse fórum que conseguimos conversar com eles”. Eu falei: “Eu acho que é”. Ela falou: “Ah, eu vou nesse Fórum”. Eu não podia obriga-lá a fazer uma ação fora da Folia Culinária, mas ela, espontaneamente, começou a ir para o fórum. Então, eu combinava o seguinte, na hora da pauta da alimentação, quem toca é você, ok Renata? Quem organiza o suco da brinquedoteca é você, quem pergunta como foi o mês, como foi a compra, é você. E você dá o feedback para eles. Começamos a fazer isso junto e foi muito bom, foi muito bom. O Fórum de Adultos foi a coisa mais importante que fizemos.
P/1 – Esse seria o embrião que o Nutrir se depara que o foco são as mães, os adultos também?
R – É. O Nutrir sempre teve um foco nos adultos, não? Mas assim, eu acho que é o embrião, o que eu sempre falava para o Helvio: “O voluntário não pode ser responsável pela melhora da alimentação da criança, criatura! O voluntário vai lá uma vez por mês. Isso é pauta da organização. Se não for pauta da organização você vai mandar voluntário lá para quê?”. Então essa era a responsabilidade efetiva e permanente com o público que quer trabalhar vai sempre da organização. Agora, você leva o voluntário lá para ele fortalecer essa conversa, que para ele...
P/1 – A organização, você diz a Nestlé?
R – Não, a organização parceira, qualquer uma que fosse, que fosse uma política do voluntário. Então ela tem que ter na pauta dela a importância da educação alimentar. Quando você visita uma organização você precisa perguntar para eles: “O que você faz com relação à educação alimentar? Você tem algum projeto? Você trabalha como?”, para você ver, onde você pode casar com ele. “Ah tá”. Aí foi. O que mais?
P/1 – Daí você ficou mais com Itaquera, porque ao mesmo tempo também tinha a Gota de Flor.
R – A Adriana, a Marcia e a Ana trabalhando com as questões do voluntariado, das capacitações.
P/1 – Essas primeiras capacitações foram as três.
R – Em 2002 e 2003, acho que fiquei dois anos fora do Nutrir depois que começou porque não dava, não dava para ficar lá e ficar em Itaquera. Itaquera exigiu demais. Mas eu ficava no Nutrir quando eu os recebia na Casa das Crianças. Eu recebia os voluntários lá e eu trabalhava com eles lá.
P/1 – E daí você sai em 2003?
R – De Itaquera. Isso. Eu saí de Itaquera em 2003 com um monte de pergunta na mão, com um monte de reflexão em relação à materialidade e ao trabalho. E aí voltei para o Nutrir porque o programa estava precisando. E não sei se foi em 2003 ou 2004 a parceria com Minas Gerais, através da criação do Nutrir Bons Conselhos junto com o grupo Telemig. Foi em 2003 ou 2004.
P/2 – Foi em 2004.
R – Aí eu voltei em 2004 porque precisava engordar a equipe. Aí veio o Adelsinho de Minas, e fomos trabalhar com Nutrir Bons Conselhos, que foi uma parceria da Nestlé com a Telemig Celular. Acho que foi isso. Aí voltei e fiquei 2004, 2005, 2006, 2007, 2008, 2009, 2010. Em 2011 eu saí de vez.
P/1 – Como foi esse trabalho lá em Minas?
R – Em Minas era assim, a Telemig Celular tinha um projeto social de formação dos Conselhos da Criança e do Adolescente. Só que ela tinha a proposta de formação. E falar de direito da criança e do adolescente é muita coisa. O Nutrir falava do direito ao brincar e à boa alimentação. Então foi feita uma parceria, trabalhamos com as organizações sociais, com os Conselhos Municipais de Direito e Conselhos Tutelares, com esses dois temas, o direito de brincar e o direito de se alimentar, que era o Nutrir. O Nutrir entrou com o substantivo e a metodologia, porque a Telemig Celular não a tinha, só juntava o povo. A nossa metodologia de encontro, de formação, de conteúdo foi o que levamos e recheamos. E foi um ano de trabalho. E foi um ano que era assim, fazíamos a formação de dois dias, sempre foi assim o modelo da formação, dois dias consecutivos de encontro com diretores e merendeiras, no caso aí, mais o pessoal do conselho. Defendíamos a infância no primeiro momento e falávamos do resgate dessa infância. No segundo momento falávamos da alimentação e de seu aspecto simbólico, que é o conteúdo que está no Nutrir até hoje. No segundo dia começávamos resgatando o primeiro, o que tinha ficado do primeiro e entrávamos nas possibilidades de criação de projetos que seriam inscritos no Prêmio Nutrir naquele final de ano. Era essa a dinâmica que fazíamos para todas as formações. E isso recheava, isso compunha o currículo. E a metodologia era diferente também, não era uma coisa massante, sentada, porque tínhamos merendeiras, tínhamos pessoas analfabetas, tínhamos diretores de escola, resumindo, tínhamos um público muito diversificado. E era um Nutrir muito cuidadoso com essas pessoas. Você não chegava lá blábláblá blábláblá blábláblá. Não, você ficava atento a que dinâmica o grupo tinha, como o grupo fazia e como respondia. Ia fazendo tricô entre uma experiência e outra, dando sugestões, trazendo exemplos. A coisa ia engrossando e dando o maior caldo. Aí o pessoal fazia os seus projetos, enviava para a Fundação Nestlé, que acabava avaliando e premiando as melhores experiências. Era assim que a coisa funcionava ano a ano. Ano a ano, ano a ano. E trabalhávamos com o público de adultos nessa formação, entendendo que esses adultos atingiriam aquele universo de crianças que estavam representando. Eu sempre começava fazendo a soma da quantidade de crianças que cada um representava ali e punha na sala quantas crianças tinham, que dependiam dos braços daquelas pessoas que estavam ali. Isso eu fazia sempre. E aí a coisa acontecia. E o Telemig Celular foi isso. Só que incluía os conselhos, aí vimos também o rombo que era a formação dos conselheiros, que é até hoje.
P/1 – Os conselheiros?
R – De Direito da Criança e Adolescentes.
P/2 – Uma parte é indicação, a outra parte é eleita, não é?
R – Uma parte é eleita, outra parte é indicada. Os Conselhos Tutelares são eleitos e remunerados, o Conselho Municipal de Direito da Criança não é remunerado, ele é só um conselho deliberativo das políticas da infância. É difícil, é difícil.
P/1 – Daí você volta.
R – É, daí voltei. E aí, acabou encaixando o trabalho para duas equipes, acabou ficando duas equipes, e fiquei como educadora de uma equipe e o Adelcinho ficou como educador de outra equipe. Precisou de mais uma nutricionista, e veio a Gabriela. A Marcia ficou com o Adelcinho, a Gabriela ficou comigo e fomos tocando.
P/1 – Gabriela Raggio.
R – Raggio. No meu caso, eu, a Gabriela e a Ana Maria ficamos juntas, e a outra equipe ficou com o Adelsinho, a Marcia e a Agostinha. Aí trabalhamos em vários lugares. Nessa época a Marcia era a nutricionista de referência do programa e assim foi. Eu, a Gabi e a Ana fizemos também uma parceria com o Instituto Camargo Corrêa que essa foi, essa foi osso. Trabalhamos em Feira de Santana, porque a Camargo Corrêa construiu a fábrica da Nestlé por lá, e precisava de um programa de desenvolvimento comunitário. A Camargo Corrêa precisava disso, mas não tinha objeto. A fábrica era da Nestlé, então, qual foi a lógica? Vamos juntar o programa da Nestlé com desenvolvimento comunitário em Feira de Santana. Aí entramos numa saia justa que não foi pequena. O que fizemos? Não fomos nós exatamente, foi a Fundação, a Silvia Zanotti que fez. Juntou a Camargo Corrêa, a Fundação Nestlé e a Universidade Estadual de Feira de Santana, com o curso de Engenharia de Alimentos, tiveram duas professoras lá que toparam nos acompanhar. Elas já vinham com um trabalho, algumas pesquisas e toparam compor a formação. Primeiro visitamos os projetos para ver se havia algum que podia ser financiado. A Camargo Corrêa pôs um pouco de dinheiro nisso também, financiaram um projeto da Irmã Rosa, de horta e disseminação de horta nas famílias. Junto com esses projetos financiados, fizemos a formação das escolas de Feira de Santana, das merendeiras, daí foram todas, todas as escolas com suas merendeiras e suas diretoras. Ao invés de fazermos o prêmio por projeto, porque a hora que começamos a por o pé em Feira de Santana vimos que o buraco era muito fundo, culminamos esse projeto de formação em um concurso de receitas para merenda escolar feito pelas cozinheiras de Feira. E aí, foi muito legal porque foi um lugar muito árido, de coisas muito difíceis, uma corrupção absurda ainda na merenda, duas nutricionistas da prefeitura péssimas, mas que tivemos que trabalhar junto, sem poder falar que eram péssimas. E, além disso, também eram subjugadas ao poder maior e sabiam da corrupção, mas não podiam falar nada. Mas conseguimos, fizemos a formação e o concurso. E depois no fim do concurso pedimos o apoio do Mesa Brasil do Sesc de Feira de Santana, que também apoiou. O Sesc cedeu o lugar, a cozinha para fazer as receitas, compôs o juri. O gerente da fábrica, graças a Deus, era o Marcelo Marques, que era uma pessoa que tinha uma relação comunitária muito boa, então, foi possível por isso. E fizemos o concurso de merenda, fizemos o evento. Fizemos tudo. Tudo. Eu, a Ana e a Gabriela. Desde limpar a sala, preparar a cozinha para a mulherada fazer as receitas, armar a mesa com fruta para deixar bonito na entrada, preparar o coffee break. Pensa numa produção que qualquer agência cobraria uma fortuna para fazer, eu, a Ana e a Gabriela fizemos. Fomos uns dias antes e corre que corre, corre que corre, faz, faz, faz, faz, saiu. Saiu o concurso e cumprimos o que tinha que fazer. Esse foi um outro negócio bem exigente que fizemos.
P/1 – Você lembra do resultado disso?
R – Saíram todas as receitas com comidas viáveis para merenda escolar, entendeu? O que aprendemos então? Que naquela aridez, todo prato tinha que ser feito como prato único, mas tinha que conter os nutrientes que o corpo precisa. E as merendeiras entenderam esse conceito. Porque não dava para fazer arroz, feijão, carne e salada, não dava porque você tinha apenas uma mulher na cozinha para fazer comida, lavar a louça e servir! E essa mulher acabava ficando doente porque ninguém aguenta fazer 300 refeições sozinha. Quando era um quadro ótimo, eram três. Além disso, elas faziam a faxina e a merenda da escola, faziam tudo. Quando ainda chegava merenda porque a prefeitura de Feira de Santana era corrupta. Então não chegava merenda e o abastecimento não funcionava. E a Albaneide, falando da Bahia, porque a Albaneide era baiana. Ela é de Salvador. Aquilo dava um negócio assim porque não era aquilo. Quem sofria todas as pedradas eram as merendeiras. É desumano você fazer 200, 300 refeições em duas pessoas, preparar, servir e lavar a louça. Que lavar a louça, aquele prato de plástico nojento, engordurado ficava e lá ficava.
P/1 – E após esse concurso aí teve uma pequena mudança?
R – Eu acho que as nutricionistas deram graças a Deus que nós sumimos, porque elas estavam na linha de frente, na verdade. Eu acho que a prefeitura falou: “Ah que bom que acabou essa conversa”.
P/1 – E as merendeiras?
R – Não conseguimos mais ter acesso a essas mulheres. Eu não voltei mais para Feira. Eu sei que o Adelsinho andou voltando para Feira de Santana. Eu não sei.
P/1 – Foi um projeto rápido ali ?
R – Foi. E saímos da melhor forma possível, valorizando a habilidade que elas tinham de criar um prato que fosse único. E aí, eu, a Gabi e a Ana, sentamos e falamos: “Gente, vamos defender o prato único, vamos fazer receita”. E a Ana também trabalhou receitas que fossem de pratos únicos, que tivessem todos os nutrientes e que ficassem gostosos. Aí foi um samba do crioulo doido que tivemos que pular miúdo porque era desumana a condição de trabalho daquelas mulheres. Fora a estrutura, porque não eram cozinhas preparadas para fazer merenda. Eram cozinhas quase que domésticas para fazer 300 refeições ao dia. Não tinha fogão industrial, além do calor de Feira de Santana. Aí, as merendeiras premiadas, as receitas premiadas, a escola da merendeira, recebiam um kit de cozinha que montamos e oferecemos dando mais utensílios, mais recursos, mais possibilidades para elas poderem trabalhar melhor. Desde panelas maiores, conchas maiores, coisas que facilitariam o trabalho daquelas mulheres. Foi gostoso. Sempre terminávamos os encontros e os trabalhos com um sentimento de gratidão muito grande, principalmente por parte das merendeiras. Porque elas eram as profissionais que ficavam sob o holofote, o trabalho delas passava a ser compreendido, entendeu? Quando você fala do valor simbólico desse alimento é do valor simbólico dessa mulher que produz essa comida, que cozinha para toda essa gente, que se dedica a isso. E dessa criança que está recebendo essa merenda como possibilidade, às vezes, de sustentação desse corpo naquele território. Não de suprimento de todas as necessidades porque não é essa a função da merenda, mas que merece ser recebida com uma toalha na mesa, de não ser posta que nem bandejão de cadeia. E aí, aprendi muito uma frase, agora não sei se cabe mais, mas na época, usávamos assim. Olha, vamos usar uma régua para medir. Uma ponta da régua vai para o restaurante e na outra ponta colocaremos uma penitenciária. O refeitório da escola está perto de qual ponto? Era sempre penitenciária. Era. Agora não mais. Isso que é bonito no Nutrir, acho que o programa puxou essa conversa. Porque na hora em que falávamos disso você tinha a diretora da escola, a nutricionista do município, todo mundo, e ninguém tinha pensado nisso. Ninguém tinha considerado isso! Que a escola enquanto espaço de educação, que o refeitório como espaço de educação estava mais perto da cadeia do que de um restaurante. E as crianças têm direito a quê? Têm direito a este restaurante. E aí aconteceu outro caso aqui no interior do estado de São Paulo. Porque socialmente, qualquer pessoa civilizada come num prato de vidro, com talher, com garfo, faca e um copo. Vocês não dão garfo e faca por causa de quê mesmo? Elas falaram: “Porque temos medo que eles se machuquem”. Eu falei: “E essa justificativa vem da onde? Igual a que vem do presídio?”. É no presídio que se come com colher de plástico e marmitex, não? E aí, na escola também? Qual é o parâmetro que quero para essa criança? E aí a professora de Tejupá afundou na cadeira. Porque ela já tinha recebido pratos de vidro, garfos, facas, colheres e copos e não tinha tido coragem de por para as crianças. Depois ela pôs, e no mesmo dia em que ainda estávamos na cidade. Tejupá é uma cidade bem pequenininha, estávamos andando, ela encontrou conosco de carro e disse: “Mandei tirar tudo do estoque, viu!!!” (risos), ela gritou na rua: “Amanhã vai todo mundo comer de garfo e faca e prato de vidro”. Além do que, o prato de vidro facilita o serviço de quem lava. E está provado, ninguém quebra, ninguém se machuca, é simplesmente um ato mais humano na hora dessa refeição. E o Nutrir foi o programa, nem a Pastoral da Criança falava disso dentro da escola. A Pastoral falava na família e para família bastava o que vinha no prato, não como se alimentava. Essa coisa do “como” também faz parte do que me alimento, é super importante. E isso é autoria nossa, sabe? É autoria daqueles educadores lá da ponta. Você vai pegar hoje o documento que o pessoal do, que essa última aí escreveu... Ah, um documento que eles escreveram no passado, a Monica me deu e eu estava lendo, sabe, são coisas que fomos nós que plantamos, que fundamos. Então acho que é por isso que falo desse programa com muito amor. E ele foi mesmo inovador, nesse sentido ele foi. Porque ninguém olhava para o refeitório, ninguém olhava para essa política de abastecimento sob essas outras vertentes. Olhava sob a vertente da pirâmide. Então, a Albaneide, como nutricionista, garantia a pirâmide, a verba para pirâmide, então tinha cereal, carne, verdura, fruta, começou a vir tudo. E aí, esse outro lado éramos nós que levavamos. E pautado em vários recursos, levavamos literatura, levavamos contos, levavamos outros elementos que traziam referência da importância desse alimento para além do seu componente nutricional, porque era um programa de educação alimentar.
P/1 – Você chegou a pegar algum marco quando a Nestlé fez parceria com outras organizações para conseguir se sustentar também? No esporte...
R – Na verdade é assim, a Silvia Zanotti fez uma parceria interna, na Nestlé, com o Marketing. E conseguiu nessa parceria 10% da promoção do Marketing daquele ano, 10% eram 700 mil reais para Fundação. E a Silvia era uma pessoa muito inteligente. O que ela fez? Ela abriu um edital, o primeiro edital que o Programa Nutrir fez, para financiamento de projetos que articulassem alimentação e esporte. E podia financiar até dez projetos no valor de 70 mil reais. Foi muito legal isso, muito legal. Porque financiou projeto do Brasil de Norte a Sul, projetos excelentes e projetos safados também, mas, por questões geográficas acabou financiando, como por exemplo, um do Belém do Pará que o cara era muito safado. Não era para fazermos, mas acabamos fazendo, sabe? Porque era lá, o barco ia para lá e tinha projetos comerciais lá e a coisa... Então, eu sabia que o Nutrir era usado desse jeito internamente por algumas circunstâncias, mas eu não queria nem saber detalhes porque eu estava lá na ponta e lá na ponta a situação era muito diferente. Esse projeto foi muito legal porque eram dez projetos maravilhosos. Só que quando os projetos estavam concluídos a Silvia Zanotti saiu e o Helvio [Kanamaru] chegou. E o Helvio [Kanamaru] se deparou com uma montanha de trabalho que não foi fácil e ele tinha que fazer uma parceria, ele tinha de financiar um projeto de esporte, e se colou na Fernanda Keller que foi um dos dez que tínhamos, havia vários projetos sensacionais que estavam dando certo. Tinha um no Vale do Jequitinhonha, tinha um na Fundação Casagrande do Homem do Cariri que estava maravilhoso. Tinha o da Fernanda Keller. Tinha um do Rio Grande do Sul, na Apae. Tinham vários, tinham vários. Mas ele só conseguiu visitar a Fernanda Keller, então fez parceria com a Fernanda Keller. É legal, é triatlo. Fizemos a formação em Niterói para todas as escolas. E lá vimos uma situação diferente da que defendíamos. Defendíamos o concurso de merendeira. Lá em Niterói nós pegamos todas as merendeiras concursadas. Foi o pior grupo com quem trabalhei. Elas fizeram o concurso por conta do concurso, não por conta da função. Portanto, não queriam trabalhar de merendeira. Nossa, foi muito difícil! Foi muito difícil. Lá também revi um monte de conceitos. E falei: “Deus o livre essas merendeiras concursadas! Agora eu não quero mais saber de merendeira concursada” (risos). Porque a condição de trabalho delas era desumana, aí caí na esparrela de novo, achava que o concurso poderia ser uma saída. E na verdade o concurso não era uma saída, talvez complicasse mais, como foi em Niterói. Mas tudo bem, trabalhamos em Niterói e não recebemos projeto nenhum de Niterói, não veio nada. E ficou só o Fernanda Keller como referência. Esse projeto com o Instituto Fernanda Keller não acompanhei, foi um período em que eu já estava saindo. Acompanhei os dez projetos, recebi o retorno dos dez projetos, isso sim. Mas o desdobramento depois, a parceria com a Fernanda Keller e a Casa do Zezinho, de novo a Casa do Zezinho, eu já não estava mais.
P/1 – Desses dez, você lembra de algum assim mais especial?
R – Eu gosto muito do Vale do Jequitinhonha, que foi a recuperação de desnutrição ainda. E de fortalecimento do brincar lá no Vale, que a Ruth fez.
P/1 – Ruth?
R – É. E da Fundação Casagrande, que era imbatível. Lá eles receberam o recurso e o plano deles era fazer uma quadra de areia. Mas, além disso, parece que eles receberam um outro recurso vindo do Estado e resolveram furar um poço. Então, lá no sertão do Cariri eles conseguiram furar um poço, em volta desse poço eles fizeram um parque e essa quadra ficou nesse parque. Eu não sei se ele está vivo, e a quantas anda isso, porque o trabalho deles é mais voltado para cultura, mas mesmo assim, achei que foi sensacional essa sacada de fazer um poço, de por a água na mão de todo mundo lá no sertão do Cariri. É demais, é demais. Agora não sei se isso interessa muito para Nestlé (risos), que é água, não é? (risos) Mas foi uma coisa que conseguimos por, a quadra num parque e a água para todo mundo. Eu penso que isso deveria ter sido mais aproveitado. E o da Ruth também. Porque o da Ruth, lá no Jequitinhonha, ainda tiveram casos de desnutrição, apesar de já ter alguns de obesidade, então, ela conseguiu trabalhar com as duas pontas. Mas aí ele [Helvio Kanamaru] optou pela Fernanda Keller, ficou só com ela, e ninguém mais tomou contato. Porque essas coisas, esse bordado, essa delicadeza, ela era feita por nós. E tínhamos todos esses conteúdos e íamos passando, passávamos para Silvia. A Silvia é uma pessoa muito legal, ela é muito sensível. Mais do que o Chico até, ou tanto quanto. E também é uma pessoa que sabe transitar do social, domina essa questão social, e o universo corporativo. Então a Silvia fazia isso, ela sabia a hora de usar as informações e os recursos que ela conseguia ter, sabe? Ela é uma pessoa sensacional, é uma delícia trabalhar com a Silvia, uma delícia. Quando ela saiu, vi que a coisa não seria muito fácil. Tanto que não foi.
P/1 – Daí você quis sair por conta própria?
R – Na verdade eu gostava muito desse programa, mas ele estava passando por mudanças. E assim, não eram as mudanças que potencializavam seu lado humano. Eu estava vendo que o Helvio [Kanamaru] estava expondo o programa, e à medida que o expunha, fragilizava nossa ação porque as cobranças viriam de forma desmedida, como está hoje. Hoje, por exemplo, acho que está um absurdo. Quem contrata quem vai trabalhar no Nutrir é o Setor de Compras, entendeu? E o que ele contrata? Ele contrata o preço! Conosco não foi assim, fomos contratadas pela alma, não pelo preço. Pela identificação. Eu acho que foi isso. E quando falo que travei um pacto de lealdade, meu pacto de lealdade foi com essas pessoas que eu conhecia. Conhecia a Silvia Zanotti desde a C&A, é uma pessoa que respeito muito nessa área. Aí saiu o Chico e chegou a Silvia, para mim a permanência de lealdade continuava, a fidelidade continuava, era natural. Esse compromisso, acho que foi se comprometendo à medida que o programa foi se institucionalizando. Mas é natural, eu não acho que... Quando ele é artesanal, quando está guardado com poucas linhas, pouca gente mexendo, é uma coisa. A hora em que ele cai no mundo, é outra. Agora, não dá para negar, e eu acho que é por isso que gosto desse trabalho que a Monica resolveu fazer com vocês, entendeu? Acho que é importante mesmo fazer essa junção histórica, fazer essa história corporativa, fazer essa história institucional porque a gênese dele é que fez com que chegasse aonde chegou. Agora, alguma coisa deve permanecer. Se não permanecer não será inovador. Se não permanecer algo que faça com que fique sempre à frente, ele vai morrer, será apenas mais um projeto corporativo, não é?
P/1 – Você já falou um pouquinho, mas gostaria que você concluísse, com uma coisa mais reflexiva sobre esse programa. E por conta do nosso tempo eu não vou poder tirar mais coisa de você, mas você tem algum sonho ainda? Quais são teus sonhos?
R – Meu sonho, ai gente... Meu sonho é primeiro saber se vou me adaptar em Agudos (risos). Não é essa a questão, não. Acho que, do ponto de vista social, meu sonho era abrir canais de diálogo. Acho que estamos sem diálogo nesse mundo, sabe? Sobre qualquer tema. Sobre qualquer tema. Temos que reaprender a dialogar. Acho que meu maior sonho é o exercício do diálogo porque estamos vivendo uma crise muito séria e é uma crise que precisa ser conversada. Não adianta você conversar com o analista, sabe? É ser conversado no mundo mesmo. Que criança é essa temos hoje? Que relação é essa que temos com a comida? Como que é isso? Como que está esse brincar? Como apresentamos esses outros ingredientes do brincar para esse mundo? Tanto para o adulto quanto para a criança? Que lugar o brincar ocupa? Meu sonho é dialogar sobre essas coisas. Mas dialogar, porque não acho que tenho a resposta e que ninguém a tenha, mas não está dando para ficar pensando sozinha. Está muito pesado pensar sozinha.
P/1 – E não resolve muita coisa, não?
R – Pensar sozinha está muito pesado. Você fica rodando em volta do próprio rabo, cai sempre no mesmo lugar, parece que falta o ar, parece que falta criatividade. O que também não é justo conosco porque é uma circunstância, é um momento histórico que estamos vivendo. E essa conversa, para mim é a coisa que é mais importante, mais importante. Conversar. Não quero defender ponto de vista nenhum, quero conversar (risos). Se possível, levantar muito mais pergunta do que resposta. Acho que esse é o meu sonho.
P/1 – E vem com a experiência, não? Não tem jeito sair da faculdade com o marxismo na veia, achando que vai resolver, não é. Nem que todos os proletários se juntem (risos).
R – Não, acabou, essa história acabou. Materialmente já viramos a página, o mundo já enriqueceu, já estamos ricos. Por esses dias, lá no interior, estávamos comentando isso. Há quanto tempo uma pessoa não passa pedindo comida? Há muito tempo uma pessoa não passa mais na sua casa pedindo comida. Agora você olha em volta das casas, todas com cerca elétrica. Porque a questão hoje é invadir sua casa para tirar qualquer coisa para vender, para transformar aquilo, para comprar crack porque está empesteado de gente usando crack. De gente usando droga sem dinheiro para pagar! Agora comida não tem mais ninguém pedindo. O que é isso? Por que isso? Como nos posicionamos em relação a isso?
P/1 – Rosana, muito obrigada. Eu aprendi muito contigo, que ótimo, que história linda que você tem. Parabéns pelo teu trabalho, pela a história que você construiu. O Museu agradece, a Nestlé agradece, o Programa Nutrir, a sociedade agradece (risos) Obrigada.
R – Imagina, obrigada vocês!
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