PCSH _HV745_Suzi_Soares
Projeto: Conte Sua História
Depoimento de Suzi Soares, entrevistada por Jonas Samaúma
e Pilar Lopes de Azevedo
Transcrito por: Pilar Lopes de Azevedo
Revisão e tratamento: Jonas Samaúma
Dia: 11 de março de 2019
Entrevista para o “Conte sua História”
Realizaçã...Continuar leitura
PCSH _HV745_Suzi_Soares
Projeto: Conte Sua História
Depoimento de Suzi Soares, entrevistada por Jonas Samaúma
e Pilar Lopes de Azevedo
Transcrito por: Pilar Lopes de Azevedo
Revisão e tratamento: Jonas Samaúma
Dia: 11 de março de 2019
Entrevista para o “Conte sua História”
Realização: Museu da Pessoa
P/1 - Primeiro agradecer você. Queria que você, se possível, fechasse os olhos, respirasse profundamente, imaginando que toda a trajetória que você já viveu, todos os acontecimentos venham da maneira mais fluida, mais livre e mais natural. Então, bom dia, Suzi!
R – Bom dia!
P/1 – Bem vinda ao Museu! Queria que você começasse dizendo o seu nome completo, local e data de nascimento.
R – O meu nome é Suzi De Aguiar Soares. Eu nasci em Taboão da Serra, São Paulo, no dia 9 de julho de 1966.
P/1 – E qual o nome dos seus pais?
R – A minha mãe é Augusta Pereira Soares, que agora é Pereira Lourenço, porque ela se separou do meu pai e meu pai é José de Aguiar Soares.
P/1 – E o que você sabe, assim, da história deles?
R – Bom, minha mãe nasceu no interior de São Paulo, na cidade de Registro, Vale do Ribeira, trabalhou na colheita do chá e morava em sítio e, quando moça, ela veio pra São Paulo, pra trabalhar. E o meu pai é de Minas Gerais, da cidade de Dom Joaquim, norte de Minas. Ele veio também para São Paulo pra trabalhar com os irmãos e depois veio meu avô, que é pai do meu pai, teve 15 filhos, estão todos vivos até hoje. Meu pai tem 83 anos. Ele e minha mãe se conheceram... eles trabalhavam acho que no mesmo lugar. Meu padrinho era advogado, minha mãe trabalhava na casa deles e meu pai também era motorista ou alguma coisa assim e eles se conheceram lá. E, quando eu nasci, esses que no caso eram os patrões viraram meus padrinhos. Uma família italiana. Graziela e Zezinho. E aí eles moraram no quintal da casa do meu avô, ali no Monte Kemel, quando nós éramos crianças. Então éramos eu, a minha irmã e o meu irmão. A minha irmã Regina, que é um ano mais velha e meu irmão Hélio, que é um ano mais novo do que eu. Então, nós três nascemos ali no Monte Kemel, né? Até os quatro anos eu morei ali, depois eu fui para o Campo Limpo. E desde então eu estou no Campo Limpo.
P/1 – E de lá, o que você tem memória? Você nasceu, você diz, no Monte Kemel.
R – O hospital onde eu nasci, naquela época, todos que nasciam nessa região eram registrados em Taboão da Serra, que era o cartório que tinha. Então, eu, na verdade, não nasci no Taboão da Serra, mas eles registravam como se você tivesse nascido lá. Eu nasci em uma outra maternidade, que chama Maternidade São Luiz. Eu nasci em São Paulo, mas no meu registro de nascimento está como se eu tivesse nascido em Taboão da Serra. Então, eu nasci e fui morar ali no Monte Kemel, até os quatro anos. As lembranças que eu tenho dali, de quatro anos, são poucas lembranças, mas eu me lembro de manhã bater na porta da casa da minha avó, que era no quintal, pedir pra ela abrir, porque meu pai trabalhava de noite e ele chegava de manhã e queria dormir. E aí a gente tinha que ir pra casa da avó, pra ele poder descansar, né? E aí eu batia na porta da casa da minha avó. Ela me conta isso, que eu falava: “Vó, abre a porta pra mim”. E aí eu ficava na casa da minha avó. Me lembro das minhas tias cuidando da gente, me lembro da minha tia Alice fazendo um bolinho com arroz e feijão e farinha, assim, amassando, enrolando com a mão e dando pra gente comer. E foi uma infância simples, mas fartura de coisas simples. Então, meu avô sempre teve couve no quintal, almeirão, fazia muito angu, muito fubá pra gente comer, fubá suado. Então, essa é a lembrança que eu tenho desse período, assim. São poucas lembranças. E aí, depois, nós já fomos para o Campo Limpo. Meu pai comprou um terreninho, construiu uma casa no Campo Limpo, naquela época.
P/1 – Seu pai fazia o que da vida?
R – Meu pai era... eu não lembro nessa época o que ele fazia, mas ele trabalhava em prédios, sempre, assim, de segurança ou porteiro. Ele até conta que ele foi porteiro em um prédio onde morou o Tim Maia. E ele disse que ele sempre estava emprestando dinheiro para o Tim Maia (risos), que estava sempre duro. E aí eu lembro que depois, na casa da minha mãe, tinha uma fôrma de bolo que tinha sido do Tim Maia. Eu não sei onde é que foi parar essa fôrma de bolo.
P/1 – Nossa!
R – É.
P/1 – E só perguntando uma coisa: você sabe por que seu nome é Suzi?
R – Ah, diz minha mãe que meu pai trabalhou em um lugar que tinha uma secretária que tinha esse nome, Suzi. E aí disse que foi por isso.
P/1 – E então vocês mudaram, então, com quatro anos de idade, lá para o Campo Limpo?
R – É.
P/1 – E aí, como era o Campo Limpo nessa época?
R – O Campo Limpo era mato, sítio. Eu lembro que a nossa casa era em um barranco, ficava lá em cima. Eu me lembro, quando chovia, tinha um buraco assim na parede por onde passava água, sabe? Era uma casa muito simples. Talvez não tivesse acabamento ainda, né? E o meu pai, aos poucos, foi construindo. Naquela época os vizinhos se ajudavam, né, a encher uma laje, a fazer um... eu lembro muito disso, de ter lá os vizinhos ajudando a fazer coisas, né? Minha mãe fazia um almoço e as pessoas iam ajudar a construir, né? E aí ele foi construindo. Meu pai sempre foi muito cuidadoso e muito caprichoso. Então, ele foi fazendo aos poucos. Depois a casa fez um muro enorme porque era um barranco, o piso de caquinhos de cerâmica, né? E ali eu morei até, sei lá, acho que os 18, 20 anos, mais ou menos.
P/1 – E quais eram as brincadeiras que você tinha na infância?
R – Todas as brincadeiras de rua, com todas as crianças na rua. Esconde-esconde, pega-pega, taco, tudo. Que a gente passava o dia na rua, né? E o meu sonho era ir pra escola. Eu me lembro que quando eu não tinha completado ainda a idade pra entrar na escola, que tinha que entrar com sete anos, mas eu queria tanto porque todas as meninas, os amigos tinham entrado na escola e eu ainda não. E aí eu tinha seis anos e meio e minha mãe foi lá e pediu e eu consegui entrar na escola e eu adorava ir pra escola. Minha irmã chorava. Ela não queria ir. E eu queria. E eu brincava muito de escolinha também, no quintal de casa. A gente montava a escolinha e eu falava que eu era professora e eu gostava muito de brincar disso. Depois gostei muito de ler, lia muito. Naquela época não tinha muito acesso a livros em casa, bibliotecas também não tinha no bairro, mas a minha mãe... eu não sei, lá em casa sempre apareceram livros e eu lia. Meu pai falava: “Você não cansa de ler? Você acabou de comer, você está lendo”. Meu avô falava assim: “Menina, não pode fazer isso porque acabou de comer, garrolê, morreu” e eu falava: “Garrolê, o que será que é garrolê?” Depois de muito tempo que eu fui entender que era agarrou a ler e morreu. Que ele dizia que não podia ler depois que comesse porque fazia mal. Então ele falava: “Acabou de comer, garrolê, morreu”. Mas eu achava que garrolê era uma palavra, né? E depois que eu fui entender que era agarrou a ler e morreu, né? Porque eu estava sempre lendo. E aí eu me lembro que, quando estava construindo a casa, lá em casa também tinha um pedreiro que trabalhava lá e chamava seu Antônio. Era um negão, assim gordão, forte, mas ele era pinguço, pinguço. Tomava muitas cachaças. Ele chegava de manhã e já queria tomar uma cachaça. E minha mãe falava: “Não. Não vai tomar cachaça”. Fazia um sanduichão pra ele com ovo, assim, tal e ele lia aquelas revistinhas que tinha em banca de jornal, de faroeste. Eram umas revistinhas, uns livrinhos pequenos de faroeste e ele me emprestava aqueles livros, né? E quando eu tinha algum, eu emprestava pra ele. E a gente trocava livros, eu e o pedreiro que tinha na minha casa. É a lembrança que eu tenho do meu início de leitura, né? E na escola também eu li muito gibi na época porque logo quando eu entrei eu lembro a professora falar pra minha mãe que eu tinha dificuldade com leitura e aí eu comecei a ler gibi. E aí eu comecei a gostar de ler, né? Tudo que aparecia eu queria ler. Coisas de jornal. Eu lembro que meu pai lia muito jornal, mas na época esses jornais populares, né? Mas sempre tinham crônicas nos jornais e eu lia essas crônicas. Sempre o que aparecia e eu tinha oportunidade, eu estava lendo.
P/1 – Qual foi, assim, o livro que, na sua infância, você lembra que marcou, mesmo, você?
R – Puxa, na infância? Acho que eu vou lembrar mais na adolescência, né? Porque eu lia muito... não tinha muita opção... eu lia aquelas revistas de romance Sabrina, Bianca, fotonovela eu gostava muito de ler. Mas aí depois, que eu lembro assim, de livros, mesmo, é quando eu tinha 16 anos, já, alguns livros que foram me marcando, né? Em 1983 eu li o livro 1984 do George Orwell e eu fiquei muito impressionada com aquele livro e com medo do que aconteceria no ano seguinte. Porque o livro era 1984. E eu li em 1983, né? Então, foi um livro que me marcou bastante. E hoje a gente vê tudo que está acontecendo por aí, né? E eu roubava livros da biblioteca da minha escola. Porque já naquela época as bibliotecas eram uma farsa porque você não tinha acesso. Então, raramente, quando a gente conseguia entrar na biblioteca, eu pegava mesmo os livros e eu levava pra casa porque eu ia ler aqueles livros. Eu li todos que eu roubei, né? Então, roubar livros, pra mim, não é um crime, eu acho. Na minha casa o pessoal vai lá e rouba e eu já sei. (risos) Eu desconsidero. Não tem pena pra quem rouba livros. E, sei lá, depois eu li Poliana. Eu era romântica, assim. Eu lia romances, gostava de ler romances. Eu viajava naquelas histórias. Eu gosto de romance, de ler literatura de prosa, assim. Mas aí também, com 16 anos, eu conheci o Binho e aí já foi uma outra influência, né, de coisas mais políticas, de livros mais... eu li “ A Ilha” , do Fernando Morais, né, que fala sobre a revolução cubana e foi um livro também que eu gostei muito. E foi nessa época dos 16, 17 anos que eu li esse livro.
P/1 – Você tinha também acesso a contação, pessoas contavam histórias pra você ou todo seu contato era através dos livros, nessas histórias?
R – É, não tinha contação de histórias assim. Meu pai lia jornal, a minha mãe não lia muito naquela época. Hoje ela lê muito. Minha mãe hoje tem 74 anos e ela lê bastante. Acho que ela lê mais do que eu hoje. Mas eu até acho que a minha mãe foi influenciada por mim na leitura porque eu sempre falava: “Mãe, olha esse livro, que legal!” e ela acabava lendo. Eu lembro de ter emprestado pra minha mãe ler. Eu li um livro do Plínio Marcos chamado Na Barra do Catimbó e esse livro tem alguns palavrões, Plínio Marcos é meio escrachado, assim e ela ficou impressionada com aquele livro: “Nossa, como um livro tem esse monte de coisas, essas besteiras, esses palavrões?”, mas ela se divertia muito lendo esse livro. Então, eu fui dando livros também pra minha mãe ler. Hoje ela lê bastante.
P/1 – E você teve alguma professora ou professor que te marcou muito nesse período também?
R – Sim. Eu acho que os professores a gente sempre tem histórias boas e ruins. E eu tive professores muito bons na infância. Eu me lembro da professora Dona Maria de Lourdes Bueno. Foi minha primeira professora, da primeira série. E Maria de Lourdes Uru foi uma professora de Língua Portuguesa que eu já tive, acho, que na quinta ou sexta série e ela pegava os livros que ela tinha em casa, levava em um caixote, colocava em cima da mesa e falava: “Vocês escolham o livro que vocês quiserem ler”. E ela emprestava esses livros pra gente ler e depois a gente devolvia. E, pra mim, isso era demais, assim. E eu fiz isso também com os meus alunos quando eu estava dando aula, fazia a mesma coisa. E aí eu fazia dedicatória nos livros, para os meus alunos. Porque eu falava: “Talvez eles não joguem esse livro fora, porque tem uma dedicatória, pelo menos”, né? E eu falava: “Olha, peguem dedicatórias dos seus colegas nesses livros”. E aí, depois de anos, por exemplo, quando eles estavam no quinto ano, eu fiz isso. Depois eu dei aula para esses mesmos alunos quando eles estavam no primeiro ano do ensino médio. E alguns vinham me falar: “Professora, eu ainda tenho aquele livro que você deu quando a gente estava na quinta série”. Então eles, de alguma forma, guardaram. Alguns leram, talvez outros não, mas não jogaram fora porque tinha essa dedicatória. E estão com eles ainda, né?
P/1 – Nossa, que massa! E do Campo Limpo, nessa sua infância e adolescência, tem algum causo, alguma história?
R – Eu tenho história com vizinho, seu Joaquim, que era um vizinho gordão que a gente tinha. Ele era mau assim, com as crianças, sabe? Ele não deixava a gente... os filhos dele não podiam sair pra brincar, ficavam do portão pra dentro. Ele tinha três filhos. E, se caísse uma bola no quintal dele, ele cortava a bola, né? E a mulher dele, em compensação, era uma pessoa incrível. Ela ajudou muito a minha mãe porque a gente teve uma infância não de fome, mas de muita dificuldade. Então, minha mãe tinha... nós éramos em três crianças pequenas e às vezes não tinha muita coisa pra comer, muita opção de coisa pra comer e eu lembro dessa vizinha, Dona Zilda, que era a mulher do seu Joaquim e ela ia na feira e sempre comprava coisas a mais e dava pra minha mãe. Então, ela ajudou muito a minha mãe, mas ela, infelizmente, morreu muito nova e esse marido dela, o seu Joaquim, gostava de comer bunda de tanajura frita. Tanajura alguns chama de içá, que é uma formiga que tem uma bunda grande. E ele era muito gordo e não conseguia pegar as tanajuras. Então, tinha uma época do ano, assim, que elas começavam a sair da terra, assim, porque onde a gente morava ainda não tinha asfalto, na periferia. Então, tinha muita terra e as formigas saíam na época delas, no verão, sei lá e ele pagava a gente pra pegar essas formigas pra ele. Então, saía toda criançada colocando aquelas formigas em um vidrinho, pra dar pro seu Joaquim e ele fritava aquilo, que tem um cheiro que eu vou lembrar o resto da minha vida, em qualquer lugar que eu sentir esse cheiro eu vou saber que é cheiro de bunda de tanajura frita. E aí ele fazia uma farofa com isso. Essa é uma história que marcou muito pra mim, assim, a infância. Uma vez até escrevi um conto sobre isso, que eu tive um blog um tempo aí e aí eu escrevi sobre isso.
P/1 – Muito boa essa história! E era violento lá ou era tranquilo?
R – Então, eu acho que era violento, mas eu não percebia isso. Eu lembro que tinha os bandidinhos do bairro. Eu lembro que tinha um que chamava Cicinho. Mas eram os vizinhos que tinha ali, mas eu nem sabia o que ele fazia. Eu sei que um período ele foi preso e meu pai até chegou a levar coisas pra ele porque na época os presos ficavam nas cadeias próximas, né? Eu lembro do meu pai levar algumas coisas pra ele na cadeia e ele meio que protegia as pessoas do bairro, né? Mas eu não lembro dessa violência. Assim, não me afetou diretamente. Então, eu não sei o que falar de violência nessa época, não.
P/2 - A vida do bairro eram os meninos brincando na rua, correndo, né?
R – Sim.
P/2 – Era só sair da escola que eles iam e tinha muita familiaridade com os vizinhos.
R – Sim. Eu me lembro que não tinha, faltava muito água onde a gente morava e alguns vizinhos tinham poço artesiano e então eu me lembro que na minha casa tinha uma escadaria, assim, sei lá, uns 40 degraus, não sei, talvez menos. E aí a gente descia, saía na rua e aí tinha as casas de baixo. Nas casas de baixo tinha poço. Então você tinha que descer as escadas dessas casas de baixo, pegar água do poço do vizinho, subir e levar pra casa. Porque faltava muita água, né? E eram ruas também sem asfalto, então a gente brincava na rua, de tudo e quando chovia também era festa porque a lama também, pra gente, era brincadeira, né? E aí eu me lembro quando foram colocar o asfalto na rua, a gente ficava no muro da minha casa, era alto e a gente ficava de camarote assistindo ali os tratores passando na rua, meu irmão era apaixonado por trator e, pra gente, era como se a gente tivesse assistindo uma televisão ali, aqueles tratores e depois o asfalto, né? Mas isso também já demorou bastante pra acontecer, né? Sei lá, já devia ser adolescente quando asfaltaram a rua de casa, né? E naquela época as brincadeiras eram só ali, não tinha parque. Meu pai, às vezes, levava a gente em parques de diversão. Quando a gente saía meu pai sempre foi uma pessoa... ele não tinha dinheiro, assim, sobrando, mas ele sempre gostou de passear com a gente, né? Então, a gente ia para a praia, minha tia tinha um quitinete na Praia Grande e às vezes a gente passava um mês, na nossa infância, na praia. Coisa que pouca gente fazia, né? Então, era um quitinete minúsculo, ficávamos lá em, às vezes, 20 pessoas, dormia tudo espalhadas no chão e eu lembro que a gente dormia dentro do banheiro, em uma cozinha minúscula. Qualquer cantinho era um canto pra pôr um colchonete e a gente ficava lá um mês na praia, né? E aí, quando também oportunidades, sempre, todo final de semana, ia pra casa de algum parente. Como eu te disse, meu pai tinha 14 irmãos e então tinha tio pra visitar que não acabava mais. Então, todo final de semana ia pra casa de algum tio ou pra casa do meu avô. E o meu avô também vinha muito pra minha casa. Depois eu soube que meu avô tinha uma amante que ficava na rua de casa. (risos). Porque ele sempre ia pra minha casa: “Vamos ali na casa da Dona Maria” e eu ia pra casa da Dona Maria com ele, fui muitas vezes na casa da Dona Maria com ele, porque eu era muito pequena. E eu sempre fui grudada com meu avô e ele me arrastava pra todo lugar. E eu me lembro de descer a garagem de casa, que era um barranco assim e, no final da garagem, atravessava a rua e era a casa da Dona Maria e nós íamos lá, eu ia lá com meu avô. Eu me lembro que a Dona Maria comia banana com a comida e eu achava aquilo muito estranho. Foi a primeira lembrança que eu tenho de alguém comendo banana com a comida, foi na casa da Dona Maria. E aí eu lembro que uma vez eu falei para o meu avô, que morreu com 98 anos: “O senhor vai morrer sem ter visto um filho seu morrer”, né? Imagina uma pessoa que tem 15 filhos em uma cidade como São Paulo!” e ele falou: “Quinze fora os que eu fiz por aí debaixo das bananeiras”. Ele falava. Ele era danado, meu avô. E a minha avó era uma pessoa tão doce, assim, acolhedora. Ela tentava apaziguar todas as encrencas da família, dos filhos e se eu falasse: “Vó, eu estou com vontade de comer aquele doce de leite que você faz”, dali uns dias aparecia meu pai com um pote de doce de leite ou biscoito, que ela fazia biscoito de polvilho. E ela, depois, contou pra gente que ela, a minha avó, trabalhava de empregada na casa do meu avô. Ela não é a mãe do meu pai. Ela é madrasta. Então, meu avô era casado com a Maria. Aí, a Maria já tinha seis filhos. A Maria morreu no parto. E a outra Maria trabalhava na casa, ajudava minha avó a cuidar desses seis filhos. Quando a minha avó morreu, essa outra Maria que trabalhava ajudando a cuidar dessas crianças, acabou virando a esposa do meu avô também. E aí ela teve mais nove filhos com meu avô. E ela cuidou de todos. Dos 15 ela cuidou, né? E, pra mim, essa que era minha avó, porque a primeira morreu e eu nem conheci, né? E ela falava: “Mas eu não sou casada com seu avô. Eu sou amante do seu avô, mas eu era apaixonada pelo Dino”. Ela queria ter casado com o Dino. Mas as circunstâncias fizeram com que ela ficasse com meu avô, né? E ela conta muitas cenas também de violência, que meu avô bebia, judiou muito dela. Eu nunca vi o meu avô dessa forma. Pra mim ele era a perfeição. Porque eu era uma criança, eu era a queridinha dele e então, pra mim, ele era perfeito. Mas depois eu soube muitas histórias, assim, do meu avô. Até com relação a minha mãe ela disse que não foi fácil ser inquilina dele, morar do lado dele. Ele não era uma pessoa muito fácil de lidar. Mas eu não tenho essas lembranças do meu avô. Mas ele era muito mulherengo. Mas eu lembro da gente ir pra praia nesses meses, que a gente passava mesmo de férias e ele me colocava aqui no ombro e me levava no fundo assim, sabe? E quando eu nasci meu avô já era velho, né? Porque se ele morreu com 98, então eu nasci ele já tinha 60 e pouco, já era velho. E ele foi ficando mais velho, mais velho, parecia com uma pessoa que não ia ter fim nunca, né, porque durou muito tempo meu avô.
P/1 – Nossa! E nessa adolescência você queria ser o que quando crescesse?
R – Eu queria ser professora, né?
P/1 – Queria ser professora, já?
R – É. Então, eu fazia as escolinhas lá em casa e a coisa dos livros, né, de gostar muito de ler e tal.
P/1 – Fazia escolinha?
R – É, eu montava escolinha. No quintal de casa tinha uma lousa, tinha os caderninhos e a gente brincava de escolinha, né? E eu sempre queria ser a professora, né? Nunca queria ser a aluna. Eu queria ser a professora.
P/1 – E você ensinava o quê?
R – A gente pegava as cartilhas que tinha, Caminho Suave e a gente reproduzia o que a gente aprendia na escola, né? Então, sempre tinha alguém que tinha mais dificuldade, outro não e eu tentava ensinar o pouco que eu sabia, né? Imagina, com sete, oito anos, eu devia saber muito pouca coisa, né? Mas eu tentava ensinar o que eu sabia. (risos). O conhecimento que eu tinha com sete, oito anos, né?
P/1 – Nossa, com sete, oito anos!
R – É, logo que eu entrei na escola, né? Porque eu gostava demais da escola, né? E a gente ficava também inventando coisas pra ganhar dinheiro, né, porque qualquer dinheirinho, qualquer moedinha pra uma criança na periferia, é dinheiro. Então, eu costurava roupinhas de boneca pra vender, minha mãe me ensinava, tinha uma vizinha que me ensinou a fazer tricô e crochê e eu fazia coisinhas pra vender, pra juntar um dinheirinho. Vendia, trocava ferro velho pra comprar coisas, maçã do amor, que os caras passavam vendendo na rua. Meu pai tinha garrafas. Naquela época as garrafas eram todas de vidro e retornáveis, né? Mas o meu pai ficava muito bravo que às vezes ele ia ver e cadê as garrafas dele? A gente tinha trocado tudo por doce, né? Ou vendia pra poder comprar doce. E tem uma coisa também que eu me lembro que, naquela época, a gente não tinha essa diversidade de doces industrializados que tem hoje. Eram doces, sabe, de abóbora, doce de suspiro, doce de batata doce. Eram doces muito simples que tinha pra vender. Maria mole. E aí também tinha uma quitanda perto de casa que vendia coco. Pedaços de coco. Então, ela quebrava o coco seco, colocava os pedaços dentro de um vidro com água e vendia os pedaços. E coco era uma coisa boa porque você mastiga, mastiga e não acaba nunca. E, pra uma criança, isso é bom porque você fica... dá a sensação de que você está comendo há horas aquilo, né? Então, você fica mastigando. E aí todos nós tínhamos um cofrinho pra guardar moedas. E a minha avó estava em casa, ficava cuidando da gente e eu lembro da gente distrair a minha avó pra poder pegar o cofrinho. Então, enquanto um distraía a minha avó no quintal, os outros dois iam para o banheiro com o cofrinho, um dava descarga e o outro ficava chacoalhando o cofrinho, pra poder cair as moedas. (risos). Pra poder comprar coco na quitanda, né? Ou senão a gente pegava cana do quintal dos vizinhos pra chupar, que era uma coisa também que você fica ali chupando a cana e passa o tempo, porque não tínhamos opção de comprar doces, essas coisas. Era muito difícil comprar.
P/2 – A sua mãe ou as mães dos coleguinhas, dos vizinhos, não trabalhavam fora, né? Era difícil, né?
R – Não. Era uma época em que as mães, poucas trabalhavam, né? A maioria ficava em casa cuidando dos filhos. Porque naquela época as mulheres tinham um número grande de filhos. As famílias tinham, no mínimo, quatro, cinco filhos, eram famílias grandes, né? Então, pra uma mãe sair pra trabalhar, ela já tinha que ter um filho maior que pudesse cuidar dos menores, pra ela ir trabalhar. Então, como a minha mãe teve filhos escadinha, assim, né, um depois do outro, três filhos, ela não trabalhava. Aí, já quando eu era adolescente, a minha mãe começou a trabalhar fazendo faxina em casas de família, né, como diarista ou mensalista. Aí ela foi trabalhar. Mas quando criança, não. Ela ficava em casa cuidando da gente.
P/2 – Não tinha nenhuma vizinha assim por perto que tivesse uma profissão?
R – Não me lembro de vizinhas da idade da minha mãe que trabalhasse. Eu me lembro das vizinhas, todas, em casa. Então, tinha a Dona Izabel, que morava em frente; a Dona Lenita, que morava em frente; a Dona Zilda. Eram todas mulheres que estavam em casa. Ou, no máximo, faziam costura, trabalhavam com costura ou faziam coisas de doces pra vender, bolo, mas tudo trabalhos que pudessem fazer dentro de casa. E também naquela época os filhos ficavam o tempo todo ali porque ficavam um período na escola e o resto em casa. Não haviam ONGs naquela época, né? As ONGs não existiam. Na minha adolescência eu não soube de nenhuma ONG. Eu sei que o Projeto Arrastão é bastante antigo ali, mas eu desconhecia, não sabia que ele existia, né? Então, o que existia, na época, eram grupos que a gente frequentava muito a igreja, minha família era católica, mas não era aquela coisa de ficar muito indo na igreja. Mesmo assim eu fui batizada, fiz primeira comunhão, fiz crisma, frequentava a igreja, mas não é porque eu gostava de rezar. Era porque era lá que eu encontrava as pessoas, na igreja. No salão paroquial era aonde a gente ia nos bailinhos de carnaval, né? E as festinhas no salão da igreja. Teve um ano que, na escola onde eu estudei, faltou sala de aula. Então, eu fui estudar no salão paroquial. Então, atrás da igreja tinha um salão enorme, dividiam na metade e tinha duas turmas estudando ali. E a gente ficou o ano inteiro estudando na igreja, no salão da igreja, né? E era ali que a gente conhecia as pessoas dali. Os bailinhos que eram feitos nas garagens das casas. Sempre tinha os bailes. Mas às vezes também era perigoso porque tinha os penetras. A gente falava bicão, né? Vai ter uma festa na casa do fulano. Aí apareciam os bicões. E, na periferia, às vezes isso era um pouco perigoso, porque você não sabia quem era o cara e às vezes ele se desentendia com alguém que estava na festa, podia ter alguma briga. Então, era sempre um pouco tenso, né? Você tinha que estar nas festas cuidando para os bicões não entrarem, né? Aí, quando eu conheci o Binho, eu já tinha 16 anos e ainda era época dessas festas. E a gente fazia festa todo final de semana. Às vezes sexta, sábado e domingo, a gente inventava motivo pra fazer festa, né, porque a nossa diversão era aquela. Não tinha um centro cultural, não tinha biblioteca, não tinha nada. Então, a gente ficava por ali mesmo e inventava as nossas coisas, né?
P/2 – Cinema não tinha?
R – Não tinha. Quando eu era adolescente tinha um cinema na Vila Sônia, que era o mais próximo que tinha. A gente chamava de pulgueiro. (risos). Eu não lembro o nome do cinema, mas todo mundo falava: “Vamos no pulgueiro”. Então, a gente ia nesse cinema e era muito engraçado porque você ficava sentado lá em cima, nas cadeiras, a tela lá embaixo e tinha, abaixo da tela, um espaço onde as pessoas dançavam antes de começar o filme. Então, além de ser um cinema, era meio que uma discoteca, né? Então, as pessoas ficavam dançando ali, né? E eu não lembro o nome do cinema. Vocês lembram o nome?
R/2 – Palladium.
R – Palladium, acho. Mas eu só lembro do pulgueiro. (risos). E era também perto da escola onde, depois, eu fui fazer o ensino médio, né, no Andronico de Mello.
P/1 – E como transcorreu, assim, essa adolescência? Você lembra se teve alguns episódios marcantes, assim, que aconteceram?
R – Adolescência? Então, adolescência, até os 16 anos, era da escola pra casa; as festas juninas, que eram importantes pra gente na igreja, sempre.
P/1 – Era sempre na igreja?
R – Então, a igreja está sempre muito... tem uma relação muito forte, né, porque muitas coisas aconteciam na igreja. Então, a festa junina que tinha na frente da igreja, ali começaram as paqueras, né, que tinha o Correio Elegante que você mandava. Então, a nossa diversão era a igreja ou as festinhas de garagem, né? As festas que a gente fazia na casa da gente, mesmo, porque não tinha outra opção de distração, de cultura. Eu não me lembro de ter, não. Eu era muito... não que eu era tímida, eu sempre me dei muito bem com os meninos. Eu gostava de conversar, até hoje eu prefiro, às vezes, conversar com homens do que com mulheres. Porque às vezes me cansa um pouco. Não sei, tem algumas coisas que me cansam. E eu sempre fui de ficar mais na conversa dos meninos. Mas eu tinha dificuldade em arrumar um namoradinho. Eu era amiga dos meninos, mas não era namorada. Porque talvez eu não tivesse o perfil, né? Eu era magricela, tinha o cabelo crespo, todo esvoaçante, cheio, que eu falava. Então, eu não tinha muitos atrativos para os meninos, na época, mas eles gostavam de conversar comigo, né? Eu tinha um papo interessante. Então, eu demorei pra começar a namorar, eu fui namorar, meu primeiro beijo foi com 16 anos, né? Então, eu demorei pra começar. Porque os meninos eram meus amigos, só. (risos). Mas eu lembro quando, sei lá, eu tinha uns 12 anos e foi estudar na minha escola um menino que era de Portugal. E a família dele, as tias, morava por ali, ele veio de Portugal e foi estudar na minha escola. Eu lembro que ele tinha um sotaque muito forte, chamava Fernando. E eu fiquei apaixonada por esse menino na época. E aí ele, um dia, me parou na rua e falou: “Suzi, tu queres namorar comigo?” (risos). Aí eu falei: “Eu quero, mas não tem esse negócio de ficar beijando e abraçando” (risos). Porque pra mim ainda era uma coisa muito proibida, né? Nós brincávamos muito de beijo, abraço e aperto de mão, que era uma brincadeira que tinha na época, que você tapava os olhos da pessoa e a pessoa que tapava os seus olhos falava: “É esse? É esse?”. Tinham várias pessoas atrás, né? “É esse? É esse?” Aí, você escolhia um, de olhos fechados. “O que você quer fazer? É beijo, abraço ou aperto de mão?” e eu nunca falava beijo, porque eu não ia ter coragem de beijar. Então, eu sempre falava abraço ou aperto de mão, né? E aí, depois, você virava e ia ver quem era a pessoa que você ia fazer. Então, eu não tinha coragem de falar beijo. E também eu tinha medo porque eu falava: “Imagina se eu falo beijo! Eu tenho que beijar? E meu pai e minha mãe vão ficar sabendo isso”. Então, eu não fazia. Eu lembro que tinha umas meninas muito corajosas, né, e beijavam a torto e a direito os meninos, né? E a gente fazia essa brincadeira muito perto de um escadão que tinha na escola, assim. Tinha um escadão. Então, eu demorei esse processo de começar a namorar. Foi demorado pra mim. Então, eu dei um primeiro beijo lá em um menino, já estava no ensino médio e aí logo eu conheci o Binho, que foi o primeiro namorado que eu estou até hoje, né?
P/1 – Nossa! O Binho foi seu primeiro namorado?
R – Foi.
P/2 – Na casa se falava assunto de sexo, alguma informação, assim?
R – Não. Eu não sabia quase nada sobre isso. Falar de menstruação já a gente morria de vergonha, né, de falar sobre essas coisas.
P/2 – Na escola também não?
R – Então, eu me lembro que quando eu estudei no salão paroquial, a gente tinha uma professora que dava aula de... não era sexualidade, mas ela falava sobre coisas do corpo humano, sobre menstruação, sobre o órgão genital feminino e masculino e a gente ficava curiosíssimo porque a gente não tinha essas informações, né? E eu não me lembro de falar sobre isso com a minha mãe. Quando a minha mãe descobriu que eu não era virgem, foi muito engraçado porque era um tabu na época, que você tinha que se guardar, né? E aí eu fui fazer um exame ginecológico... não, fui ao médico e o médico me pediu um exame Papanicolau. Eu tinha 16 anos. A minha mãe falou: “Imagina! Esse médico está louco! Vai te pedir um exame desses!” porque o Papanicolau eu acho que você não pode fazer se você ainda é virgem, né? E ela falou: “Como assim que ele te pediu esse exame? A não ser que...”. Quando ela falou isso: “A não ser que...”, eu falei: “É, né?” (risos). Aí ela falou: “Eu não acredito que o Binho fez isso!” (risos). E ela ficou um tempo muito magoada com o Binho por causa disso. (risos).
P/1 – E como você conheceu o Binho?
R – O Binho, então, a gente estudava na mesma escola. O Binho estudou com minha irmã quando eles tinham seis ou sete anos, mas eu não o conhecia e eu estudei com os dois irmãos do Binho, o Rodolfo e o João Tadeu, mas eu também não conhecia o Binho. Então, eu conhecia de nome. A Regina falava: “O Robinson”, porque o nome dele é Robinson e os irmãos dele me falavam dele, mas eu não conhecia, né? E aí, quando eu tinha já 15 anos, eu fui a uma festa na casa dele e ele namorava com uma amiga minha, a Esmeralda, mas eu só conheci. E aí, depois, em uma festa junina, na frente da igreja São José, eu ia fazer uma comemoração do meu aniversário e o convidei e depois ele me falou que achou que, por causa daquele convite, eu estava interessada nele. Mas até então eu não estava. Aí nós tínhamos um professor na escola, professor Toni, que era um professor de Artes, que fazia eventos na casa dele às vezes pra arrecadar dinheiro pra formatura dos alunos e então fazia bailinhos, às vezes ele fazia reuniões e então ia ter uma festa na casa desse professor Toni e aí eu fui com um amigo meu, o Carlinhos e aí o Binho estava lá nessa festa, né? A gente se conhecia muito pouco, assim e tinha as músicas lentas, né? Na época tinha música lenta. Que era o que aproximava as pessoas, né? Então, você ia dançar, dançava coladinho e tal e ali começava um chamego, né? E a gente tinha acabado de dançar uma música lenta e teve uma briga na festa e, quando teve a briga, ele me puxou, assim. A gente estava dançando, ele segurou na minha mão e a gente ficou em um canto. Mas ele não largou da minha mão. E aí eu já achei aquilo meio estranho, né? Falei: “Nossa, por que será que ele está segurando a minha mão ainda?” e aí a gente foi lá pra fora, no quintal da casa e a gente começou a conversar e tal e o meu amigo apressando pra ir embora. Eu falei: “Puta, que saco!” e eu estava de carona com ele e eu tinha que acompanha-lo, né? E ele falou: “Não, Suzi, vamos embora, vamos embora”. E eu falei: “Está bom”. Aí, quando o Binho viu que eu estava indo embora, ele me lascou um beijo. Aí, diz ele, que eu fiquei assim: ahn (risos). Ele fala isso. Porque eu não estava esperando e não estava acostumada, né, a ser beijada. Eu tinha beijado uma vez até então, né, que tinha sido uma experiência muito ruim, né? Ruim porque eu não estava a fim do cara, foi muito chato, assim. E aí o Binho me beijou e eu falei: “E agora?”. Aí ele me deu um papelzinho com um número de telefone da casa dele. Naquela época poucas pessoas tinham telefone em casa, né? Ele já tinha porque o pai dele trabalhava com marcenaria, não sei o que e tinha telefone. E aí eu falei: “Puts, mas eu não tenho coragem de ligar. Acho que ele não quer nada comigo, foi só aquele beijo, mesmo”. Aí eu fiquei uma semana passando nos caminhos onde eu sabia onde ele ia estar. Na frente da igreja, justamente. Porque tudo acontecia na frente da igreja, né? Tinha um bar também na frente da igreja, que era o Bar Topo Gigio, que ainda tem hoje. Está lá. E o Binho tinha um amigo que morava ao lado da igreja, que era o Nicola. E eu sabia que ele não saía dali porque a minha irmã me falava. Então, eu saía da escola e eu passava lá e às vezes eu o via, ele tinha uma moto e eu via que a moto dele estava em frente a casa do Nicola, mas eu não tinha coragem de ir até lá. Aí passou alguns dias e eu encontrei o irmão dele no corredor da escola. Isso eu já estava fazendo o primeiro ano do ensino médio. Encontrei o Rodolfo e o Rodolfo falou pra mim: “Nossa, meu irmão está doido atrás de você, querendo falar com você”. Eu falei: “Jura?” (risos). Nossa, eu me lembro que eu saí no corredor da escola assim, pulando, sabe? (risos). Porque eu falava: “Não acredito que ele realmente está interessado em mim”. Eu corria no corredor da escola. E aí, o Binho sempre passava pra pegar o Rodolfo porque ele trabalhava nas Casas Pernambucanas, ele era office boy e ele vinha de moto, passava no ponto de ônibus, pegava o Rodolfo pra ir embora. Aí, a partir daquele dia, o Rodolfo perdeu a carona dele. Porque já naquele dia o Rodolfo falou: “Não, ele vai passar no ponto pra me pegar. Você espera lá” e aí ele chegou no ponto de ônibus, eu me lembro que ele desceu da moto e já veio e me deu um selinho, assim, na boca. Eu falei: “Nossa!” (risos). E naquele dia eu já comecei a pegar carona com ele de moto pra ir embora pra casa. E aí não lembro se já nesse dia, naquela semana, por esses dias, foi em uma sexta-feira e aí eu o chamei pra comer, pra jantar em casa. Então, quer dizer, nos primeiros dias eu já o chamei pra subir. E de sexta-feira minha mãe sempre fazia sopa. Porque meu pai levava marmita todos os dias e, como no sábado ele não trabalhava, de sexta-feira à noite minha mãe fazia sopa. E o Binho foi lá nesse dia que tinha sopa. E eu tinha, já, na época um irmão menor, o Fernando, né? Ele tinha, na época, seis anos. E aí o Binho foi o primeiro a pôr a sopa no prato, estava comendo e aí não falou nada. Na hora que meu pai foi comer ele falou: “O que tem nessa sopa?”. O meu irmão Fernando tinha pego o pacote de macarrão e jogado o macarrão cru dentro da panela de sopa. E o Binho comeu e não falou nada. E aí, quando meu pai foi comer, que ele falou: “Nossa, o que tem nessa sopa?” (risos). E dali ele já começou a frequentar minha casa, mas eu também não sabia se estava namorando. Até que um dia eu fui na casa dele, quando ele me apresentou pra irmã dele, a Diane, ela falou: “Ah, essa que é sua namorada?” e ele falou: “É”. Aí eu falei: “Ah, eu sou namorada”. (risos). Porque até então eu não tinha certeza disso, né? Porque naquela época, se você não pedisse a mão da pessoa em namoro... tinha isso: você tinha que pedir a mão. “Você quer namorar comigo?”. Tinha uma coisa oficial, assim, né? Se você não fizesse essa pergunta, ficava naquela de só estar dando uns beijinhos, né? Mas também não podia só ficar dando uns beijinhos porque ficava mal falada, né? Então, você estava namorando ou você era mal falada. Não tinha isso: “Ah, eu estou ficando com um cara hoje e amanhã eu estou ficando com outro”. Aí, você virava a galinha do bairro, né? Então, você namorava ou você era mal falada. Então, eu não sabia ainda. E naquele dia ele falou: “É minha namorada” e eu falei: “Nossa, eu sou namorada”. Mas esse namoro durou seis meses, só, naquele momento. Foram seis meses muito intensos porque parece que durou uma eternidade. E foi no momento também que eu vivi um pouco da questão política que eu não conhecia. Porque o Binho era envolvido com pessoas, na época, ligadas ao PT.
P/1 – Era que ano isso?
R – Em 83. Então, os meninos saíam pra pichar muro, mas não era pichar. Eram frases de protesto, né? Então, a gente ia em reuniões também em salões de igreja, pra discutir questões políticas, né? Lembro que alguns amigos até chegaram a ser presos na época e o Genoíno que foi tirá-los da cadeia, né? Então, eu vivi um pouco dessa questão política nesse momento porque até então eu era muito alheia a essas questões, né? Então eu e o Binho namoramos durante seis meses, só. E aí ele me deixou, na época, me deu um pé na bunda e foi namorar com outra menina, que era do grupo, mesmo e eu fiquei muito mal, muito. Fiquei doente, doente. De aparecer mancha roxa no meu corpo, assim, de tristeza.(risos). Você está rindo, né? E aí eu viajei, fui pra Minas Gerais, na casa de um tio, fiquei lá um tempo, mas foi muito sofrimento. Muito sofrimento. E aí a gente ficou quatro anos separados, né? Aí eu namorei outras pessoas, ele também namorou outras pessoas, ele ficou noivo dessa moça que ele namorou, depois eu também fiquei noiva, mas a gente sempre teve uma ligação, assim, uma coisa muito forte, né, de se dar bem, mesmo, de gostar das mesmas coisas. E, mesmo durante esses quatro anos, a gente estava sempre se encontrando, assim, nas festas, com os amigos. E aí depois a gente começou a se encontrar, ele já não estava mais namorando e nem eu e a gente se encontrava nos barzinhos que tinham perto da casa dos amigos e aí a gente acabava sempre ficando juntos, sempre ficando juntos. E dali em diante não separou mais. A gente foi ficando. E estamos até hoje e a gente não casou, estamos grudados. (risos).
P/2 – Aí já não teve mais que precisar do irmão? Foi fluindo?
R – Não. Foi acontecendo, é.
P/1 – E aí como é que você começou a se envolver na sua vida pra se tornar professora, nessa época?
R – Então, em 1990 o Binho saiu do Brasil, ele foi pra Europa porque ele queria ser médico e não conseguiu ser médico. Fazia vestibular, prestou vestibular pra Medicina, sei lá, umas duas vezes. Fez cursinho o ano inteiro e aí não deu certo, veio o Plano Collor e ele falou: “Não vou ficar aqui” e ele saiu e foi pra Europa, pra Itália, Espanha, ficou lá. E aí, depois de um ano que ele estava lá, eu também fui pra lá, atrás dele. Quando ele foi eu o ajudei e depois ele me mandou dinheiro, também, pra passagem. Eu trabalhava no Banco Itaú, eu pedi as contas no Banco e fui pra lá, né? E aí a gente, quando eu voltei da Inglaterra, que a gente ficou morando na Inglaterra, aí a gente montou um bar. Eu só fui voltar com essa coisa de professora, que minha formação foi em 2007, que eu fui fazer o curso de Letras. Porque aí minha filha já estava grande e eu falei: “Agora ela pode ficar sozinha em casa” e aí eu voltei a estudar porque eu tinha feito Magistério, mas logo que eu fiz Magistério eu não fui dar aula, eu desisti, porque eram muitas dificuldades. Você tinha que concorrer com professores que estavam há muitos anos e aí você pegava uma vaga longe, sabe? Eu fui desistindo dessa coisa de ser professora. Então, quando eu fiz Magistério, eu não fui dar aula. Eu só fui dar aula, mesmo, depois que eu fiz a faculdade de Letras. Mas também fiquei pouco tempo. Eu dei aula sete anos. E aí eu desisti.
P/1 – Você quer contar um pouco de como foi essa experiência como professora?
R – É uma coisa muito louca, assim, que eu tenho muitas lembranças, ainda tenho contato com muitos alunos que vêm falar comigo: “Ai, professora, sinto sua falta”, não sei o que. Eu acho que talvez como ensinadora eu não fosse muito boa. Talvez eu não tivesse tanta didática pra ensinar, mas eu gostava era da relação com os alunos, sabe? Então, eu era professora de inglês. Dando aula de inglês eu ficava muito limitada no assunto que eu ia tratar. E também dentro daquela disciplina. Eu não conseguia avançar, porque é muito precário pra você ensinar inglês em uma escola pública. Você tem a sala de informática, onde os computadores não funcionam. Aí, você quer usar um equipamento pra mostrar uma música, não tem. Um vídeo, não tem. Então, você fica muito naquela coisa da sala de aula e aí não dava pra avançar muito e eu queria falar sobre outras coisas. Eu achava que era urgente se falar sobre outras coisas. E muitas vezes eu falava: “Pra que eu estou aqui ensinando inglês pra alunos de uma periferia que estão precisando saber outras coisas, que são muito mais importantes do que aprender uma outra língua nesse momento?”. Eu achava que quando eles quisessem, realmente, aprender uma outra língua, que eles iam atrás, sabe? Porque hoje, através dos jogos da internet, você consegue aprender uma outra língua, né? E aí, então, por exemplo, eu estava na sala de aula e eu via um aluno tratando o outro com racismo. Eu falava: “O quê? Para tudo” e falava: “Agora vai parar as lições de inglês e agora são lições de vida”. Aí eu começava a falar sobre o racismo. Ou falar sobre o bullying. Ou falar sobre várias outras questões. Muitas vezes eu fiquei a aula inteira falando sobre outras questões, né? Ou alunos que chegavam chorando porque: “Professora, ontem eu pensei em me matar”. Eu falei: “Como assim você pensou em se matar? Então, vamos conversar”. Eu lembro de uma vez que o João me falou isso: “Ontem eu pensei em me matar”. Eu tinha duas aulas naquela sala e eu falei: “Hoje é lições de vida, vamos conversar”. Ficamos as duas aulas conversando com o João, pra entender o que ele estava vivendo. E foi muito lindo porque todos os alunos começaram a falar dos seus problemas. Porque o João começou: “Porque meu pai não gosta de mim. Porque não sei o que, não sei o que” e aí os outros alunos começaram: “João, sabe o que acontece na minha casa? O meu pai bate na minha mãe”. Aí o outro começava: “Na minha casa não tem o que comer. Eu moro em um barracão”, não sei o que. Todos começaram a falar dos seus problemas. E aí o João, o problema dele foi diminuído diante do problema dos outros, né? Então, foi uma terapia em grupo que a gente fez ali na sala, que todos saíram dali bem. E que importância teria eu ficar dando aula de inglês em um momento daquele, sabe? Então, pra mim, era muito irrelevante. E eu passei por isso muitas e muitas vezes, de alunos que estavam com problemas e eu parar a aula pra gente tratar daquele problema, né? Então, talvez, eu não tenha ensinado inglês quase nada. Mas eu acho que eu contribuí na vida de alguns alunos de outras formas. Tanto é que eles vêm me falar isso, né? E na parte cultural também porque eu já estava envolvida com o processo dos saraus e esse movimento cultural ali na zona sul e aí eu percebia que os professores não tinham a mínima noção do que estava acontecendo ao redor da escola, no entorno da escola. E eu queria levar tudo isso pra escola. Então, eu levei o sarau, grupos de teatro, muitas coisas e os alunos falavam: “Professora, nunca vi isso na minha vida”. Quando eu levei a Trupe Lona Preta pra minha escola, os alunos falaram: “Professora, foi a coisa mais maravilhosa que eu vi na minha vida”. E depois que eu saí de lá, eles não tiveram mais isso. E eles vinham me falar: “Professora, nunca mais a gente teve nada diferente na escola”. E eu indicava livros. Às vezes eu matava aula, mesmo, com os alunos. Os alunos gostavam. Eu sentava e eles vinham e sentavam em volta, né? E aí era uma estratégia deles também pra matar a aula. Um deles me falou isso recentemente: “Professora, a gente gostava de te enrolar porque a gente sentava lá pra conversar com você, mas eu aprendi muito ali conversando com você”. Então, eram outros aprendizados, né? Eu não dava aula de inglês, mas eu ensinava outras coisas pra esses jovens, né? Muitos se tornaram meus amigos, assim. Um foi fazer Biblioteconomia. Ele disse que foi por minha causa que ele foi fazer esse curso. Que ele está estudando lá em Marília, fazendo Biblioteconomia, né?
P/1 – Por que foi por sua causa?
R – Por causa dos livros. Eu levava os livros, né? E quando eu tinha oportunidade de ir na biblioteca da escola com eles, que era fechada, eu falava: “Gente, escolhe aí”. Sabe? Eu os deixava levar os livros que estavam lá todos empoeirados, sabe? E eu falava: “Não, esse aqui você não vai gostar. Essa história aí vai ser chata pra você. Pega esse”. Ficava indicando: “Pega esse, pega esse”. Levava os livros de autores da periferia também pra eles, sabe? Então, teve alguma influência aí por causa disso. Eu estava sempre com muitos livros, né?
P/1 – E vamos falar um pouco desse processo dos livros e da formação dos saraus? Se você pudesse falar como nasceu o sarau, o bar. Contar um pouco esse episódio, assim.
R – Então, eu e o Binho voltamos da Inglaterra em 1993, eu estava grávida da Naiana e a gente voltou com um pouco de dinheiro, mas sem saber o que ia fazer, né? Quando eu voltei eu estava grávida, eu estava acho que com seis, cinco meses de gravidez e nós voltamos para um bairro e a gente falou: “E agora? O que nós vamos fazer pra sobreviver agora, que trabalho nós vamos fazer?” e aí, um dia, passando de carro em frente a escola onde nós tínhamos estudado, a gente viu uma porta com uma placa de aluga-se e aí a gente falou: “Vamos montar um bar aqui nesse lugar”, né? A gente nunca tinha tido um bar, né, mas a gente falou: “Vamos fazer”. E aí alugamos esse espaço, fomos reformando, pintando. Eu lembro que o dia que inaugurou a gente ainda estava pintando, nosso cunhado estava fazendo um desenho na parede e as pessoas: “Vamos abrir logo”. Os alunos da escola não viam a hora de abrir aquele espaço, né? Aí levantamos a porta e trabalha, trabalha, trabalha. Eu lembro que a Naiana nasceu dez dias depois que a gente abriu o bar. Então, a gente montou o bar, eu estava de barrigão, assim. E aí deu muito certo porque os jovens dali não tinham opção de lugar pra ir, né? E a gente começou a fazer coisas naquele bar que não era só vender o pastel ou uma bebida. A gente estava sempre falando de livros, o Binho estava sempre indicando livros, a gente tinha um toca discos que a gente colocava lá para as pessoas colocarem as músicas pra ouvir e aí começamos a inventar coisas, né? Porque a gente não queria só um bar. Aí começamos a fazer. O Binho sempre tinha uma ideia maluca. Quando o movimento caía ele falava: “Preciso inventar alguma coisa”. Aí ele criava uma promoção maluca, assim, sabe? Como é que era o nome da promoção? Tipo: era um pastel e um suco de laranja. Apelação o nome da promoção. Promoção Apelação. E a gente vendeu muito pastel com suco de laranja. Aí dava uma levantada. Aí ele punha umas faixas no bar tipo: Bob Marley nunca esteve aqui. Porque você vai em alguns lugares, tem fotos de famosos: fulano famoso esteve aqui. E ele fazia o contrário. Sempre foi a anti propaganda: Bob Marley nunca esteve aqui. E outros caras, assim, ele colocava. Depois também no bar a gente tinha uma placa que era: Nós fazemos o pior pastel de São Paulo. Nós temos a pior cerveja, a pior panqueca e o pior atendimento. Era uma placa. Eu tenho foto dessa placa. Vou mandar pra vocês. Que ficava na porta do bar, né? E as pessoas paravam pra tirar fotografia. As crianças queriam ir lá comer o pior pastel. “Mãe, eu quero ir lá pra comer o pior pastel”. Mas não era o pior, era o melhor, né? Mas a gente ia sempre na anti propaganda. Pra atrair as pessoas, né? E chamava a atenção, né? E aí a gente começou a fazer a Noite da Vela, que a gente apagava. Também, a Noite da Vela começou de alguns momentos de crise financeira. Então, a gente falava: “Vamos fazer um jantar”, né? Ao invés de vender pastel, a gente fazia um jantar e vendia os convites antecipados, eu fazia panquecas e a gente apagava as luzes do bar, colocava luz de vela, decorava, forrava assim com um pano preto, assim, pra criar um ambiente assim e a gente colocava aquelas músicas pra tocar no disco de vinil e aí, nesse momento, foram surgindo as poesias. As pessoas, entre uma troca de música e outra, no vinil, que dava tempo, vai trocar um disco: “Posso falar um poema?”, né? Então, tinha algumas pessoas que frequentavam o bar que eram pessoas que gostavam de literatura e aí começou a surgir isso, de falar poesia. E aí eu lembro que em uma dessas noites da vela foi um sarau, mesmo. A gente tem isso gravado em VHS, mas é um material muito ruim, assim. Qualidade péssima. As fotos também eram escuras. Naquela época tinha pouco recurso pra isso, né? E aí começou e então a gente fazia esporadicamente a Noite da Vela, né? Depois, com esse nome de sarau, mesmo, a gente começou a fazer em um segundo bar que a gente fechou o primeiro bar, ficamos um ano parados e abrimos um segundo bar. Nesse segundo bar a gente começou a fazer toda segunda-feira, mas aí já existia a Cooperifa com esse nome de sarau. A gente começou fazendo antes, talvez, mas sem o nome de sarau, que foi a Noite da Vela. E depois a gente começou a fazer toda segunda-feira no bar e era o dia que o bar mais lotava, praticamente.
P/1 – E dessas noites todas, assim, você lembra de alguma que: “Nossa, essa coloriu sua memória!”?
R – Ah, teve uma Noite da Vela lá que foi muito especial, assim, que tinha o Gaspar; tinha uma menina que chama Sol, ela está na Alemanha hoje, ela canta e acho que ela era ligada ao rap. Nossa, eu lembro dessa menina cantando, assim, lindamente. E outros poetas estavam presentes nesse dia. Acho que até o Sérgio Vaz estava nesse dia. Pessoas que estão nascendo, literárias, até hoje, alguns estavam lá. O Pezão. Pilar. O Elber. Estavam lá nesse dia. Me lembro dessa Noite da Vela em especial, assim. Porque acho que também porque depois ficou registrado em vídeo, né? Então, a gente voltou a assistir algumas vezes, isso, depois. Então, ficou bem na memória.
P/1 – E aí, como foi indo sua vida? Vocês faziam a Noite da Vela, tinham o bar, nasceu sua filha...
R – Então, nesse momento que nasceu minha filha ainda não tinha a Noite da Vela. Foi logo que abriu o bar, né? E foi muito difícil porque a gente fechava o bar... logo que ela nasceu eu fiquei um período sem trabalhar, sem ir para o bar, mas logo voltei. Então, tem pessoas que a gente conhece até hoje que falam que eu ficava com uma mão fritando pastel e com o pé eu empurrava o carrinho, sabe? E a minha filha foi criada ali dentro do bar, né? E tem vídeos dela dançando em cima do freezer. Tem vários momentos que ela está ali, né? E aí, quando ela começou a engatinhar naquele chão sujo de um bar, a coloquei em uma escolinha que ficava bem na frente. Então, eu conseguia administrar isso, né? E amamentar e tudo. Mas eu sofria muito porque à noite eu estava lá no bar e o peito vazando leite, eu queria ir embora porque eu sabia que era a hora que ela tinha que mamar e as pessoas não iam embora. Eu mandava as pessoas embora. Todo mundo fala isso: “Su, você era muito mal educada” porque eu mandava, mesmo, falava: “Gente, vão embora, eu preciso ir embora” porque no bar as pessoas querem ficar: “Mais uma, só mais uma” e eu querendo fechar o bar, né? Então, foi muito sofrido e ela foi terceirizada, minha filha, quando era bebê, assim, né? Ficava com a avó, com a tia, um monte de gente que cuidava enquanto eu estava no bar. Depois, ela já maiorzinha, assim, com quatro, cinco anos, eu lembro da gente fechar o bar de madrugada, ir na casa da minha mãe e pegá-la dormindo no colo, pesada, pra levar pra casa. E aí, no outro dia, um de nós dois tinha que acordar cedo pra acompanhar o ritmo dela porque uma criança pequena você não larga sozinha, que levanta da cama e começa a pintar parede, faz tudo, né? Então, foi bem difícil, assim, esse período. E a gente trabalhava muito nesse bar, muito. Abria só à tarde, às quatro horas da tarde. E às vezes até duas, três horas da manhã. Às vezes mais. Fazíamos muita festa lá, com música ao vivo, com reggae, com forró. E, nossa, trabalhamos demais.
P/1 – E aí como foi que teve o processo do fechamento?
R – Então, a gente fez tantas festas que os vizinhos começaram a se incomodar, né? (risos). Tem sempre um vizinho na história, né? A gente se dava bem com a maioria dos vizinhos, mas tinha um especialmente que não gostava, reclamava, mas ele tinha razão porque a gente fazia uma barulheira, fechava a rua, tinha gente que não conseguia passar com o carro pra ir pra casa. Era muita, muita gente, mesmo. E aí esse vizinho começou a fazer abaixo assinado, mas ele não conseguia recolher assinatura suficiente porque a gente tinha uma boa relação com os demais, sabe? É que ele pegou firme ali na encrenca e queria fechar. Aí a dona, depois de dez anos, chegou um dia que ela pediu o ponto de volta, né? Não sei. Talvez porque tinha tanta reclamação, ela resolveu pedir de volta. E aí nós ficamos sem saber o que fazer, porque você fecha um comércio... eu não vendi o ponto. A gente fechou e acabou o dinheiro, a fonte de renda, né? Não tinha FGTS no bar, né? E a gente ficou durante um ano sem trabalhar, nós tínhamos uma reserva de dinheiro ainda do que veio de Londres, né? Foi disso? Não. Acho que foi um processo trabalhista, né? Eu tinha ganhado um processo trabalhista contra o Banco Itaú e aí a gente comprou um apartamento e ficamos com uma reserva de dinheiro. Nesse um ano a gente gastou essa reserva toda, porque não tinha de onde tirar dinheiro, né? E aí ficamos procurando outro lugar pra montar o bar. Aí a gente montou na frente de uma escola e depois a gente montou em frente a uma universidade. Então, a gente foi graduado, em um ano a gente se graduou do ensino médio para a universidade e aí ficamos na frente da universidade, na época, que era a Uniban. Então, foi um período de um ano. Nesse período de um ano também eu li muito. Nossa, como eu li nesse um ano! A gente ia em uma biblioteca lá no Campo Limpo e pegava muito livro, lia muito livro, um atrás do outro, assim. Eu já fui uma leitora, hoje estou muito...
P/1 – O que você lia?
R – Ah, basicamente eu lia romance. Eu gosto de ler romance.
P/1 – Mas quais romances?
R – Eu li muito literatura brasileira, os clássicos de literatura universal eu li muito, Dostoievski eu li, Ana Karenina eu li, eu li Jorge Amado, eu li... o que caía na mão, eu lia, sabe? Mas eu não insistia muito quando um livro não me pegava. Eu desistia dele logo. Se começava a ler, não... já pegava outro, sabe? Não ficava insistindo muito, não. Mas eu li muito esses clássicos. Eu comprava aquelas coleções de banca de jornal da Folha, sabe, que eles lançavam autores da literatura universal e de literatura brasileira. O meu sonho de consumo, quando eu tinha uns 12, 13 anos, era ser sócia do Círculo do Livro, que era um clube de leitores que você pagava mensalmente e recebia acho que um ou dois livros por mês. Mas eu não tinha como pagar isso e eu tinha uma amiga, Adriane, que era associada do Círculo do Livro e eu ia na casa dela e tinha um catálogo com todos os livros. Nossa Senhora! Eu viajava naquele catálogo! Viajava. Porque tinha as capas. E eu ficava sonhando com aqueles livros. Então eu ficava esperando a Adriane escolher os livros que ela ia comprar, pra eu poder ler os livros que ela escolhia, né? Então, era o meu grande sonho, foi esse, meu sonho de consumo de adolescente foi esse. Mas não concretizei. (risos). E hoje eu tenho essa tonelada de livros na minha casa e puts, o que está acontecendo que a gente não consegue mais largar a internet, a Netflix, pra pegar um livro, né? Faz tempo que um livro não me pega e leva até o final, assim. Porque eu não sei o que acontece. Eu adorava. Lia um livro atrás do outro, né? Ainda gosto, mas estou nesse processo aí do internetês.
P/1 – A gente ainda tem uma meia hora, eu queria que você contasse também do processo de nascimento da Felizses.
R – Então, a Felizs... tem uns que chamam Felizses e tem gente que fala Felizs... a gente batizou com o nome de Felizs
porque é Feira Literária da Zona Sul e então é Felizs com z e s no final. Foi um projeto que surgiu da cabeça da Diane, que é irmã do Binho, que é uma pessoa a quem eu devo muito do que eu faço hoje, do que eu conheço hoje porque ela que me iniciou nessas questões culturais e de formação. Eu lembro que quando eu fazia Magistério, ela fazia faculdade de Psicologia e ela me levava pra um monte de lugares: “Suzi, vai ter um seminário não sei do que, não sei onde. Vamos?”. Então, eu lembro de ter ido em um seminário sobre educação na Faculdade do Largo São Francisco com a Diane, que eu vi coisas incríveis naquele lugar. Então, sempre que tinha alguma coisa, ela me indicava. Eu me lembro de ter ido em uma palestra com o Paulo Freire quando eu fiz Magistério. E a Diane estava sempre me dando dicas dessas coisas, né? E aí ela sempre trabalhou em ONG, com movimentos culturais também, tem uma grande responsabilidade da Diane nesses movimentos culturais da zona sul. E aí a gente começou a trabalhar com projetos juntas, a gente tinha escrito um projeto para o edital do Rumos, do Itaú Cultural, em 2014 e esse projeto previa um dia de feira, que era uma coisa que ela idealizou, essa feira. E aí a gente falou: “Puts, um dia só? É muita coisa pra o que a gente quer fazer em um dia”. Aí nós fizemos uma semana de feira em 2014. E aí a gente falou: “Puts”. Não, foi em 2015. O projeto foi de 2014 e encerrava em 2015, que seria com esse um dia de feira. Aí fizemos essa uma semana, aí nos outros anos a gente foi ganhando alguns editais do ProAc, tal e alguns apoios que foram ampliando a feira. Até o ano passado a feira tinha 12 dias, né? Toda feira acontece na zona sul de São Paulo, nos equipamentos culturais da zona sul, em escolas, casas de cultura, bibliotecas, no Sesc, espaços independentes de alguns parceiros. E aí estamos indo esse ano pra quinta edição da Felizs, que cada vez está crescendo mais. A gente tem conseguido trazer alguns autores consagrados, pessoas conhecidas, mas a gente não quer perder o foco de ter sempre pessoas dali da zona sul participando.
P/1 – Esse ano quem é o homenageado?
R – Todo ano a gente tenta ver uma linguagem da cultura pra gente ter um foco. O ano passado foi o audiovisual. Esse ano vai ser o teatro. Então, nós vamos homenagear o Mário Pazini, que foi o diretor do Teatro Clariô, falecido há uns quatro anos, mais ou menos, que foi uma pessoa que foi muito importante pra gente, um parceiraço nosso, morreu cedo. Mas a gente ainda também vai ter um homenageado vivo, que a gente ainda não escolheu, mas provavelmente ligado ao teatro, então ainda não está definido ainda esse ano esse segundo homenageado, né? E a feira, geralmente, tem um tema...
P/1 – Quer falar uma retrospectiva das quatro, assim? Como foi cada uma.
R – É. A primeira foi gente que lê, une e transforma, né? A primeira feira a gente não teve um homenageado. A gente ainda não tinha essa pegada, ainda. Aí, na segunda Felizs, a gente homenageou a Dona Raquel Trindade, que faleceu o ano passado, né? E o ano retrasado a gente homenageou o poeta Renato Palmares, que é um poeta que frequenta o sarau desde o início. Um grande poeta ali da zona sul. No ano passado a gente homenageou a Dona Eda Luz, que foi coordenadora do Cieja Campo Limpo durante 20 anos. Então, foi a nossa homenageada do ano passado. O tema do ano passado foi: De onde você vem? E então a gente abordava a questão da ancestralidade, das histórias de vida das pessoas. Então, cada pessoa que ia participar tinha que falar de onde ela vinha, seja o lugar geográfico, mesmo ou as histórias que ela queria contar. Foi muito interessante isso. E esse ano ainda não definimos esse tema também, da feira. Estamos engatinhando ainda pra esse ano, que a feira é em setembro, né?
P/1 – E como é a produção?
R – A feira é produzida por sete mulheres e o Binho. Então, o Binho, praticamente não participa das reuniões, porque ele não tem muita paciência com reuniões, mas as poucas vezes em que ele participa, ele dá ideias muito boas. Às vezes ele dá opiniões que fala: “Puts, por que a gente não pensou nisso também, né?”. Então, a contribuição dele é muito importante. Apesar dele não estar ali todo dia nas reuniões, mas ele fica em casa. Ele fica ali com o ouvido atento e está sempre contribuindo muito. E são sete mulheres que se dedicam muito pra que a feira aconteça porque, para um evento de 12 dias você ter sete pessoas, só, pra organizar tudo, é uma loucura, é muito trabalhoso. Muito, muito, muito. Mas quando a gente vê o resultado, é muito satisfatório, a gente fica muito feliz, mesmo. E aí tem aí, tudo da Felizs está disponível na internet pra quem quiser consultar, as palestras estão todas disponibilizadas, porque é um material muito rico, né? As palestras que a gente teve na Felizs, para formação de professores, pra pesquisa. Então, tem na íntegra, né, essas mesas, essas conversas. Está tudo lá.
P/2 - Todas as atividades que vocês fazem são gratuitas para o povo?
R – Da feira, sim.
P/2 – E de onde vocês tiraram recursos pra organização e como vocês se sustentam?
R – Então, a feira a gente vem tendo alguns apoios, desde que a gente começou, que nós tivemos o Rumos, aí depois a gente teve o edital do ProAc durante quatro anos, a gente já conseguiu. O ProAc é o nosso começo pra feira, a gente tem o mínimo pra começar a feira, que é muito pouco. E aí a gente vem conseguindo uns apoios a partir dos resultados da feira, as pessoas vêm reconhecendo a qualidade dela e vem apoiando. Então, o Sesc, o Itaú Social, já há dois anos a Fundação Tide Setúbal. A gente teve durante dois anos emenda parlamentar também do Vereador Donato e do Vereador Suplicy, que também foram muito importantes, mas são parcerias, emendas parlamentares com políticos que não ficam pedindo nada em troca, né? Então, por exemplo, o Vereador Donato apoia a Felizs desde a primeira edição, mas ele nunca chegou e falou: “Dá pra vocês me levarem no sarau pra eu fazer uma campanha?” ou chegar na Felizs e falar: “Eu posso fazer uma fala?”. Nunca houve isso. Que, talvez, se houvesse, a gente já não tivesse mais essa parceria. Porque é importante ter essa parceria, mas a gente também não quer ficar atrelado a dar o troco de alguma forma, né? Então, pra Felizs é dessa forma, né?
O sarau normalmente a gente faz sem nenhum recurso. A gente já teve até o ProAc em saraus, acho que a gente teve durante dois anos, pra realizar na Praça do Campo Limpo. Mas o sarau que a gente faz mensalmente, a gente não tem recursos nenhum. Então, a gente faz há 15 anos sem nenhum recurso. Então, às vezes, a gente é convidado pra apresentar em um Sesc ou algum outro lugar e aí tem os recursos que a gente paga as pessoas, também, que vão, os poetas e agora, recentemente, a gente conseguiu um edital pra realizar atividades na nossa casa, que a gente já fazia e a gente ganhou um edital da prefeitura que chama Edital de Manutenção de Espaços Independentes. Então, agora a gente tem uma verba pra pagar convidados, autores que vão lá pra falar dos seus livros, bate papos, distribuição de livros através da Kombiblioteca e da Bicicloteca. Então, pra esse ano a gente tem esse fomento. Então, é disso que a gente está se sustentando, né? E a gente, felizmente, não paga aluguel, né? A gente tem a casa própria, que isso já facilita muita coisa, né?
P/2 - Muito cooperativo?
R – É e eu também trabalho com produção produzindo outras coisas, né? Então, a partir do momento que eu comecei a trabalhar com produção cultural, que nunca foi uma coisa que eu sonhei, eu falei: “Ah, eu vou ser produtora”. Isso aconteceu por conta da minha necessidade, porque a partir do momento que fechou o bar, eu falei: “E agora? O que eu vou fazer?”, né? Então, eu ainda dava aula, mas eu ganhava muito pouco, como todo professor ganha muito pouco e aí eu comecei a produzir o próprio sarau, a vender para o Sesc, para outros lugares e aí também comecei a fazer produção de outras coisas. Então, por exemplo, eu faço produção de feira de orgânicos, às vezes o Sesc me chama; algum outro grupo que eu vendo show para o Sesc ou palestras que eu vendo do Binho ou de outras pessoas. Então, eu vou. Onde der pra eu trabalhar, eu vou trabalhando, né? Então, é também uma fonte de renda que a gente consegue.
P/1 – Da Felizses assim eu gosto particularmente aqui no Museu quando a gente tem os causos. Teve algum causo nesses quatro anos da feira que você falou: “Nossa, olha aqui!”?
R – Causo? Me ajuda a lembrar aí. São tantas histórias lindas, né? São coisas que a gente se emociona muito, né, na Felizs. Quando a gente vai fazer coisas nas escolas; no Cieja, que é uma escola pra jovens e adultos, que às vezes a gente vai fazer sarau no Cieja dez horas da manhã durante a semana! E quando você olha, está todo mundo dançando forró dez horas da manhã, sabe? E aí, também, pra você levar esses poetas, puts, acordar os caras cedo pra fazer sarau em escola, quando chega lá dez horas da amanhã todo mundo pilhadão, fazendo coisas, né? E as histórias de vida que as pessoas vão contando, que você vai vendo que são tão parecidas umas com as outras, do sofrimento das pessoas, das dificuldades, das superações, das conquistas, né, mas puts, eu não consigo lembrar nenhum causo assim. Teve uma história muito legal que aconteceu recente: tem o pai de um amigo nosso, o pai do Sérgio Carosi, seu Sérgio Carosi também ele chama, que eles fazem um encontro todo ano, uma mostra de circo na frente da casa dele, que é a Mostra Bagaceira de Circo. Eles estão indo acho que pra sexta ou sétima edição. E todo ano a gente contribui com a mostra, da maneira que eu posso, assim. Às vezes eles chamam artistas de outras cidades e não tem onde hospedar, eles vão pra minha casa, dormem na minha casa. Ou eu faço lanches, comidas e levo, pra contribuir, né? E ele percebe isso, né? E esse ano eu encontrei em uma festa o seu Sérgio e ele veio falar pra mim: “Sabe aquela festa bonita que vocês fazem lá na praça? Ano que vem eu quero trabalhar, me chama pra eu trabalhar nessa festa, nem que seja pra recolher o lixo da rua, da praça. Qualquer coisa que você me chamar eu quero ajudar”. Eu achei isso tão bonito, assim! Que ele é uma pessoa que viveu momentos de depressão, teve várias questões. Ele é marceneiro, cuida do jardim dele que eu adoro, da horta. Mas ele fez questão de ir nessa festa, que era uma festa que a gente estava fazendo um sarau retrô, né? Foi esse ano que a gente fez, lembrando coisas antigas do sarau. E ele foi por conta dele, sabe? Ele quis ir nessa festa. Ele e a esposa dele. Aí chegou lá e ele veio me pedir pra trabalhar na Felizs, né? Porque ele falou: “Acho tão bonito. Eu quero ajudar vocês de alguma forma”. Eu achei fantástico, assim, o que eu ouvi dessa pessoa. E todo mundo, que é muita gente: “Eu quero tanto trabalhar na Felizs, eu quero participar”. Cada vez mais as pessoas vêm: “Nossa, esse ano eu quero participar da Felizs. Nem que não tenha cachê, mas eu quero participar”. E é muito legal isso, né? As pessoas vão se apropriando também dessa feira, né? Ficam esperando, na expectativa.
P/2 – E o nome mesmo está pensado misturando a feira literária que seja Felizs?
R- Sim. Virou uma coisa meio redundante: “Felizs, eu estou feliz!”. Quando eu falo essa palavra hoje em dia não tem como eu não remeter pra feira: “Porque eu estou feliz”. Então, ficou esse nome. Tem gente que gosta muito e tem gente que não gosta. Tem gente que acha piegas, né? E tem gente que acha que a gente foi muito feliz na escolha desse nome. (risos). Que foi a Diane que, na época, a gente ficou pensando que nome... fli, fla, flu, que todas as feiras são assim. E a gente ficou pensando em um nome e a Diane veio com esse nome de Felizs e na época a gente ficou meio assim: “Será? Parece meio estranho, parece essa coisa meio piegas de querer ser feliz, mesmo”, mas é isso, a gente tem o direito também. E aí depois eu gostei, hoje eu gosto desse nome.
P/1 – Você podia contar também um pouco do Donde Miras?
R – Ah, o Donde Miras. Então, o Binho, desde que o conheço, cada vez ele inventa uma maluquice. Sempre foi assim. E eu, de cara, falo: “Não, não vai dar certo”. Eu sou sempre do contra. Eu sempre vou pôr algum empecilho: “Isso é louco, não vai dar certo” e daqui a pouco estou eu lá organizando o negócio junto com ele. Sempre foi, desde quando ele saiu do Brasil, que eu nunca tive esse sonho de ir pra Europa. Ele foi, daqui a pouco estou eu indo também, né? Por mim eu teria ficado quietinha aqui. Então, ele sempre ficou inventando coisas e ele é inquieto. Eu sou aqui no chão. E aí ele inventou uma história com o Serginho e ele falou: “Puts, a gente podia ir pra América Latina de moto”. Acho que foi em cima daquele filme, Diários de Motocicleta. “Puts, viajar a América Latina de moto”, mas não tinha moto. “Vamos de bicicleta”. De bicicleta também não dá. Aí o Binho falou: “Então vamos a pé”. O Serginho: “Como a pé?”. Ele falou: “A pé, uma hora a gente chega”, né? E aí eles começaram a conversar sobre isso e outros malucos que frequentavam o bar e o sarau começaram a pirar junto com eles: “A gente também quer ir”. Quando a gente viu tinha um grupo de praticamente 50 pessoas que queriam fazer essa caminhada. Aí começaram a organizar. Eu, até então, estava distante, falei: “Isso é loucura, não vai dar certo”, né? Sempre falava isso. E aí eles começaram a articular, criaram um trajeto, um roteiro de cidades e falaram: “Vamos fazer assim; vamos até Curitiba. Se a gente chegar em Curitiba, uma hora a gente consegue chegar no Chile, que era o foco”. Aí, juntou um grupo de pessoas, eles organizaram, foram ligando nas cidades, nesse trajeto de São Paulo até Curitiba e articulando com as prefeituras, com escolas e centros culturais, lugares onde a gente pudesse ficar hospedado pra dormir, né? Então saímos em 2007 ou 2008, janeiro de 2008, acho, em direção a Curitiba, lá do bar, fizemos um evento lá no bar e saímos dali caminhando até Curitiba. Foram 30 dias de caminhada. Nós chegamos em Curitiba praticamente 50 pessoas porque tinha algumas pessoas que iam só no final de semana, sabiam que a gente ia estar em uma cidade tal, eles iam, ficavam o final de semana e voltavam, teve gente que largou o trabalho pra continuar a caminhada com a gente. Aí, quando saiu do bar, ia ser do bar até Taboão, pertinho, né? Eu falei: “Ah, daqui do bar até Taboão é fácil, é mole”. Aí eu fui andando do bar até o Taboão. Aí dormimos no Taboão. Aí, no outro dia, era do Taboão até Embu. Eu falei: “Daqui até Embu, mole. Já vou”. E fui andando. Depois era de Embu até Itapecirica. E aí eu fui percebendo que eu não queria mais porque eu tinha ido na condição do carro de apoio. Falei: “Só vou se for no carro de apoio”. Aí, ninguém mais queria ir no carro de apoio. Porque era muito gostoso caminhar, né? Então, a gente ia caminhando 20 quilômetros por dia. 18. Aí chegava em uma cidade, dormia onde a prefeitura tinha arrumado pra gente, uma escola, a gente levava as barracas, as coisas, no carro de apoio. Depois se fazia um sarau naquela cidade e no outro dia seguia caminhada. Então, com 30 dias a gente chegou em Curitiba, depois voltamos de ônibus, de carro quem estava de carro e aí depois a gente já fez outras três caminhadas, que foi de São Paulo até Parati; São Paulo até Botucatu e São Paulo até Cananéia. Todas duraram essa média de 30 dias, né? E conhecendo os artistas locais e chamando pra participar do sarau. Quanto menor a cidade, mais interessante era. Mas a gente era recebido como se tivesse chegado um circo na cidade, né? Era muito legal. Fizemos, criamos um vínculo muito forte com as pessoas que participaram da caminhada. Um vínculo familiar, mesmo. Porque você passar 30 dias com uma pessoa, ou você vai amá-la ou você vai odiá-la. Porque você vai dividir comida, o banheiro, as histórias e então, os que ficaram, os que fizeram, tem gente que fez as quatro, quando você encontra essas pessoas é um outro abraço que você dá nessa pessoa. É diferente, sabe? Tem um vínculo muito forte. Isso também fortaleceu o sarau, né? Porque essas pessoas continuaram indo para o sarau e isso deu um gás, assim, deixou a gente muito mais forte, mais unidos. A gente nunca mais fez o Donde Miras, mas é um sonho voltar a fazer. Não sei se a gente dá conta porque é muita gente que quer fazer agora. Muita gente. Teria que fazer tipo uma seleção, uma carta de intenção: “O que você quer fazer no Donde Miras? De que forma você pode contribuir?”. Porque também tinha muita gente que ia passar férias no Donde Miras. Porque saía baratíssimo. Pagava cem reais pra ficar 30 dias, você contribuía com cem reais, né? E a gente tinha comida, tinha gente que voltava gordo porque nunca tinha comido tanto na vida, né? Muitas vezes era eu que cozinhava porque não tinha, às vezes, onde comer e eu, com um fogareiro de duas bocas, fazia milagre, né? Então, tinha gente que falava: “Estou de férias, vou para o Donde Miras”, mas contribuía muito pouco, né? Às vezes, até artisticamente. Falava: “O que você faz? O que você vai fazer no sarau?”, mas também teve gente que virou artista no Donde Miras. Virou poeta. A pessoa não tinha escrito nada, não fazia nada e ela se via na vontade de falar: “Puts, eu quero contribuir com o sarau de alguma forma”. Então, improvisava uma cena de teatro, escrevia poesia no caminho, pra poder apresentar, pra contribuir com o sarau, né? E essas pessoas foram se descobrindo artistas, né? Porque não eram, né? E aí tem outras pessoas que, às vezes, não têm a contribuição artística, mas é a pessoa que vai pensar na logística, é a pessoa que pensa a organização, né? Eu com a coisa da alimentação, do cuidado com as pessoas, que essa mania minha de querer ser mãe de todo mundo, de não deixar os meninos irem pra cachoeira: “Vocês acabaram de tomar cachaça e vão pra cachoeira? Não vão. Desce daí que vai fazer bagunça”. Aquelas coisas de mãe, mesmo. Eu e o Binho, os mais velhos do grupo; eu, a mais chata do grupo, então eu tinha que ficar cobrando, mesmo, né? Mas eu cobrava, mas eu cuidava também. Então, eu sabia, por exemplo, que o Jesus não comia cebola. Então eu, na hora de fazer a comida, tinha que ter aquela preocupação de fazer uma coisa separada para o Jesus porque ele não comia cebola. E o Zinho não toma café com açúcar e ele gosta de acordar e já estar com o café pronto, porque se não ele fica de mau humor. Então, eram coisas que a mãe é que sabe isso, né? Então, por exemplo, o Jesus todo mundo fala: “Você é puxa saco do Jesus, fica fazendo comidinha separada pra ele”, mas o Jesus, quando ele chegava no lugar onde a gente ia dormir... porque a gente chegava no lugar, a gente tinha que montar barraca, encher colchão inflável, sabe? O Jesus, primeiro ele ia cuidar da minha barraca. Ele montava a minha barraca, enchia meu colchão. Então, nada mais justo do que eu fazer uma comida que eu sabia que ele ia comer, né? Eram trocas e cuidados, né? Ele cuidava de mim de uma forma e eu cuidava de outra, né? Então o Donde Miras é uma grande família pra gente, assim. Dá vontade de fazer de novo, mas está todo mundo esperando eu e o Binho falar: “Vamos fazer” porque ninguém se mexe por enquanto.
P/1 – Já estou caminhando pra fechar, você quer fazer mais alguma pergunta?
P/2 – Não. Estou escutando com muito prazer.
P/1 – Eu ia perguntar se tem algum causo da vida como um todo que você não quer deixar guardado aqui nesse ouvido do mundo?
R – Algum causo?
P/1 – Alguma história, algum fato.
R – Bom, eu e o Binho está junto há tanto tempo que as minhas histórias não conseguem ser separadas das dele, porque a maior parte da minha vida eu vivi com ele, né? E aí, quando ele foi pra Europa, que eu fiquei aqui durante um ano, a gente se correspondia por cartas. Eu tenho todas essas cartas até hoje. Estão lá guardadas, né? Então, não tinha internet, o telefone era muito caro, né? Então ele foi e depois de um ano que ele estava lá que eu fui, né? E quando a gente se encontrou em Londres ele tinha criado alguns amigos, tinha construído algumas amizades que eu conhecia por cartas, assim: “Eu conheci o fulano” e tal e eu lembro que logo que a gente chegou, a gente foi jantar na casa de uma moça que ele tinha conhecido em Israel, uma inglesa, né? E aí, quando eu cheguei lá, eles estavam sentados, era umas quatro pessoas, eu não falava inglês e eles conversando e lembrando de coisas e ali eu comecei a chorar, chorar, na mesa. Levantei, fui para o banheiro, falei que parecia que eu tinha perdido um período da vida dele que eu não vivi e que ali ficou um vácuo, sabe? E ali me deu um desespero, eu falei: “O que eu estou fazendo aqui?”. Então, foi muito difícil essa adaptação, né? Mas se eu for ver hoje, eu lembro muito mais coisas desse período de um ano que ele ficou fora, coisas dele, do que ele. Ás vezes eu falo: “Você lembra quando você estava em Israel e aconteceu isso, isso e isso?”, ele: “Nossa, eu não lembro disso”. Porque ele me contava nas cartas, né? Então, muitas coisas eu lembro mais do que ele, né? E eu nem estava lá, né? Então, essa nossa vivência em Londres foi coisa muito marcante pra nós. Foi um ano e nove meses que eu fiquei lá, mas longe da família e hoje minha filha está longe, mas é uma outra coisa. Ontem eu estava trabalhando e o celular ligado, uma chamada de vídeo e a gente consegue trazê-la pra um jantar, né? A gente está jantando e põe a câmera e ela conversa com a gente, né? E naquela época não tinha isso. Era muito difícil, né? Então, a tecnologia, nesse ponto, foi boa.
P/2 – E o que vocês faziam lá, trabalhavam?
R – Trabalhamos na faxina, trabalhei com hotel, trabalhava limpando quartos de hotel, mas mais trabalhando em casas, mesmo. Limpando casas, né? O Binho, depois, ainda conseguiu um trabalho em uma mercearia italiana, mas logo que a gente chegou era trabalho de faxina, mesmo. Em casas e escritórios. Que é o que tinha pra gente, naquele momento, né?
P/2 – E sentiram algum tipo de rejeição? Não racismo, mas sim ambos eram estrangeiros.
R – Eu não senti isso e também a gente convivia muito com brasileiro, lá. Nós morávamos em uma rua que tinha mais de 50 brasileiros. Porque tinha uma associação para mulheres latino- americanas e a gente morava nas casas dessa associação. Então, tinha muito brasileiro na rua. E aí, os ingleses que eu conheci, eram nas casas onde eu trabalhava. E eram pessoas que me tratavam bem, assim. Eu não senti. Eu, particularmente, não senti nenhum tipo de preconceito, não.
P/1 – E qual que é o seu sonho hoje?
R – Meu sonho? Ah, eu tenho pirado nas plantas, sabe? Eu, quando não consigo dormir... porque antes eu gostava muito de cozinhar. Eu gosto, ainda, de cozinhar. Ficava pensando em receitas. Agora eu fico pensando em plantas. Então, eu fico vendo vídeos de plantas na internet. Então, eu queria ter mais tempo pra cuidar das minhas plantas, né? E queria ter mais tempo também pra não fazer nada. Pra ficar à toa. Pra ficar vendo filme, pra ficar lendo um livro. Mas a gente vai se envolvendo com tanto trabalho que a gente não tem tempo, muito, pra isso, né? Para o ócio. Eu queria ter mais tempo para o ócio e pra viajar. Eu quero viajar o máximo que eu puder, ainda. Vou viajar agora, vou pra Portugal, pra ver minha filha. Quando ela falou que ia eu falei: “Nossa, mais uma oportunidade de viagem, né?” (risos). Mas eu não imaginei que ela ia ficar três anos, né? Pelo menos ela vai ficar três anos. Então, já bateu muita saudade.
P/1 – Se você tivesse uma frase de vida, qual seria?
R – Puxa vida! (risos). Ave, essas perguntas! (risos). Uma frase de vida?
P/1 – Ou um verso.
R – Uma coisa que eu esqueci de falar é essa coisa do acolhimento, que eu gosto de ajudar as pessoas. Acho que as pessoas deveriam se ajudar mais, se doar mais. Então, muita gente fala que eu sou brava, que eu sou chata. Eu sou, mesmo, né? Às vezes a palavra passa aqui primeiro, antes de passar por aqui. Então, quando eu vi, eu já falei. Mas, quando me pedem ajuda, eu não penso duas vezes, sabe? Se você fala: “Suzi, eu estou precisando disso, disso e disso”, na hora eu quero resolver aquilo. Eu vou acionar os contatos que eu tenho, as pessoas que eu conheço, eu vou tentar resolver o seu problema, né? Eu não fico ali: “Está bom, amanhã eu vou pensar como é que eu vou te ajudar”. Não, é pra agora. Você está precisando de ajuda é pra agora, né? Então, da mesma forma, por isso que as pessoas que eu levei pra morar na minha casa, sempre em comum acordo com o Binho e com a Naiana, né, mas geralmente vem na minha cabeça primeiro, eu falo: “O que você acha da gente trazer o fulano pra morar aqui? Ele está precisando!” E os dois, de cara, topam. A gente sempre pensa da mesma forma. E eu acho que é tão importante isso, você abrir
as portas da sua casa para as pessoas, né? O quanto você agrega, o quanto você soma, pessoas que você nem conhece. Tem gente que fala: “Você é louca! Levar um cara pra morar na sua casa? Você tem uma filha que dorme lá e não sei o que”. Nunca me arrependi, nunca deu errado, são pessoas que viraram pessoas da minha família, né? E é engraçado porque a gente tem uma amiga, a Dora, que agora ela recebeu recentemente dois irmãos do Peru na casa dela. Hospedagem solidária. E ela falou: “Suzi, como foi importante eu ter visto essas coisas que vocês fazem pelas pessoas e como eu fui me abrindo para as pessoas também”. Ela falou: “Como isso me fez bem!”, né? Então, ela recebeu esses dois irmãos e ela ficou tão feliz, né? E ela veio me agradecer: “Obrigada por você me ensinar a fazer isso porque eu não tinha coragem de receber pessoas na minha casa”, né? Então, eu falo para as pessoas: “Se abram mais, abram suas portas, sejam mais solidárias com a dor do outro e com a necessidade do outro”. Eu estava pra receber agora um venezuelano, mas aí ele arrumou um emprego e acabou não vindo, mas eu ia abrir mais uma vez as portas da minha casa para uma pessoa que eu não conheço.
P/1 – Eu acho que eu vou fechar com isso, com essa mensagem que está muito bonita.
P/2 – Mais humanidade, menos tecnologia.
R – É.
P/1 – Gratidão. Obrigado!
(Transcrito por Pilar Lopes de Azevedo)Recolher