Cleide de Moraes Carneiro
Meu nome é Cleide de Moraes Carneiro, nasci em Iguape no dia onze de agosto de 1949. Vou completar 62 anos.
Eu sou descendente de uma escrava africana. Meu avô era neto de uma escrava. Eu cheguei a conhecer a minha bisavó, ela era uma mulher de pequena estatura, muito bonita, autoritária. Quando ela conversava com as pessoas ela impunha uma autoridade, um respeito. Ela tinha uma característica, um tique, de fazer assim com o dedinho. E isto a gente tem carregado na descendência.
Eu nasci aqui em Iguape, mas a minha família é do bairro do Peropava, que é um bairro de produção agrícola. Eu vou me focar mais nos meus avós maternos, que foi com quem eu convivi mais. Eu me espelho, me assemelho muito com meu avô. Repasso os conhecimentos dele, os conselhos dele. Ele foi para mim uma pessoa muito importante na minha vida.
Em nossa família somos sete irmãos. Quando nasci eu fui o patinho feio da casa, e o meu avô me “adotou”. Então era dividido o carinho: da minha avó com minha irmã mais velha e eu fiquei sendo a “menina dos olhos” do meu avô. Ele era um homem simples, ligado ao cultivo da terra; era um artesão, mexia com barro e cestarias.
No sítio tinha tudo. A única coisa que se vinha comprar na cidade era sabonete e querosene. Ali se produzia tudo. Aquilo era fascinante para mim porque já nesta época eu morava em São Paulo.
A gente vinha para cá passar as férias, sempre, e eu conheci toda a família daqui: avós, bisavós, e até tataravós. Eram todos daqui. Eu cheguei a conhecer meus tataravós, mas é da minha bisavó que me lembro bem, eu a descrevo, embora tivesse três, quatro anos de idade, descrevo a figura dela, a roupa que ela usava, seu porte físico, é como se eu a estivesse vendo agora. Minha bisavó era uma mulher de pequeno porte. Uma mulher que falando hoje, era uma mulher que despertava cobiça. O corpo dela era bonito. Eu lembro do corpo dela. O corpo era esguio, fininho, os...
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Meu nome é Cleide de Moraes Carneiro, nasci em Iguape no dia onze de agosto de 1949. Vou completar 62 anos.
Eu sou descendente de uma escrava africana. Meu avô era neto de uma escrava. Eu cheguei a conhecer a minha bisavó, ela era uma mulher de pequena estatura, muito bonita, autoritária. Quando ela conversava com as pessoas ela impunha uma autoridade, um respeito. Ela tinha uma característica, um tique, de fazer assim com o dedinho. E isto a gente tem carregado na descendência.
Eu nasci aqui em Iguape, mas a minha família é do bairro do Peropava, que é um bairro de produção agrícola. Eu vou me focar mais nos meus avós maternos, que foi com quem eu convivi mais. Eu me espelho, me assemelho muito com meu avô. Repasso os conhecimentos dele, os conselhos dele. Ele foi para mim uma pessoa muito importante na minha vida.
Em nossa família somos sete irmãos. Quando nasci eu fui o patinho feio da casa, e o meu avô me “adotou”. Então era dividido o carinho: da minha avó com minha irmã mais velha e eu fiquei sendo a “menina dos olhos” do meu avô. Ele era um homem simples, ligado ao cultivo da terra; era um artesão, mexia com barro e cestarias.
No sítio tinha tudo. A única coisa que se vinha comprar na cidade era sabonete e querosene. Ali se produzia tudo. Aquilo era fascinante para mim porque já nesta época eu morava em São Paulo.
A gente vinha para cá passar as férias, sempre, e eu conheci toda a família daqui: avós, bisavós, e até tataravós. Eram todos daqui. Eu cheguei a conhecer meus tataravós, mas é da minha bisavó que me lembro bem, eu a descrevo, embora tivesse três, quatro anos de idade, descrevo a figura dela, a roupa que ela usava, seu porte físico, é como se eu a estivesse vendo agora. Minha bisavó era uma mulher de pequeno porte. Uma mulher que falando hoje, era uma mulher que despertava cobiça. O corpo dela era bonito. Eu lembro do corpo dela. O corpo era esguio, fininho, os quadris largos. E ela usava um casaquinho abotoadinho aqui. E a cintura tinha um babadinho. Aquela saia longa, franzida. E aquela golinha, igual a golinha de boneca. Eu me lembro da roupa que ela usava. Era uma blusinha azul marinho de bolinha e a saia estampadinha. O cabelo dela era crespo e a cor do cabelo eu já vi branco. O rosto era fino. O nariz dela era tipo o meu. Eu me pareço bastante com ela. Antes parecia mais porque ela era miudinha e eu já cresci um pouco mais. Mas ela tinha este porte miúdo. Eu me lembro, é vivo na minha memória. Eu tenho esta lembrança dela. Ela morava com meu avô. E a minha vida toda foi moldada nos princípios dos meus antepassados.
No bairro rural todo mundo já se conhece. Todo mundo já se cria se conhecendo. E meus avós já eram dali mesmo, e naturalmente foram se conhecendo. Casavam muito cedo também. Naquele tempo se casava bem mais cedo do que hoje. Meu avô sempre foi muito família, e minha avó era mais estourada. Estourada não, ela não deixava passar as coisas. Mas meu avô era de paz. Sabe, falava para minha avó: “Sebastiana, olha o amor”. Ele falava com aquela vozinha mansa: “Sebastiana, olha o amor. A ninguém fiquemos devendo nada a não ser o amor.” Meu avô era de muita calma, de muita paz e resolvia as coisas com muita sabedoria. Ele não tinha grande formação de letras. Sabia ler e escrever, rudemente, como todos ali sabiam. De forma bem rude, mas era um homem sábio.
Uma vez, eu já casada, estava querendo me separar do meu marido. Esperei ele sair e já fui arrumando as minhas coisas para ir embora. Meu avô, deu uns cinco minutos nele, veio até minha casa. Ele morava longe, mas ele veio. Chegou lá, viu tudo: “O que está acontecendo?” “Estou indo embora!” Porque ele faz isto, e isto, e isto... Fiquei contando, e ele sentadinho na cama dizia: “Certo.” “Então, vô, ele faz assim, assim, assim...” “Certo. Certo. Certo. Certo”. E quanto mais eu contava, mais ele falava certo. E quando eu não falava nada, ele também não animava a conversa, era só eu que falava. Depois, quando já não tinha mais o que dizer, começava a procurar no arquivo outra coisa para eu falar e ele falava: “Certo”. Quando eu acabei de falar tudo ele chegou para mim e falou: “Olha, filha. Vovô ouviu tudo o que você tinha pra falar, agora vovô vai falar alguma coisa para você: Coloca todas as mágoas que você tem do seu marido numa balança de dois pratos. Coloca todo o amor que você tem por ele e as coisas boas que você tem na lembrança em outro prato. Fique com o prato mais pesado. Porque se você não ficar com o prato mais pesado, a seu tempo o prato pesado vai requerer o seu direito. Então escolha o prato mais pesado. E o prato que você escolher vovô estará aqui para te apoiar”.
Ele não interviu em nada, ele não falou faça assim, faça assado. Ele falou isto. E eu tenho repassado este conselho que ele me deu para os meus filhos e meus enteados. Tenho repassado sempre com sucesso. Então ele era assim: da paz, da calma, do equilíbrio.
Nós fomos embora muito cedo para São Paulo, com quatro anos fui embora, mas todas as férias a gente vinha para cá. O que eu vou falar é antes de ir embora. Como eu falei, sempre fui muito apegada a ele. Quando ele ia nos visitar eu chorava porque eu queria ir embora com ele. Eu ia na canoa e não tinha quem me tirasse de lá. Me segurava! Tinha três, quatro anos, segurava na borda da canoa e chorava porque eu queria ir com ele. Ele tinha que dar uma volta comigo pelo rio para me acalmar. Depois vinha e eu saía para ele ir embora. E mesmo assim eu ficava chorando.
Quando a gente era criança eu queria brincar bastante, às vezes, quando não estava com muita vontade de estudar, a minha mãe falava assim: “As férias estão chegando”. Aquilo bastava para gente correr atrás do prejuízo. Ela falava num tom: “As férias estão chegando”. Queria dizer, se você não fizer isto não tem férias em Iguape, e aquilo para mim era a morte. Para mim, principalmente. Eu queria vir para cá.
Mais de uma vez a gente veio para cá e deu a cheia do rio, dessas cheias do Rio Peropava. Então meu avô ficava olhando a lua, no porto, e falava: “Em quatro dias teremos cheia”. E ele punha um marcozinho no chão para ir conferindo a maré. Aquele ano houve uma cheia muito grande. O rio subia e baixava, e esta subida e abaixada fertilizava toda a terra, então era esperada a cheia. Não eram estas enchentes avassaladoras que tem hoje em dia.
Nesse período de férias nos íamos cortar palmito. Ele tinha no fundo do sítio um palmital muito grande. Hum... Fazia palmito assado na casca. Ele cortava, tirava o palmito, cobria e deixava na brasa. Cobria tudo e fazia aquele palmito assado. A gente cortava aquele palmito e comia com a colher. Era um tira-gosto. Então, a gente ia cortar palmito. E andava, andava, andava. E eu falava: “Vô, está longe?”. “Mais para frente”. E a gente estava vendo o pé de palmito ali e ele não cortava. E mais para frente: “Vô, mas aqui tem um monte”. “Não, aqui, não. É lá para frente”. Chegava lá na frente – ele tinha um palmital – ele deixava para cortar o palmito lá atrás. Ele vinha cortando de lá para cá. Porque quando ele chegava aqui na frente, aqueles que iam caindo lá já estavam jovenzinhos e adultos também. Nunca terminava. Esta é a lição de preservação. O que ele fazia? Na hora de cortar ele se certificava que ali não tinha criança, “pézinho adolescente” de palmito e só cortava os pés que já tinham cacheado. Porque ele dizia: os frutinhos são para os sabiás, que comem a frutinha e depois saem por ai e replantam o palmito. Então a gente não pode cortar o palmito jovem, tem a idade certa. Depois que ele já cacheou uma ou mais vezes, eu não me lembro disto, mas era só cacheado. Aí ele cortava o palmito de um jeito, o tronco de um jeito que quando caísse ele não estragava nada do que estava ao redor. Por isto ele ia cortando sempre para trás. Não cortava o palmito para cair na frente. Quando ele chegava aqui no começo, aqueles últimos que ele cortou lá, já estavam na fase de cortar também. Eu nunca esqueci esta noção da preservação.
Outra coisa que eu me lembro muito é que todo mundo tinha muita fartura no sítio. Ninguém tinha escassez. Às vezes um ia pescar e tinha muito peixe. Dava certo estas fases da lua, e vinha muito peixe. Quando tinha muito peixe, a vizinhança inteira tinha peixe porque quem pescava dividia com todo mundo. Se eles iam caçar, e a caça era abundante, dividia-se a caça com toda a vizinhança. Então ninguém passava necessidade. Era comunitário.
Eu era criança e lembro uma vez que pegaram um jacaré no cerco. Eles o mataram e o dividiram em pedaços para toda vizinhança. Esta noção de repartir me fascina até hoje. Não tinha aquilo: "É meu, eu já vou". Sabe aquilo: "É meu, você se vire e vá fazer!" Não. E quando o outro fazia também era da mesma forma. ‘“Olha, aqui um peixe”. Todo mundo dividia as coisas que tinha.
Eu me lembro de um mutirão que vai ser difícil contar sem me emocionar. Eu lembro assim: Meu avô era um homem cristão. Eles faziam estes mutirões de roça, de arroz, um ajudava o outro. Então, todo mundo ajudava este aqui, e este ajudava aos demais. Hoje se fala mutirão ligado ao fandango, existia, mas com meu avô não, meu avô era evangélico, era protestante. Então não se fazia mais com festa. Quando eu era moça se fazia, depois não. Mas o que me marcou, e considero isto como uma lição de fé, foi quando o Peropava, que era um bairro que naquela época tinha produção de bananas, todos eram bananicultores, e eles exportavam esta banana para Argentina. Então entrava barco aqui e ia até o Peropava. Barcos grandes que adentravam até lá no meio, bem dentro. Quando eles passavam, na ida eles já deixavam a ordem de corte. Eles iam para lá e todo mundo cortava banana, empalhava, descartava, porque tinha de ser de exportação, e na volta do barco eles passavam recolhendo. Mas desta vez não foi o barco, foi uma lancha que estava descendo, o barco mesmo passou sábado com a ordem de corte e voltaria na segunda-feira para pegar a banana. Todo mundo ia ter o domingo de manhã para cortar esta banana, e meu avô também. Amanheceu o dia, botou a camisa suja de tinta de banana e pegou o penado - Penado é uma ferramenta de cortar banana que tem um cabo redondo que você enrosca no cacho e puxa - Ele pegou o penado e foi. A minha avó falou para ele: “João, você vai trabalhar hoje?”. Porque meu avô não trabalhava domingo. Aí ele falou: “Mas eu tenho que cortar esta banana se não perde tudo”. De uma semana para outra a banana engorda e perde o corte. “Vou ter que ir”. E foi. Quando ele chegou, e a banana também era cortada do mesmo jeito que o palmito. Ele viu lá, limpou a bananeira, pegou o penado e puxou a banana, cortou. Quando ele cortou a banana saiu aquela resina, aquela tinta da banana que cai. Ele ficou olhando aquilo fixo, naquela resina caindo. Na imaginação dele, no coração dele, ele ficou imaginando como se aquilo fossem gotas de sangue do rosto de Jesus caindo. Ficou imaginando. Não que ele visse, mas ficou comparando. Aí aquilo falou para ele: “João, você nunca trabalhou de domingo e Deus sempre te sustentou. E você esta trabalhando hoje? Deixando de ir à igreja, de estar em convívio com os outros, de estar descansando, de ficar com a família para vir trabalhar?” Ali ele deixou o cacho de banana, pegou o penado, enterrou na bananeira e ali ficou. Voltou para casa rapidinho; se lavou e foi à igreja. Quando ele chegou lá a minha avó olhou para ele e fez assim. E ele só fez um gesto que contava depois.
Na casa dele depois da igreja reunia-se toda a comunidade. Todo mundo ali, quem era da igreja e quem não era. E ali se contava histórias, ali se moía cana, cozinhava-se banana. Ali tinham duas jabuticabeiras carregadas, subiam na jabuticabeira. Todo mundo ficava ali e quando era por volta das quatro horas da tarde todos se reuniam e faziam um culto na casa dele, e depois todo mundo ia embora porque a noite já vinha. Todo domingo era isto. Este domingo que ele ia trabalhar não seria desta forma, mas aí ele inverteu e foi para lá e falou: “Agora dê no que dê. Amanhã eu acordo cedo e o que cortar cortou. Fazer o quê?”. E assim foi. E todo mundo comentando: “o João vai perder a banana”. “O João vai perder a banana”. Quando foi na segunda-feira, ele levantou cedinho e foi ao bananal. Para surpresa dele, a vizinhança, que já tinha cortado tudo, foi todo mundo pra lá ajudá-lo. Com burro, com cavalo, com balaio. Um cortava, o outro levava até o caminho. O cavalo tinha dois cestos, então você cortava a banana e punha no cesto e o cavalo ia levando. Era cavalo, burro. Então um cortava aqui e outro já levava para lá. Outro já vinha aqui da estrada e assim iam levando. E o pessoal lá descartando e o outro pessoal empalhando, era tudo empalhado com esteira, esta esteira de piri. Era empalhada com aquilo para não machucar a gruta. E assim foi. Todo mundo trabalhando, parecia um formigueiro.
Certa hora veio a notícia: “O barco quebrou”. O barco tinha quebrado! E todo mundo trabalhando. O barco quebrou e não sabiam que hora ia passar. E eles continuaram. Quando eles cortaram o último cacho, que já tinha a quantidade certa para cortar, quando descartaram o último cacho, escutaram o apito do barco vindo na curva do rio. Meu avô não perdeu um cacho de banana! Então este mutirão, esta forma dele encarar a espiritualidade, me marcou muito. Ele não perdeu um cacho. E eu continuo falando isto para os meus filhos: “Não somos nós. Deus dá provisões para nós fazermos. A gente pensa que somos nós que fazemos, mas não somos. Ele que nos capacita. Ele que abre as portas. Ele que nos dá condições. E às vezes a gente pensa: “Ah, sou eu que faço.” “Eu sou inteligente”. “Eu sou esperto”. Ledo engano. Deus nos dá enquanto nós dormimos. Então nós sempre aprendemos assim e transmitimos assim.
Os meus pais eram daqui de Iguape também. As duas famílias eram muito próximas e minha mãe se apaixonou por ele. Meu pai era um homem bonito e eles se apaixonaram. Meu avô não queria que minha mãe se casasse com ele porque ele era muito fuleiro. Meu pai era de jogo de futebol, fandango, não era um homem centrado, caseiro, como meu avô gostaria. Mas ele era um homem muito rigoroso.
Eles moraram aqui em Iguape até o ano de 1954. Meu pai também era bananicultor. E resolveu ir embora por conta do fechamento da Barra. A Barra do Icapara foi assoreando e os barcos de grande calado não entravam mais aqui. Meu pai tinha um bananal muito grande e a saída da produção começou a ficar cada vez mais lenta. Fora a concorrência com a Venezuela que começou a oferecer produtos de igual qualidade, até melhor, a um custo menor. A Argentina passou a comprar deles também. Ou compravam aqui do Brasil o que eles não conseguiam suprir. Então já era um mercado menor. E por outros fatores também meu pai decidiu ir embora para São Paulo, foi tentar a vida lá como um empregado comum.
Ele era produtor rural e foi para São Paulo, mas o meu avô, pai dele, era um homem muito abastado. Eles tinham um armazém grande e a escola era junto da casa. Era a casa, o armazém, e a escola um do lado do outro na propriedade dele. Meu pai tinha então esta visão de comércio, por conta de trabalhar com meu avô, ele também trabalhava com meu avô. Quando partiu para São Paulo ele acabou trabalhando numa cooperativa como comprador de produtos cerealistas, usando a experiência que tinha. Depois montou um depósito de banana em que era distribuidor de banana. Virou comprador. Vinha aqui, comprava banana e revendia lá no Mercado Municipal de São Paulo. Nisso, fomos para São Paulo, numa época em que se podia brincar na rua, descalça. São Paulo não era isto que é agora.
Inicialmente fomos morar na Água Rasa, na Mooca. Depois eles foram para Vila Formosa, no centro da Vila Formosa, e acabaram ficando lá até 1974, quando vieram embora para Cananéia. Meu pai já estava aposentado.
Meu pai era um homem bastante rigoroso e nos criou com muito rigor. Por conta da família dele, meu avô, pai dele, que também era assim. Na família dos meus tios as filhas não estudavam, só os filhos. Mulheres não estudavam. Mulher estudava corte e costura, arte culinária, prendas domésticas. Você era preparada para o lar. Você se preparava para cuidar do seu marido e seus filhos. E eu era mais moleca. Das minhas irmãs, só a caçula que trabalha. As outras são todas dondocas, de ficar em casa e o marido sustentar. E eu não. Eu não queria aquilo para mim, eu queria estudar. E meu pai permitiu que a gente estudasse. Todas as minhas irmãs estudaram, quem não estudou foi porque não quis. Ele permitiu que a gente estudasse, mas o rigor na educação era o mesmo. Meu pai era muito rigoroso. Tanto que eu me casei com dezessete anos. Com quatro anos a gente foi embora para lá e eu me casei aos dezessete.
Neste período a gente vinha para cá somente nas férias. Este trecho que a gente faz para Peropava, que hoje tem estrada, antes eram lanchas, eram barcos a vapor que faziam o trajeto. Tem tanta história na minha cabeça. A gente fazia o trajeto de barco. Você levava quatro, seis horas. Hoje você vai em quase 20 minutos. Aquela comida da lancha, aquele cheirinho gostoso. Aquela lancha ia de porto em porto parando; as pessoas saindo às portas e às vezes ficando no aceno. O barco saía de Iguape e ia para Peropava.
Era o único acesso que tinha. Depois eles abriram uma estrada variante que a gente fazia, mas era a pé. A gente descia na segunda ponte indo daqui para São Paulo, aquela que dá uma descidinha rápida, descíamos ali e seguíamos a pé dez quilômetros adentro. Mas ia. E tinha o dia certo da lancha. Não era todo dia não. Era segunda e quarta feira, ou segunda e quinta, que tinha lancha. Então tínhamos que vir no dia certo.
A lancha que fazia o transporte era da Sorocabana, empresa de transportes. Era uma empresa grande que tinha, ela fazia todo o Vale do Ribeira. No tempo que Adhemar de Barros esteve aqui em Iguape ele inaugurou o percurso de Iguape a Eldorado. O Adhemar de Barros com toda a comitiva dele. Ele esteve viajando nesta lancha. E o vapor que tinha ia para o Rio de Janeiro, aí eles levavam banda de músicos, tocavam. Os violeiros, os repentistas iam fazendo versos. Era divertida a viagem.
Eu me lembro de uma viagem desta, mas não foi na lancha, foi no vapor. A gente era bem pequena ainda e o vapor enguiçou, quebrou, e todo mundo com fome, não tinha mais nada o que comer, e ele foi indo, foi indo e encostou no barranco. E não tinha como sair dali. E a gente não podia descer também porque não tinha acesso. Eu lembro que tinha um pé de Ingá, uma fruta que só tem semente. São vagens. A minha mãe viu este pé de Ingá, o pessoal puxou o galho, e ela colhia as frutinhas do pé e dava às crianças para que fossem se entretendo. Porque não tinha nada o que comer. A gente ficou ali horas e horas até que viesse outra lancha resgatar o pessoal dali. Destas viagens de lancha, o que me marca bastante também é que quando a gente ia embora, a lancha vinha devagarzinho, ela deslizava assim, a água preta do Peropava é igual à água do Rio Negro, na Amazônia. A lancha vinha parando devagarzinho - meu avô tinha um porto - ela vinha parando, assim... E no porto tinha um pé de Bermiguilha, que é uma arvorezinha rala, que dá uns cachos cor de rosa. Ela fica toda florida de rosinha. E tinha o pé de Bermiguilha bem no porto. Minha avó tinha um lugarzinho dela onde deixava a bacia com roupa e ficava lavando roupa na sombra...
Então nas férias eu vinha para cá, e no dia de ir embora, ai que desespero! Quando a gente chegava, e a lancha ia encostando, achávamos que ela estava indo devagar demais. E quando era pra ir embora a gente achava que a lancha estava encostando rápido demais. A lancha parava, a gente tinha que sair. A minha avó preparava coisas para a gente levar. Meu avô fazia aquelas maletinhas de cana, amarradinho, para levarmos. Minha avó fazia cuscuz. E era sacola com abacate, se fosse laranja era laranja, era doce de abóbora. Ela fazia tudo para gente levar. Mas a lágrima não deixava a gente comer nada, sabe, porque era uma tristeza estar indo embora. Toda a vizinhança vinha se despedir da gente... Quando a gente chegava lá era uma festa, e quando a gente saia eles vinham todos se despedir. A lancha ia saindo devagarzinho do porto e o pessoal todo com lencinho. Eles ficavam cantando. Eu me lembro até hoje este canto: “Deus vos guarde até nos vermos outra vez...” Uma música assim. E eles ficavam com o lencinho abanando e a minha avó embaixo do pé da Bermiguilha chorando. Meu avô ia com a gente e minha avó ficava, mas ela ficava chorando ali embaixo do pé. E a vizinhança toda ali se despedindo.
As viagens de lancha eram marcantes. A gente conhecia todo mundo ali e todos se cumprimentavam, mesmo se não se conhecessem. Se passasse no caminho era bom dia, boa tarde. “Bom dia!” “Bom dia!” “Boa tarde!” E quando você passava de canoa e passava em frente à casa de alguém você também: “Boa tarde!” “Bom dia!”. Havia esta comunicação. No rio, que é largo, o outro morador lá na casa dele, já numa certa distância, conversava com outro lá de dentro do rio.
Aquela é uma região pequena, mas só morre de fome quem é vagabundo. Eu levo os meus netos para ver, para mostrar e pescar aqui na toca do bugio. Eles têm uma esteira para o sal, tem caranguejo, siri, tem peixe no mar. Se você plantar, na minha casa dá coisa que eu nem plantava! Eu tinha mamão papaia, mamão formosa, maracujá, jabuticaba, tomate. Eu colhia tomate no meu quintal e eu não plantava tomate. É que às vezes o tomate estava meio estragadinho, daí eu jogava ali terra e nascia. A única coisa que eu fazia era botar uma estacazinha nele e amarrar. E aquele cheirinho de tomate...
Eu morava numa casa muito grande aqui. Uma casa que tinha quinhentos metros quadrados de construção. Hoje eu moro numa casa menor. Mas o meu netinho que está com seis anos – eu mudei desta casa faz um ano, um ano e meio - Meu netinho tem saudade da casa grande. Ele fala: “Lá tinha laranja, vó, a gente corria, tinha espaço”. “Fala para a mulher entregar a casa para você para morar lá outra vez”. Mas eu passo para os meus netos que você só morre de fome se você for preguiçoso porque tudo o que você plantar nasce.
Eu sempre fui meio diferente dos meus irmãos. A minha mãe depois veio morar em Cananéia, e eu falei: “Mãe, os teus outros filhos são assim meio “espeloteados” igual a mim?”. Ela falava: “Não. Só você”. Eu saía um pouco da regra. Nunca me moldei. Se a regra me faz bem, eu sigo, se a regra me incomoda eu quebro.
Eu sou da época da revolução. Quando, em 1963 os estudantes saindo tudo ali, os estudantes do Centro Universitário 11 de agosto, da queda de Jânio Quadros, que foi em 1964. Foi em 64 mesmo, né? E aquela revolução que houve em São Paulo... E o Jânio Quadros saiu de Brasília e veio pra São Paulo pedir abrigo ao Carvalho Pinto, e ele não deu abrigo, e aí o Jânio Quadros deu uma cadeirada nele e quebrou o braço. O Adhemar de Barros, aquela história toda. Os estudantes todos ali. Logo depois foi o regime militar, mas até então não. O presidente, depois de Juscelino foi o Jânio Quadros. Este renunciou, assumiu João Goulart e depois aquilo virou um poço. Então, como há pouco tempo houve os caras pintadas, os estudantes estavam todos revolucionando. E a cavalaria em cima dos estudantes, fazendo a maior repressão. Gritavam, queriam os direitos. Não era tão aberto como hoje. A censura ia em cima. Aí a diretora do colégio dispensou todos os alunos para todo mundo ir embora porque eles estavam fazendo piquete e iam às escolas chamar os estudantes para engrossar o pelotão.
A diretora, antes que chegasse qualquer movimentação, dispensou todo mundo. Todo mundo vai para lá, né? E eu saí para cá. Onde eu fui? Fui lá ao lugar que estava acontecendo as coisas, na Rua Direita, na Líbero Badaró, Rua São Francisco. A Rua São Bento foi aonde a cavalaria ia com tudo em cima. E eu lá naquele meio. “Meu Jesus! Onde que estou enfiada aqui!”. Quando cheguei em casa, uma hora da manhã, contei que tinha ido lá, meu pai: “Meu Deus!”. Eu quase apanhei.
Eu gostava de participar destas coisas, não que eu seja revolucionária, mas eu queria saber por mim mesma. Não que os outros me contassem. Mas estudei. Estudei em São Paulo. Naquele tempo a gente fazia o primário e quando chegava à quarta série tinha aquela festa de formatura. Vocês não sabem o que é isto. Era o tempo da etiquetinha, o distintivo. O melhor aluno da classe tinha distintivo, tinha medalha. E não tinha nada de preconceito de ninguém ficar sentindo bullying porque um tinha medalhinha verde amarela e outro tinha da cor da bandeira paulista. Era por grau de notas. Aquele que se esforçava pegava a verde e amarela. Aquele que tinha menos esforço era a do Estado; quem era menos era a da escola. Então você sabia quem eram os bons alunos. Naquela época a gente fazia um cursinho para entrar no ginásio. Fazia um cursinho de admissão para entrar no ginásio. As melhores universidades eram as públicas. Se você era repetente você tinha uma chance. Se você repetisse a mesma série duas vezes você era jubilado. O aluno jubilado perdia o direito à escola pública. Você não entrava mais na escola pública. Você tinha que fazer bonito para não reprovar senão perdia o direito. Porque eram poucas escolas. Saí você e entra quem quer.
As escolas preparavam para a Universidade. Eu fiz até a quarta série ginasial. Meu período de ginásio foi maravilhoso. Amava! Amava! Amava! Participava de esporte, canto orfeônico. Canto até hoje. E neste meio de tempo, eu estava já na quarta série do ginásio, e fui passear com a minha irmã num sábado em Ribeirão Pires, na casa de uns tios. Lá encontrei meu marido. E foi assim: A gente tinha ido passear no clube de campo, e quando a agente voltou o irmão da minha prima estava uma jararaca, isso porque a gente foi neste lugar que era retirado, estavam construindo. E o irmão dela estava bravo porque a gente tinha ido para lá sozinho. Tinha que ir com um homem junto, um homem da família. Imagine, sair três mulheres sozinhas?! Três adolescentes, três jovens! E, quando a gente voltou a comissão de recepção estava formada: o pai dela, o primo, tal, tal. E meu marido também estava ali porque tinha ido visitar meu tio. Ele saiu daqui de Iguape e foi visitar meu tio lá nesta cidade. E nós fomos apresentados ali. Ele era amigo da família, mas eu não o conhecia.
Eu já estava indo embora, eu e a minha irmã íamos pegar o trem para voltar, ele veio e falou: “Se vocês quiserem esperar mais, eu estou indo à São Paulo e levo vocês de carro. Levo até a casa de vocês e assim eu vejo seu pai, sua mãe”. Fazia muitos anos, mais de vinte anos que não se viam. Aí ficamos mais tempo lá e quando ele levou, bom, ele já levou com a intenção de me namorar! E assim foi. Neste espaço de tempo que a gente ficou namorando, meu pai sempre focado para eu continuasse a estudar.
Eu era apaixonada por medicina. Eu era apaixonada por medicina. Tanto que eu tenho um enteado médico e minha filha é fisioterapeuta. Os dois são desta área da saúde porque eu sempre os incentivei nesta área. Na época, para eu conseguir a faculdade era muito difícil. As faculdades, assim, a USP, nossa, eram dois três anos para conseguir entrar! Meu pai com influencias que ele tinha, com conhecidos que ele tinha, conseguiu uma vaga para mim numa escola de enfermagem, no hospital Ana Nery, lá em Rio Verde, em Goiás. Era um hospital de missionários. Eu ia trabalhar lá como voluntária, ia estudar lá e tinha um alojamento ali mesmo. Depois que eu me formasse eu teria a oportunidade de ir para os Estados Unidos com eles. Como os outros iam. Aqueles que se destacavam mais. E eu falava: “Esta vaga é minha”. Porque eu sempre me destaquei no que eu fazia. Estava tudo arrumado para eu ir a Goiás. Meu pai conseguiu a duras penas, coitado! Aí meu marido chegou e falou: “Você vai pra lá? Você escolhe: ou nós casamos ou você estuda.” E eu optei por casar. Joguei no vento, como se fala hoje, mas fiquei com isto guardado numa gaveta. “Poxa vida, larguei”. Não deu certo.
Meu marido era vinte um anos mais velho do que eu, tinha dez filhos, e eu casei com ele mesmo assim. Era um desafio. Minha mãe não queria também. Minha mãe: “Vai estudar”. E eu optei por me casar. Larguei São Paulo, larguei tudo e vim morar aqui em Iguape, com dezessete anos, quase dezoito.
Vim e entrei numa casa com dez filhos que tinham a minha idade. Você imagina a sequência disto? Mas a família era muito grande, e com esta vivência toda, hoje, temos um convívio agradável. O meu esposo faleceu muito jovem. Eu era muito jovem, tinha 38 anos, e fiquei viúva. Fiquei com a herança de filhos, meus e dele. E eu tinha que dar formação à eles. Eu trabalhava no comércio, dia e noite, até a exaustão. Trabalhava até a exaustão para não pensar em nada. Meu Deus, eu tinha filho na faculdade, meu enteado na faculdade, ia terminar medicina. A outra na faculdade que estava fazendo fisioterapia. Tinha outros dois, um fazendo arquitetura e outro fazendo cursinho. E eu tinha que trabalhar. Eu tinha que manter este gasto todo. Continuei trabalhando, trabalhando, trabalhando, até que eles se formaram, se estabeleceram, e aí sim: “Agora vou fazer o que eu quero”. Eu vou cuidar de árvores, que é o que eu gosto. Trabalhei no comercio para ganhar dinheiro e poder me manter. Agora então eu vou fazer o que eu quero.
Quando eu casei meus avós ainda eram vivos. Eu casei em 1967, e em 1974 meus pais vieram embora para Cananéia. Mas aqui em Iguape sempre fui só eu, porque os meus irmãos ficaram em São Paulo. Eu fiquei sozinha aqui. Os meus avós moravam no sito, mas depois eles foram para Cananéia com meus pais. Os meus tios que moram aqui, os meus primos.
Em Iguape, esta praça em frente à igreja era um jardim, um jardinzinho com aquele arquinho de ferro. Era dividida a parte infantil e a parte do passeio. Tínhamos aqui dois cinemas na cidade, o Cine Líder, que era propriedade do meu marido, e o Cine Lamar, que era do outro lado. As pessoas vinham para praça no final de semana. O lazer era o cinema. Naquele tempo televisão não pegava aqui. Televisão era aquele “chiii”, má transmissão. No dia de jogo de futebol, final de campeonato, estragava o aparelho e ninguém assistia nada. Era televisão preto e branco, e mesmo assim não pegava.
O lazer era o cinema e alguns teatros que as escolas faziam. Os meus filhos participaram muito destes teatros. Tinham o professor, Valdinho, e a professora Rosa Namba, que gostavam muito de teatro. O Valdinho já é falecido, mas a professora Rosa Namba ainda é viva. Eles pegavam os estudantes da Veiga Junior e montavam cada peça de teatro! Vinha o Vale do Ribeira todinho para cá. E ficava a dona Cleide ali, costurando. Eu fazia roupa para os meus filhos, de Príncipe, princesa. Tinha aquele esmero de fazer. E todo mundo ia para lá. Então ficava na praça do cinema. E aconteceu um caso curioso que as moças ficavam passeando no sentido horário. Os rapazes, quando não passeavam no anti-horário ficavam parados, vendo as moças darem a volta na praça. E falavam: “Vamos dar uma volta na praça?”. E este costume está lá até hoje: “Vamos dar uma volta na praça?”. Porque antes você falava volta na praça porque era volta na praça mesmo. Ficava rodando. Isto era a volta na praça. Hoje você fala volta na praça é ir na praça. Mas você ficava rodando, e os pretensos namorados ficavam ali. E todo mundo passeava de braço dado. Eram duas, três moças, todas de braço dado. Iam passeando assim e os rapazes: “Psiu, Psiu”. Isto mudou bastante. As famílias reuniam-se. A gente tinha na hora da refeição, por exemplo, lá em casa eram três quilos de carne para uma refeição. A compra do mês chegava, o tamanho da família, né? Eram dez filhos. O mais velho faleceu, o professor Dito Rosa, tem uma escola aqui em homenagem a ele. Eu tive mais quatro, então a família tinha treze. Juntava esta mesada toda. Quando era final de ano juntava todo mundo, natal, ano novo. Ou então era churrasco, era aniversário. Nas fotos do casamento da minha filha estão todos os irmãos dela, os cunhados e os sobrinhos. Não dá pra você ver a noiva de tão grande que é a família. Então, neste horário de refeição era onde a gente passava para eles, meu marido contava como foi a história dele, que ele era cortador de piri, que fazia esteira, e que depois foi para o comércio. Ele ficava contando a história de vida dele para as crianças na hora da mesa.
Na minha casa, nesta casa que morei, de quinhentos metros quadrados, tinha seis quartos. Então teve um tempo que em cada quarto tinha uma televisão, que os meninos já eram moços. Todo mundo chegava e cada um ia para o seu quarto. Fui lá e tirei tudo! Tirei todas as televisões. “Nós temos uma sala de TV. Quem quiser ver TV é aqui na sala. Quem quiser comer é lá na sala de jantar, lá embaixo. Este negócio de ir comer com prato na mão em frente à televisão: não. Então se come lá embaixo, todo mundo vai assistir televisão na sala. Porque senão a gente não se comunica mais. Cada um faz o seu pratinho e vai para o seu quarto. Cadê a nossa convivência? A gente se divorciou? A família se divorciou?” Divorcia-se. Não é só marido que divorcia, não. Filho se divorcia de pai, irmão se divorcia de irmão. Porque cada um vai para o seu quarto. No outro dia todo mundo levanta cedo e cada um vai para o seu trabalho. Chega faz o seu pratinho e vai para o seu quarto. Eu dei os cinco minutos e falei: “Se vocês teimarem em ligar a televisão, eu vou moer com o martelo! Então se querem deixar a televisão lá, que seja para outro horário, para assistir um programa diferente, tudo bem. Senão eu vou moer com o martelo!” Eu fiz valer a autoridade de meu pai, e eles me respeitaram e não fizeram.
Muita coisa assim mudou. À noite a gente ficava em frente da casa. Ali você chupava balas. Levava sacos de bala. Todo mundo ficava em frente à casa chupando bala. Aí passava um: “Oi vem cá; tem uma balinha?” Aí já parava para conversar. Ou então era sorvete. Tinha o bar do seu Ambrósio que vendia um sorvete gostoso. Era de suco natural. A gente mandava comprar aquele monte de sorvete e ficava todo mundo em frente da casa tomando sorvete. Dez horas todo mundo ia dormir impreterivelmente. Todos iam para cama, ninguém ficava acordado até tarde. Também não tinha o que fazer. A não ser final de semana que tinha baile aqui em Iguape. Eram de música ao vivo, com cantores famosos tipo Ângela Maria, Super Som, Os três do Rio, Noite Ilustrada. Eles vinham para cá e animavam a festa. Quaresma não vinha nada. Os clubes não funcionavam. Era no sábado de aleluia. E eu trabalhava no comércio, sábado de aleluia todo mundo se arrumava, se vestia com roupa nova. Todo mundo ia para o baile. Então isto também se perdeu,hoje é discoteca.
Os Bailes das debutantes; tivemos bailes lindíssimos! Baile da cidade. A minha mãe contava que aqui na praça, onde funciona o empório, era a Pizzaria Canal, agora acho que é empório, do lado da Câmara. Ali era o Teatro Municipal. A minha mãe estudou no Vaz de Caminha e a formatura dela foi no Teatro Municipal. Sabe quem veio ao Teatro prestigiar os formandos? O governador Adhemar de Barros, o então governador do Estado de São Paulo! E a minha mãe participou de uma peça ali chamada A Dança das Falenas. Minha mãe com 80 anos de idade bailava e cantava a música inteirinha: “Somos as falenas, adejando de flor em flor”. Ela cantava e saía dançando. Todas as meninas...
Naquele tempo não tinha professora de balé aqui em Iguape. Mas existe este dom artístico do iguapense. Falam que o iguapense é um artista nato. Aqui em Iguape eu tenho piano em casa. Agora até não, porque a casa ficou pequena e eu deixei o piano na casa da minha filha. Mas tinha piano em casa e o técnico que vinha afinar o piano falava: “Dona Cleide, se a senhora arrumar cinco pessoas para eu descer aí em Iguape para arrumar o piano, o da Senhora eu arrumo de graça”. O que tinha de piano aqui em Iguape! Famílias daqui, feito a família da dona Lurdinha Barreiros, faziam saraus, só com a família. Ela no piano, a filha na flauta, outro no teclado, outro no clarinete, outro no sax. Eles faziam saraus só com a família. Aqui têm a família da dona Pequenina que todos os netos dela, os filhos do doutor Afonso, são todos músicos. Os filhos da Regina, os netos da dona Pequenina são todos músicos, tocam na banda. Os filhos de Adilson, todos músicos. Os filhos de Regina, todos músicos. Os filhos de Afonso, todos músicos. Porque em Iguape gosta-se da música, de teatro. Isto tem que ser valorizado e não é. Tem que encher esta bola, o povo gosta!
Mas hoje não tem mais isso. Eu acredito que aqueles que dirigiam, por exemplo, o Roberto Colasso, que era um grande ator, um grande idealista da nossa cultura, faleceu. Depois ficou o professor Valdinho, que também tirava peças maravilhosas, também faleceu. Acho que foi a falta liderança. Incentivo para isto. Incentivo econômico. Aqui em Iguape tirou a peça “Alice no país das maravilhas”, quem fez o papel da Alice foi à atual psicóloga, a Cássia, ela protagonizou a Alice. A minha filha foi a Cinderela. E nós temos aqui em Iguape um rapaz chamado Peixinho, você olha para cara dele e não consegue ficar cinco minutos conversando com ele. Ele é um cômico nato. Minha filha era a princesinha e ele era o rei. Na hora que mudava a época os dois tinham que ficar ali, conversando, passeando. Só os dois ali fazendo de conta. E ela não conseguia, ela tinha que virar para trás porque ele falava pra ela assim: “Olhe, minha cara Cleide!” Ele todo maquiado. “Olhe, minha cara!” Aqui tinha uma senhora que trabalhava com prostituição, e ela era já velha, mas ela gostava, usava um batom forte. E ele falava assim: “Eu não estou com cara de Dalica?” Falava para ela e ela não aguentava ficar escutando ele falar. Então eles produziam estas peças. Dois, três, quatro, cinco, cenários! Mas isto se perdeu também no tempo.
Os jovens saem também, os meus filhos mesmo foram saindo. Vão saindo e não voltam. Teve uns que ficaram. Os que não saíram acabaram se moldando e ficando. Mas muitos saem para estudar e às vezes eles optam por uma profissão que aqui não tem como exercer. Acabam ficando nos grandes centros se são bons profissionais. É o que acontece. Interessante que uma vez no Revelando São Paulo, no SESC Pompéia, meu avô foi levado para lá como ceramista. Levaram barro, levaram tudo, e ele ficava ali moldando as pecinhas, as peças pequeninas que ele fazia lá, e fizeram menção deste evento na Bandeirantes. E estava o pessoal lá: O estande de Iguape! O estande mais visitado! Porque eles levavam juritica; levaram o pessoal fritando manjuba. Fritavam manjuba na hora; tinha moqueca de manjuba. E tinha o pessoal fazendo cerâmica. Foi o maior sucesso Iguape! Acho que era no tempo do Avalone Junior, que trabalhava na Bandeirantes. E ele fez esta menção. Os iguapenses que ouviram largaram tudo e se mandaram todos pra lá, foram todos para o SESC Pompéia, inclusive a minha irmã. Minha irmã deixou um bilhete para o meu cunhado: “Saí e fui ver Iguape no SESC Pompéia. Não me espere; não sei que horas volto. Jante o que tiver”. Ela estava passando roupa! Deixou o bilhetinho ali e foi para lá, porque a história de Iguape marca, iguapense é bairrista. Se falar que tem gente lá eles vão; eles querem ver, querem se encontrar. E desta vez eles se reuniram lá. Mas é isto. Eles vão embora, mas a saudade fica.
Quando eu era solteira eu não trabalhava, mas eu gostava das coisas boas. Meu pai não podia dar tudo que eu queria, então eu sempre dava um jeitinho de ter meu dinheiro. No tempo que eu era criança, menina, adolescente, o leite era vendido numa garrafa, num litro. O litro tinha esta grossura; era igual uma moringa. Terminava com a boca desta largura. E as tampinhas eram iguais as tampinhas de iogurte, era um alumínio que fechava ali. O leite era Paulista, Vigor; você comprava um litro de leite ou então você comprava meio litro. Você levava a canequinha lá e levava meio litro. Então aquela tampinha de alumínio eles jogavam fora. O que eu fazia? Eu ia aos armazéns, barzinhos na redondeza de casa e pedia para eles guardarem para mim. Eu deixava uma latinha de massa de tomate para eles guardarem ali. Então todo dia eu ia buscar a latinha de massa de tomate e chegando em casa, pegava aquelas tampinhas numa outra latinha, colocava ali e socava. E ia socando ali, pegava mais e ia socando. Quando aquilo enchia, eu estava com uma massa de alumínio desta altura. A lata de massa de tomate era pequenininha e compridinha. Aí tinha uma fábrica de alumínio perto de casa e eu ia lá vender. Vendia. E usava o dinheiro para comprar meia fina que eu gostava. Meia é uma coisa que desfia muito. Houve um tempo que as mulheres usavam um lenço, tipo as árabes, amarravam aqui atrás. Você tinha que ter vários lenços. E eu sempre fui vaidosa, e por isso queria ter meu dinheirinho. Queria ter meu pó de arroz para usar, meu batonzinho. Aquele batonzinho era um batom natural da Helena Rubinstein. O que eu tinha era de metal, amarelinho, metalzinho dourado. Então eu tinha meu dinheirinho para isto. Para comprar as coisas que eu gostava, perfume, por exemplo.
E meu pai trabalhava em cooperativa e tinha mania de comprar lâmpada, papel higiênico, fósforos. Ele comprava aquela glosa de fósforos - naquele tempo a luz acabava muito - Eu falei: “Estou precisando de dinheiro”. Eu queria dinheiro. “E aí?” Perto de casa tinha uma feira livre, bem pertinho, uns 300, 400 metros. Aí eu falei para o meu primo: “Vamos vender este fósforo na feira?”. Ele falou: “Será?”. “Vamos, vamos”. “O tio vai brigar”. “Não, não”. Aí peguei o caixotinho, desmanchei todo o pacotinho, que era grande, e fui vendendo a unidade de caixa de fósforos. Naquele tempo não se vendia assim, vendia só o maço. E eu lá na feira: “Olha o fósforo! Fósforo baratinho! Vamos aproveitar o fósforo!”. E minha mãe tinha ido à feira. Aí ela, pela voz, começou a prestar atenção e quando olha, me vê com o caixotinho, com a mão cheia de fósforos. Minha mãe diz que passou rapidinho, de longe, nem falou nada para mim. Pra eu não vê-la. Cheguei em casa e falei para o meu pai – estava com o dinheiro que eu apurei e eu falei para ele: “Pai, quanto custa a glosa do fósforo? Porque eu vendi todos aqueles”. Minha mãe já tinha contado para ele. Ele falou: “Custa tanto”. Aí eu peguei o que tinha, dei para ele para pagar, e mais um dinheiro para comprar outra para mim. Então a outra que eu pegasse eu já fazia para dois.
Eu era criança, e sempre tive esta visão de comércio. A minha mãe tinha depósito de bananas, eu pegava aquela banana que estava já muito madura. “Se você quiser vai vender para você”. Eu não pensava duas vezes. Eu dava uma gorjeta para o meu primo ir levando o carrinho e ficava no ponto de ônibus, armava um banquinha, deixava as bananinhas ali, madurinhas, vendia tudo! Nunca tive vergonha de trabalhar. Nunca passei necessidade. Nunca tive vergonha. As pessoas me falavam, depois: “Cleide, você na sua posição...” Que posição? Minha posição é posição de trabalho. Eu também como, ó, esta vendo? Eu como, eu bebo, eu visto, eu respiro. Eu nunca tive vergonha de trabalhar. E até hoje não tenho.
Quando meus enteados quiseram estudar fora, meu marido não queria: “Imagina, vai deixar estudar fora. De jeito nenhum”. As filhas ele não deixou que saíssem para estudar. Eu fui pela inteligência. Primeiro foi o menino mais velho, depois foi o segundo. A terceira era a minha filha. Mas ela já tinha o respaldo dos outros dois que tinham ido e foi também. Mas ele chegava e falava: “Vai mandar estes meninos estudar? Eles têm que ficar aqui para trabalhar no comércio. Vão sair para ficar batendo a cabeça?!” Meu marido falava: “Você acha que se eu fosse um professor hoje, eu dava conta da família que nós temos aqui?” Trabalhar no comércio era promissor, e ele tinha uma visão comercial muito além. E eu tinha também esta visão!
Quando eu me casei, a gente tinha uma loja de roupas, ele vendia no atacado, saía na região toda para vender no atacado, e eu ficava na loja de roupas. Depois ele foi para o material de construção e eu continuei com a loja de roupas. Acabei indo para a construção civil também. Não foi uma experiência boa porque eu estava acostumada com loja de roupas, vender coisas bonitas, com desfile de modas. Nós fizemos desfiles de moda aqui em Iguape, por volta de 1985 mais ou menos, quando as coisas eram mais reservadas, eu fiz um desfile de modas aqui. Meu filho que produziu para mim. Naquele tempo tinha aquelas caças justinhas de lycra, a menina vestindo uma calça daquela justíssima, e a parte de cima nua. Só que não era um nu assim, um nu, nu. Eu peguei um vestido de nylon, enrolei na mão dela, ficou bem enrolado, ficou um tufo enrolado e ela ficou segurando. As costas ficaram nuas, a frente ela ficou segurando, aquilo caiu, aquele pedaço de pano. Ficou um negócio bem criativo e foi o maior sucesso. Os rapazes desfilando só de sunguinha sem camisa, bermuda sem camisa. Ou então com a camisa sem a parte de baixo, só de sunguinha, mas eles estavam mostrando a camisa. Para que desfilar com a calça? Queria mostrar a camisa, então desfilava de sunga de banho e camisa. Ou então a parte de baixo e sem camisa. E aquilo era a maior ousadia! Eu estava acostumada a trabalhar com isto, este tipo de moda, viajava bastante, Bahia, Fortaleza, ao Rio de Janeiro. Pegava a moda de lá, fresquinha. Trazia e já ligava para as clientes. Quando chegava aqui vendia tudo.
Aí fui para material de construção, vender ferro, pedra, cimento. Trabalhar com pedreiro, com peão de caminhão. Então foi uma mudança... Mas eu estava junto com meu marido, ficava mais na parte administrativa e ele trabalhava na gestão do comércio em si. Só que no dia em que nós inauguramos a loja, dia 22 de novembro de 1988, dia 22 de dezembro de 1988, ele morre de um ataque fulminante! Eu tive que ficar. Como eu ia largar? A gente estava inaugurando uma loja. Estoque lá em cima. Para inaugurar uma loja daquele tamanho você tinha que ter estoque. Aí ele morre. Eu vou fazer o quê? Fui obrigada a dar continuidade nisto. E era difícil, desgastante, desgastante, desgastante. A ponto de um dia eu chegar numa papelaria e não lembrar o que tinha ido comprar. O que eu vim fazer aqui? E com vergonha comprei uma borracha. Aí peguei o carro, e falei: “Eu vou ficar aqui me matando?”. Ninguém queria continuar. “Vou trabalhar aqui mais um ano”. Aí abaixei a porta. Eu tinha cinco mil metros quadrados de loja. Loja, não. Era loja e pátio. De loja mesmo tinha quase mil metros quadrados. Mais o pátio com seis caminhões. Peguei a porta, abaixei literalmente. Falei: “Ou eu paro, ou morro”. Depois vendi o prédio; fiquei com a mercadoria e fui vendendo devagar. Fiquei por um bom tempo nisso. Fui vendendo ela bem abaixo do custo que valia. E depois comecei a trabalhar com arte por brincadeira.
Eu sempre gostei de escrever. Quando eu era solteira eu escrevia. Tinha feito um curso de inglês e eu gostava de escrever em inglês. Até pra eu me exercitar. Mas meu marido era muito ciumento. Um dia ele pegou os contos que eu escrevia em inglês e em português, as poesias que eu fazia, e queria saber quem era o personagem, para quem eu estava escrevendo aquilo. Aí ele pegou, eu guardava aquilo, nunca divulguei, era coisa minha, ele pegou, rasgou e jogou pela janela do meu quarto. Estava chovendo. O quintal estava molhado. Aquilo caiu no chão e grudou. Eu fiquei na janela e comecei a chorar. Acho que meu choro foi tão convincente... Eu chorava no impulso. Aquilo vinha de dentro, não tinha o que me consolasse. “Minha história, minha vida! Você tirou a minha alma!” Falava assim. Ele correu lá fora, ele era um homem sisudo, de sim sim, não não. Ele não era flexível para contornar, mas ele ficou tão desesperado de ver o meu estado que saiu correndo, foi lá e catou tudo aquilo do chão. Ele colocava os textos na cama: “Péra aí, péra aí. Eu vou arrumar esta “M”!” E pegava, e queria tentar arrumar, e eu chorava, chorava. E ele tentando arrumar e falava: “Para de chorar. Para de chorar! Vai dar uma coisa em você!” Tentando arrumar. Eu vi que aquilo era uma fonte de discórdia. Se eu continuasse com aquilo, com a visão pequena que meu marido tinha, ia ser uma fonte de discórdia. Então eu mesma me desfiz de tudo. Mas depois que ele faleceu voltei a escrever.
Eu tive alguns contos premiados aqui na região. Teve um concurso literário e eu arrisquei e escrevi duas poesias e um conto. Para minha surpresa teve um ano que eu fiquei em terceiro lugar, e no ano de 2008 eu fiquei com o quarto, terceiro e primeiro lugar. Foi engraçado porque chamaram todo mundo. Você ia lá, e era o prêmio do primeiro lugar que enchia os olhos. Estava o pessoal que trabalha com circo lá. O concurso aconteceu lá na Ilha Comprida, na praia, aquela produção toda. Então chamaram todo mundo, os contos premiados, aqueles que foram selecionados. E aplaude daqui, aplaude dali. E eu estava lá, chamei os meus filhos: “Vocês não vão lá? Hoje é a final”. Nem eles acreditavam em mim. Não foi ninguém, fui sozinha. Fizeram aquele espaço para chamar o primeiro lugar. “Agora vocês vão ouvir uma música”. Aí teve o musical. E quando a apresentadora retornou para chamar o primeiro lugar falou: “Bom, agora vamos chamar o primeiro lugar”. O primeiro lugar é daqui. O primeiro lugar é dali. Aí ela parou tudo, parou o som que estava tocando, parou tudo, ficou aquele silencio e ela falou: “Gente, estou sentindo um cheiro aqui. Vocês não estão sentindo um cheiro? Está um cheiro...” O outro falava: “Tô”. Eu estava lá no fundo e gritei: “É cheiro de mato!”. Porque meu conto era “Cheiro de Mato”. Aí ela falou: “É Cheiro de mato mesmo!”. E aí eu saí correndo, e saiu todo mundo correndo atrás de mim. Primeiro lugar! Eu liguei para os meus filhos e foram todos pra lá e ficou aquela festa toda.
E assim fui tomando gosto por escrever. Escrevo. Estou participando do Mapa Cultural também com uma obra minha. Fizeram uma seleção do município e a minha peça foi selecionada também. Estou concorrendo ao regional. Pode ser que eu concorra ao estadual também. Então eu sempre gostei disso, acho que isto é nato do iguapense, gostar de escrever. Com relação à produção de coisas, quando meus filhos participavam de teatro, desfile de escola, eu mesmo queria fazer as roupinhas deles, para ficar mais bonitinha. Sempre fui de contar histórias para os meus filhos. Sempre contei. Abrindo um parêntese aqui, no fato de contar histórias. Eu contava história para os meus filhos, os reunia e ficava contando, comendo pipoca, muito pirulito. Quando os meus netos nasceram eu continuei com as mesmas historinhas que eu ouvia do meu avô. Meu avô nos contava estas histórias quando a gente era criança, e eu contei as mesmas histórias para os meus filhos e agora conto para a minha neta.
A minha netinha hoje tem 18 anos, na época tinha dois aninhos. Ela acordou de madrugada pra tomar mamadeira: “Tia Dé, quero mamar”. “Espera que a tia Dé vai fazer”. Minha filha foi lá fazer o leite pra ela, e ela sentadinha no berço: “Eu mato gente... Eu tiro tripa de gente...”. Aí a Débora: “Cleide Maria do céu, olha o que Jade tá falando! Tô com medo”. Aí a mãe da menina falou: “Estas são as historinhas que a mamãe conta pra ela”. Era a história do caramujo. Eu contava a história do caramujo que foi incendiar o palácio do rei. O caramujo dizia que ele matava gente, que se viessem pegar ele, ele matava, ele tirava a tripa. E ela gravou aquilo. Até hoje você conta e todo mundo dá risada porque todo mundo lembra da história. Sempre gostei de contar histórias para as crianças, de personalizar, por exemplo, estou contando uma história: “Um menino gordinho. Um menino branquinho”. Este aqui é o menino branquinho, e imitava. Eu sempre fiz eles viajarem na imaginação.
Depois que eu parei de trabalhar, eu tinha que fazer alguma coisa. Falei: “Agora vou viajar”. Eu ia para casa da minha irmã, mas a minha irmã estava trabalhando. Meu cunhado trabalhando. Ninguém podia bater perna comigo. Ia para casa de outro e eles tinham suas atividades e não podiam bater perna comigo também. Eu estava só, sem fazer nada. Falei: “Não, pára, tenho que modificar isto aqui”. Aí comecei a fazer macramê, uma arte que a minha avó fazia. Minha bisavó fazia; aprendeu na senzala. Minha bisavó ensinou para minha avó e minha avó fazia sacolas. E eu comecei a fazer os tecidos que a minha avó fazia. Mostrei meu trabalho para a esposa do prefeito daqui. Eu elaborei mais, criei mais. Eu dei uma pintada no pavão. E ela se interessou que eu fosse dar aulas para um grupo de mulheres carentes da renda cidadã. Aí eu fui para prefeitura dar aulas no C.R.A.S (Coordenadoria Regional de Assistência Social), um projeto atrás do outro. Ficou, ficou. As pessoas começaram a conhecer o meu trabalho e fui dar aulas para terceira idade com reciclados, aproveitamento matéria reciclada. E assim foi. Através do diretor da cultura, do Carlinhos, que conheceu o meu trabalho. “Dona Cleide por que você não se associa na associação dos artesãos?”. E assim fui dando aulas para um, dando aulas para outros até que eu entrei no Proac (Programa de Apoio à cultura do Estado de São Paulo) para participar de projetos da Secretaria da Cultura. Estou com quatro anos fazendo isto no centro de detenção feminina. E trabalho: dou aulas por aí, pelo Vale do Ribeira. Desenvolvo a arte de contador de histórias.
Acabei me entrosando na cultura. Me entrosei de dedo e unha. Sempre tenho que estar criando, criando, criando.
A minha roupa sempre fui eu que criei. Eu sempre desenhei as minhas roupas. Quando eu trabalhava no comércio, nos finais de ano na minha casa, eu sempre a decorei de uma forma muito peculiar, minha. Eu criava a decoração nela. Até hoje a árvore de natal que eu faço não tem nada de convencional. Eu crio a minha árvore de natal. Faço questão. Tenho uma neta que hoje está com 14 anos, quando ela estava com seis anos, era dia 22 de dezembro, ela falou para mãe e disse: “Mãe, hoje é o dia mais triste da minha vida.” “Por que filha?” “Porque hoje já é dia 22 e até agora a minha avó não armou a árvore de natal; e eu quero muito participar disto!” Meus netos participavam da montagem da árvore. Eu estava criando uma árvore diferente, uma árvore entrelaçada de cipós, então eu tinha que lavar esse cipó que eu havia pego da praia, lavar com jato, depois secar, para depois pintar, e demorou um pouco mais. Mas quando ela tinha uns quatro anos, o pai tinha que levantá-la no colo para ela ajudar a colocar as pecinhas. Eu crio as minhas peças. E na outra casa, mesmo trabalhando com comércio, a decoração de casa eu sempre fiz do meu jeito.
Meu avô surpreendia. Ele sempre surpreendia. Ele gostava de surpreender. Então eu continuo surpreendendo. Por exemplo, na páscoa, quando meus netos e filhos eram pequenos, eu fazia aquela cesta de ovos de páscoa e escondia os ovos. Escondia para eles. Domingo acordavam e iam todos procurar. Não era simplesmente presentear com ovos: eles tinham que procurar onde estava. Nesta outra casa grande, já com os meus netos, eu fazia aquela carreirinha de pistas e eles tinham que achar. Procurar em tal lugar, assim, assim. Dando charadas para eles acharem. Só que antes de achar o ovo eles chegavam num lugar onde tinham que ler a mensagem da páscoa para todos que estavam ali. Eu escrevia algo, eles tinham que ler e embaixo do texto tinha a última dica de onde ele ia achar o ovo. Era uma festa que eles faziam. A minha nora hoje já faz pra eles também. Meu avô fazia isto pra gente, minha mãe fazia. Minha mãe escondia no jardim aquela cesta com ovos. Meu avô chegava de viagem, lá no sítio dele tinha cana rosa. Aquela cana é molinha, com pouco bagaço, muito doce. Meu avô cortava a cana desta tamanho, amarrava com cipó, fazia uma argolinha e ia pra São Paulo com aquela malinha. Ele gostava de surpreender. “Olha, em tal lugar tem um negócio que vovô trouxe pra vocês”. Aí a gente ia olhar, pegar aquela malinha de cana que a gente adorava, que a gente amava. Ou então aquelas cestas de jabuticaba que ele colhia e levava.
Ele surpreendia, sabia, tem uma surpresa por aqui. Eu fiz isto com meus filhos, fiz com os meus netos e os meus filhos, hoje, também fazem com os filhos deles. Acho que esta interação veio muito do meu avô. Meu avô não era um homem rico, diferente do outro que era. O outro avô era, mas ele nunca teve proximidade com a gente. Era distante. Este outro avô materno era próximo. Houve um tempo que eu estava trabalhando no comércio, em Cananéia, na festa de agosto. Eu peguei um espaço e montei uma lojinha, improvisada. Não tinha banheiro, quando eu queria ir ao banheiro eu tinha que ir à loja do meu pai. E meu avô passava e falava: “Eh, minha formiguinha!” Porque eu não parava de trabalhar. E até hoje não paro. Ele chegou lá e falou: “Você não vai almoçar? Vovô tem um camarãozinho gostoso.” “Não, vô, não dá”. Ele sumiu dali e não demora muito ele veio com uma travessinha, cheia de camarão frito. Aquele camarão bonito. “Olha o que o vovô trouxe para você”. “Vô do céu! Obrigada, mas eu não posso comer este camarão aqui porque eu não tenho onde lavar as mãos”. Ele saiu e foi na loja do meu pai, daqui a pouco vem ele com uma bandejinha com o camarão todo descascadinho, cada camarão com um palitinho. “Olha o que o vovô trouxe para minha neguinha”. Então, esta manifestação de afeto, esta manifestação de amor, isto para mim é a riqueza. Ele não era um homem rico, mas ele se doava. Eu peguei muito da arte, da cultura, que ele gostava. Meu avô era repentista. Para ele declamar uma poesia, quatro, cinco estrofes, numa situação desta aqui, era a coisa mais fácil para ele. Eu já não tenho este dom, escrevo através de pontos. E os meus sobrinhos, quando nós nos encontramos na casa da minha mãe - uma vez por ano nos encontramos lá, mesmo depois de falecida - No dia primeiro de janeiro. A gente se encontra para passar o ano novo todo mundo junto e depois o almoço do dia seguinte. Eu nunca vou a noite, eu sempre vou no dia seguinte. E tem um sobrinho meu que mora em Minas Gerais e vem, outro de Mato Grosso, gente vinda do Paraná, São Paulo, Rio de Janeiro. Todo mundo se concentra ali. E tem um sobrinho meu que fala: “Tia, fala mais do vovô para mim. Por que ele morreu tão cedo e nós não pudemos aprender tanta coisa com ele. O pouco que a gente aprendeu é um acervo! E a gente não pode aprender. A senhora conviveu mais tempo com ele. Passa isto para gente”. Então isto é uma questão, assim, de família.
Eu vivi uma transição de valores na minha adolescência e juventude. Foi onde se quis corrigir coisas que não se aceitavam e depois acabaram fazendo coisas que também não foram aceitas. Neste período de transição, tipo assim, o meu pai me reprimiu muito, mas deixar o filho fazer tudo o que quer também não deu certo. Muitas pessoas sofreram muito nesta mudança radical de extremo a extremo. Eu sempre achei que o equilíbrio é o mais sensato. Até por uma questão de formação religiosa. Mas ser mulher, na minha adolescência, na minha juventude, depois de casada? Era uma sentença pesada. A mulher não tinha os direitos que os homens tinham. Tudo se podia com o homem, com a mulher não. Por exemplo: Se uma mulher engravidasse em casa dos pais, não havia a menor dúvida, ela era botada para fora de casa. Existia uma casa chamada “Abrigo de Mães Solteiras”, lar de mães solteiras. Elas acabavam indo para lá. Aquelas que não iam para lá, que direcionavam um patamar mais tranquilo, mais equilibrado, acabavam indo para a prostituição. Porque o pai não queria em casa. Acabava indo. Tem uma senhora, bem idosa, que era sogra de uma prima do meu marido, ela falava para as netas: “Vocês se cuidem, senão o destino de vocês vai ser na Praça dos Andradas”. Isso é lá em Santos.
A mulher era podada. Quando eu me casei eu usava calça comprida. Eu vim pra Iguape no tempo da Vanderléia, Jovem Guarda, com aquelas calças cocotas que a Vanderléia usava. Depois ficou cocota, mas naquele tempo se falava Saint Tropez. Era uma calça boca larga, baixinha, usava-se com cinto largo e a blusa era com decote em u, Brigite Bardot. E quando me casei eu vim para Iguape com uma roupa desta. Minha sogra ficou escandalizada a ponto de chegar para os meus enteados e falar: “O meu filho se casou com um macho”. Porque mulher que usava calça comprida era macho na visão deles.
Em São Paulo a gente usava calça comprida para ir a piquenique, viajar. Eram umas calças tão feias, era tipo esta calça fuseau de hoje. De malha, mas era de elanca, curtinha assim, tinha um biquinho abertinho, tipo uma calça leg, mas só se usava para uma situação específica. As mulheres usavam saia, vestido. Não se usava calça comprida. Biquíni na praia era uma ousadia. Eu, que fui mais ousada, tinha um que tinha esta largura lateral. Cobria tudo que tinha que cobrir e mais alguma coisa. Biquíni mais cavadinho nem pensar. E a gente ia com um vestido por cima, só na praia que tirava o vestido. Não ia com uma saidinha de banho. Aqui em Iguape, quando as mulheres começaram a usar shorts - houve até uma lei do Jânio Quadros proibindo as mulheres de usar shorts - Aqui em Iguape, quando as mulheres usavam shorts, até urubu subia no telhado para olhar. Agora você imagine, a gente morava em São Paulo, que tem uma cabeça diferente, quando a gente vinha para cá aquilo marcava. Isto no tempo que a gente era moça. Lembro-me que o meu avô paterno, eu tinha um cabelo na cintura, lisinho, bonito, e eu inventei de cortar o cabelo Chanel, quase igual a estes de agora, você sabe, que tem um bico aqui assim. Eu vim na casa de meu avô com este cabelinho, vestido tubinho, coisa assim. Quando eu cheguei meu avô, com aquele tamanco de português, ele parou. Ele não foi me receber. Ele falou: “O que você fez com aquele lindo cabelo que você tinha? Eu não sei onde eu estou que eu não tiro a cinta e não te dou uma boa coça”. “Mas Vô, não está bonito meu cabelo?”. “Você está igual a um leão!” “É, mas o senhor nunca falou que o meu cabelo era lindo!”. “E está me respondendo ainda?”. Então, ficava quietinha...
Era assim. Para minhas enteadas saírem para dar uma volta na praça tinha que ir um irmão junto. Elas não saíam para dar volta na praça sozinha não. “Eu vou dar uma volta na praça”. “Então leve o Benivaldo junto”. Uma vez o Benivaldo, o da “Benê modas”, foi junto com a Beatriz. Só que tinha o circo e Beatriz foi com o namorado no circo e Benivaldo ficou fazendo hora para voltarem juntos. Só que o outro irmão foi ao circo e a viu com o namorado. Quando voltaram o Benivaldo levou uma grande surra porque ele saiu com a irmã e não estava no circo junto.
Mulher tinha que ser acompanhada. Se uma moça perdia a virgindade, primeiro ela apanhava do irmão. Depois ela apanhava da mãe, depois apanhava do pai. Se tivesse avô por perto às vezes apanhava também. Às vezes colocavam em convento. Às vezes morria até tuberculosa, ficava doente. Perdeu a virgindade? Selo de desonra para família inteira. Um homem procurava para se casar, se a moça não fosse virgem ele não casava. Se ele casasse com uma moça que não fosse virgem ele podia devolver, igual uma mercadoria. A gente fala porque a mulher vivia isso, mas eu vivi neste período de transição. No tempo do psicodélico, tempo do Beatles, tempo da Bossa Nova aparecendo. Os valores estavam se confundindo um pouquinho, mas a mulher era muito reprimida. Para se ter uma ideia a mulher podia trabalhar na profissão mais promissora que fosse, quando ela marcava o casamento, ela já marcava o seu aviso prévio. Toda mulher parava de trabalhar quando casava. A mulher era do lar.
A minha irmã trabalhava na Copag, era chefe de setor, mas marcou o casamento e automaticamente pediu aviso prévio. A outra trabalhava em hospital. Meu próprio marido não deixava as filhas estudar! O interessante é que quando meu marido fez a proposta pra nós nos casarmos ele falou: lá em Iguape você continua seu estudo. Só tinha escola normal aqui. Completamente fora do que eu queria. E meu marido falava: “Eu nunca vou ter filha para ser enfermeira, aeromoça, modelo e miss!” E meu sonho era ser enfermeira. Ele sabia. Ele falava que enfermeira trabalhava de dia e a noite servia para dormir com os médicos. Esta era a cabeça dele. Até que ele foi operado do coração e teve uma enfermeira que era um anjo caído do céu, chamava Margarida. Ela cuidou dele com tanto carinho... E ele não comia nada e ela me chamava: “Dona Cleide, já procurei alguma coisa pra ele comer, traz alguma coisa de casa pra ver se ele come.” “Seu Antônio, precisa comer.” Depois que ele operou mudou a cabeça dele. Ele viu que não era nada daquilo. A dedicação da enfermeira com o paciente. Mudou a cabeça dele. Ele foi testemunha ocular.
Mas a mulher sempre viveu sob um preconceito muito grande. Tem até um episódio engraçado acontecido aqui em Iguape em que foi protagonista desta história uma moça e o meu marido. Meu marido assumia a posição de delegado aqui da cidade, ele era nomeado pelo governador, delegado em exercício. E ele não era delegado, nem estudo ele tinha, mas era nomeado. Um dia foi uma moça lá e falou: “Seu Antônio, preciso conversar um negócio com o senhor.” “Pois, não.” “Sabe, doutor, eu estava num baile dançando com fulano de tal, o senhor precisava ver o jeito dele.” “Mas o que aconteceu.” E ela foi descrevendo a situação do assédio, de todo assédio. E cada frase que ela falava, dizia: “Precisava ver o jeito dele.” Então terminou o baile, saíram do salão, e foram numa canoa que estava fora da água. Eu sei que concluído o ato – ela estava com intenção que o rapaz casasse com ela ou que assumisse o relacionamento e não aconteceu isto – ela foi dar parte dele. Só que ela foi contando, contando, contando. E nesta altura, se um homem desvirginasse uma mulher ou engravidasse e não casasse, ele ia para cadeia. O meu cunhado ficou preso porque não casou com a moça. O ex-prefeito aqui de Iguape, foi preso porque a moça falou que o filho era dele, e ele era casado. Ficou dois anos preso. Isso era motivo de honra. Prendia mesmo. Ela foi pensando: ou ele casa ou vai preso. Mas meu marido: “Escuta aqui? Diga-me uma coisa: tinha bastante gente neste baile?” “Tinha, sim senhor.” “Ele arrastou você para fora do baile?” “Não, senhor.” “Você saiu com as suas próprias pernas?” “Foi, sim, senhor.” “E lá fora, você gritou para alguém contando o que estava acontecendo?” “Não, senhor”. “Ele tampou sua boca?” “O relacionamento de vocês foi de pé ou foi deitado?” Aí ela contou como foi. “Então, você suma daqui! Você ponha-se daqui porque senão quem vai ser presa é você!”
As coisas resolviam-se desta forma. Hoje, não, hoje tem conselho não sei do quê, direito não sei do quê, direito disto, direito daquilo. Direito até de ser sem vergonha na cara. Mas antes as coisas se resolviam desta forma. Era muito rápido resolver as coisas assim.
Em relação à repressão sobre a mulher, eu mesma senti na pele. Por exemplo, quando eu ia me separar do meu marido, estava arrumando as coisas. Mas antes disso eu já tinha ido. Juntei todas as minhas coisas, meu pai estava aqui e fui embora com ele. Peguei meus dois filhos e fui embora para São Paulo. Chegou lá, a primeira coisa que fiz foi prestar um concurso, que passei, aliás. E estava vendo toda a documentação e ele aparece lá: “Vim buscar você, vamos embora, pegue as crianças”. Eu falei: “Tá. E se eu não for?”. Ele falou: “Você escolhe: ou você vai e permanece junto com seus filhos, ou você fica e nunca mais você vai ver seus filhos”. Era assim que funcionava. Se uma mulher saísse de casa ela perdia direito a bens. O Deputado carioca, Nelson Carneiro, que começou a criar leis que beneficiavam a mulher.
Hoje até há direitos demais. Eu falo para os meus filhos: “Cuidado, porque a indústria da barriga funciona muito bem.” “Atenção à indústria de filhos. Vocês se cuidem.” Eu falo para os meus filhos: “Vou cuidar dos meus filhos porque as minhas filhas se cuidam muito bem, obrigada”. Porque a mulher hoje tem uma visão diferente. Meu enteado separou e ele ficou sem nada. Ficou tudo para a mulher. A mulher consegue tirar tudo do marido. Tudo, tudo, tudo. Mas antes não era assim, ela perdia o direito a propriedade. Talvez as leis não fossem tão claras, se existiam, não eram divulgadas, ninguém as conhecia. O machismo imperava. Aí eu falei: “Mas como você vai tirar os meus filhos de mim?”. Ele falou o seguinte: “Você sabe muito bem que basta eu ir ao fórum e pedir para algum amigo meu dizer que saiu com você, você já perde o direito dos seus filhos para toda vida. E nem casa, nem filho, nem nada. Agora você escolhe”. Ele ia tirar meus filhos criando uma situação. Criava-se uma situação e o juiz simplesmente carimbava. A mulher vivia esta repressão.
Outra repressão que se viveu muito, e vive-se até hoje, tem a ver com a relação de posse da mulher pelo marido. O marido se julga possuidor. Nós somos uma minoria aqui, vamos ver se a gente consegue passar isto. O marido colocava-se na posição de possuidor, controlador do que a mulher pensava. A mulher não votava em quem ela queria, não. Ela votava em quem o marido mandava. Ele chegava para ela e falava: “Tá aqui a cédula, vota nesse aqui.” A mulher não exercia o direito de pensar. Nós éramos sapos. Houve o beijo do príncipe e continuamos vivendo como sapos. O que é isto? Beijo do príncipe é você ter acesso ao conhecimento. Vai continuar vivendo como sapo? O homem queria. Por quê? O pai dele vivia assim com a mãe dele; a avó dele já foi assim. Eu chegava para minha avó - eu estava beijando o meu marido - e ela falava assim: “O, coisa bonita, não!” “To beijando meu marido. Ele tá chegando de viagem e estou morrendo de saudades dele!”. “Vocês beijam na boca misturando cuspe?!” (risos) “Vó, a senhora nunca beijou meu avô?” “Beijo.” “Mas beijava assim, beijinho no rosto, beijo na testa.” “Mas vó, e beijo de boca?” “Deus e Nossa senhora nos livre, ai, ai, ai. Sua porca!”. Porca! Eu escutei isto. A mulher vivia uma repressão sexual. A mulher não tinha a liberdade de expressar para o seu marido que ela estava sentindo prazer no sexo. Ela podia ser humilhada pelo marido. O prazer no sexo era para as prostitutas, a mulher dele, não. A mulher dele tinha aquele invólucro. E por aí foi. Por quê? Porque ela já ouviu da mãe, já ouviu da avó. Hoje em dia é diferente? É, mas daí já é o outro extremo. Foi para outro extremo. Continuo falando no equilíbrio.
Nossos pais sempre nos educaram com princípios cristãos. Eu tenho a lembrança da minha mãe sempre dividindo as coisas de casa. A gente foi para São Paulo, meu pai era assalariado, ele chegava em casa e a minha mãe ia dividir as compras, influencia dos tempos de Peropava. Ela pegava lata de leite ninho e ia dividir. A gente era criança e ajudava. Um pouquinho de arroz para não sei para quem; um pouquinho de café, um pouquinho de leite em pó. Ela fazia pacotinhos de cada coisa e levava lá numa família.
Um dia eu fui à Cananéia, um frio que estava! Frio! Quando eu entrei na casa dela - tinha uma mesa grande assim - tinha três crianças tomando uma sopinha. Eu cheguei, olhei: “O pai sofreu uma queimadura grande; a mãe teve bebezinho e está no hospital; as crianças estão lá e não tem quem cuide.” Eu falei: “Tá, mas e aí?” “Eu fui lá buscá-los porque a avó não chegou ainda. Eu fui buscar e trouxe aqui. Eles estão com frio. E fiz jantar.” Todos com pijaminhas de flanela, arrumadinhos. “Já fiz pijaminhas para eles que estavam com frio, e fiz uma sopinha. A hora que os pais chegarem eles já estarão todos alimentados”.
Minha mãe era isto, sempre foi de partilhar, de olhar. Ela pegava roupa velha e ia guardando os pedacinhos e emendava. Chegando o inverno ela fazia três, quatro acolchoadinhos. Alguém batia na porta ela sempre dava um acolchoadinho. Baseado sempre neste princípio cristão. Meu pai era enérgico, ele nos ensinava dentro da moralidade, dos padrões éticos do cristianismo. A gente nunca pegava nada de ninguém; ninguém aparecia com nada em casa. Coisa que é obrigação de todo mundo, não só por causa da religiosidade. Mas ele sempre colocava para gente: tudo que vocês quiserem fazer, achando que estão fazendo escondido, lembrem-se que Deus está vendo tudo, e uma hora isto se revela. E então vai ser prejuízo para vocês. Tudo o que vocês quiserem que os outros façam de bem para vocês, comecem vocês fazendo para os outros. É uma semente, quando você semeia uma semente de milho você não colhe uma semente, você colhe uma, duas, três espigas. Quando você está semeando a volta é muito mais gratificante. Então faça sempre. Sempre divida, sempre partilhe.
A gente aprendeu isto. A gente era criança e sempre foi moldado nestes ensinamentos. Ensinei a meus filhos assim também. Eu sou bem envolvida na igreja. Sou cantora, cantora entre aspas, participo de um conjunto coral. Sou professora de educação bíblica cristã. E por conta disto houve um episódio. A gente educa todos os filhos de uma forma, não que seja igual, porque um é diferente do outro. E a gente erra educando igual. E eu também cometi este erro. Eu eduquei todos iguais. Errado. Cada um tem uma necessidade diferente. Cada um tem uma emoção diferente. Você não pode criar igual. Eu criei meus filhos todos iguais, mas eu tive um filho logo depois que meu marido faleceu, por conta deste desequilíbrio de realidade, eu tive um filho que se envolveu com drogas. Ele estava estudando fora; ele estudou até o terceiro ano de arquitetura. Quando eu percebi que ele tinha se envolvido com droga, o dinheiro que eu mandava para ele, que ele não estava estudando coisíssima nenhuma, eu fui lá, fechei o apartamento e trouxe-o de volta. Foi muito triste, muito triste. Hoje ele está aqui em Iguape, mas perdeu muitas oportunidades na vida por causa do envolvimento com as drogas. Por conta disto ficou aquela coisa com os traficantes. Se eu achasse um traficante eu passava com o carro em cima. Passei a ter ódio de traficante.
Hoje eu vejo diferente: não adianta você trabalhar contra o traficante, porque o traficante oferece o produto porque tem mercado de compra. Você tem que educar para que não haja compra. A família desestruturada gera cidadão desestruturado; transforma uma sociedade numa sociedade doente, e esta sociedade doente injeta para dentro da sua família um cidadão desestruturado, através de assalto, de bagunça, de bandidos.
Essa é uma questão atualíssima em Iguape, não só aqui. Eu achava que se pegasse um traficante ia moê-lo. Até que Deus coloca no meu desejo de trabalhar na reabilitação social da dignidade, da auto estima, ninguém mais, ninguém menos que traficantes. Eu trabalho com 115 traficantes. Eu acolho, eu ouço. Eu pego no colo, eu abraço, eu supro. Você vai me perguntar por que isto. E eu não sei responder para você. Não sei. Estou lá dentro trabalhando com traficantes. Você precisa ver as cartas que elas me mandam. Os pedaços de cartas que elas mandam pra mim quando são transferidas para outros presídios. Lembrando o que eu falei, do curso. “Professora, a senhora é muito amada. Não tem um dia em que eu acorde e não me lembre de seus ensinamentos”.
Isto para mim é gratificante. Já valeu a pena. Se uma de cada cem largar essa vida, uma, já valeu a pena. Eu acredito que a família está desestruturada por falta de Deus no coração. Deus não é convidado a fazer parte da família. Deus não é convidado a fazer parte dos seus negócios. Deus não é convidado a fazer parte das suas amizades. Quando ela se espalha você fala: “Ai meu Deus! Ai meu Deus!”. Mas Deus não foi convidado, você não perguntou para Ele. Você não pediu a opinião d´Ele, você não deixou que Ele te influenciasse. Você quis fazer do seu jeito. Eu bato o pé. Bato, bato, bato o pé, que nós temos uma necessidade urgente de Deus, de seus ensinamentos dentro da família. Porque senão é uma pedra rolando morro abaixo, não adianta prender traficante. Não adianta dar castigo. Não adianta fechar boca de fumo, porque, eu sei, as minhas alunas falam: “Professora, é um tipo de comércio que a gente não vai atrás do consumidor, eles que vêm até nós desesperadamente”. Por que existe revista pornográfica? Porque tem mercado consumidor. Quando não existe mercado consumidor, não existe oferta. Se existe oferta é porque há o mercado consumidor.
Iguape teve uma explosão das drogas nos últimos cinco anos, e não é só aqui na nossa região, isto é em nível de Estado. Se a gente for colocar em nível de Brasil, em nível da União, este papel multiplicador vai mais acima. Hoje nós vemos o tráfico de drogas, o tráfico do sexo, o tráfico de mulheres, de mercado, prostituição, com a mesma crescente escala. Nos últimos cindo anos... Eu participei aqui em Iguape do Conselho de jurados, trabalhei ativamente, me chamavam toda quarta-feira, não me davam folga. E eu tinha um azar que toda quarta-feira eu era sorteada e não tinha como escapar. No ano de 1995 mais ou menos, já está fazendo seis anos, na época que houve essa multiplicação, teve um promotor aqui. Como a gente estava sempre ali na hora do intervalo a gente ficava brincando, conversando – tinha uma amiga minha que levava até um amendoinzinho para comer no intervalo – aí ela falou: “Vamos comer um amendoinzinho hoje?” Ele se reuniu a gente e falou: “Vocês que são aqui de Iguape, vocês que são da sociedade de Iguape, vocês representam uma fatia da sociedade de mães iguapenses, façam alguma coisa pelas crianças de Iguape.” Eu falei: “Por que, doutor?” Ele falou: “Prostituição e alcoolismo infantil.” Eu abaixei a cabeça e pensei: “Ele está doido, ele está vindo com esta história de outro lugar e está querendo vir contar aqui”. E falei: “Aqui em Iguape?” “Aqui em Iguape, dona Cleide”. Basta atravessar aí. A senhora vai cair dura porque é a própria mãe que leva a filha a se prostituir, crianças de nove, onze anos...
Eu pego o depoimento das minhas alunas, elas escrevem cartinhas. Eu faço questionário para elas de uma forma bem direta: “Seu corpo é sagrado; não deixe ninguém tocar nele sem que você o permita”. Me refiro a tocar sexualmente, tocar nas suas emoções, agressão com palavras, agressão física. Você não permita. Denuncie quando houver. E se não tiver para quem denunciar vá à igreja e denuncie para alguém. E nos questionariozinhos que elas respondem, eu posso ver que na maioria das vezes, o problema é a falta de oportunidade. Eu tenho uma aluna de quarenta e quatro anos e hoje ela me mandou uma cartinha. Fiquei muito feliz. Ela não sabe ler nem escrever. Quarenta e quatro anos! Não é de uma geração tão antiga. Outra com 36 anos. Eu pedi para ela escrever e ela começou a chorar porque não sabia ler e nem escrever. A gente vê isto? Vê. Nós vimos aqui no Rocio, onde dei aula no C.R.A.S aqui, uma mãe falando que ela, com nove filhos, eu falei: “Caramba, nove filhos! Vai ao posto, pega o preservativo. Você tem condições de criar nove filhos?” Ela falou: “Professora, eu não posso usar preservativo.” “Você pega o preservativo e teu marido usa preservativo.” “Ele me bate se eu fizer isto.” Olha! Isto aqui, gente, há 200 metros do nosso olhar! “Ele me bate se eu fizer isto. E eu também não posso tomar.” “Fala com o médico sobre esta história e peça para fazer uma ligadura nas suas trompas e pare de ter filhos.” Mas a mulher, coitada, cheia de varizes! Cada bola de varizes do tamanho de um bico. Lavando, cozinhando. Eu falando isto para ela. Ela não pode falar nada porque se por acaso ela questionar o assunto, ela apanha do marido.
Eu continuo batendo na mesma tecla que toda lei existe extremos, o equilíbrio é o melhor caminho. Houve extremos, pessoas que viviam a vida toda ali numa área ribeirinha, ou então, vou me referir mais a Juréia, eles que cuidavam daquele espaço. Se existe espaço preservado é porque eles cuidavam. Mas só que eles moram longe, quantos quilômetros para vir comprar na cidade? Os policiais também não eram preparados e ainda prendiam as pessoas que estavam com uma paca ou um tatu para comer. Só que o caiçara não depredou nada. O caiçara preservou porque se existe esta Mata Atlântica toda intocável, é porque houve caiçaras aqui, que cuidaram. O caiçara não vai pegar para vender. Ele pega, até porque não tem nem geladeira lá; bom, agora até tem. Ele come fresquinho, tem bastante, o máximo que ele faz é salgar. Eu comentei que meu avô caçava, chegava e dividia a caça com todos, não? Porque quando era dividido o outro não precisava ir caçar. Era sempre partilhado, dividido. Outro dia ele comeu com o outro que sempre dividiu com ele. O caiçara sempre preservou. Contei a história do palmito. Eles colhiam o palmito depois que estava adulto, para não estragar o outro. O caiçara sempre preservou. As leis ambientais acabaram esgotando o caiçara.
No início isto causou um impacto negativo muito grande, porque as pessoas que tinham sua roça não podiam derrubar nada. Acabou acontecendo um êxodo rural, eles vieram todos para a cidade, superlotou o Rocio, que é o bairro carente e eles vieram viver numa casa de pau a pique. Eles tinham tudo no sítio. Viviam do extrativismo e acabaram vindo para cá para não fazer nada. Eles não têm preparo. Não tem conhecimento, não tem formação acadêmica nem escolar nenhuma. Então eles têm dificuldade de arrumar emprego aqui. Lá eles tinham peixe, a caça; criavam a galinha, que era tudo solto.
A princípio foi muito negativo. Eu defendo de unhas e dentes a preservação. Eu acho que se não preservar daqui a pouco não vai ter para quem vem atrás. Mas por outro lado, as leis, os legalistas, os ambientalistas, tem que olhar primeiro o homem e depois a natureza. Porque se não houver a natureza equilibrada não vai existir o homem. Mas você não pode por causa de um parasita, de uma bromélia, ir preso. Se você mata um ser humano você responde em liberdade. Se você corta uma bromélia você é preso incomunicável. Então as leis têm que ser revistas. Para aqueles que vão lá caçar como esporte, a lei tem que haver rigor. Porque não há necessidade. Eu tenho mercado aqui perto de casa. Eu tenho trabalho; tenho ordenado. Posso comprar carne, posso comprar peixe. Mas para aqueles que moram lá, tem que ser diferente.
Na Juréia tem um manifesto para tirar o pessoal que mora lá. Isto é ridículo! Aquilo que existe lá é geração em cima de geração que estão lá guardando o espaço.
Na cidade, quando eles quiseram instalar uma usina nuclear por aqui houve manifestação pública, o pessoal não deixou. O povo se mexeu e não deixou. Coisa pesada mesmo, grande, imprensa, com tudo. E não foi criada a usina lá. Tiveram vários comícios. Era aqui no Largo da Basílica, em frente ao cinema. Inclusive, emprestamos a luz do cinema para o caminhão ali. Discurso para não aceitar a usina por aqui. Houve passeatas com faixas. Depois, para não fazer a usina aqui, criou-se uma reserva por causa da usina. Criou-se a reserva para impedir a usina. Só que por conta desta reserva já começou a extremar a forma de tratar aqueles que moravam ali.
Eu conheço pessoas que moram ali. Meu marido era de lá, a gente tinha uma área muito grande lá. Como virou APA (Área de Proteção Ambiental), eu larguei mão, nem vou lá. Era o caminho do telégrafo. Aquela área era toda do meu marido, da família dele. A gente largou lá. Nem vai mais porque é uma área de APA. A gente brigou por causa daquilo? Não. Aquilo tem que ser preservado. Se for tudo aberto, devastado, o mar pode invadir. E o mar invade. Ali tem dunas, tem tudo ali. Tá certo de guardar. Agora, se tiver alguém que mora ali e quer viver daquilo ali, do extrativismo dali, para a sobrevivência, eu acredito que ele deve fazer. As leis têm saídas.
O meu genro foi comandante da polícia ambiental aqui em Iguape. Então ele sempre falava isto. Ele orientava as pessoas. É diferente da pessoa que entra no palmiteiro para acabar com tudo, por quê? Porque ele entra para cortar o palmito para vender. O interesse dele não é o interesse pessoal, é o interesse dos grandes mercados que estão querendo o produto. Ele acaba fazendo o produto sem nenhuma condição de higiene. Oferecendo risco a saúde pública. Mas aqui em Peropava, por exemplo, nós temos uma plantação de palmito da pupunha, legalizada, onde ali você pode extrair.
Aqui é semelhante ao que acontece em Sete Barras. Aquilo ali é vida de cangaço. Então o policial vai lá, você não tem noção do que é, é cangaço. O policial entra ali e tem barricada. Estes dias morreu um policial lá em uma armadilha. Eles deixam uma arma engatilhada de um jeito que pisa e a arma dispara. Para eliminar os policiais da área. Mas o interesse deles não é nem deles, coitados! Mateiros ali? Não, é o interesse dos grandes que às vezes pagam um salário de fome para eles fazerem isto. Já o caiçara tem este senso de preservação, tem que ser preservado porque senão acaba.
Eu sou muito otimista em relação aos próximos anos. Do ponto de vista cultural, de progresso, eu acho que Iguape está despertando para uma nova consciência, uma consciência de patrimônio material, de patrimônio imaterial, que são nossos costumes, nossos valores, nossos saberes, no linguajar, na culinária, no vestuário, nas festas e tudo o mais.
Acho que isto é uma conscientização nova. Mas eu me preocupo com valores de um modo geral. As crianças têm que ser cuidadas com mais carinho. Eu vivi Iguape, contando dos tempos para trás, Iguape hoje está um novo lugar. Acredito que com a globalização, com a facilidade das coisas, daqui a dez anos o espaço é muito curto, pode acontecer muita coisa boa. Muita coisa ruim também. Então é preciso que se canalize o que se quer colher daqui a dez anos. Está na hora da gente escolher a semente que se quer semear.
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