P/1 – Você pode começar a falar seu nome inteiro, local e data de nascimento...? R – Carlos Alberto Pereira Junior. Minha mãe sentiu as dores do parto em Iguape, mas correu pra Registro pra eu nascer e dois dias depois eu tava aqui de volta, então eu falo que eu sou natural de Iguape, mas na verdade eu nasci em Registro, nasci em 73 e vivo aqui em Iguape, sempre Saí só pra estudar e voltei aqui, eu tenho hoje minha família, meus filhos, tenho três filhos. Os meus irmãos um mora pra fora porque saiu pra estudar também mas fez a vida dele e não voltou e o outro saiu pra estudar e voltou também e tá aqui. P/1 – Carlos, fala uma coisa: seus pais são de Iguape? R – São. P/1 – E seus aavós também? R – Também. Os pais da minha mãe nasceram aqui, ambos. E os pais do meu pai também nasceram todos aqui. P/1 – E você sabe a descendência que vocês tem? R – Os da minha mãe, o pai dela é de descendência indígena. E por parte do meu pai é minha aavó que era portuguesa. Os pais dela eram portugueses. E aí tem um pouquinho de tudo nessa história. P/1 – E aí você sabe quais eram as atividades dos seus aavós, o que é que eles faziam aqui na região? R – Então, na verdade o meu avô era pescador, o meu avô materno era pescador, fazia rede, saía pra pescar... Era muito conhecido aqui na cidade porque as pessoas compravam redes de pesca dele, ele trançava rede de pesca, vários tipos de malha e tal. A minha aavó era dona de casa, mas daquelas que ensinavam todas as filhas a bordar, todas as filhas a fazerem tricô. As minhas tias e a minha mãe são conhecidas na cidade por serem muito prendadas, fazem várias bonecas, são costureiras... Então todas elas tem atividades muito voltadas pra isso. Minha mãe foi pro magistério, trabalhou a vida inteira de professora, se aposentou como professora e muito respeitada na cidade, até hoje os alunos quando casam vão lá na casa dela...
Continuar leituraP/1 – Você pode começar a falar seu nome inteiro, local e data de nascimento...? R – Carlos Alberto Pereira Junior. Minha mãe sentiu as dores do parto em Iguape, mas correu pra Registro pra eu nascer e dois dias depois eu tava aqui de volta, então eu falo que eu sou natural de Iguape, mas na verdade eu nasci em Registro, nasci em 73 e vivo aqui em Iguape, sempre Saí só pra estudar e voltei aqui, eu tenho hoje minha família, meus filhos, tenho três filhos. Os meus irmãos um mora pra fora porque saiu pra estudar também mas fez a vida dele e não voltou e o outro saiu pra estudar e voltou também e tá aqui. P/1 – Carlos, fala uma coisa: seus pais são de Iguape? R – São. P/1 – E seus aavós também? R – Também. Os pais da minha mãe nasceram aqui, ambos. E os pais do meu pai também nasceram todos aqui. P/1 – E você sabe a descendência que vocês tem? R – Os da minha mãe, o pai dela é de descendência indígena. E por parte do meu pai é minha aavó que era portuguesa. Os pais dela eram portugueses. E aí tem um pouquinho de tudo nessa história. P/1 – E aí você sabe quais eram as atividades dos seus aavós, o que é que eles faziam aqui na região? R – Então, na verdade o meu avô era pescador, o meu avô materno era pescador, fazia rede, saía pra pescar... Era muito conhecido aqui na cidade porque as pessoas compravam redes de pesca dele, ele trançava rede de pesca, vários tipos de malha e tal. A minha aavó era dona de casa, mas daquelas que ensinavam todas as filhas a bordar, todas as filhas a fazerem tricô. As minhas tias e a minha mãe são conhecidas na cidade por serem muito prendadas, fazem várias bonecas, são costureiras... Então todas elas tem atividades muito voltadas pra isso. Minha mãe foi pro magistério, trabalhou a vida inteira de professora, se aposentou como professora e muito respeitada na cidade, até hoje os alunos quando casam vão lá na casa dela pra falar que casaram, apresentar os filhos... Muito legal P/1 – Onde foi a casa da sua infância? R – A casa da minha infância foi aqui na praça, no lado da basílica, ali era a casa da minha avó paterna. E era uma avó muito festeira, ela dava festas enormes na casa dela Assim, de aniversário, de reveillon, de natal... E todo mundo da rua ia nela, nas festas dela. Então eu e a minha mulher, com quem eu casei, com quem tenho três filhos, eu conheci quando a gente era pequeninho, eu conheci quando a gente brincava em volta da igreja ali . É muito engraçado que as pessoas perguntam do que é que a molecada faz na infância e em vários lugares tem uma coisa diferente, e eu e meus amigos a gente brincava de procissão A gente pegava aquela escadinha da beliche, que dava pra quatro pessoas carregarem, a gente colocava a boneca de uma das amigas, a gente enfeitava tudo de flores e a gente andava em volta da igreja, brincando de procissão, imitando a procissão do Bom Jesus . Adoro lembrar disso P/1 – E quem morava na sua casa? R – Então, na minha casa minha mãe, meu pai e meus irmãos. E a minha avó paterna que tava sempre muito presente. Os meus tios e tal. Mas em casa a minha mãe e meus irmãos e tal. E tem uma pessoa que vive com a gente até hoje, que foi uma aluna da minha mãe, que ela conheceu num sítio – minha mãe foi professora de zona rural aqui em Iguape – e ela conheceu no sítio e quando eu nasci ela veio com a minha mãe pra ajudar a cuidar de mim. E ela cuidou de mim, dos meus dois irmãos e agora dos meus três filhos, e até hoje ela vive conosco. Muito lega, a Carminha Minha segunda mãe. Minha mulher fala que ela tem duas sogras . P/1 – Carlos, deixa eu te falar uma coisa: sua mãe ela dava aula e seu pai...? R – Meu pai também era professor, trabalhou como professor durante um tempo, depois desencanou, num curtia mais... Ele era muito ligado a essa coisa de máquina, trator, ele sempre gostou E aí trabalhava com isso: terraplanagem, abrir estrada, aqui na cidade e tudo... P/1 – ...Mas ele tinha o que, equipamento ou ele era de uma empresa...? R – Não, ele tinha equipamento e meu avô era dono de uma olaria, então eles produziam os tijolos pra as construções aqui da cidade e nessa eles tinham caminhão e tal, e meu pai que dirigia o caminhão e tudo. Então ele sempre curtiu isso P/1 – Ele dirigia o caminhão? É mesmo? E aí precisava abrir uma estrada...? R – É. Aí ele fazia toda essa parte de transporte... P/1 – ...Você sabe de alguma construção, alguma estrada que ele tenha...? R – Ah, tem A estrada que liga aqui a cidade à Juréia, por exemplo, foi o meu pai que abriu, ele e a turma dele. Eu era bem pequeninho e eles ficavam acampados no mato, porque não dava pra ir e voltar todo dia, às vezes ele me levava e enquanto eu ficava na cachoeira eles iam abrir estrada... Passava o dia inteiro na cachoeira, era bem legal P/1 – ...E você entrou com quantos anos na escola? R – Ah, eu entrei cedinho, com seis anos eu já tava na escola... P/1 – Que escola que você estudou? R – Eu estudei no Vaz Caminha, aqui, comecei minha vida no Vaz de Caminha, que é a escola mais antiga da cidade. P/1 – ...E que lembranças que você tem dessa época...? R – Meu Deus do Céu Professora Celinha Santana Todas Todos os professores dessa época eu lembro Celinha Santana foi minha professora de primeira série e era muito legal, eu lembro de um momento, assim, do dia em que ela entrou na sala e ela falou que ia ensinar a gente a escrever uma palavra enorme, a maior palavra que existia Falei: “Nossa, que medo, ai que palavra é essa?”. E aí ela foi na frente da lousa e escreveu: “Gigante”. E aí lembro disso, da professora Celinha, mas era muito legal Assim, eles... A professora Lurdinha Barreiro, que foi minha professora de segunda série... Professora Belmira, professora de terceira série... Todas elas vivas, vou na casa delas sempre Bem legal P/1 – E você ia a pé para a escola, era perto? R – Muito perto, a gente vai a pé, todo mundo vai a pé pra tudo aqui E era muito perto Eu fazia um caminho da minha casa até a escola que passa por uma rua estreitinha e eu sempre gostei daquela rua, na verdade eu acho que essa minha paixão por história e tudo, era porque eu passava naquela rua Eu tinha sempre uma sensação de que tinha mais gente na rua, e é uma rua bem estreita e toda ela com casas históricas em ambos os lados. E eu sempre que eu passo ali eu lembro de quando eu tava indo pro colégio quando eu era pequeno, e aquela rua sempre me encantou É bem legal... P/1 – Qual o nome da rua? R – Acho que chama Major Moutinho, o nome da rua. E é a rua que faz a ligação entre a praça e o Colégio Vaz Caminha, então eu sempre passava por ali...Fica muito claro pra gente ver daqui os beirais das casas e tal... Quando chovia a gente sempre passa pelo cantinho, porque o beiral protege a gente da chuva, e aquela rua a gente sempre desencanava na hora de ir embora que tava chovendo, porque passava aquela rua e não tinha problema porque não molhava, porque ia sempre pela beiradinha... P/1 – Como é que era Iguape naquela época, assim: o centro... Ele é muito diferente do que é hoje...? R – Então, na verdade a dinâmica eu acho que é um pouco diferente, por causa dos carros e tudo mais. Mas eu não lembro de muita mudança, assim... Eu acho que na década de 80 a gente perdeu muitos casarões ainda históricos, que era uma época ainda que a cidade vivia um processo que a cidade queria se desligar um pouco do passado. Acho que isso aconteceu, foi reflexo em todos os lugares. Aquela coisa do moderno... São Paulo foi muito pra esse lado. E aí algumas casas foram destruídas e tal. Mas acho que foram duas ou três ali no centro histórico, pra construções modernas. Acho que foi o que mudou. Na verdade, a minha infância inteira eu passei ali na praça, no centro histórico, brincando com meus colegas, desde brincar de procissão até arrancar... A gente ajudava na igreja, nas coisas da igreja... A gente sempre esteve ali dentro da Basílica... A gente limpava banco... O cara tava limpando banco, ele arrumava pano pra todo mundo e a gente ajudava a limpar os bancos Limpar os santos... Ir buscar flor no mato pra enfeitar os andores na época das procissões... P/1 – ...Dentro de casa você tinha educação religiosa...? R – ...Então, é louco pra caramba, porque a família da minha mãe se converteu ao... Eles eram presbiterianos. E a família do meu pai católica, apostólica, romana de marré, marré deci. E aí a minha avó quando... De domingo, por exemplo, eu ia de manhã na escola dominical, com a bíblia embaixo do braço, aquela coisa toda certinha, na igreja presbiteriana. E aí a gente chegava em casa e almoçava na casa da minha avó, e à tarde a gente já ia na igreja com a minha avó. . E o católico sempre me fascinou mais por causa dos rituais Eu sempre achava muito legal aquela coisa do incenso, da fumaça, da roupa dos padres, dos santos e das flores e as cruzes... Acho que era mais fascinante assim pra criança e tal. Mas não tive muito essa coisa de ter que... Não fiz crisma, não fiz batismo, não fiz primeira comunhão, nada dessas coisas, mas sempre tive envolvido na igreja. Adoro, adoro Adoro não religião, mas religiosidade. E eu sempre vou em uma, na outra, pra conhecer, pra sacar... Mas não tive, assim, uma direção dentro de casa muito severa pra essa questão da religião. P/1 – ...E, Carlos, aí você fez o ginásio no Vaz Caminha...? R – Fiz o ginásio no Vaz Caminha, aí fui pra um colégio chamado Jeremias Junior aqui, que é um colégio bem legal também, fiz até à oitava série... P/1 – ...E esse é particular? R – Não, não. P/1 – ...É estadual? O Vaz Caminha eu sei... O Jeremias também? R – O Jeremias também. E depois fui pro Veiga Junior que é o colégio de ensino médio. Na minha época era onde a gente estudava o ensino médio. E além das aulas a gente estudava marcenaria, mecânica, economia doméstica – as meninas faziam – era muito legal também , às vezes a gente assistia algumas aulas, elas faziam bolo, porque eles iam lá aprender a fazer bolo. Tinham que ser boas donas de casa E aí rolava um lance assim, mas acho que nem rola mais... P/1 – ...E como é que era sua história com a praia, vocês iam à praia...? R – Sempre Sempre P/1 – ...Era um programa familiar...? R – Sempre, sempre Esse era um problema na adolescência, porque a gente tinha a roupa que a gente ia pra escola, e tinha a roupa que a gente levava na mochila ou que a gente deixava na casa de algum amigo... Aí chegava lá, tipo... Não entrava na escola e ia pra praia, aí quando chegava na hora do almoço, voltava pra casa... A gente chegava moreno de praia e minha mãe não desconfiava, não consigo entender até hoje como que a minha mãe não percebia que eu ia pra praia, porque a gente era todo mundo moreno de praia . P/1 – ...E era onde...? R – ...Na Ilha Comprida, que era a mais próxima. Não tinha ponte na época também, era balsa, então a gente atravessava a balsa e pegava carona em caminhão de peixe, essas coisas assim... E era uma praia que... A gente ficava a manhã inteira na praia e voltava na hora do almoço. Passava na casa do amigo, tomava um banho e tal, e ia pra casa com a mochilinha todo bronzeado . P/1 – E quando você era pequeno a sua família costumava ir pra praia? R – Aqui, a Ilha comprida não era emancipada, era um município só, e era muito comum a gente ter uma casa aqui e uma casa na Ilha. A minha família era assim: a gente tinha uma casa aqui e uma casa na Ilha, e passava a semana aqui e passava o final de semana na praia. Muito comum, quase todo mundo tinha uma casa aqui e lá Antigamente a gente podia manter duas casa e tal, hoje não rola muito isso . P/1 – E aí ia a família toda...? R – Ah, ia todo mundo Meus pais, meus irmãos... A gente vivei histórias bem legais, assim, na praia, de ajudar quando rolava de tartaruga encostar e tudo... Assim como histórias trágicas também que aconteciam na balsa: carros que caíam da balsa... P/1 – ...Você soube ou...? R – ...Não, eu vi uma vez Eu vi um carro, cheguei na balsa, estava eu e mais dois amigos, a gente entrou na balsa, tava tudo indo bem, até que um carro veio desceu... Nunca esqueço, era uma Brasília ainda, desceu, eles eram de fora e estavam vindo pra passar o final de semana... Desceu, entrou na balsa e passou direto: puf Caiu na água, na nossa frente, assim. Aí eu lembro que as pessoas, os caras desceram, os salva-vidas – nem tinha salva-vidas, eram os próprios funcionários que administravam a travessia. Desceram e tal, tiraram as pessoas do carro... Dessa vez uma pessoa não conseguiu sair, foi chocante pra gente ver Na hora em que eles tiraram o carro tinha uma pessoa dentro e tal... Mas vira e mexe, a gente sempre... A gente que mora no mar, a gente sempre tem a história do pescador que não volta, ou de algum turista desavisado que acha que o mar é uma coisa tranquila também Então na nossa infância na praia sempre rolava de a gente presenciar algum fato assim. Na praia rola muito isso. E hoje acho que as normas de segurança são mais bem... São levadas a sério e tal, antigamente não tinha muito isso. Então rolava muito... P/1 – ...E a juventude aqui, como é que era? Como é que eram os programas? R – Cara, isso parece saudosismo barato, mas hoje eu não vejo muito as pessoas curtirem o espaço como a gente curtia. Eu acampava pra caramba quando era moleque Uma vez eu fui pro Marujá, pedi pro meu pai pra passar um final de semana no Marujá, fui pra lá, fiquei 32 dias Meu pai foi me buscar . É uma ilha que tem aqui na frente, a Ilha do Cardoso, aí a gente passeava muito por aqui, acampava pra caramba e tal Hoje o pessoal não faz muito isso... Mas a adolescência e juventude numa cidade como Iguape eu acho que é incrível. Infância também A gente exercita um tipo de relação que não é muito comum em outros lugares. Aqui os meus amigos de hoje, são os meus amigos de quando a gente tinha cinco, seis anos de idade, quatro anos de idade A gente brincava de bolinha de gude e são meus amigos até hoje Então a gente participa muito da vida um do outro, quando a cidade é menor. E aqui, Iguape, era isso E tinha também a questão dos turistas que vinham pra cá, e a gente... Então, vários amigos da infância são amigos que tinham casa de veraneio aqui também, então alguns a gente conseguiu preservar a amizade ao longo do tempo, outras não. Mas tinha essa coisa da gente vivenciar o que se passava aqui com os nossos amigos daqui, mas vez ou outra, final de semana, feriado, sempre tinha gente diferente e tal... Na cidade... E a gente acabava indo pra baladinha, clubes, dançava, beijava na boca... P/1 – ...Qual que era a baladinha aqui...? R – Ai, tinha um clube chamado Alvorado aqui... Eu peguei o finalzinho do 55, que foi um clube que fechou... Mas na minha adolescência mesmo eu peguei o Alvorada, que é uma danceteria normal, como... Tinha globo de luz rodando, aquelas coisas assim e tal... Era uma danceteria comum, normal... P/1 – ...E que sons que rolavam...? R – Cara, rolava muito rock nacional naquela época. Hoje a gente ouve pouco quando vai pra balada. Mas era muito som nacional na balada E eu também curtia cultura tradicional, então eu ia atrás dos fandangos também... Sempre que rolava um baile de fandango aqui... P/1 – ...E a sua família tinha essa tradição de frequentar as festas, a cultura local...? R – Na verdade na casa da minha avó paterna eu sempre vi isso Durante o ciclo natalino, as Reiadas visitavam sempre a casa da minha avó. As Reiadas, não sei se vocês conhecem, mas é um grupo de Reis que remontam a visita aos presépios e tal, aí eles vem e tocam fandango, fazem uma pequena apresentação, rola um baile e aí eles vão arrecadando prenda e dinheiro pro baile de Rei que acontece depois, em janeiro. Então eu sempre via isso na minha casa. E aí a gente saía atrás das Reiadas, elas tocavam na casa da minha avó e quem queria ia seguindo a Reiada que iam tocando nos outros lugares... Eu sempre ia atrás da Reiada Tinha uma coisa muito legal que me faz lembrar agora: era na época da malária, que vinham pra combater os pernilongos da malária e tal. E eles saíam na rua com carro que soltava veneno Uma fumaça que matava pernilongo, mosquito, borboleta, tudo que voasse... Era tudo quanto é tipo de inseto E a gente ia correndo atrás, aspirando aquele veneno A cidade inteira Era uma molecada atrás, o carro soltando veneno: “vruuummm”, como se fosse ambulante, assim, e a gente correndo atrás e respirando aquele veneno... A gente chegava em casa com o olho vermelho, ardendo... Todo mundo envenenado, era ótimo . P/1 – ...Veneno... . E os fandangos...? Como é que você começou a ir, quem te levou...? R – ...Então, quem me levou a primeira vez de verdade num baile de fandango, foi o Dauro, o Dauro é um mateiro aqui de Iguape, ele é morador de comunidade tradicional, eu o conheci há um tempo atrás, e na verdade a cultura tradicional caiçara se abriu pra mim quando eu conheci o Dauro. Foi aí que eu comecei a frequentar a Cachoeira do Guilherme... P/1 – ...Quantos anos você tinha...? R – Ah, eu acho que eu tinha uns 16, 17 anos, por aí... Que foi a primeira vez que eu fui pra um lugar atrás de um baile de fandango, e aí a gente já tinha um amigo que tinha uma câmera na época – era incrível alguém que tinha uma câmera Então a gente ia pra registrar Fazia trilha, a bateria não dava, a bateria da câmera, então a gente levava bateria de carro. Então fazia trilha de 30 quilômetros levando uma bateria de carro pra depois usar a câmera nos lugares e tal Então a gente já começou a registrar, a colher um pouco do que as pessoas falavam... Conheci seu Sátiro, que foi uma figura lendária lá daqui da Juréia, que ele era meio um mestre espiritual lá das comunidades tradicionais da Juréia... P/1 – ...E do que é que ele era mestre...? R – Então, o seu Sátiro ele criou uma seita dentro da Juréia, que misturava um pouco... Você entrava lá no lugar dele lá e tinha o Bom Jesus de Iguape em cima da mesa, tinha São Miguel Arcanjo e tal, mas era uma seita espírita, rolavam umas rezas e tal... E ele era um curandeiro, assim... Por exemplo, um morador da Juréia – parece ignorância isso que eu vou falar – mas um morador da Juréia, picado de cobra, por exemplo, nunca veio a ser tratado num hospital, nunca tomou um soro antiofídico. Era seu Sátiro que cuidava de todos eles que eram picados de cobra e tal. O Dauro foi um deles que foi picado e ficou dias na casa do Seu Sátiro. Ele cuidando e ficou sem sequela nenhuma Então Seu Sátiro tinha lá seus contatos... . P/1 – ... E aí o Dauro que te apresentou fandango...? E quando foi...? R – Foi em Passadinho, lá na casa do Seu Sátiro. Seu Sátiro e a mulher dele sentados no cantinho da sala, eles ficavam observando porque homem e mulher não podiam se tocar durante o baile de fandango, eles dançam passadinho. Era na sala da casa dele, era uma sala de chão batido e tal. E aí o pessoal dançava e ficava no fandango ali, e eu achei tão incrível aquilo Quando eu vi que não era só... Que tinha uma coisa assim, pra gente que mora aqui, da gente se desligar do que é comum e cotidiano da gente. “Ai, coisa de caipira e tal”. E aí quando você começa a ver que o universo é muito maior do que isso... Esse baile que eu presenciei lá na casa do Seu Sátiro, por exemplo, era o que ele chamava de baile de ajutório. É, por exemplo: tem um morador da comunidade que tem uma roça de mandioca, e daí chega na época da colheita, ele junta todo mundo da comunidade, eles vão lá, ajudam a tirar a mandioca, fazem... Todo mundo faz a farinha, e ao invés de ele pagar as pessoas, ele paga com um baile, que é o baile de ajutório. E aí eles fazem o biju, café, cuscuz, tudo com um pouco da farinha que eles fizeram... E aí eles fazem o baile do ajutório... Quando eu comecei a perceber que tinha algo de organização social por trás desse processo do fandango, que não era uma dança simplesmente, que não era uma música simplesmente, mas que tinha todo um contexto: eles dançavam pra São Gonçalo antes do baile – que é o santo dos violeiros... P/1 – … Como que era a dança pra São Gonçalo, você lembra...? R – ...Ah, lembro Eles fazem fila: homem, mulher... Aí coloca uma imagem de São Gonçalo numa mesinha, e aí eles vão fazer a saudação a São Gonçalo, eles vão até a coisa, cumprimentam São Gonçalo, dão a volta e aí já começa o baile aqui, mas primeiro tem a saudação pra São Gonçalo. O passadinho, por exemplo, que eu conheci lá também nessa comunidade pela primeira vez que eu fui, quando eu percebi que tinha um lance, assim: você não convida uma mulher pra dançar, você vai pra roda, bate palma, fica batendo palma em roda e aí as mulheres vão vendo se você tá batendo palma. Se você tá batendo palma é que você tá chamando um par, conforme o seu par vai chegando, você vai parando de bater, porque normalmente eles sabem quem tá sem par pra ir no lugar, depois vira um de frente pro outro e eles começam a trançar assim, arrastando o pé, que tem um som lindo do passadinho Porque a dança ela faz a percussão da música. Então o que é muito legal também é que fica o “ts, ts, ts, ts”. No chão do pessoal dançando. Que mistura com o som da rabeca e da viola. Comecei a descobrir aquilo e eu não acreditava, falei: “Que coisa incrível essa história”. P/1 – ...E você dançava? R – ...Ufa Até seis horas da manhã, sete horas da manhã... E aí o Seu Sátiro ficava, com a mulher dele, a Dona Ana, até o final do baile, sentados numa cadeira vendo, as mulheres não dançavam com as cabeças levantadas, todas as mulheres eram de cabeça baixa dançando, não podiam olhar pro companheiro, pra quem tava dançando... É, tem todo um negócio... E lá na Cachoeira do Guilherme, na Festa de São João que é uma festa que acontece até hoje lá, eles fazem uma grande fogueira, eles sobem o mastro pra São João e depois que a fogueira já tá caída, eles espalham no quintal toda a cinza e eles começam a andar em cima da cinza e em cima da brasa. Descalços Com aquele braseiro no quintal, é um quintalzão enorme, assim Eles espalham toda a brasa, fica aquele chão vermelho e eles começam a andar em cima. Eu falei: “Como é que pode isso aí?”. Parei na beira da roda, assim e fiquei ali: “Não é possível que eu vim até aqui e não vou andar em cima desse negócio”. E fiquei por ali, daqui a pouco já arranquei o sapato, e fiquei tomando coragem, tomando coragem Falei: “Será que vou, será que não vou? Será que vou?”. Daí dali a pouco veio uma menininha... Porque eles fazem uma cruz em cima da brasa. E aí veio uma menininha, tinha uns oito anos, parou do meu lado, assim, terminou a coisa dela e parou do meu lado, eu já suando de vontade de fazer e tal . Aí eu falei assim: “Escuta, não queima?”. E ela falou assim: “É, só você acreditar que não”. Tinha oito anos a menina E eu: “Pá, pá, pá, pá”. Dei a volta e: “Pá, pá, pá, pá”. P/1 – ...E queimou? R – ...Nada Lógico que não Fiquei vermelho embaixo, calor enorme vindo do chão... Sei lá por que não queima Acreditei Muito lega, muito legal E aí o Dauro me apresentou esse mundo E aí foi punk, aí não conseguia fazer outra coisa. Aí veio uns amigos, a gente se juntou, montamos uma associação de apoios... P/1 – ...E seus amigos da escola, eles participavam dessa coisa ou começaram a te tratar diferente...? R – Alguns poucos, porque chega a hora do ir embora pra estudar e essa é uma hora crucial pra uma cidade como essa, porque eles saem pra estudar, a gente sai pra estudar e os que voltam são pouquíssimos Da minha turma dois voltaram. Então eu e mais um outro amigo que é dentista. E já saímos daqui falando que a gente ia voltar. Eu saí daqui de Iguape falando que eu ia voltar, eu tinha absoluta certeza E eu tinha a absoluta certeza de que eu ia voltar P/1 – ...E você fez faculdade do que...? R – Então, eu fiz biologia... P/1 – ...E por que é que você escolheu biologia? R – Acho que encanei e embarquei na coisa... Tava vivendo esse negócio dos moradores da Juréia, tinha um grupo de apoio aos moradores, tava vivendo um pouco esse lance assim... Mas logo depois descobri a questão da história e aí hoje é o meu barato assim... Curto trabalhar essa questão da história... P/1 – E você foi fazer faculdade onde? R – Em Curitiba. A gente saía aqui ou pra ir pra Curitiba ou pra São Paulo. Agora muita gente tá indo pra Santos também. Mas na minha época era mais Curitiba e São Paulo. Eu fui pra Curitiba. A minha esposa foi pra São Paulo. Aí a gente se encontrava, assim... Às vezes eu pegava um ônibus em Curitiba, ia até São Paulo, a gente saía, comia um lanche e eu voltava pra Curitiba – que louco. Eu tava morando em Curitiba e ela São Paulo, ela estudou lá, ela fez biologia também. Ela levou pra frente, é bióloga até hoje, trabalha com isso e tal. Eu não. Eu voltei pra essa questão da produção cultural, sou ator de teatro... P/1 – Voltando aqui um pouco: você disse que você começou... Que ano que era isso quando você tinha 17 anos…? R – Me ajudem, eu nasci em 73... É... 20 anos atrás... P/1 – Como é que eram essas comunidades que viviam na Juréia...? R – Eram enormes E isso é uma coisa louca também: que falam, falam dessa questão da ecologia, do meio-ambiente e tal, e aí todo mundo voltou os olhos pra essa questão ambiental e esqueceram o principal: como é que um ser humano consegue se relacionar com essa natureza sem agredi-la? Ninguém melhor do que os caiçaras pra ensinar isso E ninguém ouviu essas pessoas nesse processo Então instituíram unidades de conservação aqui em Iguape baseadas em modelos norte-americanos... P/1 – ...E em que ano que vieram esses modelos...? R – ...Ah, há 25 anos mais ou menos começou...E de lá pra cá a única coisa que eu ouvi foram as comunidades serem praticamente dizimadas, com eles uma cultura tradicional também, do fandango, da rabeca, da viola... Isso sofreu muito com a saída deles, do meio em que eles viviam, porque aí baile de ajutório, como? Num lugar que não tem roça? Essas pessoas migraram para as periferias das cidades, acabavam vendo seus filhos se envolvendo com droga, coisa que jamais aconteceria dentro da comunidade tradicional, dentro da Juréia Começaram a ter contatos com as igrejas pentecostais... O que, levando em consideração a questão da religiosidade e tudo mais. Mas isso teve um processo difícil também: entre você manter a cultura tradicional dos bailes de fandangos, de rabeca e de viola e tudo mais, como conciliar isso com os ensinamentos pentecostais... Então eu vi comunidades inteiras desaparecerem A Cachoeira do Guilherme que foi essa onde eu conheci Seu Sátiro, onde eu fui apresentado à cultura tradicional pela primeira vez, eu fui lá e era uma comunidade linda, tinha mais ou menos umas 20 famílias morando lá, hoje não tem mais ninguém morando lá Mais ninguém morando lá E essa cultura absolutamente rica que era vivenciada ali, pra onde foi? Como é que ela acabou? Qual foi o preço disso? Manter o ambiente natural, eles mantinham, do mesmo jeito. Eles pescam o covo, o covo tem o tamanho certo de entrada do covo pra eles não pegarem peixe pequeno, só os peixes grandes; as armadilhas que eles fazem, por exemplo, do cerco, eles tem o tamanho certo, os peixes pequenos que entram eles conseguem sair, que são os que vão ser o prato deles de amanhã, e eles sabem muito bem disso Eles tratam a natureza com uma inteligência fora do normal e eles não foram ouvidos nesse processo Esse talvez tenha sido um dos maiores erros no que diz respeito à manutenção do ambiente natural e não ter ouvido quem sempre teve contato com isso e vivenciou isso o tempo inteiro. A relação que eles tem com a caça, por exemplo, o caiçara saía pra caçar, obviamente ele comia e ele caçava. Ele caçava na época certa, ele caçava os machos, não caçavam as fêmeas, porque sabe que a fêmea que vai dar o amanhã... Quer dizer, a relação que eles tem com a natureza é uma coisa absurda E eles não foram ouvidos nesse processo, foram expulsos do meio em que eles viviam sem o menor constrangimento. P/1 – ...Aí, Carlos, você foi fazer biologia e voltou... Você já tinha exercido alguma experiência profissional até então...? R – Então, eu só trabalhava com teatro, também bem jovenzinho, na adolescência... Eu trabalhava com teatro e tal, mas não tinha... P/1 – ...E fazia o que? T – De tudo. . Eu era ator de teatro e tinha um diretor aqui que chamava Roberto Colasso, eu fiz o meu primeiro espetáculo com nove anos de idade, e aí depois fui fazendo outras coisas e tal com ele; fui premiado; montamos alguns espetáculos... Depois teve um grupo chamado Guapê, foi o mais tradicional aqui de Iguape até hoje. E a gente ganhou vários festivais do estado com isso, ganhei três prêmios de melhor ator... Mas aí o dia-a-dia e tal, alguns amigos seguiram, tenho amigos que eram do grupo e hoje são atores profissionais e tal, mas eu não queria sair daqui de jeito nenhum Eu não consigo perceber minha vida sem estar atrelada a esse lugar P/1 – A Iguape? É certeza que você... Quando você não continuou como ator, por que você acha que em algum momento você teria que sair daqui...? R – Ah, eu tinha que sair daqui Eu tinha que sair daqui. Todos os meus amigos que continuaram tiveram que sair daqui, foram pra EAD, tinham que seguir pra frente... P/1 – ...Aí você voltou da faculdade...? R – ...Voltei da faculdade e continuei trabalhando aqui, comecei a trabalhar na prefeitura... P/1 – Trabalhar em que? R – Então, eu comecei na prefeitura já trabalhando como assessor de um diretor de cultura aqui da época justamente por conta do movimento de teatro e tal. E era engraçado que antes a gente geria cultura aqui na cidade, mas a única coisa que a gente falava era de teatro e música, hoje que o leque se ampliou de uma tal forma, hoje a gente tem dois museus aqui na cidade e esses museus cada dia que passa a gente tem que pensar na gerência deles, oferecer um serviço de qualidade... Centro cultural, duas bibliotecas, biblioteca informatizada, casa do patrimônio – aí veio o tombamento federal também... P/1 – ...Mas na época o que é que tinha de equipamento cultural, quando você foi trabalhar como assessor do diretor? R – Não tinha equipamento cultura, tinha o departamento de cultura e todas as coisas que a gente queria fazer a gente fazia na rua. Uma vez a gente quis fazer um festival de teatro aqui em Iguape, e tem a sede das indústrias Matarazzo que ficou abandonada aqui, aquelas de tijolinho que você encontra em vários lugares do estado, aqui tem também. E aí ficava lá fechado e a gente precisava fazer um festival de teatro, não tinha onde, a gente meteu o pé na porta, invadimos o lugar... O juiz da cidade cedeu uns presos aqui da cadeia e eles ajudaram a construir o teatro . A gente comprou o material e os presos iam todo dia lá, a gente ficava junto com os presos e os presos ajudaram a gente a construir o teatro lá dentro: fizemos piso, palco, todo o aparato de palco, os banheiros, e tudo mais. E os presos ajudaram. Cada dia que eles trabalhavam reduzia dois dias da pena. Era ótimo E aí nós construímos um teatro dentro do lugar e fizemos três anos seguidos o festival, até que proibiram a gente de entrar no lugar, a gente foi expulso... Mas tá lá dentro o teatro, até hoje... P/1 – ...E a preservação, quer dizer, a questão do patrimônio histórico daqui, como é que era, já tinha essa conscientização...? R – Não... Não, até hoje... P/1 – ...Como que foi considerado...? R – A gente foi tombado pelo CONDEPHAAT há 30 anos, foi em 69 o tombamento. Entretanto São Paulo tinha um órgão regulador criado, que era o CONDEPHAAT, mas a gestão desse patrimônio não tinha muita importância. São Paulo não se ateve muito ao processo histórico. Você vai estudar a história de São Paulo, eles estão sempre focando na questão do café em diante, e aí a indústria que transformou São Paulo na mega potência do Brasil e tal, mas fala-se muito pouco da importância que São Paulo teve inclusive no início do processo de colonização... Se você pega Iguape, Cananéia, Itanhaém, São Vicente... Foram cidades que tiveram importância fundamental no processo de colonização do Brasil e que São Paulo deixou um pouco de lado eu acho. O estado focou muito a visão pra essa questão da indústria e tudo mais. Então o CONDEPHAAT pouco fez no auxílio à gestão desse patrimônio. Um outro dado que é muito importante é assim: patrimônio, quando ele existe, quando existe um remanescente desse patrimônio, sempre, é fatal, ele está ligado a um período de isolamento econômico. Não existiria remanescente de patrimônio se não tivesse isolamento econômico, porque se não tudo tinha se modificado, tudo tinha se modernizado junto. A nossa história não é diferente disso, então Iguape participou de dois ciclos econômicos: o do ouro e o do arroz. O do ouro de aluvião que foi o primeiro ciclo econômico, logo que a cidade foi fundada, em 1538, a mudança dela pro lugar atual é que é de 1614, e aí se iniciou o ciclo do ouro. Todo, todo ouro que se achava em todos os veios do Ribeira, aqui, desciam até Iguape onde era fundido e mandado pra Coroa. A cidade de Registro, por exemplo, tem o nome de Registro justamente porque ali tinha o posto do registro onde eles registravam exatamente a quantidade de ouro que estava descendo e que ia chegar na casa de fundição aqui pra ser fundido. Logo depois com a descoberta das Gerais: “fuuu”. Todo mundo foi pra lá e houve a primeira baixa aqui na região... Passou-se aí um período de quase 80 anos, entre um e outro, não chegou a 100 anos quando se solidificou de fato, o ciclo do arroz, que foi no finzinho do século XVIII e começo do século XIX, que aí veio o período do arroz que foi o período mais faustoso da cidade. Aí a cidade tinha um porto, teatros na cidade... Todo esse patrimônio que a gente vê construído dos imóveis assobradados são do período do arroz. Uma intervenção que os próprios fazendeiros de arroz fizeram pra diminuir a quantidade de percurso de rio que a produção fazia inviabilizou o porto, fechou o porto, não tinha como... P/1 – ...Mas foram os japoneses que fizeram...? R – Não Os japoneses foram muito depois Isso a gente tá falando de 1850, por aí... Os japoneses vieram depois disso. Foi nosso primeiro ciclo do arroz aqui. E... E aí isolou, como não tinha como escoar a mercadoria, não tinha porque produzir, a cidade, como a região como um todo, começou a entrar em franca decadência econômica. E isolou a região com o resto do estado. Completamente. A gente não tinha mais como se comunicar sequer com o resto do estado. Pra você ter uma idéia, o transporte aqui em Iguape até a década de 50, era feito de trem até Juquiá, as pessoas tinham que ir até Santos, pegar um trem que ia até Juquiá, em Juquiá pegar um vapor que descia o Ribeira até aqui em Iguape. Essa era a única forma de se comunicar com o resto do país. E foi justamente esse período de isolamento que fez com que a gente tivesse hoje uma das maiores faixas contínuas de mata atlântica do mundo preservada E um acervo arquitetônico incrível também preservado Se não fosse esse isolamento esses dois aspectos não teriam. Entretanto, esses dois aspectos estão atrelados a uma baixa estima da população, porque esse período de isolamento também fez com que as pessoas ao longo do tempo fossem criando um certo sentimento derrotista, que tinham que se desligar daqui, que aqui foi um dia, mas não é mais, e nem vai ser mais... Então a gente é criado aqui pra sair, aqui a gente é criado assim: você tem que sair daqui, estudar... P/1 – Você tava dizendo do isolamento... R – ...É, exatamente. De que não rola mais... É assim que a gente é criado aqui: “Então isso daqui acabou, não dá mais certo, vocês tem que ir embora daqui, pra você ser alguma coisa você tem que sair, isso daqui já foi, aqui já teve”... Só que as pessoas não conseguem perceber, ou pelo menos não tiveram essa oportunidade, de que, justamente, isso que foi remanescente nesse período de isolamento, que é o patrimônio arquitetônico, patrimônio cultural absolutamente ainda vivo. Que é a questão das rabecas, das violas, do fandango, das histórias, das histórias de pescador, da pesca, tudo isso que se preservou ao longo desse tempo de isolamento, pode ser hoje vetor de desenvolvimento local. Mas pra gente começar a iniciar esse processo, as pessoas tem que entender isso Hoje nosso grande desafio é fazer justamente que as pessoas entendam isso, antes que outras entendam antes delas e aí o vínculo de perca. Então hoje o nosso trabalho tá sendo voltado pra isso: pra as pessoas entenderem que a sua história e que o seu cotidiano, aquilo que... A comida que pra ele é tão banal, tão... Que é o café de todos os dias... Você vai em um hotel aqui em Iguape hoje, de donos de Iguape, cujos proprietários são de Iguape, ele come o bolo de roda em casa, ele come o biju, cuscuz... Tudo isso que a gente faz que é da culinária tradicional local ele come em casa, só que o café da manhã que ele serve no hotel é com bolo não sei das quantas, é com pão francês... E não serve aquilo porque ele acha que as pessoas não se interessam por aquela comida, eles acham que aquilo ali é coisa de caipira, é coisa que... Que o pessoal que vem de fora quer comer uma coisa... Que pra nós é diferente... Como é que ele vai servir cuscuz pra uma pessoa, biju pra uma pessoa? Uma coisa que a gente come aqui todo dia É justamente isso que a gente tem que começar a despertar nas pessoas P/1 – ...De que maneira? R – ...É louco... Essa falta de vínculo com o cotidiano e com a sua própria história é que a gente tem trabalhado ultimamente. P/1 – Carlinhos, deixa eu voltar um pouco: você entrou, aí pra assessorar o diretor... R – ...Da Secretaria de Cultura, era um faz tudo da Secretaria... P/1 – ...De teatro... Esses três... Aí você ficou quanto tempo nessa função...? R – ...Então, eu fiquei bastante, na verdade eu fiquei pra sempre. (…) É, não parei mais. P/1 – ...E depois disso...? R – Eu virei secretário, há 12 anos... Há 12 anos não, há oito anos. Eu virei secretário. Há 12 anos eu comecei a trabalhar lá na Cultura e aí virei secretário e depois... P/1 – ...Como é que foi o convite, como é que você virou secretário? R – Então, foi legal porque a pessoa que tava como secretário de cultura tinha acabado de sair pra ir embora e tal e aí vieram me fazer esse convite. P/1 – ...Quem vieram? R – O prefeito da época. Eu inventava umas coisas... Eu fiz uma procissão do Bom Jesus de Iguape em São Paulo, na Avenida São João, do Largo do Paissandu até o Parque da Água Branca . O Bom Jesus de Iguape, puxado por seis juntas de boi e tal, paramos a São João, carro de polícia, as pessoas lá no Minhocão lá abanando lencinho... Foi uma maluquice E eu tava sempre envolvido nesse processo. E aí me convidaram pra fazer parte, e naquela época que eu assumi, eu lembro que ainda tava muito vinculada essa questão... A gente não pensava em patrimônio, não pensava em preservação de patrimônio, a gente pensava em formação cultural, trabalho de trazer novas linguagens, teatro e vídeo e não sei o que... E tava esquecendo e isso aconteceu há mais ou menos cinco anos, a exatos cinco anos, e a gente trabalhou essa questão da formação cultural até então. Há cinco anos atrás uma professora me ligou que queria trazer uns alunos pra que eu falasse um pouco sobre o centro histórico pra esses alunos. E aí veio um grupo do Rocil, que é um bairro aqui do lado da cidade, que é só separado pelo Valo Grande, que foi esse canal que foi aberto artificialmente e tal. E ele veio. Eram 37 alunos, se não me engano, pra dentro da igreja do Bom Jesus, da basílica. Lá eu vi que eles estavam fascinados pelo lugar, eu comecei a falar um pouco da história, da fundação da cidade e tal, levei eles lá pra dentro da basílica pra apresentar imagem de Nossa Senhora das Neves – porque o primeiro nome de Iguape foi Vila Ipéia, de Nossa Senhora das Neves, pra mostrar imagem de Nossa Senhora das Neves e eu vi que eles estavam fascinados pelo lugar e eu perguntei: “Quantos de vocês nasceram aqui?”. Todos tinham nascido Acho que com uma exceção, o resto, todos tinham nascido aqui na cidade. Eles tinham mais ou menos entre 13 e 14 anos. “Quantos de vocês já entraram aqui na basílica?”. Quatro levantaram o braço. Aí eu falei: “O que é que a gente tá fazendo?”. Trazendo oficina de teatro, dança, de não sei o que, e eles não sabem quem eles são, eles não tem vínculo com a sua própria história, eles não tem a menor idéia de quem eles são Então, aí eu comecei a conversar com os professores, perguntando se eles falavam, abordavam esse assunto em sala, aí ela falou: “Ai, Carlinhos, a gente até fazia, mas eu pedia, por exemplo, um trabalho sobre Iguape, sobre a fundação de Iguape pra um aluno, voltava um falando que o fundador era o Bacharel Comes Fernandes, outro falava que o fundador era Eduardo Ebano Pereira, aí chegava outro e falava que o fundador era o Guilherme Young”. Então a professora ficava maluca, ela não tinha um material de referência em que ela pudesse se basear, vinham todas as informações... Era uma loucura Então a cidade não tinha vínculo com sua história e isso tava se perdendo a cada dia que passava. Aí eu falei: “Para tudo Vamos mais lá pra trás”. Foi quando surgiu a idéia de fazer aquele livro, que direcionasse, que pelo menos uniformizasse... P/1 – ...E que livro é esse...? R – É um livro que eu organizei... Comecei a pegar... Eu peguei textos que tinham sido publicados... Todos eles resultado de pesquisa séria, Maria Cristina Scatamachi, Roberto Forbes, pessoas que estavam ligados ao instituto histórico e geográfico, tinham diversas publicações... Comecei a reunir esse material e delineei um processo assim que desse uma direção pra os professores que desse mais propriedade pra eles em sala de aula. E aí que a gente começou o processo pra se conhecer, pra se entender... Começaram a surgir coisas incríveis a partir daí, não só do que acontecia na sala, mas das pessoas que começaram a perceber esse processo acontecendo na cidade... Foi aí que o IPHAAN se aproximou e foi aí que a gente conseguiu desenvolver com o IPHAAN um processo participativo do inventário do patrimônio que resultou no tombamento da cidade em prazo recorde dentro da instituição E hoje a gente já tá no PAC das cidades históricas A gente já tem quatro obras de restauro em andamento; gente já tem treinamento dos professores pra trabalhar com o patrimônio cultural; a gente já tá treinando monitores locais pra fazer um roteiro sensorial com os moradores pra eles redescobrirem o patrimônio; ou pelo menos perceberem o patrimônio... P/1 – ...O que é roteiro sensorial...? R – É utilizar os sentidos: o olfato, o paladar, visão, tato... Com os moradores pra que eles revejam o seu patrimônio de outra forma. Aquilo que pra eles é tão comum, que eles comecem a perceber detalhes que eles não tinham percebido e que isso inicie um processo de relação diferente com aquele imóvel. E o roteiro sensorial ajuda bastante nesse processo Vocês que estão aqui, eu acho que vão contribuir muito pra esse processo também Então o grande barato hoje é a gente restabelecer esse vínculo entre o morador com o seu processo histórico, com a sua história e com a história da cidade. Pra que eles entendam que isso é um produto, que isso é o diferencial, que é o que faz a gente ser diferente de qualquer outra pessoa e que isso possa ser elemento de desenvolvimento local, desenvolvimento pessoal. E eu acho que aos poucos isso tá acontecendo, a gente chamava logo no começo uma audiência pública pra tratar de patrimônio não vinha ninguém A gente ia na casa das pessoas chamar: “Pô, vamos lá A gente vai falar disso e tal”... (pausa). Hoje a gente marca alguma coisa assim e chapa Todo mundo quer saber Hoje as pessoas vem aqui e procuram saber sobre isso... Se alguém tá mudando uma porta, uma janela, vem o vizinho: “Olha, tá fazendo, já falei pra ele, mas não adianta, tem que ir lá, fazer alguma coisa”. Quer dizer, eles estão se envolvendo nisso, eles estão aos poucos percebendo que toda essa tristeza, todo esse ranço que as pessoas tinham com o patrimônio e com a história da cidade por conta da decadência econômica pode se reverter num outro processo a partir de agora. P/1 – ...O que é que mudou dessa decadência pra cá na forma de recursos mesmo, investimentos na região? R – O Vale do Ribeira tá sendo descoberto pela administração pública agora. Até essa última eleição, por exemplo, o Vale do Ribeira não elegia um deputado, a gente não tinha um deputado. Então não tinha quem nos representasse Então você vê: o Vale do Paraíba, as cidades indo todas... E o Vale do Ribeira tava sempre isolado E eles mantinham um discurso horroroso, assim, que fez com que os moradores daqui incutissem isso como se fosse verdade absoluta: “Ah, porque o Vale do Ribeira é a região mais pobre do estado de São Paulo”. “Porque é uma região pobre”. “Porque é uma região pobre, pobre, pobre”. E isso vinculou de um jeito na cabeça das pessoas que elas realmente acham que elas moram num lugar pobre. Você viu no tempo... Ou você pode passar o tempo que você quiser aqui e você não vai ver uma única pessoa passando fome, uma única pessoa dormindo embaixo da ponte... Que lugar pobre é esse que as pessoas não passam fome? Onde as pessoas ainda tem uma educação absolutamente solidária que elas vão fazer a farinha e elas separam o saco pra levar na casa de quem está doente e quem não pode farinhar naquele mês...? Que região pobre é essa? De onde parte esse parâmetro do que é pobreza e do que é modo diferente de vida? Então... E as pessoas tem essa coisa... Você vê vários filhos de pescadores querendo sair daqui da cidade porque acham que vivem na região pobre, porque ouviram isso e falaram isso pra ele, que essa região é pobre e tal... E saem daqui, poderiam estar pescando e recebendo 800 reais por mês, que é o que um pescador ganha em média e 800 reais a mil reais por mês... E aí eles fazem um cursinho desses de segurança, vão trabalhar em porta de boate de periferia de grande cidade pra ganhar 800 reais por mês. Só pra não ficar naquele lugar: “Ah, sou filho de pescador, sou pobre...”. É justamente essa realidade que a gente tem que tentar trabalhar e mostrar pra as pessoas que tá todo mundo enganado Que a gente precisa rever esse conceito e que qualidade de vida é uma coisa e pobreza é outra P/1 – Bom, vou voltar um pouco: com quantos anos você casou? R – Então, casei aos 19 anos (…). Casei aos 19 anos... Eu sou amigo dela de pequenininho, a gente brincava de procissão... Ela era uma das meninas que ia lá chorando atrás... Enquanto eu e mais três amigos iamos carregando o andor ... Ela era uma das meninas que ia atrás rezando e tal... E a gente era amigo de infância, pequenos... Aí a gente foi namoradinho naquela época, dava presentinho no dia dos namorados e tal. Aí cada um foi viver a vida pra um lugar e tal. Ela saiu daqui antes de mim, ela foi pra São Paulo estudar antes de mim e aí quando eu fui, a gente começou a voltar a falar novamente: “Ah, não sei o que”... Se encontrava aqui nos finais de semana ou nos feriados em que a gente vinha pra cá. E aí a gente começou a namorar, seis meses de namoro e ela tava grávida... Ela ficou grávida e eu tenho uma filha hoje que vai fazer 17 anos em março. Depois tive um filho de seis também, que é do mesmo casamento Porque as pessoas falam: “Um filho de 17, agora um filho de seis, por que isso? Segundo casamento?”. Não, é do mesmo casamento E aí agora a gente adotou um molequinho que é o Heitor, que é o nosso mais novo amor da vida . Mais um filho do crack que tava por aí e que agora tá lá em casa. P/1 – É? E como é que é a história da criança? R – É. Ele vem de uma... A gente foi numa instituição fazer uma visita, que a gente sempre comprava peça de tecido, sempre a gente faz isso E a mãe da Karina é costureira então ela fazia os lençóis e a gente vai doar os lençóis que ela faz. E aí a gente foi na casa da criança, que é uma instituição aqui que abriga crianças que são vítimas de maus tratos ou sem estrutura familiar e tal. E aí chegamos lá e tinha esse bebê lá. E eu enquanto a Karina foi falar, eu grudei na criança, não conseguia desgrudar... E aí a mulher contou que ele era irmão de cinco crianças, quatro tinham sido adotados e ele tinha ficado. Aí falei: “Ah...”. Foi de lá pro fórum, já fomos lá e já viabilizamos os papéis e tudo... É um processo difícil e doloroso, o da adoção, daquela adoção dentro da lei que foi a que a gente resolveu seguir... Mas... E demorado também... Mas hoje ele já tá lá conosco, é o Heitor P/1 – Quantos anos ele tem? R – O Heitor tá com um ano e meio. Veio pra gente quando tinha quatro meses. Ele veio como família acolhedora, e aí depois quando ele tava com oito meses ele veio já como filho. E vai ser pra sempre P/1 – Carlinhos, qual que é o seu sonho hoje? Um grande sonho, pequeno, qual que é o seu sonho...? R – Cara, eu queria tanto ver as pessoas aqui felizes Parece bobo isso? Não sei... Mas eu queria tanto que as pessoas acreditassem que é viável morar aqui, morar com qualidade, viver com qualidade nesse lugar Saber que a gente não nasce do nada, sabe? Saber que a gente tem uma história pra contar, saber que a gente pode viver disso, saber que as pessoas podem ser respeitadas, podem viver com simplicidade, podem ser solidárias umas com as outras... Uma coisa meio Madre Teresa de Calcutá. Mas eu não sonho muito mais do que isso: eu não tenho pretensão de ir embora, não tenho a pretensão de sair daqui, eu não tenho pretensão de ficar rico, porque também não precisa ser rico em Iguape, nem ia ter onde gastar dinheiro aqui também Então o que eu queria era viver bem, ver meus filhos com uma infância legal, vivendo aqui... Eles já correm descalços na praça de final de semana... A minha filha várias vezes eu já acordei de domingo ela já tava – eu moro de frente pro rio – então ela já tava com a varinha dela pescando, às vezes volta com peixe pra casa, às vezes não volta... E é isso. E viver legal É isso P/1 – Carlinhos, como é que foi a experiência de contar um pedacinho da sua vida – porque daria pra gente ficar aqui horas – entrevista super rica, mas a gente tem essa limitação, como é que foi essa experiência de contar uns trechos da sua vida...? R – Então, foi ótimo, porque a loucura do dia-a-dia ela faz a gente esquecer um pouquinho da importância desse vínculo com o que a gente é de verdade e com a nossa história, a gente tá sempre fazendo uma coisa aqui, uma coisa ali... Parar um pouquinho e pensar um pouco nesse processo acho que foi bem legal Isso proporciona pra gente um momento de entrar em contato mesmo com quem a gente é de verdade, que a gente esquece às vezes também... Hoje eu falo muito pra os meus filhos isso, assim, de viverem a coisa da forma mais intensa possível. Esse negócio de passar despercebido por aqui não rola Você tem que passar e você tem que marcar Não é possível que alguém venha pra cá e saia daqui sem ter deixado nada pra trás, um legado... Sem ter feito um bem pra alguém, ou sem ter tentado transformar a realidade. Eu acho que o grande barato é isso, é a transformação, é exercitar a convivência e transformar a realidade eu acho que são as coisas mais importantes que a gente tem pra fazer, talvez as mais difíceis também, mas eu acho que são as mais enriquecedoras, assim, e que fazem da gente pessoas de verdade. P/1 – Ah, obrigada Depoimento super bonito, daria pra ficar horas. P/2 – Obrigada...
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