Mulheres na Construção Civil
Entrevista de Sandra Bernardes
Entrevistada por Bruna Oliveira e Genivaldo Cavalcanti Filho
São Paulo, 16 de maio de 2023
Realização: Museu da Pessoa
Entrevista nº MNCC_HV003
Revisada por Genivaldo Cavalcanti Filho
(00:20) P/1 - Sandra, para começar eu queria que você se apresentasse dizendo seu nome completo, a data e o local do seu nascimento.
R - Bom, meu nome é Sandra Regina Alves - Bernardes veio depois do casamento. Eu nasci no dia 29 de abril de 1976, sou taurina, e sou de São Paulo, capital.
(00:40) P/1 - E qual é o nome dos seus pais?
R - Meu pai é Francisco Alves Filho, e a minha mãe, Claudete Nascimento Alves.
(00:49) P/1 - E o que eles faziam?
R - Meu pai era desenhista. Meu pai sempre foi desenhista, projetista, mas de desenhos aleatórios, não de construções. Era outro tipo de desenho, mais voltado para engenharia mecânica. E a minha mãe sempre foi dona de casa e tricoteira. Minha mãe tinha uma máquina de fazer tricô, então ela tinha um carrinho que ficava fazendo para lá e pra cá. Era o que ela fazia enquanto a gente estava na escola.
(01:20) P/1 - E você sabe como eles se conheceram?
R - Olha, se eu não me engano foi em um baile [em] São Miguel, eles eram de lá. Tinha o baile da Nitroquímica - olha, para quem tem essa lembrança… Era um espaço que era uma fábrica; próximo à fábrica as pessoas moravam ali e tinham um baile dentro de um espaço que eles tinham lá. Eles se conheceram no baile, aí começaram a flertar, namoraram e ficaram pouco tempo… Eu lembro que a minha mãe comenta que foi pouco tempo assim, não teve aquilo: “Ficaram três anos namorando”. Não, eu acho que foi sucinto. Conheceu, namorou, noivou, casou.
(02:03) P/1 - E como você os descreveria?
R - A minha mãe é a paz, o meu pai furacão. São muito amáveis, claro, mas a minha mãe, nossa, [é como] Madre Tereza de Calcutá, muito calma, paciente, tranquila. O meu pai, todo agitado, ligado...
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Entrevista de Sandra Bernardes
Entrevistada por Bruna Oliveira e Genivaldo Cavalcanti Filho
São Paulo, 16 de maio de 2023
Realização: Museu da Pessoa
Entrevista nº MNCC_HV003
Revisada por Genivaldo Cavalcanti Filho
(00:20) P/1 - Sandra, para começar eu queria que você se apresentasse dizendo seu nome completo, a data e o local do seu nascimento.
R - Bom, meu nome é Sandra Regina Alves - Bernardes veio depois do casamento. Eu nasci no dia 29 de abril de 1976, sou taurina, e sou de São Paulo, capital.
(00:40) P/1 - E qual é o nome dos seus pais?
R - Meu pai é Francisco Alves Filho, e a minha mãe, Claudete Nascimento Alves.
(00:49) P/1 - E o que eles faziam?
R - Meu pai era desenhista. Meu pai sempre foi desenhista, projetista, mas de desenhos aleatórios, não de construções. Era outro tipo de desenho, mais voltado para engenharia mecânica. E a minha mãe sempre foi dona de casa e tricoteira. Minha mãe tinha uma máquina de fazer tricô, então ela tinha um carrinho que ficava fazendo para lá e pra cá. Era o que ela fazia enquanto a gente estava na escola.
(01:20) P/1 - E você sabe como eles se conheceram?
R - Olha, se eu não me engano foi em um baile [em] São Miguel, eles eram de lá. Tinha o baile da Nitroquímica - olha, para quem tem essa lembrança… Era um espaço que era uma fábrica; próximo à fábrica as pessoas moravam ali e tinham um baile dentro de um espaço que eles tinham lá. Eles se conheceram no baile, aí começaram a flertar, namoraram e ficaram pouco tempo… Eu lembro que a minha mãe comenta que foi pouco tempo assim, não teve aquilo: “Ficaram três anos namorando”. Não, eu acho que foi sucinto. Conheceu, namorou, noivou, casou.
(02:03) P/1 - E como você os descreveria?
R - A minha mãe é a paz, o meu pai furacão. São muito amáveis, claro, mas a minha mãe, nossa, [é como] Madre Tereza de Calcutá, muito calma, paciente, tranquila. O meu pai, todo agitado, ligado no 2020, ele é todo… Sai atropelando, cai sozinho, o meu pai é assim. Mas [são] pessoas maravilhosas que me fizeram chegar onde eu estou hoje. Eu acredito que muito vem dessa fonte, da família.
(02:46) P/1 - E você tem irmãos?
R - Tenho, o Marcelo. É um pouquinho mais velho do que eu, acho que tem quarenta [anos]. E nós só brigamos porque, afinal, eu sempre fui um menino. Eu sempre era o filho, na verdade eu era a filha mulher que fazia as coisas que o filho deveria fazer e meu irmão não fazia. Eu subia na árvore, corria atrás dos meninos para bater, eu era o oposto, então eu apanhava muito por causa disso, e meu irmão às vezes me protegia: “Não, mãe, não bate, mãe. Chega da bater, está bom.” Eu sempre lembro do meu irmão nessa posição porque ele nunca apanhava, sempre eu.
(03:36) P/1 - E você chegou a conhecer os seus avós?
R - Conheci a minha avó materna, que faleceu há quinze anos - não, nem tanto, [há] menos tempo. Mas ela foi com quem eu convivi.
Meu pai perdeu a mãe quando ele era novo ainda, então eu não tive contato nem com o pai, que já era falecido, nem com essa mãe dele. Mas eu tive avós de criação, que criaram meu pai, então eu tinha duas avós que ajudaram na educação do meu pai. Conheci as duas, mas a que eu tive mais contato direto foi realmente a minha avó Aparecida, que é mãe da minha mãe.
(04:19) P/1 - Você se lembra de alguma história com ela?
R - A minha avó era um doce. Não tinha quem não gostasse da dona Cida, dona Cida era assim, era o recanto de todo mundo. As pessoas passavam na rua e antes de chegar em casa passavam na casa da dona Cida para tomar um cafezinho. A minha avó sempre tinha um café e um chá, para qualquer um, e olha que a vida deles era muito difícil, não era uma coisa assim: “Eu tenho um banquete para te oferecer.” Não, mas ela tinha uma palavra que aconchegava muito, e um chazinho e um cafezinho.
A minha avó sempre foi muito acolhedora. Era um amor de pessoa, muito extrovertida, adorava tocar pandeiro e gaita, e adorava fazer… Os desenhos dela eram uma casinha, um porquinho, umas coisas assim, bem primárias, mas o que me inspira assim muito quando eu penso na minha avó… Ela veio de uma família, de uma história muito difícil, muito triste, porque a mãe dela engravidou do patrão. Ela trabalhava na casa do patrão. Minha avó é de 1922, então provavelmente era na época de 1910, 1915 que a mãe dela trabalhava nessa casa do senhor. Ele era um homem branco, de terras, e tinha uma adega… Não seria adega, onde as pessoas compravam seus mantimentos. Eu não me recordo do nome propício para isso.
P/2 - Empório.
R - Empório, exatamente, alguma coisa assim. Ele engravidou a mãe da minha avó e ela escondeu essa gravidez. Ela foi meio que repudiada, né?
Ela morava numa casinha, no meio do nada, e criou a minha avó. Depois ela engravidou de um casal de gêmeos. Elas moravam nessa casinha de pau a pique, bem velhinha, e ela saiu; deixava as crianças dormindo, os bebês, a lareira acesa, que era o único fogão que eles tinham, e ia trabalhar na casa do senhor. Numa dessas, a casa da minha avó pegou fogo, e matou os dois bebezinhos que estavam dormindo. Então a minha avó trouxe isso, uma lembrança dela de ver a mãe correndo pelo mato, gritando. Olha o desespero da criança! Isso ficou eternizado na memória da minha avó, então a minha avó tinha um medo muito grande de ficar sozinha, de escuro, de coisas que a gente sabia que remetiam a essa história dela, que foi uma história muito triste.
Ela continuou morando nessa casa. Depois ela conheceu meu avô, se casaram, tiveram uma vida muito difícil, e vieram para São Paulo, porque eles eram de Minas, [de] uma cidadezinha chamada Alfenas, que onde hoje tem aquelas furnas, que é o lugar mais visitado. Acho que Capitólio que fica do lado ali, é muito lindo lá, mas a época dela era mais conhecida como Alfenas.
Depois de muito tempo aqui em São Paulo, a minha tia conseguiu conhecer a família desse senhor, que era português, e aí minha avó conheceu o restante das irmãs, que eram todas brancas. A minha avó foi muito aceita; eles sabiam da história, mas não tinham contato, então veio uma história assim, que trouxe a gente a conhecer a família, se reunir em um determinado momento. Uma coisa muito linda. A irmã dela já faleceu, a última irmã que era viva, mas a gente tem contato ainda com esses parentes brancos, que são da família por parte da minha avó, que ela não conheceu. Isso para gente foi um legado muito legal que deixaram, e minha avó era um amor.
(08:38) P/1 - E quando você pensa na sua infância, tem algum cheiro, alguma comida que lembra essa época?
R - A minha avó me ensinava a fazer arroz e matar galinha. Ela me ensinou desde pequenininha, eu tenho essa… Eu era muito mais próxima da minha avó - não que a minha mãe não me desse afeto, carinho, mas é porque a minha mãe às vezes saía e eu ficava muito com a minha avó, então trago muita coisa, muita lembrança dela. Tudo dela era assim. Ela me ensinou a fazer arroz, a galinha que a gente matava, fazia o… Tirava o sangue para poder fazer molho pardo e aqueles negócios todos. Na minha infância eu tenho essa recordação, essa memória de aprender a fazer as coisas de cozinha com a avó.
(09:27) P/1 - Você sabe a história do seu nascimento?
R - Olha, eu lembro vagamente [de] algumas coisas que a minha mãe relata. Na primeira gravidez da minha mãe ela esperava uma menina e veio o Marcelo, mas o Marcelo também foi muito amado, muito querido. Depois a minha mãe engravidou novamente, depois de um ano e meio mais ou menos, e aí veio a Sandra, veio a Sandra esperada. Na minha família, eram os primeiros netos, então a família toda, da parte da minha mãe… Da parte do meu pai já tinha alguns primos, já tinham vindo.
Foi assim, uma gravidez… A minha mãe falava que [foi] tranquila. Ela engordou muito, porque pegou aquele finalzinho de dezembro, calor, verão.
Nasci em uma quinta-feira. Uma coisa muito engraçada que ela me conta… Até hoje eu tenho contato com a Priscila. Eu tenho uma “irmã gêmea”, Priscila, branca; nós nascemos com diferença de cinco minutos uma da outra. Foi no mesmo hospital, no mesmo quarto que ela ficou, e até hoje a gente tem contato. É muito legal, de vez em quando a gente se liga: “Oi, irmã. Tudo bem?“ A irmã branca e a irmã preta, muito bacana.
Quem foi levar a gente nessa época era uma família que era muito amiga da minha mãe. A família da minha mãe sempre foi muito pobre e eles tinham carro, então quem levou foi a Cica. Até hoje a gente tem né, contato. A Cica já é falecida. Ela estava grávida do Anoar, superamigo meu. Hoje não mora aqui em São Paulo, ele mora fora, mas ele é médico legista, uma pessoa super de renome, e os irmãos dele também - a gente ainda tem amizade, ainda me tratam assim: “Aí, bebê! Eu fui te buscar no hospital.” Eu falo: “Gente, fica contando essas coisas que vai revelando a idade. Revela cada vez que você fala “eu fui te buscar no berçário”. As pessoas já falam: “Nossa, se ele foi buscar, ela tem quantos anos?” Então eu falo: “Gente, abafa o caso, não vamos falar sobre esse assunto. Fala que a gente se conheceu [quando] a gente já era mocinho, é melhor.” Mas a gente tem até hoje amizade com essa família.
É muito legal trazer essas coisas, essas histórias de vizinho que hoje em dia a gente já não tem mais. A gente mal sabe quem são nossos vizinhos, né?
(12:00) P/1 - E falando nisso dos seus vizinhos, você lembra da casa onde você passou a infância?
R - Eu lembro vagamente. A gente morava numa travessa da rua principal em São Miguel, que tinha um hospital que ainda existe hoje - Tito Setúbal, se eu não me engano, [é] o nome do hospital. Tinha essa rua principal e a gente morava na paralela, então era próximo da Avenida Marechal Tito e próximo do hospital. Era um local bem movimentado e próximo do trem também - tinha a linha de trem que hoje é [a Estação] São Miguel.
Foi ali a minha infância, mas eu só fiquei até os três anos. Aos quatro anos a gente foi para a onde a minha mãe mora hoje. Minha mãe já está lá há 43 anos.
(12:49) P/1 - E você lembra como era a casa?
R - Dessa casa eu tenho poucas lembranças. Ela ficava numa travessa de uma avenida principal, onde tinha um hospital, que é o hospital que existe ainda hoje, que se chama Tito Setúbal, em São Miguel. Ficava muito próxima também da linha do trem, então ali era uma área nobre, vamos dizer assim, de São Miguel, mas fiquei lá só até meus três anos. Depois fomos para onde a minha mãe mora hoje, que é na Ponte Rasa, e ela mora ali já há 43 anos.
(13:21) P/1 - Como era a Ponte Rasa na época que você se mudou para lá?
R - Nossa, a Ponte Rasa era outra realidade, era nobre. A gente tem até uma história muito bacana de quem vendeu a casa para a gente. Você imagina, para quem morou de aluguel por tanto tempo - meus pais casaram e foram morar de aluguel - e de repente conquistar a primeira casa, que tinha dois dormitórios, tinha garagem, tinha um porão, era uma coisa surreal. É a mesma coisa que eu falar assim: “Estou indo morar na [Avenida] Paulista”.
Da família a minha mãe foi a primeira que conquistou a sua casa própria, então tinha todo… Isso foi muito bacana, apesar de ter ladeira para chegar até a casa da minha mãe. Eu lembro que eu era muito chorona; gente, isso é fato, acho que até hoje, e quando chegava lá na rua, lá embaixo eu já começava a chorar porque eu não queria subir andando, então eu ia no colo da minha mãe. Depois ia para o colo do meu pai, porque eu realmente era pesadinha, e a ladeira era bem puxada, então disso eu lembro nitidamente.
Como a gente tinha sempre festas de final de semana na casa em São Miguel, a gente voltava para ver parentes, chegava no sábado à noite e subia a rua naquele chororô que a Sandra vinha chorando; a Sandra sempre de cara feia. amarrada, chorando.
Mas foi sempre muito bom. A memória que eu tenho, superbacana pra mim também… Ela hoje é uma pessoa em que eu me inspiro muito, a dona Zuleica, que era uma mulher construtora em 1980. Ela não foi para a faculdade de Engenharia porque o pai não permitiu, mas como o pai dela era uma pessoa bem posicionada, era militar bem posicionado, ele pagou professores para que pudessem ensiná-la Engenharia, então ela se formou engenheira fora da faculdade. Ela era bem de vida, então comprou vários terrenos ali na região e começou a construir.
Ela ajudou muito os meus pais nesse primeiro momento de aquisição da casa com documentação, porque meus pais eram leigos, não sabiam o trâmite, como funcionava. Além de vender a casa, ela ainda ajudou os meus pais a fazer todo o trâmite da documentação. Logo em seguida, acho que depois de um ano e pouco, ela vendeu outra casa que foi para a minha avó e para minha tinha, então morávamos todos na mesma rua. Isso foi uma coisa que me marcou muito.
Eu ficava olhando para ela assim… Ela chegava em uns carrões bonitos. Eu sempre fui uma criança muito fora do normal, sempre fui uma criança fora da caixinha para a época, então eu pensava que queria ser cobradora de ônibus, porque o dinheiro iria ficar comigo e consequentemente eu ia ter dinheiro para construir, porque quem construía tinha carro bom, andava bem; eu tinha esse pensamento desde pequena. Acho que foi o que impulsionou muito os meus sonhos que vieram depois, isso é muito legal. Hoje eu dou risada, né, gente? Eu já era uma criança criativa.
(16:36) P/1 - E quais eram as suas brincadeiras favoritas nessa época?
R - Eu sempre fui muito mandona, então eu era a professora, ou a secretária, ou era do consultório. Eu nunca era… Não era a médica, não, era a secretária, porque eu botava ordem nas crianças que iriam ser examinadas, e mandava, mandava muito, então, as vizinhas tinham um certo problema, que quando… A vizinha japonesa - até hoje eles moram lá, é muito engraçado - ela falava assim para mim mãe: “A Sandra bate nas crianças, né?” E eu batia de fato, porque eu sempre fui sargentão. Tinha que ser do meu jeito, “se a brincadeira não for assim eu não brinco”. Isso era muito louco, porque as crianças estavam acostumadas a repartir, eu não, era tudo meu, e não me deixassem brincar pra você ver o que eu fazia!
Meu irmão… Às vezes eu lembro nitidamente. Tinha os carrinhos, eles juntavam todos os amigos da rua e iam brincar de carrinho, posto de gasolina. Meu irmão era o único da rua que tinha aquele trenzinho, o Ferrorama, então os meninos vinham e faziam a garagem inteira como se fosse uma cidade. Que não me deixassem brincar para você ver se eu não destruía tudo; saía quebrando tudo. Sempre fui muito geniosa, sempre causando grandes problemas, por isso que eu apanhava - e muito, não era pouco, não.
(18:05) P/1 - Quando você começou na escola, qual a sua primeira lembrança?
R - Eu chorava. A única lembrança que eu tenho é que eu chorava. A gente perdeu agora, na época da covid, a tia Antonieta, que era a tia que me pegava no portão da escola e que me levava até a sala aos berros, em prantos, chorando, até eu me acostumar com todo aquele trâmite de sair da barra da saia da mãe, de ter a responsabilidade de ir para a escolinha. Lembro que foi um ano inteiro de chororô até a adaptação para a escola começar, então tem algumas fotos que eu estou sempre de cara feia, cara amarrada. Na festa junina eu estava de cara fechada porque eu não queria dançar com a pessoa que eu tinha que dançar.
Eu sempre fui muito assim, não consigo esconder a minha fisionomia. Se eu estou gostando está tudo lindo, se eu não estou gostando eu já fecho a cara, mudo meu semblante, desde pequena. Isso era muito nítido. Tem fotos que o pessoal [dizia:] “Nossa, ela está tão engraçadinha.” Tem fotos que eu estou fantasiada de cara fechada, então se sabe que ali aconteceu alguma coisa que tinha tirado a Sandra do sério.
(19:18) P/1 - E quais eram as suas matérias favoritas, como era na escola, ao decorrer [do tempo]?
R - Olha, eu lembro que eu não gostava muito de estudar, não. Vou falar baixinho, para os meus filhos não saberem que eu não gostava muito de estudar. Eu lembro que passei a gostar mais da escola na juventude, porque aí a gente tinha outros atrativos; não era só a escola, eram os menininhos e tal, então a escola passou a ficar mais interessante. Mas falar assim: “Eu sempre fui estudiosa”... Não.
Eu me lembro que eu chegava - essa lembrança eu tenho - e minha mãe me colocava na mesa da cozinha, [com] a cinta do lado, às vezes era o pano de prato. E lasca, e vai, e o chororô… Eu chorava, não queria fazer lição, e a minha mãe fazendo janta e me batendo porque eu tinha que fazer a lição. Não era aquela criança “eu gosto de estudar, gosto de ler”; mudei muito o conceito depois, mas no primeiro momento não era muito fã, não.
(20:19) P/1 - E tem algum professor, ou professora... Você falou da tia Antonieta…
R - Isso, a tia Antonieta era do Floresta do Pixoxó, que hoje é Colégio Floresta, se eu não me engano. [Tinha] a tia Antonieta, depois tem umas professoras que a gente não esquece, que abraçam, muito carinhosas. Tinha uma professora muito boazinha, acho que era [na] creche, [no] primeiro ano.
Depois, quando a gente passou a ter mais matérias - acho que já era no terceiro ano que tinha mais de uma professora - eu tinha uma professora, Anair, que era negra, mas acho que ela era racista. Todo trabalhinho que eu fazia ela desclassificava, falava mal na frente dos alunos. Depois que eu cresci que eu fui entender que o que ela fazia remetia muito ao racismo, apesar dela ser negra. Era uma coisa incrível, acho que ela não gostava dos alunos negros. A gente tem essas lembranças também, que não são boas, mas ficam na memória.
Teve um professor de matemática, o Clóvis… Misericórdia! Era prova A, B, C, D, na outra fileira era 1,2,3,4, todas as provas diferentes; só ia repetir o A lá na outra mesa, então você não tinha como colar. Ele era muito exigente.
Ele bebia, então chegava cheirando a álcool na sala e fingia que estava no mimeógrafo - tinha um mimeógrafo que você usava álcool, aí ele jogava álcool para a gente achar que o álcool que a gente estava sentindo o cheiro era… Olha, eu falando do professor, denunciando, mas ingenuidade nossa de achar que realmente era o álcool. Ele era alcoólatra.
Infelizmente a gente se dava com algumas coisas em escolas que hoje não são mais permitidas. Hoje a gente tem conselho tutelar, a gente tem um monte de coisa, mas o apagador voava… Tinha bastante coisa, tinha umas réguas grandes, a gente apanhava também. Tinha uma tortura psicológica dentro da sala, mas sobrevivemos. Ninguém morreu por causa disso, mas é muito engraçado essa história do mimeógrafo. A gente ria muito, depois de velho, lembrando: “Mas por que… Por causa do cheiro do álcool, putz, é por isso que ele jogava álcool na mão.” Aí a gente começou a entender aquele processo todo era porque ele bebia e ficava cheirando a álcool.
(23:02) P/1 - Você estava falando que mais tarde [a escola] foi ficando mais legal. Como foi a sua juventude?
R - Ai, eu sempre fui muito sonhadora, então eu sempre sonhava com príncipe encantado e ele nunca veio, essa é a verdade. Ele nunca chegou, mas… Eu não era uma garota bonita, eu era comunicativa, então a minha comunicação fazia com que os outros chegassem até mim para chegar nas minhas amigas. Eu me colocava num posicionamento de patinho feio, mas eu era o elo que ligava as meninas bonitas aos caras legais, então de certa forma eu tinha um reconhecimento, podemos dizer assim, na escola. Todo mundo me procurava porque sabia que chegando em mim conseguia chegar nas fontes. Então, olha como que é, na infância já era a líder, aí você começa a ver… Eu não era a menina mais bonita, mas eu levava os rapazes até as meninas mais bonitas, então sempre fui esse elo de ligação e estava sempre no topo.
(24:23) P/1 - E o que mudou quando você chegou na adolescência?
R - A realidade da vida, né? Sempre fui muito sonhadora. É engraçado, porque eu brincava com meu irmão e falava assim: “No dia que eu tiver uma casa com piscina você vai trabalhar lá, você vai limpar a minha piscina.” E hoje o meu irmão tem uma casa com piscina, então quando ele me convida eu falo: “Mas não é para limpar a piscina, né?” Virou completamente.
De pequena… Pequena não, acho que eu já estava com catorze anos, mais ou menos, a minha mãe passou por um problema de saúde sério. Ela teve trombose e ficou dois ou três meses internada. Isso trouxe a gente para uma vida assim mais real, mais punk, porque foi aquele momento [em que] de repente eu iria perder a minha mãe.
Foi o primeiro momento em que eu vi meu pai chorar, porque homem tem aquela conduta de machão, mas [a situação] pegou todo mundo de surpresa. Foi uma época em que meu pai ficou desempregado, então eu acho que meu pai se viu numa situação desesperadora. Hoje, eu, sendo “pai” de casa, de família, sei como é difícil conseguir pagar suas contas e ter tudo isso que acontece na vida, ter uma rotina de vida.
Eu lembro que minha mãe estava internada e aí eu comecei a fazer comida, fazer almoço; deixava tudo para o meu pai, e meu pai saia para procurar emprego, que não era essa facilidade que a gente tem hoje. Tinha que sair mesmo, pegar filas, era uma coisa mais complicada. Quando meu pai não estava procurando emprego, ele estava no hospital.
Um dia eu entrei no quarto… Não sei, escutei um barulho, entrei no quarto e ele estava chorando. Ele não estava chorando pouco, ele estava chorando muito, aquele choro de soluçar. Aquilo para mim foi um choque, porque até então nunca tinha visto… “Poxa, por que meu pai está chorando? Minha mãe está morrendo ou meu pai está chorando de desespero.”
Você começa a enxergar a vida diferente, começa a ter mais responsabilidade. As coisas já não são mais tão brincadeiras. O choque foi grande, então a gente mudou. Foi aquele momento de virar a chave.
Comecei a trabalhar, minha mãe saiu do hospital graças a Deus, mas era difícil, porque a recuperação era muito difícil, era lenta, dispendiosa. Meus tios ajudaram financeiramente naquele momento, até meu pai arrumar outro emprego, mas eu lembro que foi um momento assim, que realmente foi a virada de chave.
A partir dali eu levei mais a sério os estudos, comecei a ir para o segundo grau. Foi quando eu fiz escola técnica, então eu saí de uma realidade de estudar à tarde para estudar à noite e trabalhar durante o dia. Com catorze, quinze anos a vida mudou.
(27:27) P/1 - Como foi esse momento de assumir mais responsabilidades e também de lidar com o que estava acontecendo dentro da sua casa?
R - Foi bem difícil, porque aí você já estava na puberdade, já tinha as paquerinhas. Minha mãe sempre foi muito rígida em questão de… “É estudo e depois namoro.”
Meu irmão era fofoqueiro, então eu não podia namorar. Era diferente dessa geração, a gente respeitava, ainda respeito muito os meus pais. É uma geração que se preocupa muito com os pais, então eu não fazia nada de errado para não desagradar os meus pais, mas eu já tinha as minhas paquerinhas e não podia trazer para casa.
Era complexo, nesse sentido de tentar administrar tudo fora de casa. Quando você chegava em casa nervosa e todo mundo queria entender por que… Você tinha brigado com o namoradinho, mas não podia falar, então era meio confuso. Confesso que era bem complicado, mas a gente sobreviveu.
(28:38) P/1 - E como foi esse começo, o começo do primeiro trabalho? Onde você trabalhou?
R - Eu trabalhei… Foi bem difícil. Eu comecei a lidar com uma coisa que não aconteceu na minha família, falar um pouquinho sobre preconceito. A minha mãe nunca falou [nisso].
Eu sempre procurei passar pros meus filhos, desde pequenos, que nós somos diferenciados. Nós somos monstros? Não, nós somos negros, isso é uma população diferenciada. Tem coisas que você vai conseguir que tem gente que é branco e não vai te olhar feio, mas tem gente que é branco que vai te olhar feio e você precisa entender, isso se chama preconceito.
Minha mãe nunca me falou sobre preconceito, não tinha essa conversa dentro da minha casa. Lembro que conhecia bons cantores negros de músicas internacionais, porque eu tinha um tio amado que tinha discos, mas não tinha vitrola, então ele ia para casa da minha mãe, levava o disco e usava a vitrola da minha mãe para escutar blues e jazz. Eu apurei a música daí, dessa época do meu tio, mas não se falava de preconceito em mesas.
A gente jantava… Jantar é interessante, né? Todo sábado de manhã a gente tomava café todos juntos, e todas as noites a gente jantava na mesa, nós quatro, mas esse assunto não era abordado.
Quando eu comecei a trabalhar, meu primeiro emprego foi num escritório de advocacia. Na verdade, eu ainda não entendia muito as coisas sobre a vida; acho que a minha mãe entendia, mas acho que tinha medo de falar. Fui por indicação trabalhar com essa advogada; não vou dizer nomes, mas era uma advogada, podemos dizer assim, que trabalhava de uma forma ilegal. O que é trabalhar de uma forma ilegal? Vamos supor, você é meu cliente, mas eu quero ganhar, então eu vou lá e compro a causa, ou eu compro o juiz, faço alguma coisa assim, ilegal. Ela trabalhava desta forma.
Ela sempre me oferecia muitas coisas, me dava as coisas. Nessa época eu já estava namorando com quem eu me casei, com o Sandro, e eu lembro que ela namorava. Ela não era casada, tinha um namorado. Naquela época existia aquela revista Quatro Rodas e as pessoas… A gente fazia coleção de revistas, era assinante de revista. Tinha lá as revistas e ela me dava as coisas, mas na verdade ela já estava barganhando, estava me dando já pensando no que ia fazer no próximo passo. Eu era muito ingênua, nova e ingênua, então eu não poderia imaginar que ela já estava planejando o que ia fazer.
Lembro que quando falei que eu ia sair, ela me trancou na sala e falou para mim que se eu contasse alguma coisa do que acontecia dentro daquele escritório - eu nem poderia imaginar que era tão errado - ela ia me acusar de ter roubado todas as revistas dela. Aquilo eu já entendi assim: meu namorado era branco, ela dava para ele as coisas, mas era eu a pessoa do furto, eu era a pessoa que seria acusada.
Nossa, quando contei para a minha família foi aquele… Todo mundo buxixando. Era racismo, já existia um racismo, no sentido de que era “uma pessoa preta, dentro do meu escritório, que me rouba”. Isso para a família era um escândalo, então a minha mãe me fez prometer que eu jamais contaria nada, e essa advogada me fez deixar tudo que eu tinha escrito, tipo cadernos que eu anotava as coisas. Ela não me deixou levar nada, por quê? Porque ali eu tinha informações que poderiam… Mas a gente era tão bobo que nem ia imaginar que… “Ah, não, vou pegar.” Hoje é diferente. “Vou pegar esse caderno, já estou anotando tudo aqui, porque a hora que eu sair daqui eu vou colocar ela no…” Não existia isso.
Foi o primeiro momento que eu me deparei com o preconceito, com coisas estranhas que aconteciam e ninguém me falava. Não foi legal, não foi um emprego bom, mas me sustentou. Depois eu fui trabalhar com um engenheiro, porque aí eu já era apaixonada por obra, já fazia o curso técnico, entendia um pouco mais. Lá também tinha um advogado, era um escritório de advogado e de engenharia, aí que eu fui conhecendo, fui entendendo o que tinha acontecido, o processo que eu passei. Não foi uma boa recordação. Foi válido como experiência de vida, mas não como recordação.
(33:26) P/1 - E como foi esse momento, de perceber o que tinha acontecido?
R - Você começa a se perguntar: “O que eu fiz? Eu ganhei [as revistas].” Mas era a minha palavra contra a dela, quem tem mais valor na palavra? Uma mulher que é advogada branca, ou uma funcionária preta?
Como ela já fazia as coisas de caso pensado - ela já deveria ter outras coisas que ia me colocar como culpada no julgamento - foi muito frustrante. Para falar a verdade, foi uma decepção, de repente falar assim: “Cara, eu nunca vou ser advogada.” Pelo contrário, eu deveria ter lutado para ser advogada, para representar, para falar: “Você não vai fazer isso com mais ninguém.” Mas eu perdi o gosto, porque ali eu vi o advogado exercer o direito de uma forma errônea, vamos dizer. Então [eu pensei:] “Cara, eu jamais quero ser advogada.”
(34:26) P/2 - E falando sobre o seu curso técnico, como foi a escolha do curso? Tinha uma disputa de alguma outra coisa que você ficou na dúvida? E como foi também a experiência de estudar e de aprender no curso?
R - Olha, o curso técnico foi bem complicado, porque nessa época a gente pensava em concurso público. Tinha da Caixa e do Banco do Brasil. Todo mundo queria ser concursado, então parte da minha família falava que eu precisava estudar para o concurso, e eu tinha uma tia que era enfermeira - ainda viva, não é falecida - e ela falava que eu tinha que ser enfermeira, porque enfermeira dava dinheiro. Era o que tinha para aquele momento, e não precisava de concurso, você já entrava na prefeitura, já [se] efetivava. Mas eu nunca gostei da área da saúde, nunca gostei.
Tinha o Carlos de Campos, o Cacá, a escola que eu estudei no Brás. Eu tinha um vizinho que era professor lá e ele falava: “Vai estudar no Cacá. É escola pública e você vai ter…” Naquela época, era o segundo grau com o técnico junto, então eram quatro anos, mas na verdade não foi aquela escolha de paixão: “Sou apaixonada, vou fazer.” É porque lá tinha vaga.
Eu me inscrevi, fiz o vestibular e passei; não era concorrido, então eu consegui a vaga, tanto que quando eu entrei para fazer Design de Interiores eu achei que era vitrine, que era fazer decoração de vitrine. Nada a ver com o curso, porque ele era voltado para a parte de decoração, para história da arte.
Fui me apaixonando no decorrer dos anos, mas foi muito diferente, porque eu vim de uma cultura de escola que eu estudava das três às sete, que era diferente. Você vai para uma escola técnica, as pessoas são mais velhas, as pessoas fumam, as pessoas se drogam, as pessoas usam banheiro… Os homens que na época… Hoje a gente fala GLBTSPT… É enorme a extensão, eu não gravo, mas naquela época eram gays e eram diferentes. De repente na minha escola tinha um monte e eles usavam o banheiro das mulheres, e eu para mim, horrorizada: “ O que é isso? Não vai usar o banheiro, não.” [Eles respondiam:] “A gente usa o banheiro que a gente quer.” Eles eram de artes, vinham de uma pegada diferente.
Foi um mundo diferente, uma coisa muito louca. Sair de uma vidinha ali e ir para um mundo amplo de pessoas diferentes, de diversidades - essa era a palavra certa, diversidade, porque as pessoas que estavam ali já com mais idade sabiam exatamente o que queriam naquele curso.
Droga não tinha assim… A gente sabia, deduzia quem usava, mas não era aberto. O cigarro sim, [a gente] ia para o bar. Eu estudava à noite, já estava namorando, e meu namorado de vez em quando ia me buscar. As meninas que eram da minha fase iam para o bar. Nossa, eu ficava com uma vontade de ir para o bar, mas eu tinha medo de ir. Queria descobrir coisas, mas eu tinha medo, porque tinha a minha mãe, tinha o meu namorado.
Eu era muito bobinha. Nossa, como eu era bobinha, gente! Eu dou muita risada com as coisas que eu conto hoje.
Tem um profissional super renomado… Ele estudou comigo. Não vou falar o nome dele, não posso falar o nome. Ele sempre brincava comigo, falava: “Nossa, você é muito bonita.” Eu sempre fui uma mulher grande e ‘corpuda’, da raça negra; a gente tem peitos avantajados, quadril avantajado, então isso chamava muita atenção. Um dia ele brincou comigo, falou: “Nossa, você é uma cavala.” E eu, na minha ingenuidade, fui perguntar para o meu namorado o que era isso.
Nossa, meu namorado ficou plantado na porta da escola. “Eu quero saber quem é esse cara, você vai me falar que eu vou pegar ele agora.” E eu: “Mas o que tem? Ele me chamou de potranca, de cavala.” Era muito boba, e já tinha uns dezesseis, dezessete anos.
Foi um mundo assim, muito diferente de onde eu vim, então aquilo foi um.. Nossa, coisas loucas aconteciam no Cacá, mas foi maravilhoso. Foi uma experiência que eu poderia ter curtido mais, não curti tanto porque eu já tinha um namoradinho, então eu tinha hora para ir embora, aquelas coisinhas bobas, de achar que namoradinho é dono de toda a situação. Eu passei por isso também.
(39:11) P/1 - E tinha muitas mulheres que estudavam com você na mesma sala?
R - Tinha, tinha bastante mulheres. Não era uma sala com quarenta alunos, mas vamos colocar aí que 90% eram mulheres. Tinha uns gatos pingados, e esses gatos pingados eram homossexuais.
Lá na ETEC eu conheci também a dona Lourdes, uma senhora que passou por um problema de um relacionamento e aí voltou para a escola. Voltou para estudar, justamente para se afastar um pouco do problema - o marido a envolveu em um triângulo amoroso, então para ocupar a mente ela saiu e voltou para a escola. A gente tinha um amor, um carinho muito grande por ela, e ela cuidava de mim como uma filha.
A gente fazia os trabalhos dela, porque ela não tinha, vamos dizer assim… Não era incompetência, mas nós estávamos um pouquinho mais à frente dela, então a gente conseguia falar mais no trabalho, explicar mais e ela pegava carona. A gente entendia que tudo bem. Hoje isso é mais frequente nas escolas, mas antes isso não era.
Tem um detalhe que eu comecei a falar… Não sei qual o momento em que eu estava falando da minha avó. A minha avó voltou a estudar com 63 anos, se eu não me engano. Minha avó voltou para escola e foi fazer tudo que ela não tinha feito quando era… Então ela fez primeiro grau, depois se formou. A gente foi na formatura dela.
Foi um momento muito importante para ela. Ela saía para a alfabetização, saía de casa à tarde para poder aprender e escrever, porque ela não sabia escrever. Isso é uma coisa…. Eu sempre lembro da minha avó quando eu falo em estudar. Poxa vida, a gente sempre teve oportunidade e não gostava, e a minha avó nunca teve oportunidade. Quando ela teve oportunidade, com mais de sessenta anos, ela abraçou com unhas e dentes e se formou. Foi uma coisa muito bacana, que deixou para gente essa marca, de falar: “Poxa, nunca é tarde para começar.”
(41:18) P/1 - Quando você começou no ensino técnico, seus pais apoiam a sua escolha? Como foi?
R - Meu pai ficou muito… Ficou um luxo só. Por quê? Porque passei a usar o material de desenhista do meu pai - a prancheta, normógrafo, que vocês não vão saber… Pesquisem no Google. O normógrafo, a escala, o escalímetro que a gente usava… Tudo isso para o meu pai era um orgulho.
Eu também não entendia que meu pai era só um projetista e falava que meu pai era engenheiro. Meu pai não era engenheiro, nunca foi; meu pai era desenhista projetista, então ele falava pros meus amigos “Agora minha filha usa minha prancheta.” Era um orgulho só.
Eles me deram incentivo, diferente da minha outra tia, que queria… “Vai tirar sangue.” “Não, tia, pelo amor de Deus!”
Eles começaram a ver a importância… Minha mãe sempre foi animadora de filhos, sobrinhos, afilhados, sempre incentivou. Na época do meu irmão ir para o SENAI a minha mãe correu atrás; minha mãe levou vários primos meus para o SENAI, então sempre foi incentivadora disso. Apesar dela não ter o segundo grau, ela sempre ajudou, sempre teve essa cabeça à frente, que o estudo era muito importante. Inclusive eu tenho um primo, que na verdade é afilhado da minha mãe… Hoje ele está na Austrália e ele sempre fala: “Eu agradeço tudo, devo tudo à minha madrinha, que foi quem me levou para o SENAI, e o SENAI abriu portas, fronteiras.” Então a minha mãe tem esse legado de levar… Isso veio também, está no sangue.
(43:00) P/1 - Você estava falando do seu primeiro emprego, aí eu fiquei curiosa. Antes da gente seguir com as suas próximas experiências, você lembra o que você fez com seu primeiro salário?
R - Poxa vida! Eu ouço uma rádio que de vez em quando eles perguntam e eu não me recordo, mas uma coisa eu lembro que o nosso dinheiro era pros pais. Com certeza eu devo ter trazido para casa, entregado para minha mãe, e ela deve ter me dado alguma coisa para que eu comprasse… Eu lembro que a minha mãe tinha cartão nessa época, e quando eu precisava comprar um tênis… Na nossa época já existia esse tênis. É um tênis de marca, de skatista, esqueci o nome…
P/1 - O Vans?
R - Vans, exatamente! Era caro, sempre foi caro. A minha mãe me emprestava o cartão, ia lá, comprava, e eu pagava as parcelas para ela, em três vezes.
Essa lembrança eu tenho, que o salário era sempre direcionado para a família e a mãe que dava o dinheiro para a gente, então a gente não tinha essa administração de salário integral, isso não acontecia.
(44:14) P/1 - E como seguiu a sua carreira? Depois desse primeiro emprego teve o emprego com o engenheiro, não é?
R - Isso, o engenheiro. Aí eu já estava estagiando, eu precisava estagiar por conta do segundo grau, mas teve um corte na minha vida nesse momento, que foi o momento em que eu engravidei. Eu estava terminando…
Falava-se por debaixo dos panos de gravidez, mas não falavam o que tinha que fazer, o que não tinha que fazer, o que acontecia, o que não acontecia, então… A minha mãe, eu lembro que… Não lembro quantos anos a gente tinha, sete, oito anos. A minha mãe comprou um livrinho que tinha ilustração da mulher e do homem, do menininho e da menininha era diferente, vinham explicações. O neném não chegava na cegonha, mas não tinha a educação que a gente falava hoje, que seria: “Vou explicar para o meu filho o que é, como funciona, para ele não cometer o erro”, então eu engravidei.
Não tive a primeira relação logo quando comecei a namorar, demorou. Depois de um tempo a gente começou a ter relações e eu engravidei. Eu estava terminando o meu segundo grau e tive que parar para poder ter filho. E aí foi o momento… Eu sempre falo que guardei os meus sonhos na gaveta, porque já tinha mais vontades. Queria morar na praia, queria morar em Ilhabela, mais especificamente, então eu pensava: “Quando eu terminar meu segundo grau, eu vou trabalhar em uma empresa de engenharia no litoral.” Porque era meu sonho, litoral, praia, Ilhabela então, nem se fala. Eu tinha uma prima que morava em São Sebastião, então a gente ia muito para lá; meu encanto, meu sonho era morar lá. Mas, interrompido o sonho, eu engravidei. Foi muito difícil contar pros meus pais porque tem a vergonha de contar para a família o que você fez.
Eu me recordo que peguei o meu exame no dia do velório do meu tio. Cheguei próximo do caixão e chorava muito, chorava horrores, e todo mundo: “Nossa, a gente não sabia como a Sandra era apegada ao tio.” Meus primos vinham, me abraçavam. Na verdade, já era o meu exame Beta HCG que tinha dado positivo e eu estava pensando em como falar aquilo para os meus pais. Foi muito difícil.
Eu lembro que eu chamei a minha madrinha na época - a minha madrinha era um doce de pessoa. Contei primeiro para ela e ela preparou o campo, só que foi assim, meu tio faleceu em agosto, foi tudo muito… Ela foi lá, preparou o campo para depois nós contarmos juntas que eu estava grávida.
Foi um desgosto, bem dizer assim, para minha mãe, porque não era isso que ela queria. Ela queria que a filha se formasse, que a filha fosse encaminhada nos estudos, para depois pensar numa vida, numa família, e eu troquei, trouxe tudo para o antes. Tive que realmente parar tudo que eu fazia.
Foi o momento em que eu não consegui nem ter o gosto da profissão, porque aí eu parei, fui cuidar do filho, e só retornei depois. Eu só fiz estágios na [Rua] Teodoro Sampaio e nesse escritório de engenharia, depois de muito tempo voltei para a escola. Teve essa pausa nesse momento, o editor de vidas fez “tic”, cortou, guardou, para depois voltar.
(48:01) P/1 - E como foi a gravidez?
R - A gravidez, ela é um misto [de sensações], né? Misto porque as minhas amigas estavam tentando faculdade e eu de barriga, não tinha a mesma… Meus planos mudaram, mas eu estava feliz, porque eu estava com a pessoa que eu namorava, a pessoa que eu amava na época.
Foi muito difícil, porque sair da casa dos meus pais, onde eu tinha tudo…. Apesar de que meu marido, nessa época, já trabalhava e arcava com a despesa da família dele, então quando a gente falou para a mãe dele que a gente ia casar, para a mãe dele foi: “Como que eu vou perder o homem que…” Apesar dele ter pai nessa época. O pai dele era presente, mas eles iam perder o homem que sustentava a casa, então a mãe dele escondeu os documentos para ele não casar.
A gente teve toda uma história difícil, desse momento da gravidez e de não ser aceito. A minha mãe o pressionou, falou: “Bom, se não vai casar… Você assume ou você some.” E aí ele: “Não, eu gosto da sua filha, eu quero casar com sua filha.” Mas a gente também não tinha condições financeiras de ter outra casa, e eu lembro que uma dia minha mãe fez uma opção. Ela falou: “Olha, eu sei que nesse momento aconteceu tudo que não era para acontecer. Eu vou te dar duas opções…” Meu pai estava desempregado de novo. “...Ou eu faço o casamento para você do jeito que você quiser, véu, grinalda, igreja, salão, festa, ou eu ajudo vocês a mobiliar a casa.” Não tinha opção, porque meu pai, desempregado… Minha tia teria que, além de tudo, ainda bancar a roupa do meu pai, da minha mãe, então eu falei: “Não, vamos para segunda opção, ser coerente. Você ajuda a gente a mobiliar a casa e a gente vai morar de aluguel.”
Foi muito difícil. Foi uma gravidez desejada, mas não tanto, né? Mas era amado, porque depois que passou tudo, minha mãe começou a mimar… O primeiro neto dos dois lados, tem tudo isso. Primeiro vem a tempestade, depois a bonança. Mas foi muito conturbado, meu marido ainda [ficava] muito com os moleques, os amigos que ficavam no bar; chegava do serviço, ia para o bar, chegava em casa às onze horas da noite.
[Foi] um processo muito difícil. Hoje eu vejo como as mães, as mulheres grávidas cuidam dos seus filhos, e a gente acaba passando tudo para os filhos. Isso é uma grande verdade: o tumulto, a confusão, tudo isso passa para a criança. O André veio com uma sequela de coisas que se fosse hoje a minha gravidez teria sido diferente, se a gente for pensar dessa forma. Mas graças a Deus chegou com vida, cheio de saúde, um bebezão, grande em todos os sentidos. Já era um bebezão gordinho. Foi bem aceito, da forma que Deus permitiu.
(51:05) P/1 - Sandra, e como foi para você voltar para o mercado de trabalho e voltar a estudar?
R - Olha, foi bem complicado, porque eu já estava com meu segundo filho, mas eu dei toda a atenção de mãe. O Guilherme, acho que já estava com onze, doze anos. Eu fui mãe e pai.
Não posso reclamar da vida que meu marido me proporcionou. Ele nos deu uma vida muito boa, porém ele era ausente, porque ele entendia que o trabalho era necessário para poder pagar a melhor escola, o meu carro, o carro dele. A gente tinha uma vida boa, porém ele era ausente, então eu fui mãe e fui pai durante todo esse processo. Ele saía de casa muito cedo, não via os meninos e chegava muito tarde, só no final de semana, que ele não trabalhava, ele encontrava com os meninos.
Eu fui levando assim, conforme a música eu fui indo, cuidando dos meninos. Era inglês, era escola, era judô, aquela vida louca que você chega em casa, pega uma coisa, vai. E durante um tempo eu não tive tempo de pensar na Sandra, essa foi a verdade. Não tive tempo, porque eu era a dona de casa que pensava na minha família e eu tinha que proporcionar… Meu marido tinha que chegar, o jantar tinha que estar pronto, aquelas coisas. Essa foi uma Sandra que às vezes eu desconheço quando olho para trás, mas não me arrependo. Na verdade, não me arrependo porque tudo que eu fiz foi com muito amor, até um determinado momento na minha vida em que eu descobri, podemos dizer assim, uma traição, e aí a chave virou de novo, porque eu dediquei a minha vida toda para o meu marido e para os meus filhos e de repente parece que o mundo desaba na sua cabeça.
Eu não tive muita opção, porque eu não poderia relatar para minha família: “Olha, está acontecendo isso.” Foi uma decisão que eu tive que tomar sozinha, comigo mesma. Eu lembro que contei para uma amiga, foi a única pessoa para quem eu contei. Para todo mundo, se eu fosse falar naquele momento para minha mãe ela ia falar: “Mas você tem uma vida, uma casa, tem seu carro. Seu marido te dá tudo. Fica quieta e finge que não aconteceu nada.” Mas era uma decisão que eu tinha que tomar.
Os meninos eram pequenos… Não pequenos, mas estavam na escola. Não era uma coisa que eu poderia falar assim: “Eu vou tomar uma decisão, vou me separar amanhã. Eu tenho dinheiro para pagar a escola dos meninos.” Não, eu não tinha, todo dinheiro vinha da renda do meu marido, então se eu falasse ali naquele momento “tá bom, então você vai seguir sua vida, eu vou seguir minha vida”, eu ia ter que começar do zero. Precisa ser muito inteligente, precisa ter um sangue muito frio, e isso que eu estou contando aqui não é para me vangloriar disso, muito pelo contrário, é porque é o que acontece com a maioria das mulheres. Você tem que ter muito sangue frio para continuar lidando com a situação, não perder a cabeça e fingir que nada aconteceu. E foi realmente o que eu fiz, não foi fácil.
Eu lembro que tinha noite que eu ia deitar mais cedo que ele para não ter que encontrar com ele na cama. Mais ou menos assim, “na hora que ele for eu já estou dormindo”. Não falei para família, não falei nada, mas tomei uma posição: “Eu preciso voltar a estudar. Cadê a Sandra? O que eu fiz?” Aí eu voltei lá naquele momento em que eu arquivei, que eu falei que teve o editor de vidas; peguei o que eu queria da minha vida. O que eu fiz da minha vida? Cuidei dos meus filhos, agora é a hora de cuidar de mim.
Passei a estudar, e ele assim… Era um relacionamento abusivo, do homem que trabalha, que sai de casa, que a mulher tem que ficar em casa debaixo do braço dele. “Poxa, preciso fazer a unha.” “Hoje não, você não vai gastar dinheiro com unha.” “Preciso arrumar o cabelo.” “Não, você não vai gastar dinheiro com cabelo.” Era um processo abusivo. Eu não o culpo, porque ele vem de um processo que o pai dele era assim, então a gente só herda, a gente só passa pros filhos aquilo que a gente tem.
Hoje, com a minha idade, eu consigo enxergar que tudo que passei foi um processo abusivo. Não falo isso porque eu já estou viúva, porque ele já morreu, mas é porque você amadurece, você consegue entender. Na época eu não tinha entendimento. Ele falava assim para mim: “Eu não vou pagar faculdade para você.” Eu falava “Poxa, mas eu vou voltar a estudar, eu quero voltar a estudar.” Aí eu entrei no SENAI, porque como eu já tinha atuado um pouco como design de interiores, em um dos intervalos eu comecei a trabalhar como designer.
Eu percebia que os pedreiros abusavam muito. Isso foi em 2007, quando eu voltei. Eles te enganam quando você não sabe do processo. Vamos supor, eu tenho uma pia aqui e uma torneira aqui, aí eu falava: “Eu preciso pegar essa torneira aqui e trazer para cá.” Aí vou falar em termos técnicos deles: “A encanação tem que passar pela casa inteira.” “ Mas não precisa, era só quebrar essa parede…” Eles te enganam para ganhar mais, sucessivamente, e eu me senti muito… “Poxa, será que eu não entendo do que eu estou fazendo, não sei conversar? Então eu preciso voltar a estudar.” Aí falei para ele: “Vou voltar.”
Contra a vontade dele, fui pro SENAI. Prestei o cursinho que tinha para a vaga de mestre de obras, era um ano cursando, eu fui a única mulher numa sala com 63 homens, que me abraçaram; eles tinham um carinho muito grande, um respeito muito maior, por ser a única mulher. E eu tinha um diferencial: eu tinha a parte técnica que eles não tinham, eles estavam lá para buscar a parte que eu já tinha conhecimento, e eu vice-versa; eu estava querendo buscar tudo aquilo que eles sabiam de obra e que eu não entendia, então foi o casamento perfeito, foi muito bom.
[Foi] um ano que eu estudei lá, e eu falo que o SENAI me abriu portas, janelas e fronteiras, foi realmente isso que aconteceu. Mas dentro de casa eu vivia no problema, porque meu marido era contra, então todo passo que eu dava ele meio que tentava puxar meu tapete, porque ele não queria saber de eu trabalhar, sair, porque na cabeça dele eu não estaria trazendo financeiramente alguma coisa, eu estaria tirando dele, né?
“Minha mulher vai começar a trabalhar, quem vai fazer a comida?” A gente estava com uma empregada nessa época. “Quem vai cuidar das crianças?” Já tinha a perua que vinha trazer e buscar, a Sandra não precisava estar mais ali nesse período, 24 horas por dia, então eu comecei a criar asas e isso começou a incomodar muito ele.
Confesso que em nenhum momento eu criei asas para falar assim: “Agora eu vou me vingar dele.” Em nenhum momento, eu pensava assim: “Se ele fizer isso de novo, agora eu posso falar para ele ‘pode pegar suas coisas, ou eu vou pegar minhas coisas e eu vou sair.’” Eu já tinha essa certeza, essa certeza para mim estava muito clara, e aí eu não parei mais.
Tive a oportunidade de trabalhar numa construtora. Dessa construtora eu passei para outra, comecei a ganhar dinheiro, comecei a ganhar visibilidade, e não ganhava mais do que ele, porque ele sempre ganhou muito bem, mas eu estava ali no páreo, então isso começou a incomodá-lo. Ele criava todas as dificuldades que podia como marido para que eu largasse o trabalho, e foi justamente nesse momento, em um dos trabalhos que eu estava trabalhando para a AMBEV - na verdade, eu trabalhava para… Eu esqueci! WL, o nome da empresa era WL e prestava serviço para AMBEV. Comecei a trabalhar em rede nacional, então eu fui para Curitiba, fiz várias viagens a trabalho e isso começou a atrapalhar, então ele falou: “Se você quer continuar assim, trabalhando desse jeito, é melhor a gente se separar.”
Foi justamente na época que veio a crise, a crise de 2014, se eu não me engano - a Odebrecht, o escândalo, aí a construção deu uma parada. Saí das obras e pensei… Eu tinha tido um chefe, engenheiro, e ele falou assim para mim, nesse pessoal que eu trabalhava pra AMBEV: “Sandra você já chegou…” - eu era supervisora, já - “no topo. Daqui não tem mais para onde te mandar, então a opção é você fazer Engenharia agora, está na hora de você fazer Engenharia.”
Falei isso para o Sandro: “Sandro, poxa, [ele] me deu o maior incentivo, falou para eu fazer Engenharia. Eu vou continuar na empresa, olha que bacana.” Nossa, ele jogou um balde de água fria. “ Não vai, não vai fazer, eu não vou pagar.” E o André estava entrando na faculdade. Ele falou: “Só vou pagar uma faculdade, que é a do André, e ponto.” E não se discute.
É assim, tem coisas que não dá para você ficar discutindo todo dia toda hora porque você convive com a pessoa. Você está com a pessoa todo dia, quer dizer, você vai viver em conflito, então tinha a hora que você tinha que…. Bandeira branca, estou fingindo que eu estou aceitando, mas eu não aceitava.
Foi quando eu comecei a estudar em casa para o vestibular de uma faculdade chamada FATEC, que era tecnólogo e era de graça. Putz, quando eu vi aquilo… Eu acredito muito no universo, porque quando você joga um negócio para o universo, o universo… Só não enxerga quem não quer. Comentei com um amigo que não ia conseguir fazer faculdade porque não ia conseguir pagar [e ele disse:] “Não, mas eu estudo na FATEC tal, é no Tatuapé” E eu falei: “No Tatuapé, pertinho!” Começou a me dar instruções.
Enquanto as crianças iam para a escola, eu estudava. Prestei vestibular, peguei dinheiro emprestado com a minha mãe porque ele não me deu para eu pagar o vestibular, fui lá, fiz a inscrição. Com o estudo só de casa eu passei para segunda chamada, então eu não estava tão ruim assim, para quem já tinha ficado tanto tempo fora do mercado. Eu já estava com 38 anos. Falei: “Cara, para quem ficou… O André nasceu eu tinha vinte [anos]. Dezoito anos fora do mercado, eu tô bem.” Aí eu comecei a acreditar em mim.
Quando você convive com uma pessoa que não quer que você vá além, ela te coloca para baixo, então você não vê o seu potencial, você não vê quem você é. Você mergulha no mundo dela. Comecei a falar: “Cara, eu sou boa nisso. Estudei sozinha e cheguei até aqui.” Passei a acreditar em mim, a falar: “Tem alguém aqui que eu não conheço. Essa pessoa sou eu. Cara, eu tenho potencial, eu não preciso depender de pessoas. Posso ir lá, agora eu vou sozinha.”
Continuou a mesma ladainha dentro de casa: “Não vou pagar a faculdade.” Aí eu descobri, o universo me mostrou um cursinho próximo da minha casa que era uma alça da Poli, dentro de uma comunidade. “Pô, legal. Poli!” Se a gente for pesquisar, é um dos cursinhos de pré-vestibular mais caros que tem, né? Tem unidade na Avenida Paulista, tem nos melhores lugares. Falei: “Cara, é aqui mesmo."
Fiz um ano, estudei um ano de cursinho gratuito. “Eu vou ou racho agora.”
O mesmo amigo que me incentivou a ir para a faculdade, o Fernando, ele trabalhou comigo. No dia que saiu o resultado, eu não tinha coragem [de olhar], porque eu falei: “Eu não passei.” Só insegurança, aquela insegurança. Aí ele me ligou: “Preta”. Eu: “Oi.” “Você já viu o resultado?” Eu falei: “Não tive coragem.” Eu lembro que eu estava trabalhando esporadicamente numa lojinha, vendia papel de parede. “Fê, eu não tive coragem, não quero ver.” Ele falou: “Tá, então vamos abrir juntos. Você entra aí no computador, eu entro aqui, porque eu já vi o resultado.” Aí eu falei: “Não, mentira!”
Entrei, pesquisei na chamada. Passei em décimo-oitavo lugar. Falei: “Cara, eu não acredito!” Gabaritei inglês, putz! Aquela sensação que você tem de falar: "Agora eu esfrego na cara de todo mundo que achou que eu não tinha competência para isso.” E ao mesmo tempo eu não queria, isso é o suficiente, é para mostrar para mim mesma que eu posso, que eu tenho esse potencial.
Cara, aquilo para mim foi surreal. Ter um filho foi legal, ter o segundo filho foi bom, mas entrar na faculdade foi o êxtase para mim. 39 anos [e] eu embarcando numa nova jornada, em um momento que eu nem estava acreditando tanto em mim. Mas eu falei: “Eu vou, com fé ou sem fé, com dor…” O pessoal fala: “Vai com dor mesmo.” Fui com dor.
Entendo que poderia ser amor, mas não deixei que ele tomasse conta daquele momento e que tirasse os meus sonhos. “Não, eu vou conseguir fazer aquilo que eu quero.”
Esse momento para mim foi muito importante. Como tudo na vida, teve a benção. Claro que ele foi contra nos primeiros meses em que eu estudava. Fiquei dezenove anos fora da escola. Voltar para um ensino tecnólogo, puxado para caramba… FATEC é puxado, é uma mini-USP, e você tem que aprender um monte de coisa. Teve momentos que ele chegou a falar assim para mim: “Ou você tem problema ou você é burra, porque você não consegue entender o que o professor está passando.”
Eu chegava da faculdade, estudava, eu comia livro. Fazia o meu dever de mulher dentro de casa, dona de casa, comida, roupa lavada, mas era assim meu processo: estudava de manhã, chegava por volta de uma hora em casa; estuda, estuda, estuda até o horário da janta, servia a janta. [Era] muito complicado, quando você não tem apoio.
Uma semana antes dele falecer… Alguns dias antes dele falecer ele falou para mim… Eu falei para ele que ia fazer um anel, esse anel aqui. Eu tinha pedido para ele, se ele permitia que eu pagasse a minha aliança de casada, derretesse numa loja específica, não qualquer loja, para mandar fazer uma aliança de faculdade. Ele falou que poderia, aí falou para mim: “Mas não vai ser uma aliança ou um anel que vai fazer você se tornar uma pessoa boa naquilo que você faz. Você é dedicada, você já chegou até aqui, então daqui para frente eu tenho certeza que você vai ser uma excelente profissional." Ele já estava internado nesse momento.
Ele deve ter falado no final de semana; na terça-feira foi a minha formatura. Uma semana depois da minha formatura ele faleceu.
Olhando para trás, eu digo isso: a gente sempre tem que voltar para trás para não ficar se lamentando. Para gente enxergar de onde a gente saiu, onde a gente chegou. Aquele foi o momento que eu fiz isso. Eu falei: “Poxa, se eu não tivesse insistido, se eu não tivesse entrado na faculdade, hoje o que seria de mim?” Eu já estava com 42 anos. “O que seria de mim sem eu ter feito o que eu fiz? O esforço que eu fiz?” Muita coisa leva a gente a desacreditar e depois passar a acreditar de novo e falar: “Cara, é Deus. Não tem outra explicação.” Porque está escrito, ele já sabia o que ia acontecer, então se realmente eu não me esforçasse para chegar onde eu cheguei, eu estaria talvez cursando uma faculdade agora. Graças a Deus, eu já cursei e já estou na segunda. Isso é muito importante.
(01:08:15) P/1 - O que mudou dentro da Sandra naquele momento?
R - Mudou muita coisa. A gente quebra aquela crendice de achar que a mulher casou para cuidar do homem, para ser a mãe do cara, do marido, ter hora para comer… Cara, não é sobre isso.
Hoje eu tenho uma visão totalmente diferente do que é o amor, tenho uma visão completamente diferente do que é o companheirismo, do trazer junto, “vamos trabalhar juntos”. Na verdade, no meu casamento a gente estava em avenidas opostas. Eu estava indo, ele estava voltando, ou vice-versa; não estávamos na mesma sintonia. Mas isso dentro de uma religião, dentro de um padrão: é óbvio, ele tem que sair para ir atrás da comida, trazer para casa, e você fica dentro de casa. Não é isso, né?
A faculdade me ajudou também a ampliar muito os horizontes, a querer pedir a separação. Eu pedi a separação, não pelo… Não estava esnobando, “agora sou dona do meu nariz, vou fazer o que eu quero.” Não, é porque eu estava enxergando que aquilo não é saudável. Comecei a enxergar que eu vivia em uma prisão, que aquilo tudo era do jeito que ele queria, e que era, de certa forma…. A gente já falou sobre isso, são essas mulheres que vivem em função de um homem e acham que aquilo é normal.
Não tenho que servir aos homens. É diferente, você precisa entender para dar o próximo passo. Nesse próximo passo que eu estava dando, pedindo a separação, eu estava consciente daquilo que eu estava fazendo, de todo o problema psicológico que eu tive dentro do relacionamento. Cara, por isso que a gente vê hoje o tanto de mulheres que não conseguem sair daquilo; elas vêm tão machucadas…
Hoje eu dou aula, sou instrutora para mulheres na área da construção, e é muito mais do que só trazê-la para aprender. A gente tem aquele momento de entender o que aconteceu na sua vida, e de falar para ela: “Você não está sozinha. Você não foi a única, eu também passei por isso.” Sabe, pegar na mão e falar “vamos juntas”, isso faz toda a diferença. Não é tirar a pessoa do problema e trazer para a solução financeira “porque eu vou te arrumar um emprego, vou te encher a barriga, você vai conseguir…” Não, tem outras coisas, não é só isso para ela fazer isso acontecer. Precisa ser resolvido, são problemas pequenos de abuso.
Graças a Deus eu não tive… Não posso falar daquilo que eu não passei. Mas posso falar que é difícil porque hoje a gente conversa com mulheres que vivem isso, que [o abuso] veio de dentro do próprio lar, de tio, de pai; [elas] carregaram isso e quando acharam uma pessoa, um marido, acharam que o problema ia acabar ali; na verdade, foi o pior momento do abuso, foi ali, dentro de casa.
É muito difícil lidar com tudo isso e falar, porque as mulheres, às vezes, não é… Elas pensam que porque você veio de uma cultura diferente… Tá, eu vim de uma cultura diferente, mas eu passei pelos mesmos problemas que você; de forma diferente, mas eu passei. Eu também tenho, dentro de mim, em algum lugar, marcas e cicatrizes que a vida fez.
Chorar vai resolver? Não, o que eu tenho que fazer é lembrar que elas existiram em algum momento. Vamos falar de escravidão, das cicatrizes que os nossos antepassados tiveram pelos chicotes, pelas chibatas. Em nenhum momento [elas] fizeram com que eles se entregassem àquilo, era um aprendizado. Para um branco era um aprendizado, era diferente do que era para um negro, e nós nos fortalecemos naquela chibatada, a cada chibatada que dava. Eu entendo que a minha vida foi assim: a cada tombo que eu levava, do próprio cônjuge, era uma forma de eu me reerguer e dar o próximo passo. É uma dor que é diferente para mim, é diferente para Bruna, é diferente para você, todo mundo tem uma dor que às vezes não consegue lidar naquele momento, mas é um trampolim para você sair dali e passar para a próxima fase, e acho que foi isso que eu consegui, graças a Deus.
(01:13:15) P/1 - Em que momento começa a Design e Conforto?
R - Olha, Design e Conforto é um sonho que eu tinha. A gente viajava bastante para a praia, para o litoral no final de semana. Tinha uma loja muito grande lá e ela realmente se chamava Design e Conforto. Era uma loja muito gostosa, em que você se sentia confortável dentro do ambiente. Eu ficava pensando: “Nossa, um dia eu vou ter uma empresa para chamar Design e Conforto.” Ela nasceu dessa vontade de ter alguma coisa, e eu sempre pensava: “Nossa, o Sandro trabalhando naquilo que ele trabalha… Eu posso ter um outro serviço, uma loja, alguma coisa que…” Eu sempre tinha esse sonho, mas nunca podia imaginar que ia ser na área da construção, como é hoje.
Hoje eu fico muito feliz em dizer que eu consegui ter a Design e Conforto, para trazer conforto para os nossos clientes, trazer exatamente aquilo que eu me propus a fazer.
Em um determinado momento eu falei: “Além disso tudo que é a Design e Conforto, eu quero ter os três pilares”, que são o social, sustentabilidade, e a parte econômica também. O social foi trazer informação, ensinamento, aprendizado para essas pessoas que precisam, que necessitam desse apoio. Baseada nisso, a gente hoje caminha, passo a passo, devagarinho com a Design e Conforto, no nosso ritmo.
A gente entende que poderia, com um bom investimento, estar em um melhor momento, mas como não cai uma folha se não for da vontade de Deus eu acho que a gente está no momento certo, na hora certa. As coisas tendem a acontecer no seu momento propício, no seu momento correto.
(01:15:05) P/1 - E como o seu trabalho funciona hoje em dia?
R - Meu dia é muito louco. Estou às vezes em duas, três obras, colocando a mão na massa, aí à noite eu vou dar aula. De manhã, eu estou na faculdade.
Vamos fazer um resumão assim: acordo geralmente às cinco e meia, seis horas. Tomo meu remédio e vou pro meu banho, porque preciso de um tempo para comer. Meu remédio pede quarenta minutos para comer, então enquanto eu tomo banho, me arrumo, faço as minhas necessidades, meu cafezinho está lá me aguardando para o próximo passo. Tomo meu café e rua.
Depois que eu vou pra rua não volto nunca mais, porque esse é o segundo semestre que eu voltei para a faculdade - já faz quatro anos que eu me formei… Minha primeira formação, como tecnóloga.
Eu entendi que faz quatro anos que o Sandro faleceu e que eu precisava voltar a fazer alguma coisa. Como eu dou aula de instruções de hidráulica para mulheres, não é só mexer com tubulação; você precisa entender a lógica do sistema, como funciona, de onde vem, então preciso passar um conhecimento mais técnico antes de pegar só na tubulação, passar cano, ensinar como se monta. Precisa ter entendimento. Com isso, eu vi a necessidade de trazer mais coisas para essas mulheres, então eu falei: “Eu vou fazer o curso, vou voltar para o curso de tecnólogo em Hidráulica e Saneamento Básico.” Então voltei, então estou no segundo semestre da faculdade, aos 47 anos. Não pretendo parar.
Dali eu vou para a faculdade em alguns dias da semana; optei por estudar só três dias por conta do serviço. Vou para a faculdade, saindo da faculdade vou para a obra. Dependendo do mês… Hoje nós estamos com três obras simultaneamente, então eu tenho equipe em três obras e preciso passar nas obras, por quê? Porque eu sempre peço para os meninos, que me acompanham já há uns anos… O foco deles é o trabalho e o meu foco é trazer o produto, a base, para que não falte serviço para eles. Eles não ficam saindo para comprar material, equipamento, ferramenta, eles me ligam. “Sandra, está precisando de tal material na obra x.”
Tem alguns clientes que fecham comigo a compra do material e tem alguns clientes que não, então preciso solicitar a liberação do processo e ir lá e fazer… E agora estou lembrando que eu não fiz uma compra de uma obra que vai começar amanhã. Detalhe, era para eu ter feito, mas tudo bem, continuando…
É assim a minha vida. Faço todo esse esquema, passo na primeira obra, já administro, dou uma paradinha quando dá para almoçar, quando não dá já vou para outra obra e vou administrando isso durante o dia. Preciso parar para fazer vídeos para contar no nosso canal do instagram o que está acontecendo nas obras, às vezes detalhes técnicos, às vezes responder perguntas. É muito dinâmico, porque às vezes você está no carro, no trânsito, aí você já está respondendo, você já está falando “aconteceu isso e isso”, vou contando o que aconteceu no meu dia a dia para a gente ter um público interessado nas nossas atividades. “Sandra, uma vez por semana tem que fazer vídeo para o canal do YouTube”, então eu tenho que parar tudo que eu faço, ligar uma câmera e ir lá fazer vídeo, eu tenho que produzir vídeo para o nosso canal do YouTube. É muito agitado.
Ainda estou dando aula, então saio das obras, tomo meu cafezinho da tarde, ou janto, dependendo do dia; se não almocei eu procuro jantar, é sempre importante fazer uma refeição no dia, não importa que seja seis, sete horas da noite. Eu sou diabética, então além de tudo tenho que ter um controle daquilo que eu como, do tempo que eu fico sem comer né. [Sou] diabética e hipertensa, então preciso ter esse controle, cuidar de mim mesma. Ninguém vai cuidar de mim se não for eu, então eu preciso estar bem para as aulas que eu ministro à noite.
Nesses intervalos tem os convites, tem o de vocês de estar aqui hoje… Semana passada eu participei de um evento, tem as palestras que eu também gosto de estar, [de] novidade, tem muita tecnologia chegando e a gente precisa estar antenado em tudo. Para eu conversar com o cliente, preciso falar para ele das coisas novas que tem, às vezes as coisas novas nem atendem aquele cliente, mas eu preciso estar embasada em coisas reais, para eu poder passar segurança para o meu cliente.
Então, eu faço tudo isso, a única Sandra. Ainda chego em casa, vou tomar aquele vinho, às vezes morta, cansada, porque eu também ponho a mão na massa. E quando faltam pessoas? Poxa, ontem eu estava em uma obra; não tinha fechado nenhum ajudante para ajudar a fazer a limpeza, o que que a Sandra estava fazendo ontem? Limpando a obra. Não tenho vergonha, tanto que dentro do meu guarda- móvel, o meu carro guarda-roupa, eu tenho uma roupa de sair e uma roupa de obra, porque eu saio de casa com um plano e aí alguma coisa muda e tenho que ir para algum evento. Procuro um lugar para tomar banho, para fazer a minha higiene e vou para o evento, mas as vezes eu tenho que colocar a mão na massa, e não me importo, é o que eu amo fazer.
Se eu pudesse ganhar dinheiro só para filmar, fazer vídeo - adoro fazer vídeo - e ficar só focada nisso, na obra, para mim era um prazer… Dar aula, sabe? Não ter que me preocupar em correr atrás de cliente, em atender o cliente. Gosto disso, mas não é o meu mais gostoso. A minha coisa mais gostosa é ver a obra saindo, é ver a obra acontecendo. Essa é a parte importante.
(01:21:16) P/1 - E você estava comentando que no começo, na Etec, na Fatec, você foi acolhida por vários homens, né?
R - Isso, no SENAI.
(01:21:29) P/1 - E depois, como foi no dia a dia das obras, como foi o acolhimento? Na Design e Conforto, como é o acolhimento?
R - Olha, foi bem complicado. Tive esse carinho todo que eu tive dos meninos, dos professores. Assim que eu saí do Senai, fui de porta em porta pedir serviço, então, porta na cara. “Mulher em obra?” Eu pegava a fila dos operários.
Tinha duas grandes obras aqui em São Paulo acontecendo, o estádio do Corinthians e o templo do Salomão. Eram obras, assim… O que é obra grande? É aquela obra que te enche os olhos, você fala: “Cara, eu preciso trabalhar numa obra dessas para entender o funcionamento de tudo.”
Fui, fiquei na fila. Nas duas vezes que eu estava na fila o engenheiro passou e mandou o segurança me tirar da fila - essa foi do templo do Salomão. Ele perguntou: “O que você quer?” Eu falei: “Eu quero uma vaga para trabalhar.” “Tá, mas para trabalhar onde?" Eu falei “In loco” - a gente fala in loco. “Quero trabalhar dentro da obra.” Ele falou: “Não, você vai trabalhar aqui no escritório." Eu falei “Mas eu não quero, quero trabalhar dentro da obra.”Aí ele: “ Vamos fazer assim: você vai fazer um teste, junto com uma pessoa que trabalha com [Auto]Cad…” Era cadista, aí eu falei para ele: “Eu posso te falar uma coisa? Eu entendo de desenho, eu sei desenhar, só que eu não sou desenhista, projetista. Se sentar um desenhista aqui do meu lado ele vai passar, porque ele tem habilidade e eu não tenho, a minha habilidade é na obra.” “Ah, mas eu não posso deixar uma mulher na obra.” Conclusão: ele decidiu que eu ia ficar assim, ia trabalhar com ele dentro do escritório. Fiz o teste e não passei, óbvio, eu sabia que não ia passar, aí ele [disse]: “Gostei de você, queria tanto que você ficasse trabalhando comigo aqui, dentro do escritório.” Não ia dar certo, pensei, porque não era o que eu queria.
Saí de lá, fui para outra construtora. Consegui serviço como encarregada. “Gato”… “Gato” é terrível, gente, você trabalha sem segurança, sem EPI [equipamento de proteção individual], coisa de louco. Precipício, você está lá em cima, com um pé direito altíssimo, o engenheiro mandando você fazer as coisas, você fazendo…
Enfim, aprendi e fui para a Ambev. Quando eu cheguei na Ambev, existia um supervisor; eu era a encarregada, mas tinha um homem que estava na minha frente, e eram mais ou menos sessenta, oitenta homens - eles tinham turnos. Mas eu estava tranquila, porque tinha uma pessoa que comandava tudo aquilo, só que na sequência ele foi mandado embora, então eu assumi sessenta homens que não gostavam de mim, que mal olhavam na minha cara, para tomar conta.
É onde acontece o divisor de águas, onde a criança chora e a mãe não vê, porque oitenta por cento dos homens que estavam lá eram ex-detentos, já começa por aí, então o assunto com eles era mais embaixo; não tem tempo ruim, é “eu te pego na saída", você tinha que saber lidar.
Eu tive uma professora no SENAI [pequena] desse tamanho assim, chamada Estrelinha. Ela ainda dá aula no SENAI, de vez em quando eu passo lá para levar uma lembrancinha. Ela me ensinou muito sobre gestão de pessoas, e era a única arma que eu tinha para combater aquele problema naquele momento, porque eu não era bem-vinda. Eles eram pedreiros que vieram de obras do pai, que aprenderam com o pai, então não tinha mulher no campo. “[Ela] não vai mandar em mim, mulher nenhuma vai mandar em mim.” Era esse o conceito deles, e na verdade eu não queria mandar, então eu comecei a trabalhar com eles na parte psicológica da coisa, como funciona. A cada semana eu ficava com um.
A empresa [foi] andando, eu estava conseguindo driblar, porque além de tomar conta deles, eu ainda tinha que dar respaldo para empresa, que não ficava dentro da Ambev, ficava fora. Tinha que responder aos engenheiros de lá e conversar com a parte do nível de chefia de dentro da Ambev. Quando tinha reunião era eu que tinha que fazer a reunião com eles para levar para o escritório todos os problemas, então era cacetada de todos os lados: do pessoal da diretoria, do pessoal de dentro do escritório, dos peões.
Na primeira oportunidade, eu falei: “Cara, vai ter que ser um a um.” Chegava em uma equipe, um setor… A Ambev era enorme, gente, ali em Presidente Wilson - acho que agora ela está desativada. Era enorme, então você não conseguia dar conta de todo mundo, e eles se escondiam, uns eram preguiçosos. Tinha um pouquinho trabalhando aqui, você deixava dez; quando você voltava, tinha três trabalhando. E o resto, cadê? E para eu procurar esse povo dentro da Ambev? Então comecei a pedir, comecei a me aliar com as pessoas que eu via que gostavam de mim, que simpatizavam… “Você vai ter que me ajudar, quando você vir que o fulano não está aqui, você me chama no rádio que eu tenho que procurar. Fulano tem que ficar aqui, o setor dele é aqui.” Comecei a pegar no pedreiro: “Olha, o que o senhor está precisando?” Às vezes era uma coisa tão boba… ”Dona Sandra, não tenho dinheiro pro gás. Meu filho está sem comer há dois dias.” “Faz assim, passa lá em cima, no meu escritório. A gente conversa.” O cara não conseguia trabalhar, porque a cabeça… A fome, pensando no filho, pensando em tudo. Não desenvolvia.
Eu não podia fazer isso, era contra a lei. Eu chegava lá: “Quanto é o gás? Tá aqui, o senhor não conta para ninguém. Vai lá, compra o gás do senhor, não precisa voltar. Eu bato o seu cartão.” Cara, eu não podia fazer isso, porque se acontecesse alguma coisa com ele nesse período eu poderia responder por ele, tanto que eu respondi em um processo de outra empresa, que o cara decepou o dedo. É muita responsabilidade, mas eu fazia isso por quê? Porque eu queria trazê-los até mim, e eu consegui, consegui todos, ao ponto de falar assim… No dia que o pessoal da Ambev falou: “A Sandra fez um ótimo trabalho, porém agora ela não vai mais trabalhar aqui. Ela vai para outro lugar”, eles quase fizeram rebelião. “A Sandra não sai daqui.” Eu falei: “Calma, gente. Não é assim que funciona.” Quer dizer, eu consegui mudar aquilo que talvez fosse impossível em um primeiro momento.
[Eles diziam:] “Não abra a boca pra falar mal da dona Sandra. Dona Sandra é uma pessoa legal, bacana.” Ajudei todo mundo, muito mais do que eu imaginava, mas eu não fiz pensando no retorno. Eu fiz pensando na pessoa, na gestão de pessoas, porque a gente só consegue ter um vínculo com a pessoa se a gente quebra o que está distanciando a gente, tenta entender. “Mas peraí, o que eu fiz para você?” “Nada.” “Então vamos trabalhar juntos.” Eu comecei a mostrar para eles que eu era apenas um número e quem trabalhava eram eles, quem me trazia resultados eram eles, não era eu, então quando eu falava deles nas reuniões, quando os engenheiros passavam lá, era sobre eles, não era sobre mim. Sem eles na obra eu não era ninguém. Isso mudou a forma deles enxergarem quem era a Sandra efetivamente lá dentro, então eu me tornei uma florzinha em um jardim que só tinha pedra, né? Eu era essa pessoa.
São histórias, sabe? São histórias, legados de vida que, cara, não têm preço.
(01:29:11) P/1 - E nesse cotidiano você encontrou outras mulheres ou você geralmente sempre foi a única?
R - Não, eu geralmente era a única. Tinha as engenheiras, mas elas trabalhavam no escritório, não passavam pela obra, e elas também não tinham… Elas viam a dinâmica, sempre fui muito elogiada dentro da empresa, mas elas não tinham ‘culhão’. Isso não é para qualquer um, não é para qualquer pessoa falar assim: “Eu sou engenheira, eu vou para a obra.” Não, você precisa ter peito, precisa ter coragem.
Nessa mesma obra teve um funcionário… Na verdade teve duas laranjas podres. Um deles eu dispensei, porque ele me afrontou na frente dos outros funcionários, e eu precisava tomar uma posição, e eu tomei. Falei: “Você pode passar no RH, está dispensado.” E ele falou exatamente isso: “Eu te pego lá fora.” Nesse dia eu tive que sair com segurança da Ambev e ir até uma delegacia com eles, fazer um boletim de ocorrência. O cara estava lá fora, me esperando, então isso não é para qualquer um, sabe? Lidar com isso, com esse processo.
Tem muitas mulheres que até têm vontade. Quando começam a ver o que vão ter que passar, elas voltam, falam: “Não, isso não é para mim.” Foram poucas.
Hoje eu encontro mais mulheres, hoje tem muitas mulheres, algumas ainda com vícios desses homens, de não querer ter parceiras. É engraçado isso, porque a gente fala tanto da sororidade e na verdade não tem. Eu estou aqui para te ajudar, se você quer aprender eu vou te ensinar, se você quer ir para obra eu vou abrir espaço para você, mas eu não vou competir com você de homem para homem, não vou chegar para um cara e falar: “Eu pego esse saco aqui de cinquenta quilos e é isso aí, vamos lá.” Não, eu sou mulher, se você puder me ajudar você vai me ajudar, então você pega o saco de cinquenta que eu pego o de 25, é mais ou menos isso. E a disputa hoje no mercado está para “eu sou mulher, mas aqui dentro da obra eu sou homem, eu vou agir como homem.” Eu não discordo, respeito, mas não aceito isso dentro da Design e Conforto. Nós trabalhamos com homens e trabalhamos com mulheres, sempre em parceria.
Poxa, tem um saco lá que não dá para pegar. A gente pega os meninos, “dá para ajudar?” Às vezes a gente pega em dois, não tem problema, a gente auxilia, mas não é porque eu vou dispensar a mulher, porque a mulher está aqui. Não vou deixar ela fazer, executar, não, eu acho que todo mundo tem o seu melhor para oferecer quando gosta daquilo que faz.
(01:32:01) P/1 - O que eu queria saber é quais foram os primeiros desafios da Design e Conforto?
R - Olha, desafio? Nós tivemos um bem complicado, que foi dentro de uma obra também. Como eu sou PJ [pessoa jurídica], em algumas empresas eu entro como prestadora de serviço e em outras a gente faz parceria com arquitetos. Na WL eu era funcionária, eu estava contratada, e em outra obra eu entrei como PJ.
Nessa obra em questão, voltando a falar de gestão de pessoas, tinha um funcionário em específico, um Zé, que não queria trabalhar, fazia corpo mole. E era por produção, então, vamos supor, se ele não fechasse aquela produção ele não ia receber. O engenheiro chegou em mim e falou: “Fala para aquele fulano que ele está fazendo corpo mole. Vai chegar sexta-feira e ele não vai ter o que receber.” Aí eu fui lá, com meu jeitinho todo, né, mulher de ser: “Zé, é o seguinte, cara. Você precisa melhorar a produção, porque você está um pouco devagar em relação ao pessoal.” Falei o que ele precisava ouvir de forma delicada, eu não falei “você vai ter que trabalhar, você vai ter que…” Não, não impus, só falei para ele que ele precisava melhorar o tempo dele de serviço.
Isso foi umas dez horas da manhã. Quando foi meio-dia o pessoal saiu para almoçar. Quando eu voltei do almoço, à uma, sabe quando você passa e todo mundo fica te olhando? A primeira coisa que a mulher pensa quando está em uma obra é “menstruei”. Todo mundo olhando para você… Falei: “Putz, não senti nada. Será que minha calça está manchada?” Aquela dúvida cruel.
Sempre tem pessoas e pessoas, pessoas que vão te amar e pessoas que vão te odiar; isso você não tem como controlar, na vida é isso. Tinha uma pessoa lá que gostava muito de mim, a gente até se reencontrou agora recentemente, o Zé Milton; uma pessoa maravilhosa, um excelente profissional. Ele viu as minhas dificuldades nesta obra com as pessoas. Ele chegou em mim e falou assim: “Sandra, vamos conversar?” Eu falei: “Vamos.” “Sabe o que que é? É que está um boato aqui na obra que você deu mole para o Zé, o José.” Eu falei: “Como assim eu dei mole para o José?” “É que parece que você foi conversar com ele, né?” Eu falei: “Fui, mas eu fui porque o engenheiro Mário pediu, solicitou que eu falasse isso, isso e isso.” Aí ele falou: “Então, mas ele falou que você foi chamar ele para sair, e é isso que está todo mundo sabendo aqui na obra, que você fez um convite para ele para sair com ele.”
Respirei fundo. A minha vontade era de fazer que nem em inúmeros vídeos que eu vejo, que o pessoal pega a pá e já chega assim, na pazada. Falei: “ Senhor Jesus.” E isso chegou no ouvido do engenheiro, não podia chorar, né? Era aquela história que eu falei, mulheres, crianças, a mulher… Não dá, cara, é a realidade.
Cheguei lá no escritório. O engenheiro falou: “Vou te dar duas opções, amanhã cedo, tá? Você vem mais cedo, já chama o Zé.” Eu falei: “Tá bom.” Eu não sabia, eu imaginava o que ele ia fazer, mas não sabia o poder que ele ia me dar.
No dia seguinte, cheguei e já tinha uma ordem para ele ir pro escritório. Eu falei: “Zé, vai para o escritório que eu também estou indo.” Cheguei lá e o engenheiro falou: “Bom, pela carruagem da história de ontem a dona Sandra foi falar para você isso, isso e isso. Ela falou?” Ele falou: “É, falou.” “Então tá, só que o que chegou aqui para mim é o seguinte, que ela estava te chamando para sair, fez um convite. Ela é casada, ela tem filhos. Acho que o respeito [vem] em primeiro lugar e eu não gostei. Acho que você tem que se retratar para ela, tem que pedir desculpas.”
Ele me pediu desculpas. “Agora, Sandra, você pode mandar ele embora.” Cara, não era aquilo, eu achei que eu poderia contornar, sabe? Mas ele falou: “Não, você agora vai mandar ele embora.” Aí eu falei: “Olha, desculpa, mas diante de tudo…” “Mas eu sou um pai de família…” Aí começam os argumentos. Falei: “Então, mas diante da falta de respeito que aconteceu ontem você está liberado, você não trabalha mais na empresa.”
Cara, aquilo para mim parece que foi assim, o mundo desabando na minha cabeça, porque eu imaginei meu marido naquela situação, sendo mandado embora. Eu não queria, pra mim eu teria conversado com ele ali, a gente teria resolvido e teria sido como um chamado de atenção. Ele foi mandado embora, foi para o RH, aí o engenheiro falou para mim: “[Tem] algumas coisas que acontecem dentro de obra quando tem mulher que você não tem que dar segunda chance. É pá, pum. Fez, levou. Para quê? Para que as outras pessoas comecem a enxergar você com respeito e ver que você é superior. O que você falar aqui é lei, eles não vão questionar, não vão discutir; você falou, está falado, e é isso que vai acontecer.”
Foi meu primeiro momento assim, de tomar decisões que eu não queria naquele momento, mas foi preciso. Foi um aprendizado, então eu não sorrio muito quando eu estou em obra, eu não tenho intimidade, não falo da minha vida, tanto que eu entro séria e saio muda, calada. Falo sobre o trabalho, “vamos conversar do trabalho?”
Hoje, com a minha equipe, tem uma pessoa que trabalha comigo há mais de quatro anos. A gente fala sobre a vida, porque a gente está há muito tempo junto, a gente praticamente fica… Você está muito tempo junto com a pessoa. Mas quando eu conheço outras pessoas que entram na equipe, mal sabem sobre a minha vida e é isso que tem que ser, porque quando você tem que tomar uma decisão, você não vai se apegar pelo sentimento, você simplesmente vai ser coerente e correto naquilo que você está fazendo e nem vai deixar de dormir - [naquela situação] eu fiquei uns dois dias sem dormir, acho.
(01:38:22) P/1 - Tem outras histórias marcantes de algumas obras que você fez?
R - Nessa obra mesmo teve o rapaz que eu comentei aquela história. Está no horário de almoço, não vai… Obra grande é muito complicada, porque você não consegue tomar conta de todo mundo, é que nem na creche. Na creche, o que eles fazem? Eles colocam as crianças todas juntas, porque fica fácil de você tomar conta. Quando é obra grande tem coisa que passa despercebida porque você não está vendo, e você fica circulando praticamente o dia inteiro. E a gente falava: “O caminho mais fácil para o refeitório é esse aqui, não pula.” Porque a gente estava aumentando, ia subir um muro, mas o muro ainda estava curto.
Esse menino fumava, ele usava droga, então acho que ele estava meio anestesiado. Ele resolveu ir por aquele caminho que eu pedia, implorava para ninguém ir. Pois ele foi, e ele estava de aliança - outra coisa que não se pode dentro de obra, não se deve andar nem com adornos; eu mesma não ando com anel, aliança. O único anel que eu uso é a aliança. Ele impulsionou o corpo dele para baixo, a aliança dele enganchou em um prego e decepou o dedo dele. Em questão de minutos.
Você não sabe o que faz, parece que depois, quando cai a ficha, você fala: “Cara, eu não acredito que eu fiz tudo isso.” Aí começou aquela gritaria, e olha daqui, aí todo mundo correu. Estava no horário do almoço, uns corriam para fora, outros corriam para dentro, aí encontramos ele segurando a mão, o sangue jorrando. Corri, pedi para o menino pegar gelo lá no refeitório, coloquei o dedo dele dentro do saco do gelo, enfiei ele dentro do meu carro - outro erro - liguei o pisca alerta e [fomos para o] hospital. Erro, vários erros em cima de erros, mas cara, não dá pra pensar “e agora, o que nós vamos fazer?” Não, é o impulso do que eu vou fazer com qualquer um, e foi o que eu fiz, levei para o hospital.
Não deu mais tempo de colar o dedo [por] questão dos nervos, então decepou mesmo e ele ficou sem o dedo.
Respondi durante três anos… A empresa responde, o engenheiro responde; a construtora respondeu, o engenheiro respondeu, e eu, porque eu era a supervisora. Durante três anos, uma vez por ano a gente tinha que ir na delegacia depor a mesma história. Era só pra cumprimento de lei, mas uma coisa que poxa, quando eu eu saí dessa obra e entrei na Ambev, você não podia subir na minha escada de cinco degraus se você não estivesse com uma… Acho que era PPR, PPRA, se não me engano, que era um documento que tem que ser liberado pelo técnico de segurança. Nada que você podia fazer… Às vezes o serviço não andava porque você não tinha o bendito documento do técnico de segurança do dia, porque não era assim, um dia que valia para a semana; não, cada serviço que tinha que fazer você tinha que ter um documento.
É um aprendizado. Cada coisa que você vai fazendo, você vai aprendendo. Hoje é o que eu passo para as pessoas, para os funcionários - que não são funcionários, são parceiros. Eu não gosto de falar “funcionários”, são os parceiros da Design e Conforto.
Gosto de conversar sobre bebida, os problemas, porque às vezes não é só bebida, às vezes tem problema dentro de casa e você não consegue evoluir na obra. Você está nervoso, vai mexer com ferramentas de corte, ferramentas que põem sua vida em risco, então eu sempre converso muito, eu sempre falo: “Gente, EPI em primeiro lugar.”
Às vezes o pessoal brinca: “A Sandra está fazendo vídeo e está sem EPI”, mas é porque é para mostrar. Tem coisa que você precisa mostrar e você precisa estar… “Olha, é assim que faz.” A luva atrapalha, mas na hora da execução do trabalho eu sou a primeira a cobrar deles o EPI correto para que a gente não tenha problema em obras. Graças a Deus eu não tive, não tivemos nenhum problema com funcionários, ou com colaboradores da Design e Conforto.
(01:42:17) P/1 - Sandra, eu queria saber se tem alguma história de alguma aluna marcante também?
R - Eu tenho tido várias histórias pelo que a gente está fazendo agora. Acho que é importante a gente falar das meninas da Gênesis. A Gênesis é uma ONG na Sé que dá acolhimento para mulheres refugiadas.
É muito engraçado, porque a gente tem preconceito. Eu tenho, você tem, todo mundo tem, e a gente fica às vezes se perguntando… Deus falou que todos nós somos irmãos, e às vezes você para pra pensar: “Mas eu não queria ser irmão daquela pessoa.” Eu sou porque Deus falou, e por que não ajudar? Eu preciso entender.
Sempre critiquei porque o Brasil é um país de portas abertas, entra quem quer, chega e fica quem quer. É meio que uma zona, a bem dizer, né? Você vai para os Estados Unidos e tem que ter um bendito de um documento que vai te dar a entrada, o visto para você entrar ou não. Eles vão decidir se querem você no país deles, mas por que aqui no Brasil é esse negócio, todo mundo vem, todo mundo fica? É complicado para a gente que está aqui entender.
Aconteceu de eu ser chamada por uma amiga assistente social que já trabalhava nesse espaço para levar esse projeto de mulheres pintoras dentro da ONG. Eu fui, sabia que eram mulheres refugiadas, mas eu precisava entender por que são refugiadas, estão aqui. Afeganistão, tinha… Agora não vou lembrar especificamente de cada país, mas tinha da África, Nigéria… No primeiro dia de aula me apresentei, conversei.
Eu gosto de ler bastante; tinha visto um livro que é um filme, que se chama Hotel e dessa mesma época do apartheid eu li um livro de uma mulher que se refugiou dentro de uma banheiro durante esses ataques e ela escreveu um livro depois que saiu - ela conseguiu sobreviver. E eu ficava assim: “Tá, mas isso aconteceu em 1992, gente. Isso aqui foi lá, nós estamos em 2023, está longe, já passou.” Conversando com essas mulheres a gente sempre aprende, quando a gente acha que a gente está indo ensinar é o momento onde você está aprendendo, por isso que a gente tem que estar sempre aberto. Elas começaram a me contar que ainda hoje, em 2022, no ano passado, aconteciam essas coisas entre… É uma guerra que não acaba, é uma guerra em que matam mulheres por elas serem de religiões diferentes, e eles estão usando o mesmo esquema que eu acho que na China, se eu não me engano, usam, que é uma bala para matar a mãe e o filho, para economizar. A criança está no colo, atira pela criança que passa pela mãe, e aí você fala: “Cara, em que mundo nós estamos vivendo? Que século que nós estamos que isso ainda acontece?” Por isso a quantidade de pessoas que vêm de fora para o Brasil.
O Brasil, hoje, eu entendo que ele acolhe, não discrimina quem é você, o que você está fazendo aqui. Eu não escolho quem eu quero, como nosso país vizinho, que escolhe quem vai passar, quem não vai passar. Então é mais do que uma lição, eu quebrei um tabu daquilo que eu achava, que “putz, mas o Brasil, cara, poderia ser diferente, não?” Nós somos diferenciados, né? É uma coisa que eu tenho orgulho de falar, porque hoje eu consigo entender a dor dessas pessoas. Você imaginou ver parentes morrendo, ver filhos, o que você vai fazer? “Preciso sair desse país.” E o único país que está aberto é o Brasil.
Parece que eu mudei a forma de entender e de ver [a imigração]. São mulheres que me emocionam muito quando eu falo. São todas negras, tingidas, muito negras, que cantam uma canção que fala de Deus, e olha que engraçado, porque na minha cabeça, de onde elas vieram, África, um berço da umbanda, um berço do candomblé… E na verdade, elas são evangélicas. Elas cantam, o canto delas parece religioso, mas é da religião delas, falando de Deus. E tudo que elas fazem… Você explica como é a cultura. Elas vão cantando, cantam e trabalham, cantando felizes. E aquilo para mim…
Um dia passei atividades e saí da sala. Quando eu voltei, elas estavam cantando. Eu peguei o celular, fiquei gravando. “Gente, olha que lindo.” Aquilo pegou, me emocionou de uma tal forma!
O que acontece aqui no Brasil é que elas não têm oportunidade. São mulheres que falam três, quatro línguas; a gente não tem essa educação. Não que elas tenham tido educação de escola; não, muitas delas não sabem nem escrever, elas não tiveram essa educação escolar, mas pela situação, pelo país em que elas vivem, elas falam dialeto, falam inglês, espanhol, francês muitas vezes, e estão aprendendo português. Você fala: “Cara, eu vejo nessa mulher uma joia a ser lapidada.” E no Brasil, o preconceito é tão grande que as pessoas não conseguem enxergar que elas podem ser uma peça muito rara dentro de hotéis, dentro de lugares que precisam de um tradutor, de… Não sei, eu vejo e não acontece isso.
Eu me emociono ao falar delas especificamente, porque eu vejo a luta do dia a dia delas. Elas não têm nem oportunidade de sequer passar por entrevista, as portas são fechadas antes mesmo de chegar na entrevista, e isso dói, como dói, porque não querem nem saber do potencial delas, então não é fácil para esse povo estar aqui também. Assim como não foi fácil chegar até aqui, se manter aqui é ainda muito mais difícil, então essas são as mulheres que eu tiro o meu chapéu.
Quando eu dei aula - foi um projeto que nós terminamos com essa primeira etapa; a gente está pensando, planejando para uma segunda etapa - eu falei: “Eu quero estar lá, nesse segundo momento, para ajudar outras que virão a ter essa oportunidade.”
(1:49:15) P/1 - Eu queria saber o que você acha que falta para outras mulheres entrarem na construção civil?
R - Olha, acho que as pessoas contam muita lorota, não tem incentivo… O que acontece? Quando eu preciso pensar que essas mulheres estão vindo de um problema social - e problema social, quando eu falo, não é só entregar uma cesta básica, é um problema muito maior do que só isso. Eu preciso ter horário para deixar minha criança na creche, eu preciso de alguém para buscar a criança na creche, eu preciso ter essa logística, que muitas delas não conseguem com um trabalho fixo - então a gente começou a entender que instruir essas mulheres não vai ser para que elas entrem na construtora, porque a construtora vai me dar tudo: um bom salário, vai me dar uma assistência médica, mas não vai me dar liberdade de horário, e o que essas mulheres precisam é de liberdade de horário. É o que eu sempre falo para elas: “Vocês não podem confundir, vocês têm que ter responsabilidade, então vocês tem que se programar, vamos supor, para ficar no período da manhã com os filhos, levar os filhos às onze, meio-dia para a escolinha, e arrumar um serviço próximo a sua comunidade e que vá render financeiramente. Você vai ajudar o próximo, a ideia também é essa, mas você tem que estar ali, no seu perímetro.”
Se acontece alguma coisa na escolinha, onde está a mãe? Dentro da obra, que ela demorou duas horas para chegar. Até ela chegar aqui para tentar resolver o problema, e nem ela vai conseguir, trabalhando tão distante… As construtoras poderiam fazer meio período para essas mães, né?
Hoje nós trabalhamos com uma ONG, Mulher em construção, em que a visão é justamente essa, viabilizar, de forma… Como a gente pode dizer? Legal que essas mulheres não fiquem no período integral dentro de uma construção, dentro de uma obra, para que elas possam ter o tempo de chegar, sair, levar a criança na escola e pegar de volta. Eles estão tentando aí, coisa de parlamentar, de político, que tem que aprovar.
É um processo, mas eu acho que falta isso, sabe? O olhar de algumas empresas. Porque agora é modinha, a gente está tendo um certo problema com uma empresa, não vou citar nomes, que pediu para a gente selecionar essas mulheres. Essas mulheres foram trabalhar lá, elas são… Como eu vou falar? Estou pensando aqui como é o nome das vaquinhas… Elas são moldadoras, elas passam por um processo que faz parte do concreto. A empresa de concreto vai fornecer concreto para a construtora e eu preciso de testes, que a gente chama. São testes feitos para a gente provar a durabilidade da resistência daquele concreto, então existe uma empresa que faz esse serviço.
Vamos supor, eu tenho uma construtora aqui. Eu vou comprar o seu concreto e vou contratar a sua empresa para vir fazer o teste. Você vai me mandar o caminhão, você sabe que você tem que mandar nas normas que foram solicitadas pela construtora, e você vai me mandar a sua equipe para poder fazer os testes. Vocês dois não tem ligação, porque você vai testar o concreto dele; você tem que ser muito verdadeiro, [dizer] se o concreto dele está de acordo com que eu pedi ou não.
As mulheres aprenderam essa função, estão em obras. Estou fazendo algum ‘catado’ de conversa com essas mulheres… Entraram em oito, estavam em seis; agora, se eu não me engano, estão em quatro. O que acontece? Discriminação dentro da própria construtora, dos homens, que em vez de enxergarem isso como uma coisa positiva, enxergam que elas estão lá para tirar a vaga deles. A ideia não é essa, mas a empresa está preocupada com o número que ela tem que apresentar para a sociedade. “Hoje nós estamos com um tanto de mulheres.” “Tá, mas o que você está fazendo por essas mulheres? É só empregabilidade? Você não dá o respaldo geral?” Não adianta. Se eu não preparar meu campo para trazer as mulheres para cá não vai funcionar e vai acontecer o que está acontecendo, elas vão indo embora, por ‘n’ motivos, e o maior dos motivos é a discriminação, porque as pessoas que atuam dentro da obra acham que elas têm que fazer o mesmo serviço que eles.
O que elas têm que fazer? O teste de… O cara da betoneira vem, descarrega dentro de um carrinho de obra uma quantidade de cimento, e elas colocam dentro de uns tubinhos para fazer os testes, aí esse teste é levado para o laboratório. Não, eles querem que elas façam tudo, que elas carreguem os carrinhos pesados. Os caras ficam dando risada: “ Ah, não, você não quis entrar aqui? Você não quer ser igual a gente? Então você vai fazer tudo que a gente faz.” E não é sobre isso né, eu tenho que ser flexível. Eu não vou perder a vaga de emprego para o cara que está lá, eu tenho que dar oportunidade, só que se eu não levar esse conceito para a empresa nada funciona. É uma engrenagem, tem que encaixar, tem que andar redondo, se não anda trava. Nessa empresa específica está travando, então a gente tem a solução.
A gente consegue enxergar o que tem que ser feito para melhorar, e aí você esbarra lá em cima, no momento em que falam assim: “Não, só preciso de números, só isso que eu quero.” Igual sustentabilidade: “Eu só preciso falar que eu sou sustentável.” “Mas você não recicla?” “Não, eu só preciso falar que eu sou sustentável.” “Não faz sentido.” “Não, mas eu não preciso reciclar, só quero falar que eu falo de sustentabilidade, eu não preciso reciclar.” Então, a gente começa a esbarrar… Sei lá, não é política, mas nas pessoas que estão acostumadas a serem assim, porque o Brasil é assim, porque aí fica… Esse negócio, como a gente pode dizer? Uma liquidez em tudo que se faz, que não tem propósito. Eu só preciso mostrar números. É muito complicado falar sobre isso.
(1:56:11) P/2 - O que que a maternidade representou na sua vida? Como foi para você ser mãe?
R - Amadurecimento, né? A gente chora junto com o filho. As dores que a gente não consegue entender logo no comecinho trouxeram muitas… Eu sempre fui mãe das minhas bonecas, sempre tive bonecas, casinhas, sempre brinquei com isso, então era uma coisa que já fazia parte do meu desejo de ter filhos - talvez não fosse naquele momento. Mas foi muito bom.
Eu percebi uma coisa na minha vida. Não foi programada, nem a [gravidez] do André, nem a do Guilherme, por quê? O André eu acabei engravidando antes do tempo, ok. E o Guilherme a gente estava planejando ainda. A gente falou: “Olha, a gente está saindo de um aluguel, a gente vai para uma casa própria”, então era aquele processo. Só que tivemos a perda do meu cunhado, ele passou por um problema de câncer, foi tudo muito rápido, e nessa loucura de hospital, vai e vem, eu acho que eu esqueci de tomar remédio. Foi bem isso mesmo.
No dia do casamento do meu irmão, eu estava pegando o resultado da gravidez do Guilherme, então também não foi assim… Voltando ao que eu falei, percebi assim: se Deus fosse deixar pela minha vontade eu ia ficar adiando, adiando. “Agora porque não tem casa. Agora a gente tem casa, mas não tem carro. Porque agora não sei o quê.” Entendeu? Aí Deus falou: “Não, vai ser na hora que eu quero, vai ser agora.” Então veio.
Foi maravilhoso, uma oportunidade única. Acho que cada parto é diferente do outro, cada gravidez é diferente, mas me sinto realizada.
(01:58:12) P/2 - E quais são as coisas mais importantes para você hoje em dia?
R - Eu acho que eu vou ser egoísta agora. Sou eu, eu preciso ser mais importante, por quê? Porque os meus pais dependem de mim, os meus filhos dependem de mim, então eu preciso me colocar como a pessoa mais importante. Se eu não estiver bem eu não consigo passar para eles tudo que é necessário, tudo que precisa, tudo que é a base da família.
Os meus pais, graças a Deus, ainda estão bem. Vivem juntos na mesma casa, são casados, mas eu digo assim: aquele momento em que a mãe está passando mal, quem corre? Sou eu, sabe? Precisa resolver alguma coisa. Quem corre? Sou eu. Meus filhos também estão bem, eu ainda moro com o Guilherme, o caçula, mas dor de barriga, quem é [que cuida]? A mãe, então em primeiro [lugar] Deus, em segundo a Sandra, em terceiro a Sandra, e aí a gente parte para família, meus pais e os meus filhos.
(1:59:25) P/2 - E quais são os seus sonhos para o futuro? Pode ser com a Design e conforto, mas também podem ser pessoais.
R - Acho que os dois estão ali, um está junto com o outro. Eu gostaria de poder ajudar muito mais do que eu ajudo. Acho que mesmo ensinando, mesmo pleiteando, chega em um momento que as pessoas não dependem mais de mim; dependem de empresas, muitos dependem de recursos, e eu preciso saber dividir até onde eu posso ir - até onde é o meu limite, até onde é o limite da empresa, da ONG. Mas tenho sonhos ainda da Design e Conforto crescer como empresa, e de repente virar uma grande escola de ensinamentos para mulheres - não focada só em mulheres. Quando eu falo em mulheres, a gente tem que trazer os filhos, porque a mulher está sempre agregada ao filho. A gente traz a mãe e já traz o filho também, para dar um ensinamento para o filho, para dar encaminhamento para o filho, para que os dois possam caminhar juntos.
Esse é o meu sonho, pequenininho, mas quem sabe um dia a gente consiga unir, fazer acontecer tudo isso que eu desejo no meu coração, ajudar sempre.
(2:00:56) P/2 - Vamos para a última pergunta: o que você achou de ter contado a sua história para gente hoje?
R - [Foi] maravilhoso, gente, lembrar de alguns pontos que em alguns momentos a gente esquece. A gente comentou, frisei bastante o momento que eu falei: “Cara, cadê a Sandra?” Sentar comigo mesma e falar “Cadê você? Onde você estava durante todo esse tempo que não apareceu?” Tentar enxergar, não viver a vida do outro; viver o meu eu, viver o que eu desejo para a minha carreira, o que eu desejo para os meus filhos, o que eu desejo daqui para a frente.
Contar um pouco da história é sempre bom, é voltar lá atrás e ver de onde eu saí - ensino fundamental público, FATEC, ser negra, e estar na posição que eu estou hoje. Eu não tenho tudo, não sou rica, mas eu tenho todas as coisas que não me deixam faltar nada, a começar da fé. Eu tenho uma fé inabalável, depois a gente fala da saúde, graças a Deus, e tenho um lar para morar, tenho um carro que com meu trabalho me leva onde eu preciso. E agradecer, sempre ser grata, olhar e falar: “Poxa, hoje eu não estou bem, mas já estive pior. Graças a Deus, o Sandro nos deixou com uma casa, eu [estou] resolvida profissionalmente.” Claro que eu me engajei mais na profissão depois que ele partiu, porque me senti muito sozinha, então eu me dediquei muito mais nesse processo, mas a história te faz falar dos seus sonhos, que eu tive sonhos e que um dia tive que pausá-los para continuar o sonhos de outras pessoas - o sonho dos filhos, o sonho do marido. Graças a Deus, hoje eu estou vivendo o meu sonho, então a história faz eu voltar no tempo e ver que foi questão de tempo - só vinte anos que eu parei de cuidar de mim para cuidar dos outros, mas hoje eu estou tendo a oportunidade de voltar e fazer por mim o que eu não consegui fazer lá atrás. E honrar com tudo, honrar é a primeira coisa que eu sempre penso: honrar meus pais, em primeiro lugar, e honrar os filhos, para os filhos olharem para mãe e falarem: “Poxa, eu tenho orgulho da minha mãe. A minha mãe chegou até aqui fazendo boas coisas, ajudando as pessoas.” E isso é um legado, né?
(2:3:54) P/2 - Então, em nome do Museu da Pessoa, a gente agradece muito a nossa conversa de hoje.
R - Muito obrigada. Agradeço a vocês a oportunidade, e tenho certeza que o que vocês fizeram hoje em algum momento a minha geração vai poder olhar e falar: “Nossa, olha a minha vovó, olha a história da vovó.” Eu quero que esse momento aconteça e vai ser muito importante para mim.
Muito obrigada, gratidão.
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