P/1 - Maria, você pode começar falando o seu nome completo, local e data de nascimento?
R - Meu nome é Maria Florescelia Bandeira Piovan. Nasci no sertão do Ceará e depois fui morar em Pentecostes.
P/1 - Em que ano e que data você nasceu?
R - Nasci em quatorze de maio de 1961.
P/1 - Seus pais são de lá?
R - São.
P/1 - E o que seus pais... Seus avós também são de lá? Toda a sua família é de lá?
R - Toda a minha família de parte de mãe é de Pentecostes e a família da parte do meu pai, de Maranguape.
P/1 - Você sabe como é que seu pai e sua mãe se conheceram?
R - Não, porque minha mãe morreu [quando] eu tinha três anos só.
P/1 - Três anos?
R - É. E depois meu pai levou a gente pra família dele, aí ele casou-se com outra e eu fiquei na casa de uma tia.
P/1 - E qual era a profissão do seu pai?
R - Agricultor.
P/1 - Você lembra dessa sua casa de infância em Pentecostes?
R - Em Pentecostes? Lembro.
P/1 - Como é que era?
R - Era uma casinha com um alpendrezinho só na frente, com uma janelinha e uma portinha, que ficava em cima de um morro.
P/1 - E quem morava na casa?
R - Isso é na fazen… É na terra do meu avô, na fazenda. Porque Pentecostes eu fui logo depois, só. Quando eu estava grande.
P/1 - Essa é a casa de Pentecostes?
R - Não, lá da fazenda do meu avô.
P/1 - Da fazenda onde você nasceu?
R – Que se chamava Torrões, onde eu nasci. Nasci na mão de parteiras.
P/1 - É mesmo?
R - É.
P/1 - Quem te contou essa história?
R - A minha avó. Porque quando a minha mãe morreu, com três anos, meu pai levou a gente de madrugada, roubou a gente do meu avô, porque o meu avô queria ficar com a gente. Eu e meus dois irmãos. Então meu avô… Meu pai [nos] roubou de madrugada, com medo que o meu avô fosse impedir ele de levar a gente no dia seguinte.
Atravessamos um rio a nado de madrugada. Isso eu me lembro.
P/1 - Com três anos?
R - É. Só disso que eu me lembro, porque eu...
Continuar leituraP/1 - Maria, você pode começar falando o seu nome completo, local e data de nascimento?
R - Meu nome é Maria Florescelia Bandeira Piovan. Nasci no sertão do Ceará e depois fui morar em Pentecostes.
P/1 - Em que ano e que data você nasceu?
R - Nasci em quatorze de maio de 1961.
P/1 - Seus pais são de lá?
R - São.
P/1 - E o que seus pais... Seus avós também são de lá? Toda a sua família é de lá?
R - Toda a minha família de parte de mãe é de Pentecostes e a família da parte do meu pai, de Maranguape.
P/1 - Você sabe como é que seu pai e sua mãe se conheceram?
R - Não, porque minha mãe morreu [quando] eu tinha três anos só.
P/1 - Três anos?
R - É. E depois meu pai levou a gente pra família dele, aí ele casou-se com outra e eu fiquei na casa de uma tia.
P/1 - E qual era a profissão do seu pai?
R - Agricultor.
P/1 - Você lembra dessa sua casa de infância em Pentecostes?
R - Em Pentecostes? Lembro.
P/1 - Como é que era?
R - Era uma casinha com um alpendrezinho só na frente, com uma janelinha e uma portinha, que ficava em cima de um morro.
P/1 - E quem morava na casa?
R - Isso é na fazen… É na terra do meu avô, na fazenda. Porque Pentecostes eu fui logo depois, só. Quando eu estava grande.
P/1 - Essa é a casa de Pentecostes?
R - Não, lá da fazenda do meu avô.
P/1 - Da fazenda onde você nasceu?
R – Que se chamava Torrões, onde eu nasci. Nasci na mão de parteiras.
P/1 - É mesmo?
R - É.
P/1 - Quem te contou essa história?
R - A minha avó. Porque quando a minha mãe morreu, com três anos, meu pai levou a gente de madrugada, roubou a gente do meu avô, porque o meu avô queria ficar com a gente. Eu e meus dois irmãos. Então meu avô… Meu pai [nos] roubou de madrugada, com medo que o meu avô fosse impedir ele de levar a gente no dia seguinte.
Atravessamos um rio a nado de madrugada. Isso eu me lembro.
P/1 - Com três anos?
R - É. Só disso que eu me lembro, porque eu fiquei com muito medo...
P/1 - Ele era pai da sua mãe, o que queria ficar com você?
R - É, o meu avô por parte de mãe. Aí, cinco anos eu fiquei longe...
P/1 - E você lembra de você atravessando a nado?
R - Lembro.
P/1 - Como é que foi?
R - Não, o meu pai... Éramos nós três: um de um ano que era um bebê ainda; eu, com três, e o meu irmão, com cinco. O meu pai levou um de cada vez, atravessando o rio. Disso eu me lembro porque eu fiquei com medo. Era madrugada, escuro, não tinha luz, fiquei meio apavorada. Depois de muito tempo eu fui saber que ele tinha roubado a gente com medo que o meu avô proibisse ele de levar. Aí, depois de cinco anos eu voltei, com oito anos, pra fazenda do meu avô.
P/1 - A morar com ele?
R - É.
P/1 - E aí você chegou e foi morar em Pentecoste?
R - Não, fui morar na fazenda de novo.
P/1 - Mas com três anos você mudou pra Pentecoste?
R - [Com] três anos eu fui pra Maranguape.
P/1 - E lá você ficou com o seu outro avô?
R - Não. Meu pai deixou a gente na casa de uma tia. Eu na casa de uma tia que é irmã dele, o meu irmão mais velho na casa da mãe. Ele levou o pequeno e casou logo em seguida.
P/1 - E aí você ficou morando com a sua tia dos três aos oito [anos]?
R - Dos três aos oito.
P/1 – E essa tia era onde, em que cidade?
R - Maranguape.
P/1 - Maranguape. E como é que era Maranguape? Você lembra?
R - Lembro.
P/1 - Como é que era?
R - Era igualzinho como é hoje. Nada cresceu lá, nada mudou, é tudo igual.
P/1 - E como é que era?
R - Cidade de serra. Tem piscinas de águas naturais na serra, tem cascatinha, onde todo mundo vai no final de semana se divertir, tem as festas de sábado à noite no clube, tem a pracinha pra passear… Só isso. Não tem cinema...
P/1 - E nessa sua tia, quem morava lá na casa, quando você foi pra lá e era pequena?
R - Tinha quatro filhas dela, mulheres já de idade, mais velhas. E tinha uma pequenininha, que era da minha idade.
P/1 - E você brincou com ela?
R - Eu brinquei com ela a minha infância toda.
P/1 - E do que que vocês brincavam?
R - A gente brincava... Porque lá em Maranguape era meio... Parecia um sítio. Então tinha muitas árvores, tinha goiabeira, tinha cajazeira, aí a gente subia nas árvores pra comer as goiabas e subia em todas as árvores. E eu fica...
Hoje, quando eu vi que tem uma modalidade destas de você correr com aquela... Com aquela vara e saltar... Eu fazia isso quando eu era pequena, com o cabo de vassoura! Eu não sabia que isso era um exercício. Não é incrível? A gente, nos pés de goiabeira - que tinha um pau, assim, reto -, brincava, botava as pernas assim e soltava a cabeça. Depois botava, segurava o braço e virava a perna por cima dos braços assim e virava de costas. Eram essas brincadeiras. E de roda e de pedra, jogar pedra, sabe?
P/1 - Roda o que é, tipo cantiga?
R - É, cantiga, ciranda, cirandinha. E a gente brincava de pedra: cinco pedrinhas, a gente jogava “tchu” e aí pegava de uma, depois pegava de duas e depois pegava uma e pegava três. E brincava também aquele do céu: tinha um, dois, três, quatro, cinco, seis e o céu, aí jogava a pedrinha e pulava. Eram essas brincadeiras, eu não sei o nome dessa brincadeira. Chamava de Céu, é isso mesmo?
P/1 - A sua tia era muito enérgica?
R - Não, minha tia era boa pra mim. O único defeito é que ela se esqueceu de me colocar na escola. Enquanto a minha prima, que era da minha idade, saía toda fardadinha pra escola todo dia, eu ficava em casa, cuidando das coisas com ela. Eu lavava, cozinhava, mas uma coisa era boa - quando era no domingo eu dizia: "Pode ir todo mundo pra missa que eu fico em casa pra fazer o almoço.” Todo mundo ia pra missa, eu não queria ir pra missa. (risos) Era uma desculpa que eu tinha, sabe? Aí, quando chegavam, eu tinha…
Eu fazia questão de fazer um almoço bem gostoso, botava na mesa pra todo mundo gostar porque eu gostava de ser elogiada. Era assim.
P/1 - Quantos anos você tinha?
R - Oito anos.
P/1 - Você cozinhava, fazia tudo?
R - Fazia.
P/1 - Você aprendeu a cozinhar com ela?
R - É. Ela me ensinava.
P/1 - E por que ela não te colocou na escola?
R - Não sei. Nunca perguntei.
P/1 - E você tinha vontade de ir?
R – Tinha. Daí [com] oito anos me mandaram de volta pro sertão. Fui lá pra casa do meu avô.
P/1 - Por quê?
R - Porque ela dizia que eu era danada, que não me aguentava, então me mandou pro sertão.
P/1 - Mas você dava trabalho?
R - Eu acho que sim.
P/1 - Você não lembra o que você fazia?
R - Não lembro, mas eu era danada sim. Só pode ser, né? (risos) Aí eu voltei pra casa do meu avô, fiquei lá até os doze.
P/1 - Mas seu pai te visitava? Como era?
R - Nunca me visitou, nunca tive contato com ele, nunca.
P/1 - Nunca mais teve?
R – Tive uma vez depois de velha já, grande. Eu fui na casa dele, visitei ele, mas ele nunca me visitou. Ele ainda é vivo. Faz tempo que eu não vejo.
Eu o vi umas três, quatro vezes durante a minha vida toda. Mas ele era um bom pai; me contavam que ele… Eu chorava de madrugada, me pegava no colo, andava léguas e léguas à noite pra comprar uma chupeta pra mim.
P/1 - E aí você voltou pra casa do seu...
R - Isso no sertão, quando eu era pequenininha.
Sim, com oito anos voltei pra casa do meu avô. Eu voltei sozinha, meus irmãos ficaram lá, cada um nas suas casas.
Eu cheguei no sertão muito infeliz, porque não tinha televisão, não tinha geladeira, não tinha luz. A gente ia dormir [às] seis horas, sete horas da noite, jantava às cinco. Foi muito, muito dolorido pra mim.
P/1 - Você ficou quanto tempo lá? Dos oito...
R - Dos oito aos doze, porque eu comecei a fugir.
P/1 - Com oito anos você começou a fugir?
R - Não, não. Eu fiquei dos oito aos doze e devo ter fugido por volta dos dez, onze anos, porque eu já começava a entender que eu queria voltar e ninguém me deixava voltar. Pedia pra me levar de volta e ninguém me levava e eu resolvi, em uma madrugada, fugir. Daí eu roubei um colar de ouro pra poder pagar a passagem do ônibus. E a gente tinha que andar muito, umas duas léguas, pra chegar até a cidade de Pentecostes, que era onde tinha o ônibus.
Andei na mata durante à noite. Eu levei uma carreira tão grande de um boi bravo que tava solto, daí eu subi no pau porque eu era uma macaca, gostava de subir no pau. (risos) Fiquei lá, o boi lá embaixo e eu lá em cima, eu digo: "E agora, como é que eu faço? Se eu descer o bicho vai me pegar!” (risos) Eu fiquei a madrugada inteira nesse pau, trepada lá em cima. Quando foi de manhã eu comecei a ouvir um barulho de cavalo se aproximando, gente falando. Era meu avô que estava me procurando. Ele me pegou e me trouxe de volta.
P/1 - Ele te bateu?
R - Não. Pensei assim: "Eu vou ficar só mais um tempo até eu ficar grande, depois eu vou-me embora."
Comecei a me interessar por criação. Eu criava... Eu deitava os ovinhos das galinhas, nasciam os pintinhos e eu cuidava. Parecia... Eu era a mãe deles. Às vezes tinha um bezerrinho, uma ovelhinha rejeitada da mãe, aí meu avô trazia pra dentro de casa e eu cuidava deles.
Eu me lembro de um boizinho que eu criei, aí quando eu voltei lá do banho no rio, meu avô tinha matado o boizinho. Chorei muito, porque ele era impressionante, aonde eu ia ele ia atrás de mim! Parecia um filho, parecia que eu era a mãe dele de verdade, porque você criou ele desde pequenininho, dando leite pra ele. E os bichos... Parece que ele não sabe que eu não era a mãe dele, ele achava que era a mãe dele. Não é interessante? Fiquei muito triste com o meu avô.
Eu plantava com ele - meu avô plantava milho, feijão e sempre eu ia. Quando dava a tardezinha, a gente sentava debaixo de um pé de cajueiro e lanchava. Chamava de merenda.
P/1 - E a sua avó, como era?
R - A minha avó era muito ruim. Eu acho que ela culpava o meu pai da morte da minha mãe e descontava em mim.
P/1 - O que ela fazia?
R - Ela sempre dizia que eu era a cara do meu pai, que o meu pai era isso, que o meu pai era aquilo... E sovinava comida. Quando eu... Era de manhã cedo, a gente tomava café normal, lá pra antes do almoço a gente merendava. Eu pedia merenda pra ela e ela dizia que não tinha, aí eu falava pra minha tia, que era filha dela. Ela andava com a chave da dispensa no bolso, um quartinho que ela guardava queijo, banana, tudo! Tinha tudo lá dentro. Caju, doce que ela fazia porque tinha muito caju. Minha tia pegou a chave com ela e foi lá, abriu o quartinho e eu vi que tinha muita comida pra comer. Eu nunca esqueci disso.
Teve outras coisas mais... Surra, porque ela batia na cabeça das pessoas com a colher de pau, até quebrava. Uma escrava que ela tinha... Lá em casa tinha dois escravos; não era mais época da escravidão, mas ela tinha uma menina preta e um rapazinho preto que eles criavam, começaram a criar. Quando eu cheguei lá, eles já existiam. Ela trabalhava e apanhava e nunca ganhou nada, por isso que hoje eu acho que eles eram escravos, porque naquela época eu nem tinha ideia do que era escravo. Hoje, pensando, eu vi que eles são escravos.
P/1 - E eles nunca te colocaram na escola também?
R - Não. Lá não tinha escola. Era sertão, não tinha escola. Então, desse tempo...
P/1 - E você brincava com outras crianças?
R - Não, nunca brinquei. Sabe por quê? Eu tinha um monte de primos e primas ali por perto, mas acho que elas sentiam inveja e não gostavam de mim. Não sei, talvez porque eu tivesse vindo de um lugar que tinha luz, que eu contava que tinha televisão, que eu contava que eu tomava água gelada, que eu tomava sorvete, você entende? E eles lá não sabiam o que era isso, naquela época, então acho que elas tinham meio que inveja de mim, nunca gostaram de mim. Eu tenho essa impressão, porque elas nunca brincavam comigo, entendeu?
O que eu fazia? Meu refúgio era sair com o meu avô pra plantar e quando voltava pra dentro de casa eu tinha os meus bichos pra cuidar. Era essa a vida que eu tinha. E eu amava os bichos, de verdade. Ainda hoje eu gosto dos cachorros.
P/1 - Você ficou quanto tempo lá?
R - Dos oito aos doze, porque com doze anos eu fui embora de lá. Eu consegui que me levassem de lá.
P/1 - Como você conseguiu?
R - Eu tinha um padrinho que morava pros lados de Maranguape também. Era meu padrinho de batismo. Ele tinha um sítio ali por perto, talvez uns quatro ou cinco quilômetros. E a minha tia, aquela que me criou, lá de Maranguape, ela mandava sempre roupa pra mim. Roupa, pasta, escova, ela sempre me mandava e o meu padrinho trazia. Lá da casa do meu padrinho até a casa do meu avô ele mandava um vaqueiro trazer. Quando vinha e eu avistava aquele vaqueiro todo vestido de couro vindo na direção da casa do meu avô, eu já sabia que eu iria ganhar as coisas.
Eu pedi pra ir embora, o vaqueiro voltou e falou que o meu padrinho tinha mandado me levar. Aí eu voltei pra Maranguape.
P/1 - Aí foi morar com o seu padrinho.
R - Não, eu fui morar lá na casa da minha tia de novo.
P/1 - Ah, voltou lá.
R - É. Com doze anos eu comecei a me interessar pela leitura. Eu perguntava que letras eram aquelas e aí minhas primas iam me falando...
P/1 - E aquela sua prima que tinha a sua idade?
R - Estava lá ainda. Estava ainda da mesma idade que eu. Ela continuava estudando e eu pedia pra ela me ensinar.
P/1 - Ela te ensinava?
R - Ensinava. Então, quando eu aprendi o A, o B, o C, enfim, o alfabeto, eu comecei a juntar as letras. E quando eu comecei a juntar as letras, eu comecei a ler. Gaguejando, mas eu li bastante. Com o tempo consegui ler de carreirinha, sabe? Sem gaguejar.
P/1 - E a escrever?
R - Escrever foi depois. Por enquanto eu só lia. Eu li muitos livros.
P/1 - O que você lia?
R - Todos os livros de romance. Li José de Alencar, li Agatha Christie, Sidney Sheldon, tantos outro que eu não lembro o nome, com o nome em inglês. E... Machado de Assis também, o mais difícil. Ele escreve difícil, né?
P/1 - Você lia esses livros, tinha na sua casa, lá na sua tia?
R - É, tinha. Sempre tinha um por lá. Quando não tinha lá na casa da minha tia eu procurava na casa dos outros. Li muito. Eu li até os meus vinte anos de idade. E fazia muitas palavras cruzadas. Eu gostava do desafio, porque quando uma palavra ficava ali e eu tentava descobrir aquela palavra, eu tentava de várias maneiras, fazendo do outro lado, fazendo daqui pra ver o que iria sobrar pra ver se eu conseguia imaginar a letra que iria lá. Eu quebrava a cabeça, mas aprendia. Isso é muito bom, gente! Hoje eu não posso mais fazer isso, tenho que escrever.
P/1 - E você continuava fazendo as coisas de casa, lá, os serviços?
R - Quando eu voltei?
P/1 - É.
R - Continuava. Todo mundo fazia um pouquinho, a única que não fazia era a mais nova, essa que ia estudar. Até hoje ela não sabe fritar um ovo, você acredita? Até hoje não casou.
Outro dia ela veio me visitar. Você acredita em uma coisa dessa? Ela veio me visitar, fiz um almoço pra ela. Daí ela: "Nossa, Flores, como essa comida é gostosa!" Digo: "E você, já aprendeu a cozinhar?" Ela disse: "Não sei fritar um ovo." “Tá mal.”
P/1 - Você ficou até quantos anos lá?
R - Fiquei até aparecer um cara e eu fui embora.
P/1 - Com quantos anos?
R - Quinze.
P/1 - Foi seu primeiro namorado?
R - Foi. Veja bem, a história é muito interessante.
P/1 - Conta desde o começo. Desde quando vocês se conheceram.
R – Como... O meu intuito de voltar lá pra casa de onde eu fui criada, pequenininha, era pra de lá ir pra mais longe e assim por diante. Eu queria ir pra longe, não queria ficar ali. Fui pra Maranguape, que já tinha luz, era outra coisa.
Eu pensava assim: "Se aparecer um circo, eu vou embora com o circo. Se aparecer um homem, eu vou embora com esse homem." Apareceu o homem e daí eu fui.
P/1 - Mas como é que você conheceu? Como é que ele apareceu?
R - Fui comprar um remédio na farmácia pra minha tia. Eu vinha passando, ele estava na rua, em Maranguape. Antes de entrar na farmácia ele me chamou: "Por favor, vem aqui, mocinha." Eu digo: "Pois não." Ele disse assim: "Você sabe onde é que fica essa rua?" "Essa rua..." Aí expliquei. Ele disse assim: "Você, se eu lhe chamar pra ir embora comigo, você vai?" Eu digo: "Vou." "Você vai mesmo?" Eu digo: "Vou, espere só um minutinho."
Fui lá na farmácia e disse assim: "Tá aqui o dinheiro. Minha tia mandou eu comprar esse remédio, o senhor manda deixar o remédio lá e diz pra ela que eu vim embora com aquele homem." "Você é doida, menina? Tu não vai fazer uma coisa dessa!" Eu digo: "Vou! Ele me chamou pra ir embora e eu vou embora!" Entrei no carro do homem e fui embora.
P/1 - Você nunca tinha visto?
R - Nunca tinha visto, mas pra mim, na minha cabeça… Eu era tão inocente que ninguém nunca falou de sexo, nunca falou os perigos que a vida tinha. Eu tinha a inocência de uma criança de três anos, porque era tabu essas coisas, ninguém falava nada. Fui embora com ele, fiquei doze anos.
P/1 - Você não sabia o nome. Ele tinha... Ele era mais velho que você quanto tempo?
R - Bem mais velho. Tinha, devia ter uns quarenta anos.
P/1 - E você quinze.
R - Quinze.
P/1 - E aí ele falou: "Vamos casar..."
R – Não! Vamos casar, não. Fui embora com ele, fiquei lá em Fortaleza. Ele me colocou em um pensionato, era esse o nome. Fiquei lá por um tempo, depois ele alugou um apartamento pra mim na [Avenida] Beira Mar, montou e eu fiquei lá morando.
P/1 - E vocês transavam?
R - Sim. Com um, olha, um ano...
P/1 - Foi a primeira vez que você transou foi com ele?
R - Foi, a primeira vez.
P/1 - Quando foi? Foi logo que vocês foram embora?
R - Acho que foi por isso que ele não me largou, porque... Logo, na mesma noite.
P/1 - Com quinze anos?
R - Eu fui embora de tarde... Sim. Um mês depois eu já estava grávida, aí nasceu a menininha.
P/1 - Sua filha?
R - É.
P/1 - Como é o nome dela?
R - Bárbara.
P/1 - Está com quantos anos hoje?
R - Trinta e quatro.
P/1 - Mora aqui em São Paulo?
R - Mora em São Paulo. Ela já está casada, tem três filhos.
P/1 - Nossa! Você transou na primeira noite com ele?
R - Na primeira noite.
P/1 - Como é que foi? Você nunca tinha transado...
R - Nunca, mas eu fiquei esperando ele fazer, eu não... Eu fiquei lá só deitada, minha filha! Eu não sabia! E ele, como era um homem mais velho, depois ele viu o que fez. Ele trouxe uma pessoa que nunca tinha namorado, nem nada, não sabia nada. Ele me ensinou tudo. Ele me ensinou tudo o que eu aprendi, o resto. Porque ele era um homem que tinha uma formação, estudou fora...
P/1 - E você se apaixonou por ele?
R - Sim.
P/1 - E ele por você?
R - E ele por mim. Vivemos de amantes.
P/1 - Por que ele era casado?
R - Ele era casado, tinha uma família e eu vivi de amante com ele.
P/1 - Ele te sustentava?
R - Tudo. Não sabia quanto custava um quilo de arroz. Eu tinha empregada e todas as compras ele trazia. Ele pagava as contas, ainda me dava a minha mesada pra eu gastar no que quisesse. Eu não cuidava nem da filha! Porque eu era uma criança, eu não queria aquele problema. Eu queria era me divertir, sair, passear. E a menina ficava na mão dos outros.
P/1 - Onde você...
R - Eu fui uma péssima mãe, viu. Mas também, com quinze anos queria o quê? Quem nunca teve uma mãe não sabia como cuidar de uma criança. Hoje eu crio o meu neto, é tudo diferente. O meu neto mais velho. Desde que nasceu, mora comigo.
P/1 - E você morava onde nessa época?
R - Que época?
P/1 - Com quinze anos. Na época que nasceu a Bárbara, você estava morando onde?
R - Morava em Fortaleza. Ele me levou pra Fortaleza. E eu só voltei pra minha casa quando saí da maternidade com a criança no colo.
Fui lá na casa da minha tia e ela disse: "Menina, você, onde é que você anda? E olha o bebezinho..." Eu digo: "Tô muito bem. Só passei por aqui pra você conhecer a Bárbara." E fui embora pra Fortaleza de novo.
Eu tinha tudo o que eu queria. Não trabalhava, tinha tudo, todo mês eu viajava.
P/1 - Com ele?
R - É. Ele era administrador, ele ia pra concorrência. Ele era administrador de uma construtora que fazia pontes, casa popular, estrada pro governo. Sempre estava viajando e eu viajava com ele. Ficava no hotel, passava o dia tomando banho de piscina, comia fora e de noite a gente saía pra dançar.
P/1 - E a Bárbara ficava com quem?
R - Ficava com a empregada de casa. Olha, eu nunca me preocupei com ela. Essa é a verdade. Porque eu não… Eu não sabia como fazer. Se eu não tive, como é que eu posso, como eu podia ter dado? Não foi culpa minha. Eu achava que era o certo, achava que filho não precisava de carinho, não precisava de amor. Mas essa filha me deu problema.
P/1 - Você a pôs na escola?
R - Pus na melhor escola paga de Fortaleza, Cearense.
P/1 - E a mulher dele? Como era o nome do pai, seu amante?
R - Carlos Maria.
P/1 - E o Carlos, a mulher dele não desconfiava?
R - Sabia tudo! Fortaleza é pequenininha. Onde ele andava comigo os filhos dele entravam. Não tinha esse negócio de ter... Se você saísse lá, naquela época… Hoje já cresceu mais, mas naquela época, tudo o que você tinha de lugar pra ir era a mesma coisa. Tudo ali na Beira Mar, todo mundo sabia quem era quem. Agora deve ter crescido, faz tempo que eu não vou lá.
P/1 - E a mulher dele chegou a te procurar? Tinha ciúme?
R - Nunca! Não, nunca. Eu é que tinha... Uma vez eu disse pra ele: "É o seguinte, cansei de ser amante." Quando eu já estava com vinte anos. "Agora eu quero casar. Como você não pode casar comigo, eu vou arrumar alguém pra casar comigo." Menina, esse homem enlouqueceu. Aí eu disse: "Tá bom. Já que você me diz que você dorme separado da sua mulher, você dorme em quarto e ela dorme no outro, você me dá o telefone da sua casa pra quando eu quiser falar com você. Aí ele deu.
Eu ligava, ela atendia e chamava ele, então eu acreditei que eles dormissem em quartos separados, que ele só vivia na mesma casa por causa de uma sociedade. Ele precisava dar satisfação porque era um homem de negócios, enfim, essas coisas. Hoje não tem mais essa frescura.
P/1 - Por que sua filha te deu trabalho?
R - Por causa disso, por eu não ter dado atenção, amor que uma criança precisa.
P/1 - Que tipo de trabalho ela deu?
R - Hummm! Drogas, muita droga.
P/1 - Com quantos anos?
R - Quatorze.
P/1 - Lá no Ceará mesmo?
R - Não, aqui. Aqui em São Paulo.
P/1 - Ah, porque você mudou de lá.
R - Mudei.
P/1 - Quando?
R - Com vinte e sete anos o amante morreu.
P/1 - Quantos anos a Bárbara tinha?
R - Tinha onze. O amante morreu... Onze pra doze. E aí o meu chão caiu. Ele me deixou meio milhão de reais.
P/1 - Na época.
R - Na época do Sarney. Eu me lembro muito bem porque a inflação hoje... Você ia ao mercado, comprava uma coisa hoje, amanhã já estava mais caro. E a poupança dava 45 a cinquenta por cento. Era um absurdo. Você ganhava, mas também acabava seu dinheiro. Era essa época, da inflação muito alta.
Eu comecei a gastar o dinheiro todinho pra poder esquecer ele. Viajei, bebia...
P/1 - Você viajou pra onde?
R - Para os lugares que ele viajava comigo. Todos os lugares que ele viajou comigo eu viajei, pra ver se eu achava ele. Porque eu não vi ele morto, só vi pela televisão.
P/1 - Ele era famoso?
R - Não. Era bem relacionado, na sociedade todo mundo conhecia como ele era sócio de clubes, essas coisas. E como eu não vi ele morto eu saí procurando. (choro) Isso já faz tantos anos e eu não esqueço. Eu bebia e xingava muito, muito Deus, porque tirou ele de mim. Ele foi tudo na minha vida: pai, mãe, amante, marido, amigo, tudo, tudo. E professor.
Ele me chamava de "My Fair Lady". Nem sabia o que era isso, ele comprou o filme e passou pra mim. Ele me ensinou a comer, a sentar, a ser uma dama. Começou a me levar pra sociedade e mentia para os amigos que eu era uma filha de fazendeiro muito rico no Mato Grosso, pra que eu não ficasse diminuída. Porque as pessoas eram muito cruéis quando sabiam que você era amante e que você não era ninguém.
E foi assim. Nunca mais eu gostei de ninguém, não existe igual a ele, nunca. E olha que namorei um monte de gente. Não achei nenhum igual a ele. Ele abria a porta do carro, ele puxava a cadeira, fazia tudo. Nunca me maltratou, nunca me humilhou e nunca me bateu, nunca brigou comigo. Ao contrário, eu é que brigava com ele, eu era ciumenta. A gente foi... Quer dizer, eu fui proibida de entrar em vários lugares lá Fortaleza e ele dizia assim: "Se ela não vai entrar, eu também não vou entrar." Porque eu arrumava confusão, sabe?
P/1 - Por que você arrumava confusão?
R - Por ciúmes dele!
P/1 - Ah, de ciúmes dele.
R - Ciúmes. As mulheres ficavam dando em cima dele, o que é isso? Ele estava lá com aquele olhar de peixe morto - um olhar assim de quem está paquerando, mas não era. Mas eu, muito nova, partia pra cima. Ele ia lá e me tirava de cima da mulher.
P/1 - Você armava barraco assim, de ir pra cima?
R - Lógico, eu era a maior barraqueira e ficava com raiva dele.
P/1 - Conta uma que você foi pra cima.
R - Como?
P/1 - Conta uma vez assim...
R - A mulher ficava passando toda hora pela mesa e eu percebi que ela estava passando pra paquerar ele. Ele olhava pra ela porque ela era bonita e ele era sem vergonha também.
Eu disse assim… Eu não podia fazer nada contra ele, aí eu ia pra onde? Eu ia pra mais fraca. Eu ia atrás da mulher e puxava-lhe os cabelos, jogava ela no chão. O povo todo vinha em cima, me tirava e a gente era expulso do restaurante, daí da próxima vez a gente não entrava.
No final da noite ele não fazia nada. Ficava, não dizia nada, aí eu... Ele tinha um Galaxy novinho. Descemos lá na minha casa, ele botou o carrinho dele ali. Eu peguei uma pedra de calçamento, ele cruzou os braços e eu bati no carro todinho, estraçalhei; o bicho não amassava, só criava umas feridas. Era uma lataria tão forte que não amassava. Ele cruzou os braços e ficou só observando, aí disse: "Terminou?" Eu digo: "Terminei." Aí ele entrava no carro e ia embora.
No outro dia eu ficava desesperada porque ele não vinha na minha casa, não ligava. Aí ficava planejando como eu ia fazer pra aquele homem voltar de novo pra mim. Eu ligava na construtora, a secretária já era minha amiga. Eu dizia assim: "O Carlos não tá aí?" Ela dizia: "Tá." "Pois então, eu tô indo aí levar um lanche pra ele.” Eu achando que levando um lanche eu iria ter ele de volta. Eu chegava lá e ele olhava pela janelinha - tinha uma cortininha, ele me via sentada e não me atendia.
Saía, entrava no carro e eu ficava na frente do carro dele. Digo: "Tu vai passar por cima, mas eu não vou sair." Ele ficava dentro do carro e eu lá, em pé. Ele via que eu não saía, porque não tinha pra onde ele ir, nem para um lado nem para o outro, que eu estava bem no meio e era tudo parede, era no estacionamento da construtora dele. Ele acabava descendo do carro e [me] botava dentro do carro, aí a gente ia pra Beira-Mar tomar cerveja. Lá eu dizia: “Mas eu juro que eu não faço mais!” (risos) Eu prometia tudo, aí ele voltava. Não tinha o menor problema! Mas eu sempre arrumava confusão.
P/1 - E a sua filha... Ele era carinhoso com a Bárbara?
R - Não, ele não era muito carinhoso, não. Ele tratava direitinho, mas não era apegado. Também, eu não era.
P/1 - E essa casa sua era de aluguel? Esse apartamento?
R - De aluguel.
P/1 - Ele deixou esse dinheiro e você torrou?
R - É. Ele disse assim pra mim: "Eu vou operar de um câncer no intestino. Caso aconteça alguma coisa comigo, eu dividi... O dinheiro todo que eu tenho, eu dividi em partes iguais para os meus filhos e pra você." Quando ele falou isso eu pedi tanto pra ele não operar, porque eu tinha certeza que ele não voltava mais. Ele ficou, operou. Ele ligava. Pegou infecção hospitalar, ficou seis meses no hospital. Ficou magro! Ele tinha um metro e noventa de altura...
P/1 - E você o visitava no hospital?
R - Não. A mulher dele estava lá, eu tinha que respeitar. Ele sempre me pedia pra não ir. Um bom dia ele me ligou e disse que o médico tinha dado três meses ou três anos de vida. Ele só durou três dias.
No jornalzinho de Fortaleza, na TV Verdes Mares, deu a morte dele. Aí, como aquilo... É muito louco, gente! Como eu não tinha visto o cadáver, eu tinha certeza que era armação.
P/1 - Ele já tinha te dado o dinheiro?
R - Tinha. Antes de entrar na operação, botou na poupança. Ele disse assim: "Você não mexa!" E ele mandava todo mês o cheque, todo mês, pra eu não mexer no dinheiro que ele deixou. Ficou seis meses assim, mas quando ele morreu, quem vai saber? Gastei em um ano.
P/1 - Em um ano você gastou quinhentos paus?
R - Gastei. Muito mais de quinhentos. Eu tinha 50% já de... Da poupança. E como eu não tirava pra gastar porque ele mandava o dinheiro, tinha muito mais. Viajei muito, sabe por quê? Eu não vi o homem morto, daí eu, na minha cabeça, disse… Pensava assim: "Ele inventou a morte pra ficar longe de mim."
Eu era doente. Isso era uma doença, essa possessividade, só pode ser. E tu não acredita que lá na minha cabeça eu tinha certeza que ele tinha armado: "Ele não morreu, ele quer ficar longe de mim, então fingiu que morreu..." Olha como a minha cabeça era! Ligava pra construtora, eu pedia pra chamar ele e as pessoas diziam: “Mas ele não está, ele morreu.” Digo: "Não, ele não morreu não.” "Morreu sim". Eu não acreditava!
Eu comecei a ficar maluca. Viajando, porque tinha dinheiro. Eu ficava mais conformada porque eu tinha dinheiro pra poder viajar, pra procurar ele. Depois acabou o dinheiro, conheci um paulista que estava de férias lá em Fortaleza e ele casou comigo em oito dias, aí eu vim pra São Paulo.
P/1 - Você o conheceu e depois de oito dias você casou?
R - Casei. Eu casei com ele porque eu queria vir embora pra São Paulo pra sair de Fortaleza. Porque em Fortaleza, tudo lembrava ele. Um ano, justinho! Tudo lembrava ele, então eu queria ir embora de Fortaleza. E queria...
P/1 - Pra qualquer lugar?
R - Não, queria ir pra São Paulo porque eu queria ser artista. Essa é que é a verdade. Gostava e queria conhecer o Silvio Santos e queria, enfim....
P/1 - Você sempre teve essa vontade?
R - Sempre, de fazer isso.
P/1 - De ser atriz? Desde quando?
R - De ser atriz... Desde pequeninha já me chamavam disso. "Atriz é puta!" Eu nem sabia o que diabo era isso! O pessoal já me falava isso. Digo: "Desde quando?" E eu ficava aos domingos em frente à televisão assistindo Silvio Santos, da manhã até a noite. Um belo dia o Silvio Santos desapareceu da televisão, teve uma época que só passava em São Paulo. Eu fiquei desesperada. Sou louca por televisão. Assisto até hoje, minha filha.
P/1 - E você achava que em São Paulo iria conhecer Silvio Santos...
R - Achava, mas perdi a vontade já.
P/1 - Você casou com esse paulista e veio pra cá?
R - Isso.
P/1 - Você e a Bárbara?
R - Não, a Bárbara ficou lá, na casa da minha tia. Nessa época que eu estava doida, que o homem morreu, eu peguei a minha filha e levei lá pra Pentecoste, entreguei ela pra minha tia. Pentecoste a cidade, não os Torrões, que não tinha mais nada. O meu avô já tinha morrido e a minha avó estava lá, na cidade. Deixei ela lá pra poder fazer essas besteiras todas que eu fiz.
P/2 - Nessa época ela tinha quantos anos?
R - Onze. Casei e vim pra São Paulo. Chegando em São Paulo...
P/1 - Pra que lugar você veio aqui em São Paulo?
R - Fui pro Bom Retiro. Ele me levou pra casa...
P/1 - Qual foi sua impressão quando chegou em São Paulo?
R - Menina! A minha impressão... Minha impressão era que eu estava nas nuvens. Finalmente eu chegava a São Paulo, eu iria realizar todos os meus sonhos desde pequena, assistindo novela.
P/1 - E quando você viu a cidade, o que te chamou mais atenção?
R - Eu me senti pequenininha naquela cidade toda, porque eu vim de avião com ele. Ele era da Transbrasil, [era] piloto. Chegando aqui ele me levou pra casa da mãe dele, que foi outro filme na minha vida, minha filha. Ela me chamava de monte de bosta, de nordestina filha da puta, que não sabia por que o André tinha casado com esta nordestina filha da puta…
Fiquei nessa casa três meses. Peguei minha mochilinha, saí da casa dela e fui morar na pensão, na rua ao lado. Fiquei lá. Eram dois beliches, três meninas e eu em um quarto só. Botei minha mochilinha nas costas, já sabia fazer unha.
P/1 - Onde você aprendeu a fazer unha?
R - Aprendi com o amante. Enquanto ele passava o dia trabalhando eu passava o dia tentando fazer unha, aprendendo a fazer unha.
P/1 - Você fazia a sua mesmo?
R - Não, das minhas amigas do prédio. [Eu] morava em um prédio que tinha seis por andar. E a gente, como nordestinos que conhecem todo mundo… Todo mundo era vizinho, todo mundo ficava de porta aberta, até. Um vinha pedir açúcar, pedia café, fazia amizade.
P/1 - Lá você aprendeu a fazer unha?
R - Eu chamava as meninas lá pra casa pra poder fazer a unha. Saía todo mundo de “unhinhas” pingando de sangue, mas não tinha esse problema de doença. Eu dizia: "Deixe, da próxima vez vai ficar melhor", porque eu dizia: "Eu cortei aqui, é porque eu fiz isso." Então eu já ia aprendendo.
Tudo o que eu aprendi foi sozinha. Nunca ninguém me ensinou nada e se tiver de me ensinar alguma coisa eu acho uma maneira mais fácil de aprender, de fazer. Porque as coisas são tão complicadas, a matemática da vida. Eu prefiro ir pro lado mais prático.
Bom, botei minha mochilinha nas costas e me mandei. Peguei o ônibus elétrico que ia pra Augusta, porque em Fortaleza a Rua Augusta era famosa. Eu digo: "Moço, quando chegar na Rua Augusta eu quero descer. Eu peguei ali na [Avenida] Tiradentes o ônibus elétrico. Ele disse: "Tá bom. Olha, aqui é Rua Augusta." Digo: "Esse é o começo?" Ele disse: "É". Então eu desci na Rua Augusta no começo, andei até o final. Todo salão que eu via eu entrava e dizia: "Tá precisando de manicure?" “Você tem que fazer uma fichinha e a gente chama depois.” Eu digo: "Não, eu quero trabalhar hoje" "Hoje é impossível." "Tudo bem." Fui embora.
Até que cheguei no Taluama, que ficava ali perto da Alameda Santos. Entrei lá e disse: "Tá precisando de manicure?" E ela disse, uma peruana: "Sabe fazer unha?" Eu digo: "Sei." "Tem experiência?" Eu digo: "Minha experiência não é daqui, é lá de Fortaleza." "Então sobe lá pra fazer um teste."
Eu subi, fiz a unha. Ela gostou, disse: "Quando quer começar a trabalhar?" Eu digo: "Posso ficar hoje mesmo." "Então pode ficar."
Fiquei trabalhando no Taluama, ganhando dinheiro e pagando minha pensão.
P/1 - Quanto tempo você ficou no Taluama?
R - Eu fiquei mais de um ano.
P/1 - E você não via mais esse seu marido?
R - Via, toda noite ele ia lá! Porque na época que estava na minha sogra e ela me fazia essas malcriações todas, ele dava... Ele ia pras viagens dele e eu ficava no aeroporto, esperando a volta dele. Eu dormia no saguão do aeroporto. Aí comecei a ler de novo, li mais livros.
P/1 - Você ficava quanto tempo dormindo no aeroporto?
R - Menina! Ele fazia uma viagem eu ficava lá no saguão! Eu comia lá. Ele me dava os vales refeição dele pra não ficar na casa da mãe dele, porque a mulher me trucidava, minha filha! Eu não abria a boca, porque a casa não era minha.
P/1 - E você ficava no aeroporto de Congonhas?
R - De Congonhas, exatamente. Aquele lá... Não, de Guarulhos.
P/1 – Cumbica?
R - É.
P/1 - Quanto tempo você ficou lá?
R - Ele ia, pegava o ônibus da companhia, eu junto. Ele pegava o vôo dele, viajava. Eu ficava às vezes duas noites com dois dias, levava a minha malinha.
P/1 - Você dormia onde?
R – Eu dormia, cochilava lá nas poltronas lá do aeroporto. E como o aeroporto é sempre movimentado, era mais legal ficar lá do que ficar na casa da sogra.
Eu fiquei… Eu sofri muito, gente, com essa mulher. Isso é outra parte da minha vida que foi horrível. Aí ele voltava e eu voltava com ele. Só entrava na casa dela com ele.
Eu disse: "Não é possível isso!" Acho que aí resolvi ir pra essa pensão. E um belo dia chega ela lá: "Tem lugar pra mim aí?" Eu digo: "O quê?” “Ah, porque o velho botou a gente pra fora de casa.” Eu digo: "Olha, a senhora quer saber? Eu durmo em um beliche e tem mais três no meu quarto, não é que eu tenho um quarto só pra mim." A velha queria ir lá pra pensão pra ficar lá comigo! Mas eu acho que ela era maluca.
A gente conseguiu alugar uma casa lá na Penha, um sobrado, aí ela passou a morar lá.
P/1 - Com vocês?
R - Comigo e ele.
P/1 - Você gostava dele?
R - Mais ou menos. Na verdade, eu não amava não. Eu amava era o outro.
Eu nunca gostei dele, nunca. Porque era um homem sem atitude. Ele não tinha atitude com a mãe dele, não tinha atitude comigo, não tinha com nada. Se escondia atrás de mim. Quando tinha algum problema era eu que ele botava na frente pra resolver, era muito imaturo. Eu não consigo gostar de homem assim.
P/1 - E ele te dava dinheiro? Te sustentava?
R - Não. A gente tinha conta conjunta, tudo direitinho.
P/1 - Mas você queria trabalhar.
R - Então, desse eu... Eu só comecei a trabalhar quando estava na pensão. Depois que eu fui pra Penha não trabalhei mais, fiquei um tempo sem trabalhar. Aí ele se separou - quer dizer, eu botei ele pra fora de casa. Ele queria me obrigar a ir pra macumba, porque ele vivia na macumba. A família toda era da macumba e eu não gosto de macumba. Ele queria me obrigar a ir pra macumba e eu não gostava dele…
Um belo dia digo: "Sabe de uma coisa? Eu vou trocar a fechadura da casa." Ele foi, quando voltou estava tudo trocado. Ele me xingou na rua de vagabunda, de puta, de não sei de que mais, e eu bem caladinha, dentro de casa. Os vizinhos chamaram a polícia. A polícia chegou, aí ele disse: "É a minha casa." Aí a polícia disse assim: "Olha, você vai embora. Eu não vou obrigá-la a abrir a porta porque a casa é dela também. Você vai procurar seus direitos." Foi assim que ele foi embora.
Aí eu liguei pra ele: "André, não se esqueça que tem que pagar o aluguel e pagar as contas." E ele disse… Ele falava bem assim, bem baixinho: "Sua puta, sua vadia, vai tomar no cu! Eu não vou pagar nada!" Eu digo: "Ah é? Então tá bom." Dia cinco era certinho, porque ele já tinha cancelado o meu talão de cheques, cancelado o meu cartão, mas também não podia me tirar da conta dele assim.
Fui lá no aeroporto de Guarulhos, tremendo feito uma vara verde. Lá tem um hangarzinho que tem um Banco Itaú lá dentro. Eu cheguei lá, aquela fila de peão pra receber o dinheiro, eu entrei na fila e disse: “Moça, perdi meu talão de cheque, perdi meu cartão. Como é que eu faço pra sacar?" "Ah, cheque avulso." Ela me deu o cheque avulso e eu errei o cheque de tanta tremedeira. Ela me dava outro, aí eu tirei todo o dinheiro dele. Botei na bolsa [com] um olho aqui e outro olho lá na porta, pra ver se ele não entrava. Fui embora.
Ele bateu na minha casa mais tarde, dizendo que eu tinha roubado todo o dinheiro dele. Digo: "Roubei mesmo." Ele lá de fora e eu aqui dentro: "Roubei mesmo! Porque você esqueceu o que você falou no telefone pra mim? Você pensa o quê? Que eu sou… Você é muito trouxa, viu? Porque eu sou mais esperta que você. Já cansei de sofrer na sua mão, agora chega!"
Um mês depois a Transbrasil estava me depositando trinta por cento do salário dele. A casa era alugada em uma imobiliária que era de um advogado. Fui lá, falei pra ele, ele resolveu rapidinho. O juiz falou assim… [Eu disse:] "Eu quero trinta por cento.” Ele disse: "Não, não vou dar trinta por cento do meu bruto porque desconta isso, desconta aquilo, vou ficar com menos do que ela. Só vou dar vinte." Eu digo: "Não, mas eu quero trinta. Trinta e pronto!" Aí o juíz olhou pra ele e disse assim: "Olha, você tenha cuidado, ela é uma nordestina de sangue quente e você é um paulista bundão, hein! Vai dar trinta por cento e pronto!" O juiz era nordestino, era sergipano. (risos) Chamou... Eu acho que o juiz devia estar...
P/1 - Você tinha quantos anos nessa época?
R - Acho que trinta e um, porque eu casei com vinte e sete. Só durou quatro anos.
P/1 - Você ficou com a pensão dele?
R - Fiquei. E dava pra tudo, hein!
Um belo dia recebi uma carta da Transbrasil dizendo que o André não fazia mais parte do quadro de funcionários, aí eu voltei pra pindaíba, passei fome. Resolvi voltar pra trabalhar.
Eu pastei uns quatro meses, até que um dia parei em um salão pra falar com uma amiga minha e ela disse assim: "De onde é que você vem?" Digo: "Tô atrás de emprego." "Não acredito!” Eu tinha trabalhado com ela no Taluama. "A melhor manicure que eu conheço tá sem emprego? Você quer que eu arrume um emprego agora pra você?" Digo: "Claro que eu quero!"
Ligou pra Cristiana Arcangeli, que estava montando um salão com o Mauro Freire, e disse que tinha uma manicure, aí ela disse: “Manda ela procurar o Mauro.” E eu fui lá procurar o Mauro. Adivinha quanto que o Mauro me pagava? Mil e quinhentos fixo, durante três meses. Era um dinheiro absurdo isso, gente! Eu pagava um aluguel de trezentos. Era um absurdo pra uma manicure ganhar isso, isso não existia. Todo salão paga cinquenta por cento e acabou; se fez, bem, se não fez, não ganha nada. E ele estava me pagando mil e quinhentos por três meses, pra depois ver como é que iria ser.
Um belo dia ele disse assim: "Olha, tu quer continuar ganhando mil e quinhentos ou quer ganhar comissão?" Eu digo: "Por que, Mauro?" Ele disse: "Porque tu já tá tirando mais do que isso." Digo: "Então eu quero a comissão, ora essa!" E fiquei lá com o Mauro, foi aí que eu conheci todas as pessoas depois...
P/1 - Quanto tempo você ficou com o Mauro?
R - Três anos. Eu era a melhor manicure dele, segundo elas, as clientes e ele.
P/1 - Quem você conheceu lá?
R - Muita... A Contanza Pascolato, as modelos todas das antigas - Isabella Fiorentino, Camila Espinosa... Todas aquelas que começaram no Phytoervas. Foi logo naquele começo da Fashion Week hoje, que [se] chamava Phytoervas; era da Cristiana Arcangeli com o Paulo Borges, Mauro Freire, Duda, todo mundo ali junto fazendo esse evento. Conheci os estilistas todos daqui. A Clô, conheci o Waltinho, todos. Todo o povo da moda.
P/1 - Você fazia a unha de todo mundo?
R - Conheci e fazia a unha de todas as modelos lá no Mauro.
P/1 - E você conhecia porque eles iam ao Mauro ou porque você começou a frequentar...?
R - Não, lá era um point só de gente famosa e de modelo e povo da moda. Era o que tinha de melhor ali.
P/1 - E eles te adoravam? Você conversava com todo mundo?
R - Todo mundo gostava de mim, graças a Deus.
P/1 - E como foi com a sua filha? Ela começou a dar problema quando?
R - Sabe, como eu sempre fui uma pessoa que sempre cuidou da minha vida e nunca foi pro lado errado da vida, eu também não me preocupei que ela fosse. Pra mim não existia o lado ruim, só tinha o lado bom. Ela era minha filha, ela ia seguir o que eu sigo. Se eu fosse ruim ela ia ser ruim, se eu fosse boa ela ia ser boa. Era isso que passava na minha cabeça, mas não foi bem isso. Ela começou a estudar na escola pública e começou a fumar maconha...
P/1 - Mas lá ou aqui?
R - Aqui. Porque...
P/1 - Quando você a trouxe pra cá?
R - Eu trouxe ela depois de um ano, porque eu já tinha montado a minha casinha. Eu não ia trazer ela na época porque eu ia pra casa da minha sogra. Ainda bem que eu não trouxe. Deixei ela e a cachorra.
P/1 - Aí você trouxe quando você foi pra Penha?
R – Isso! Quando eu estava já na Penha fui pra Fortaleza, peguei ela e a cachorrinha e trouxe.
P/1 - E aí?
R - Ela foi estudar em escola pública e começou a andar com quem não presta, começou a usar droga e foi indo… Dando trabalho. Tá tudo no roteiro.
P/1 - Conta pra gente.
R - Ela usou drogas, ela se prostituiu, depois teve filho. Porque ela se...
P/1 - Como que ela... Como você percebeu?
R - Não, ela me contava! No comecinho, que ela estava na maconhinha, no cigarrinho - nem cigarrinho ela fumava, [era] cigarro normal - eu não percebia muito. Depois eu fui… Ela estava já com dezessete, dezoito; teve o filho com dezoito. Ela ficou em casa, ficou com vergonha porque ficou grávida. Teve o filho, foi pra rua. Aí conheceu um cara que era garoto de programa, que usava droga, se juntou com ele e teve mais dois filhos. E foi só na droga e só na prostituição. Eu acho ela fraca, porque a pior coisa que existe no mundo é a pessoa não ter coragem na vida.
P/1 - E ela era casada com o cara?
R - Não, ela se juntou. Teve mais dois filhos. O primeiro filho eu criei, tô criando até hoje. É um doce de pessoa.
P/1 - E os outros dois?
R - Um tá... Eu mandei pro meu irmão os outros dois. Faz uns dois anos ela mandou um, pegou um de volta e o outro tá lá em Maranguape.
P/1 - E ela começou a se prostituir como? Saía com vários pra ganhar dinheiro ou pra comprar drogas?
R - Porque ela se juntou com o garoto de programa, que era usuário de drogas e saía com mulher, com homem - era garoto de programa, fazia qualquer coisa. Ela se juntou com ele e aí começou a fazer a mesma coisa que ele.
Olha, eu te juro uma coisa, sabe uma coisa que eu nunca quis na minha vida? Foi gente pior do que eu, porque meu avô sempre dizia: "Me diz com quem anda que eu te direi quem tu és", é a maior verdade que existe. Eu sempre me afastava de quem não prestava, porque se não eu ia junto. Concorda?
P/1 - E que tipo de droga que ela usava?
R - Ela usou a maconha e cocaína, só. Diz ela que nunca usou crack. Também, se tivesse usado não tinha saído, né?
P/1 - E você a ajudou?
R - Ajudei. Bom, eu não podia ajudar com ela longe da minha casa, porque eu tinha o menino pra cuidar, tinha o meu trabalho, mas sempre que ela precisou eu botei dentro de casa. Mas todas as vezes que eu ajudei a Bárbara dentro da minha casa, isso foi me tirando um pouco da minha vida, porque eu deixei de viver pra viver a vida dela. E eu não vivia feliz com aquilo, então você acaba ficando triste. E aí saía, ia embora de novo, depois voltava. Agora ela foi pra casa dela e eu acho que eu não quero mais de volta.
P/1 - E como é... Ela parou?
R - Ela parou. Fez um curso de Enfermagem, se formou, parou de andar... Porque toda noite ela saía. Ela saía de noite e voltava no dia seguinte, bêbada e drogada. Aí acordava com aquela depressão, querendo chutar todo mundo dentro de casa. Quem aguenta viver desse jeito?
Eu consegui tirar ela essa vida. Pus ela pra fazer um curso de Enfermagem, cuidei dela em casa, mas ela não tá cem por cento boa ainda, viu... Eu acho que ela ainda... Eu acho que ela gostava da vida que tinha.
P/1 - Quanto tempo ela ficou nessa vida?
R - Ela tinha dezenove... Nossa, doze anos, minha filha! Dez anos, mais ou menos, já tem uns quatro anos que ela saiu. Mas ainda fuma maconha e não arranja emprego, então a tendência...
P/1 - E quem a sustenta?
R – Um rapaz, ela se juntou com ele. Já se separaram, mas ele continua ajudando ela. Até quando é que eu não sei.
P/1 - E você a colocou pra fora de casa?
R – Não! No curso ela conheceu o cara. Eles namoraram, tudo lá em casa, bonitinho. Aí ele arrumou um emprego e ela não... Ela tinha arrumado um emprego, mas ela não para em emprego nenhum; três meses depois... São só os três meses. Não sei o que ela faz.
Diz ela que não sabe o que acontece, mas eu sei. Ela é muito explosiva, é grosseira com as pessoas. Ela precisa tomar remédio, na verdade, e não toma. Aí esse cara alugou a casa e foram morar [juntos]. Ele já se separou dela, mas continua pagando o aluguel pra ela. É isso.
P/1 - E ela vive como?
R – Eu não sei. Ela mora lá na Zona Norte.
P/1 - Vocês não se encontram mais?
R - Ela não vem na minha casa, diz que odeia a minha casa, então fica por lá. Eu também não fico ligando, nem perguntando, porque eu não quero saber.
P/1 - Por que ela odeia?
R - Eu não sei, ela odeia todo mundo! Ela odeia ela mesma, ela odeia todo mundo. Porque ela é uma pessoa que não é feliz, ela é depressiva. Ela acha que o mundo inteiro é errado, só ela é a certa. Ela precisa tomar remédio, já arranjei psicólogo, psiquiatra pra ela e tudo. O psiquiatra passou remédio e ela não toma.
P/1 - E esse netinho que mora com você, quantos anos tem?
R - Quinze já. É ótimo, estuda no [Colégio] Sion desde os quatro anos.
P/1 - Bom, aí você ficou na Penha. Você saiu com quantos anos da Penha?
R - Eu estava passando necessidade, fome, só comia uma vez por dia. Mas não tinha o Lucas ainda, [éramos] só eu e Bárbara. E ela, vendo tudo aquilo, ao invés de ficar do meu lado, não - aí é que ela ficava três quatro dias fora de casa. Aquilo pra mim era muito ruim, eu mãe e saber que eu tinha uma filha e a filha é ausente. Mas eram as drogas já.
Fui lá no Jacques Janine onde a minha amiga trabalhava - a gente trabalhou juntas - e aí ela me arranjou o emprego no Mauro. Daí eu fui pra lá, foi lá que eu conheci todo mundo.
P/1 - Aí no Mauro você ficou três anos...
R - Três anos, aí resolvi ficar a domicílio. O Mauro mandou todo mundo falar comigo pra não ir. Eu digo: “Mas porque que vocês não querem que eu saia?" "Foi o Mauro que pediu pra gente te pedir." Eu digo: "Mas eu vou sair porque gosto de estar na rua, na casa de uma, na casa da outra. Eu não gosto de ficar presa no salão muito tempo.” E eu ia ganhar mais. Lá eu dava a metade. Eu dobrei o meu ganho. Da Penha, [quando] eu já trabalhava com o Mauro, eu vim pra Higienópolis.
P/1 - Você mudou pra Higienópolis?
R - Sim, mudei pra Higienópolis, minha filha!
P/1 - E porque que você escolheu Higienópolis?
R – Pois é, essa pergunta nem eu sei responder, porque é o bairro que mais amo nessa cidade. Você podia dizer assim: "Tem uma casa..." Eu já morei nos Jardins, mas eu odeio os Jardins. Morei primeiro em Higienópolis, depois morei nos Jardins e voltei pra Higienópolis. Dali não saio mais.
P/1 - Você escolheu Higienópolis, mas você já conhecia?
R - Não, eu passeava por aqui. Eu trabalhava a domicílio e gostava do bairro. Não é que eu conhecia, eu tenho clientes no bairro. Eu gosto do bairro, simplesmente isso.
P/1 - E como é que...
R - Os prédios são antigos. Eu gosto do que é antigo, gosto do que é diferente. Aquilo tem histórias, cada prédio daquele tem uma história, gente. Quanta gente não morou ali? É tudo história!
P/1 - E quanto tempo... Como é que você descobriu a casa onde você mora?
R - A casa que eu moro, como?
P/1 - Em Higienópolis. Você mora em um apartamento?
R - Em um apartamento.
P/1 - Na [Rua] Alagoas.
R - Na Alagoas.
P/1 - Como é que você descobriu?
R - Espera aí. Eu moro na Alagoas agora, antes eu morava na [Avenida] Angélica. A primeira casinha, o primeiro apartamento que eu aluguei foi na Angélica.
Eu descobri porque eu passando em frente tinha uma plaquinha com o telefone. Liguei e aluguei o apartamento, com seguro fiança. Deixei de morar lá pra ir morar no Jardins, aí me arrependi. Saí do Jardins e agora voltei.
P/1 - Em que rua do Jardins você morou?
R - Na [Alameda] Jaú.
P/1 - Ficou quanto tempo lá?
R - Cinco anos, minha filha.
P/1 - Em um apartamento?
R - Em um apartamento.
P/1 - Com o dinheiro de manicure? Pagando aluguel?
R - Sim, dinheiro de manicure. Tem que ganhar pra ter minha vida lá em Higienópolis. (risos)
P/1 - E de lá você alugou agora na Alagoas?
R - Na Alagoas, porque… Não, espera aí...
P/1 - Que altura da Alagoas?
R - De lá dos Jardins eu vim pra Angélica de novo, pra morar no mesmo prédio, no apartamento de frente. Quando eu morava nele tinha uma senhorinha que comprou o apartamento de frente e a gente ficou amiga. A senhorinha foi para o asilo e a filha dela me ligou perguntando se eu não queria alugar o apartamento da mãe dela. Eu disse: "Não acredito! É lógico que eu quero!" Pulei de alegria. Ela alugou em uma semana, só em uma semana: "Vem aqui assinar o contrato." Digo: "Mas já?" "Já! Você não quer?" Assim, ó! (estalar de dedos)
Eu me mudei de volta no mesmo prédio, no mesmo andar, no apartamento de frente. Foi muito bom, gente! Aí a mãe dela morreu, teve que vender o apartamento. Agora em dezembro eu me mudei pra Alagoas, em frente à praça Buenos Aires. Melhor ponto impossível!
P/1 - É um aluguel caro? Como é é?
R – É. Mil e seiscentos [reais], mais o condomínio.
P/1 - E você mora sozinha lá? Ah! Com o seu neto.
R - Com o meu neto e o cachorro.
P/1 - O seu neto você colocou pra estudar no Sion?
R - Não, ele já estuda no Sion desde os quatro anos. Quando ele tinha quatro anos foi que eu vim morar em Higienópolis.
P/1 - Entendi.
R - No total, eu tenho dez anos de Higienópolis e cinco anos de Jardins.
P/1 - Qual foi sua primeira cliente a domicílio, depois que você saiu do Mauro?
R - Não sei, porque quando eu estava pra sair do Mauro já ia avisando a todas elas. Elas diziam: "Pra onde você vai?" Eu digo: "Vou ficar a domicílio." Elas: "Ah, então marca o dia e o horário meu." Quando eu saí do Mauro eu já tinha uma agenda de clientes certa, não é que eu saí pra procurar cliente. Eu saí com a agenda com cliente de toda semana, todas do Mauro, que já faziam comigo.
P/1 - Quem eram? Quem você começou a fazer?
R - Olha, tinha a Joyce Pascowitch, tinha a Tânia Magalhães, que era dona da Lita Mortari, tinha Luana... Não, Luísa Tomé. Tinha Constanza Pascolato, a Clô Orozco...
P/1 - Minha prima.
R - É sua prima? Adoro a Clôzinha! Ela frequentava o Mauro, nessa época. E outras mais. E as meninas, as modelos.
P/1 - Você fazia na casa delas e faz até hoje?
R - Algumas eu já larguei, tem novas e outras continuam. Dessas aí todinhas do Mauro já faz... Meu Deus! Já faz quase quinze anos que eu estou a domicílio. Será? Não, são dez anos. Tem umas seis ou oito por aí, o resto é tudo nova.
P/1 - E como é a sua história de cinema, que você escreveu um roteiro?
R - Ah, cinema! Eu sou apaixonada por cinema. Bom, gostava de livros, aí descobri o cinema, melhor ainda!
P/1 - Conta com quantos anos você descobriu o cinema.
R - Eu tinha tido para o cinema muito pouco lá em Fortaleza, porque tinha o amante. O amante não ia pra cinema e fui levando.
Fui conhecer o cinema... Sempre gostei de assistir os filmes na televisão, mas me apaixonei foi depois dos trinta anos, eu acho, porque assisti um filme do Pedro Almodóvar.. "Tudo sobre minha mãe", "Fale com ela"... Ai, meu Deus! Aí eu me apaixonei.
Eu resolvi escrever o roteiro da minha vida, da minha vida com a minha filha - mais a vida dela do que a minha. Ela é puta de raiva com isso. Digo: “Vou botar a história como ela é, sem enfeitar”. E é tudo o que tá escrito ali. Tirando a última cena é tudo verdade.
P/1 - Você sabia como escrever um roteiro? Como é que você escreveu?
R - Não, sabia não. E nunca tinha visto um. Eu fiz um curso lá no SENAC [Serviço Nacional de Aprendizagem Comercial]. Só fiz só sessenta horas de aula.
A professora falava mais da vida dela do que ensinava roteiro. E cada vez eu dizia: "Professora, como é que a gente faz essa cena?" Tudo o que eu queria saber eu interrompia ela, perguntava e anotava. Daí eu fui pra livraria, perguntei lá na Cultura o que tinha sobre cinema, sobre roteiro. A moça me pôs um monte de livros, comprei todos. Fui pra casa e li todos eles. Li pra poder entender e aprendi. Segundo o [Arnaldo] Jabor, é um roteiro estilo americano.
P/1 - Conta, você vai chegar. Daí você foi no SENAC...
R - Fui no SENAC... Ah, mas tem uma história muito interessante no SENAC, você não tem ideia. As pessoas...
P/1 - Você foi aprender porque queria fazer um roteiro e já mandar pro Almodóvar ou depois?
R - Exatamente. Não, senhora!
P/1 – A ideia sempre foi essa?
R - Quando eu vi o filme de Pedro… Eu já assisti muitos filmes antigos, nunca me interessei por nada, mas assistindo os filmes de Pedro… Eu não sei se por causa do colorido, dos personagens dele, que são muito fortes... E a história era parecida com a minha e da minha filha, aí tive a ideia de aprender a fazer um roteiro pra poder escrever a história da minha filha, por causa dele. Porque até então...
P/1 - Mas você queria fazer o roteiro e manda pra ele ou não, só fazer o roteiro?
R - Não, fazer o roteiro e mandar pra ele. Eu mandei! Ele devolveu, porque não me conhece. No dia que ele me conhecer vai ver o roteiro. [Em] breve estarei com ele. Esse é o meu sonho que ainda vai ser realizado e eu não vou perder as esperanças. Pra eu morrer em paz. (risos) Então, fiz o roteiro bem feitinho...
P/1 - Não, espera aí. Você fez o curso no SENAC...
R - Fiz o curso no SENAC.
P/1 - Você ia contar uma história.
R - Eu já ia fazendo o meu roteiro pra poder levar pra professora e ela ver se estava direitinho. Uma vez ela disse assim: "Mas essa cena tá muito longa!" Aí eu disse: "Mas por quê? Não pode ter uma cena longa? Eu me lembro que Hitchcock tem um filme que é uma cena só, então porque que a senhora está falando isso?" Aí ela viu a besteira que ela fez. Você pode ter um filme com uma cena só, compreende?
Aí eu disse: "Quer saber, eu vou procurar livros! Porque tudo o que eu aprendi foi nos livros, então agora eu quero aprender roteiro nos livros também." Porque tem um monte. Tem até a receita, parece uma receita de bolo, minha filha. (risos da entrevistadora)
Primeiro, aqui em cima, o título, bota três "Enter", aí bota "Fade in", bota mais dois "Enter", bota... Menina, isso é uma receita de bolo! Agora, tem umas coisas que a gente não... Não dá pra ser receita, por exemplo, quando você quer fazer uma fusão. Você tem aquela fusão; quando você tem um flashback você tem que botar o flashback, depois botar o fim do flashback, porque um flashback tem que ser... Não é um flashback, tem gente que bota flashback no filme inteiro e não é! Um flashback é pra… Já tá falando, é uma... Você sai da cena por alguns segundos e aí tem que voltar à cena, então você tem que usar o fim do flashback. Isso não tem lá na receita, mas é coisa que você tem que aprender. É muito difícil um roteiro de cinema, mas pra mim é fácil, porque eu já fiz um.
P/1 - E que história engraçada que você ia falar do SENAC? Você falou: "Ah, tenho uma história..."
R - Menina, me matriculei lá. Como nunca tinha feito uma escola, não fiz nada… Só quinze pessoas na aula, não pode ter mais. Todo mundo se apresentou: "Ai, eu sou jornalista." "Meu nome é fulano de tal e sou jornalista." "Meu nome é isso..." Quando chegou a minha vez eu disse assim: "Eu sou Florescelia, sou manicure."
Você acredita que a minha professora disse depois… "Cadê aquela moça do cabelo vermelho?" Aí ela disse assim: "Ela desistiu do curso.” Aí eu digo: "Por quê, Cristina?" Ela disse assim: "Você acredita que ela disse que achava que o curso era mais bem selecionado?" Porque eu não tinha frequentado uma escola e eu estava fazendo o curso de roteiro. Ela achou que aquele curso não era pra ela, entendeu? Olha que gente idiota! Eu não acredito. Mas no dia que eu encontrar com essa moça, eu vou olhar bem na cara dela assim e vou dizer: "Mas tu é tonta, né?"
Acontece que ali não aprende a fazer roteiro. Você aprende a fazer roteiro lendo sobre roteiro, vendo filme. Você vê o filme e depois você vai ver o roteiro. A mesma coisa que você tá vendo no filme; presta atenção na história, depois você vai prestar atenção como é que ele foi feito. E você acredita que funciona? Você sabe exatamente como que tá escrito a cada cena daqueles filmes. Não é engraçado?
P/1 - E aí qual... Você fez o roteiro?
R - Fiz. E aí o Jabor e a Fernanda leram.
P/1 - Como é que você chegou no Jabor?
R - É porque eu sou manicure da Suzana, ex-mulher dele - na época, mulher dele. Eu disse: "Vou dar pro Jabor, porque o Jabor é um cineasta muito antigo, experiente. E vou dar pra Fernanda, que também já fez cinema.” Dei para os dois, os dois leram e gostaram. Falaram pra mim que era bem feito, bem escrito, mas não gostam de drama e ele é um drama. Isso é pra quem gosta de drama.
Eu só gosto de drama. Detesto, não assisto um filme [de] comédia, não consigo. Acho que não é arte. Pra mim o cinema tem que ter o sonho, seja do amor, seja do drama... Porque cinema é sonho. Hoje o povo transformou programa de televisão em cinema. Eu quero matar esse povo. Sabe quais são os filmes que eu mais gosto? São os filmes do Hitchcock, são os filmes da Bette Davis, ela fazendo, porque foram vários diretores que dirigiram ela... Esses filmes. Não são muito melhores?
P/1 - E como é que veio... Como é que você chegou no Almodóvar, pra mandar?
R - Eu fiz o filme, fiz o roteiro, estudei. Perdi cinco anos da minha vida nessa função.
P/1 – Você demorou cinco anos pra fazer?
R - Não, eu fiz e dá pra... Cinco anos, porque até eu terminar o filme, o roteiro, até eu mandar pra lá e tudo... Tem que ter espera, porque lá não recebe roteiro toda hora.
P/1 - Você mandou, mas a primeira pessoa que viu foi o Jabor e a Fernanda?
R - E gostaram. Achei depois um francês que queria comprar meu roteiro, mas ele queria me pagar pouco e eu não vendi. Digo: "Se é pra pagar pouco, eu prefiro dar pra Pedro, que já é dele mesmo...”
P/1 - Quem é esse francês?
R - Um francês aí, não era cineasta. Ele queria fazer um filme. Queria um roteiro, queria investir. Gente com dinheiro.
P/1 - Conta como que você conheceu esse francês.
R - Lá na Cabala.
P/1 - Na Cabala?
R - É.
P/1 - Termina essa história e a gente volta pra Cabala. E quanto ele quis pagar no roteiro?
R - Queria pagar cem, eu queria...
P/1 - Cem mil?
R - É. Eu queria cento e cinquenta.
P/1 - Ele quis te dar cem mil no roteiro e você não vendeu?
R - É. Não vendi primeiro porque era pouco, segundo porque ia acabar o meu sonho de Almodóvar e eu preferi optar pelo sonho. Eu sou persistente. Só vou desistir do Pedro quando ele olhar na minha cara e dizer que não quer o meu roteiro. Tá aí, guardadinho pra ele. Já passei pro espanhol, mas não sei se o espanhol foi tão bem feito assim, sabe? Eu não falo espanhol. Prefiro levar ele em português.
P/1 - E aí, como que você… Você falou: "Preciso mandar pro Almodóvar".
R - Aí eu mandei.
P/1 - Como é que você conseguiu os dados?
R - Eu entrei no site da produtora. Na El deseo.
P/1 - Você procurou no Google?
R - É. Aí eu entrei, procurei saber como mandava o roteiro. Tinha lá uma nota dizendo que a gente… Que ia abrir, que tal tempo ia ter [para] as pessoas mandarem roteiro, por um período curto. Eu mandei, devolveram com uma carta.
P/1 - Mandou e depois de quanto tempo devolveram?
R - Acho que depois de um mês, um mês e meio, mais ou menos. Mas são pessoas muito corretas, porque mandaram uma cartinha [dizendo] que não tinham interesse no momento. Mandaram, deram uma satisfação. Só que não é Pedro que lê, quem lê... Ele contrata várias pessoas pra lerem o roteiro lá. E Pedro nunca fez roteiro de ninguém, Pedro nunca dirigiu filme de ninguém.
P/1 - Escreveram o quê na carta?
R - Que no momento não tinham interesse na obra, mas mandaram a cartinha de lá. Coisa que no Brasil não acontece.
P/1 - Você mandou pra outras aqui no Brasil?
R - Mandei. Nunca me devolveram meu roteiro...
P/1 - Pra quem você mandou?
R - Ah, mandei... Já até esqueci, viu? Já dei na mão de diretor, do Murilo Salles. Já dei na mão dele quando ele estava filmando lá na produtora de Susana. Cadê que ele devolveu? Ele nem liga pra dizer: "Olha, é uma bosta o seu roteiro."
Aqui no Brasil, infelizmente eles são assim. Eles não têm a seriedade que o europeu tem e o americano. Primeiro eles precisam aprender a fazer cinema. Depois têm que ter a delicadeza de ver que outro mandou um roteiro pra ele; ele tem que devolver o roteiro se não interessa e dizer: "Olha, muito obrigado, mas não temos interesse." Como o Pedro fez. É muito isso ou faltam secretárias pra eles?
Por isso que eu não quero que ninguém faça meu roteiro aqui. Se Pedro não quiser meu roteiro, eu vou guardar ele na gaveta e ninguém vai fazer. Só um americano, mas daqui eu não quero.
P/1 - Como é essa história da Cabala?
R - Eu frequentei um tempo a Cabala, fiz uns cursos lá.
P/1 - Como é que você foi parar na Cabala?
R - Tenho clientes na Cabala. Diziam: "Ah, vai fazer um curso. Cabala um, Cabala dois, Cabala três..." Fui. A verdade é boa, mas tudo leva ao mesmo lugar, não sai daquela linha de todas as religiões.
P/1 - O que é a Cabala?
R - Então, a Cabala...
P/1 - O que você foi aprender na Cabala?
R - Aprender como o mundo foi feito, o que acontece com a negatividade, com o que você reativa... Essas coisas que a gente já sabe. Que a gente tem que ajudar o próximo, quanto mais dá mais você tem. Eram coisas que todo mundo já sabe. Nada de especial.
(pausa)
P/1 - Bom, vamos retomar. Em que momento da sua vida você foi pra Cabala?
R - Ah, faz pouco tempo. Há um ano, só.
P/1 - Quem te levou?
R - Uma cliente minha que fazia cursos, que ia lá. Ela inclusive pagou pra eu fazer o Cabala um, Cabala dois, Cabala três.
P/1 - Qual é o Cabala um, qual é o dois e qual é o três?
R - São os ensinamentos. São dez aulas cada uma, tem dez aulas. Vai seguindo os ensinamentos que a gente já sabe. Não tem muito, não tem nada de segredos. Eu não encontrei nenhum segredo que eu não soubesse.
P/1 - Depois que você se separou do seu marido da Penha, você nunca mais encontrou com ele?
R - Graças a Deus, minha filha! Nunca mais. Só que eu andei procurando por ele e eu não achei o desgraçado.
P/1 - Por que você foi procurar?
R - Porque eu ia me casar com um libanês, mas as minhas clientes disseram assim: "Não casa. Libanês, não casa!" Aí eu disse assim: "Não vou casar então." Ele ficou bravo, foi embora pro Líbano. Foi o meu último namorado, quando eu estava com trinta e dois anos.
P/2 - Mas você pensou em casar e ir pra lá com ele?
R - Não, ele queria casar e ficar aqui, mas quem me garante que ele não queria me levar pra lá? Ele queria cidadania, viu? Ainda bem, porque procurei o marido e não achei.
O advogado procurou esse homem na casa dos pais dele; nem existe mais a casa. Venderam, um morreu, não sei o quê mais. Foi muita confusão, mas não achou ele. Eu acho que ele tinha vontade de ir pra Dallas, eu acho que ele tá em Dallas. Trabalhar na Southwest [Airlines], uma coisa assim, uma companhia aérea que tem lá. Que fique por lá.
P/1 - E o libanês foi seu último namorado?
R - O último.
P/1 - Quanto tempo tem isso?
R - Nossa! Quinze anos já.
P/1 - Nunca mais teve namorado?
R - [Há] uns quinze, dezesseis anos. Nunca mais!
P/1 - Nem um casinho?
R - Mas nem casinho, nem olho pra homem! Minha filha, se toda mulher fosse como eu os homens estavam perdidos, viu? Porque eu nem olho para os homens mais. Os homens iam virar gays, todos eles. Pra mim só tem um homem, minha filha, na minha vida: é Pedro Almodóvar. Se ele quiser casar comigo eu caso. De verdade! Eu tenho ele no meu celular. Vou fazer uma tatuagem dele aqui no meu braço. Pra carregar ele comigo.
P/1 - Por que você se apaixonou por ele?
R - Nossa, não sei. Tem coisa que é inexplicável. Não sei, talvez a vida dele seja parecida com a minha. Conheço toda a história dele. Um pouco parecida, não é? A minha é mais complicada do que a dele, mas foi…
Sabe um homem que tem… Ele tem um olhar que poucas pessoas têm. Ele é sensível. Você vê que o filme dele tem um pouco de arte. A pessoa não faz uma coisa, um filme daquele à toa. E ele tem aquele olhar. O filme dele é espetacular. Os cenários que ele cria, tudo, a história.
P/1 - E por que você acha que a vida dele é parecida com a sua?
R - Porque ele foi uma pessoa que nasceu também pobre, não foi... Não nasceu rico. Ele batalhou na vida dele até conseguir. Só que a mãe dele… Ele teve a mãe dele até outro dia. A minha foi embora antes.
P/1 - Seu pai é vivo ainda?
R - É.
P/1 - Você encontra com ele?
R - Não, faz... Ele mora lá no...
P/1 - Você viu só três vezes, você falou.
R - É, durante a minha vida toda [vi] umas três ou quatro vezes. Mesmo eu morando lá eu nunca vi ele, não encontrava. Ele morava em um lugar e eu morava em outro.
P/1 - E seus irmãos, esses que vocês foram separados, que seu pai atravessou o rio. Você tem contato com eles?
R - Tenho. De vez em quando eu falo com o meu irmão. O outro mais novinho morreu já, o que tinha um ano. Ele morreu já faz uns três anos. Ficou só o meu irmão mais velho.
P/1 - Mas com esse outro você também tinha contato?
R - Tinha, a gente se falava por telefone de vez em quando.
P/1 - E quando vocês eram pequenininhos, vocês perderam o contato?
R - Perdemos. Cada um vivia em uma casa, então fica assim uma coisa que tu não tem muito amor. Sabe que é teu irmão, mas não tem aquele amor. Fica uma coisa, como se fosse um estranho: gosta, mas não é como se fosse irmão. Eu não sei o que é um amor de um irmão, o amor de uma mãe, entendeu?
P/1 - Quem dessa sua família toda você lembra mais e você tem mais contato?
R - Da minha família toda?
P/1 - É, dessa época.
R - Eu... Ninguém. Porque a minha vida aqui é com as minhas clientes. Elas sim, eu me lembro delas todo dia. Todo dia eu vejo elas, quando não vejo fico com saudade. Mas na família não, porque não tive bem uma família. Eu fiquei lá, simplesmente. Ninguém nunca me deu amor, nunca me deu carinho e era tratada diferente, tanto na família da minha mãe quanto na família do meu pai.
P/1 - E aqui em São Paulo, o que você faz quando você não está trabalhando, nos momentos de lazer?
R - Tem duas coisas que eu faço: ou eu assisto filme, compro muitos DVDs e assisto ou escrevo roteiro de cinema, pro cinema.
P/1 - Você já escreveu quantos?
R - Eu tenho um feito de cento e vinte e cinco páginas...
P/1 - Que é esse do Almodóvar?
R - É, “Desobediência”. E estou escrevendo "Lúcia Bicicleta".
P/1 - "Lúcia Bicicleta" é sobre o quê?
R - Esse é a história da minha adolescência. Um pouquinho da adolescência que eu, que eu fiquei lá no Maranguape.
P/1 - O que você conta nele?
R - É segredo!
P/1 - Você contou pouco aqui.
R - Vai ser dos anos setenta.
P/1 - Mas conta um pouco...
R - Não.
P/1 - Aqui é depoimento de história de vida.
R - Não, mas aí pegar e vão... Menina, a história é tão boa, mas tão boa que você não tem ideia.
P/1 - São coisas que você viveu lá?
R - É. Eu conheci uma moça...
P/1 - Você não contou aqui, hein, danada?
R - Não, eu conheci uma moça… Menina, eu fiz muita coisa na vida, tá doida. Se eu for contar aqui eu não saio daqui hoje.
P/1 - Não faz mal, a gente volta.
R - Lá em Maranguape eu conheci uma moça que tinha um apelido de Lúcia Bicicleta e eu, como não tinha mãe nem nada, tive... Fiquei amiga dessa pessoa antes de fugir com esse homem. Ela saía pra ir de Maranguape pra Fortaleza e eu ia junto. A gente aprontava coisas...
Olha, é só pra cinema, minha filha, porque é inacreditável! Eu subia nas mesas daqueles bares abertos lá em Fortaleza, aqueles bares abertos de frente pro mar, com mesas na areia e com conjunto tocando. Eu subia, dançava em cima das mesas, naquele ano ainda... Setenta e pouquinho... Setenta e três, 74, dançava na mesa... E ela dançava na outra mesa.
P/1 - A Lúcia Bicicleta?
R - É.
P/1 - Quantos anos você tinha?
R - E eu era menor e ela tinha dezoito. A gente entrou num concurso de manequim padrão do Ceará, fomos desfilar. Desfilamos de camisola, de biquíni, de vestido de festa... Eu tirei o segundo lugar, imagina as outras! (risos) Era pior.
Eu tenho as fotos, minha filha. Eu tenho foto de camisolinha, de biquíni, de vestido de noite.... Foi lá no clube... E aí eu me lembro que a gente foi lá no cartório alterar o meu documento, porque eu não podia desfilar com quatorze anos. Ela foi junto comigo, fizemos um registro falso. Você acredita?
Ela mentia, ela arranjava namorado, falava coisas que ela não era. Ela era pobre, mas ela tinha assim um... Olhando assim para ela, você dizia: “Essa menina é rica.” Porque ela tinha umas maneiras e uma maneira de se vestir. Parecia uma pin-up, muito bonita. Era pobre, só que ela tinha… Ela olhava nas revistas e começava, sabe? Tinha aquele tipo. Tem gente que tem um tipo e é pobre, tem outro tipo que é gente que tem, é rica, mas parece que não é. Então ela era assim, ela tinha um tipo, aí ela mentia.
Quando os caras iam deixar a gente em Maranguape, ela dizia assim: “A gente mora aqui.” Numa casa bem bonita. O cara deixava a gente lá, ela dizia assim: “Meu pai é muito bravo, então não pode ficar aqui. Tchau.” O cara ia embora e a gente tinha que subir a serra a pé, com o chinelo na mão. Subia a serra todinha pra chegar lá e ter uma casinha de taipa - não era de taipa, é de tijolo, mas de reboco, sem nada, chão de barro... Tomando banho de cuia. E ela mentia para os caras.
Ela quase chegou a casar com um diretor de um jornal lá local, viu? Não casou porque ele descobriu que era tudo mentira, era uma farsa. Eu tô escrevendo essa história. Não vai ser legal?
P/1 - Muito.
R - Mas eu quero fazer um final bem… Eu sou assim. Como é aquele nome daquele escritor que me foge da cabeça, que já morreu? Rodrigues... Nelson Rodrigues. Sabe Nelson Rodrigues? Eu sou desse tipo de escritora. Daquele jeito ali. Porque as cenas pra mim têm que ser muito... Muito boas, para a pessoa não dormir no cinema. Você já viu, Nelson é muito bom. Acho que ele encarnou em mim.
O dia que eu tinha dito... Eu era virgem, porque antes eu não tinha fugido com o cara ainda. Eu era virgem e a gente entrou dentro de um carro, porque a gente andava de carona. Eram quatro caras em um Galaxy, tudo filho de papaizinho, e a gente foi de carona com esses caras.
Os caras não levaram a gente para casa, eles levaram a gente para um sítio. A outra tava lá no rala e rola com eles, porque eles estavam obrigando, e eu com um no meu pé, dizendo que eu tirasse minha roupa. Eu dizia: “Tire sua roupa primeiro.” E ele disse: “Não”. Bebendo, botando bebida na minha boca… Tava assim, um horror! Mas eu disse: “Espera aí.” Aí ele dizia assim: “Tira a sua roupa.” E eu digo: “Não. Primeiro você tira a sua roupa.”
Quando o cara ficou pelado eu dei no pé. Eu corri tanto! Menina, lá em Messejana, um bairro de Fortaleza. Cheguei na porteira, me joguei para o outro lado porque estava fechada. O cara correndo atrás de mim com a arma e eu ali, no meio da pista correndo. Os carros passando, buzinando e eu correndo, só de biquíni...
Tinha uma tapera velha que só vendia cachaça, com três homens lá bebendo cachaça. Eu digo: “Pelo amor de Deus! O homem tá atrás de mim querendo me matar!” Ele chegou nessa hora, aí ele disse assim: “Vamos embora!” E eu disse assim: “Não vou.” O cara disse assim: “O que você quer com a menina?” Ele disse assim: “Ela tá bêbada.” Eu disse: “Não tô bêbada, não! Ele tá correndo atrás de mim porque ele queria que eu tirasse a roupa.” Aí os três caras se juntaram e disseram assim: “E aí, rapaz? Te manda!” Foi eles que me salvaram. Aí a outra... Eles me deram uma blusa, uma camisa deles e eu fui para...
P/1 - Você estava só de biquíni?
R - Só de biquíni.
Eu voltei pra Maranguape. Quando eu cheguei na casa da Lúcia, a mãe dela - ela só tinha a mãe - disse assim: “Cadê a Lúcia?” Eu digo: “Ela não chegou ainda?” (risos) Ela disse: “Não. E você veio com quem?” Eu digo: “Eu vim sozinha.”
Eu fiquei lá e a outra veio chegar no outro dia, toda rasgada e toda machucada. (risos) Ela chegou em casa, a mãe ainda tirou a cinta e deu-lhe uma surra.
P/1 - O cara também a segurou lá?
R - Segurou. Eu não, eu dei no pé. Eu não sou besta, minha filha! Eu sempre saí das coisas.
P/1 - E a Lúcia Bicicleta mora lá ainda?
R - Mora, vende roupa velha lá no mercado de Maranguape. Eu sou louca para ir lá, para levar um monte de coisa para ela. Foi um tempo que eu passei com ela, muito… Vai dar para fazer essa história. ]
Por que será, hein? Tem gente que vive uma vidinha ‘xiiii’.... A minha tem muita e muita mudança. O personagem é o mesmo, mas a maneira de vida... Tudo muda. Não sei porque acontece. Veja: na adolescência eu tava em outro lugar, porque lá na minha casa eu não... Eu ia em casa, mas não ia. Eu ia lá e vinha, ficava em uma casa e em outra. Porque quando... A Lúcia Bicicleta cuidava mais de mim. Quando eu fui embora, ela sentiu. Quando eu fui embora com o homem.
P/1 - Ela ficou triste?
R - Ficou.
P/1 - E depois dessa época, quando você falou com ela?
R - Nunca mais [falei], porque eu fui viver minha vida em Fortaleza.
P/1 - Nunca mais até hoje?
R - Nunca mais. Até hoje.
P/1 - Você sabe dela por...
R - Sei dela porque eu ligo lá e as minhas primas, que eu morava com elas, me falam. Diz que tá velhinha, acabadinha... Também, aquele sol acaba com a cara de qualquer um, minha filha. Ela era mais velha do que eu seis anos.
R – Já acabamos?
P/1 - Você teve alguma formação religiosa?
R - Tive. Não tô te falando que eu ficava nos domingos pra fazer a comida pra não ir pra missa? Porque eu fui… Nessa casa que eu fui criada dos três aos cinco - não, dos três aos oito [anos], todo dia rezava o terço às oito horas da noite. Eu me lembro como se fosse hoje. Desligava a televisão na hora do jornal, rezava o terço, aí acabava de rezar o terço, ligava a televisão e assistia a novela das oito, que passava depois do jornal. Mas todo dia rezava o terço. E se não tivesse nenhuma... Se alguma se recusasse, ficava uma semana sem sair de casa.
Quando era aos domingos, [ia] pra igreja. Pra eu me livrar da igreja eu dizia: “Pode ir que eu faço o almoço.” Ficava fazendo o almoço. Cozinhava feijão, arroz, cozinhava frango, fazia bife…. Não era muita coisa. Lá não tinha costume de comer salada, era jerimum, batata-doce, essas coisas. Não tinha folha, essas coisas. Ninguém nem gostava. Pra fugir da igreja eu preferia ficar cozinhando.
Estão gostando da história?
P/2 - Muito.
R – De verdade? Pra mim é normal.
P/1 - E esse seu neto está com oito... Tá agora com...?
R - Quinze.
P/1 - E ele te chama de mãe?
R - Chama. Chama a mãe dele de Bárbara, porque eu criei ele desde que nasceu. E de... Quando ele estava com quatro anos ele olhou pra foto de minha mãe e perguntou: “Quem é, mamãe, aquela moça ali na foto?” Eu digo: “Aquela moça é minha mãe. Ela morreu já. Eu tinha três anos. [Era] mais nova que você.”
Ele disse: “Você sabia que eu já fui sua mãe?” Eu digo: “Quando?” Ele disse: “Há muito tempo.” Eu tenho certeza que ele é minha mãe. Não é possível ele ter me dito isso. Na cabala dizem que eles falam até os sete anos, mas é assim, eles falam na hora que eles querem. Eles soltam. Diz que eles lembram de tudo. Às vezes, a criança fala alguma coisa e a mãe não dá muita atenção, mas eles falam. Não é que você vai chegar pra criança e vai perguntar, eles simplesmente vão falando. E eu graças a Deus eu peguei.
Eu perguntei lá no professor de Cabala se... Contei a história e ele falou pra mim que eu tinha… Que eu podia ter certeza que ele era a minha mãe, que veio pra cuidar de mim, já que ela foi e não cuidou de mim.
Nossa, no dia que a minha mãe morreu eu fechei todas as portas da casa pra ninguém levar ela. Ela estava esticada no meio da... Em cima da mesa, com a rede forrando, em cima da mesa a rede e ela em cima da rede... E a minha mãe foi enterrada na rede. Conseguiram entrar e levar minha mãe e eu fui dentro da rede com a minha mãe. Ninguém conseguiu me tirar de dentro da rede. Mas isso não… Eu me lembro vagamente. A minha tia que contou isso pra mim.
Quando chegou no cemitério foi outro trabalho. Diz que eu gritava pra não levarem ela. Eu não entendia que ela estava morta. Imagina a cena! Porque lá no nordeste não tem os caixões, é sertão. Nessa época, então, a pessoa era enterrada na rede. Você coloca um pau bem grosso no armador, como se fosse o armador da rede, sabe? Aí um homem bota um pau aqui, o outro na frente e a rede fica assim, com o cadáver dentro. É assim que vai enterrado. E a criança lá em cima? Não era uma cena de cinema?
[Tenho] só algumas lembranças da minha mãe... Que ela era apegada comigo... E que eu era com ela. Ela sempre quis ter uma menina e teve uma gravidez, nasceu homem; ela queria uma menina e eu nasci no Dia das Mães. No ano 14 de maio de 1961 foi Dia das Mães, ela me ganhou de presente, me contaram isso. E aí, pronto, eu tinha uns... Ela... Onde ela ia eu ia atrás. Eu me enfiava embaixo da saia dela, me escondendo.
Pena que eu não conheci minha mãe. Podia ter sido, a minha vida podia ter sido outra. Com certeza seria, porque eu não ia largar minha mãe. Então, eu não teria conhecido outras pessoas.
Como teria sido minha vida se minha mãe não tivesse morrido, gente? Fico aqui pensando... Talvez eu fosse embora do sertão, porque eu não nasci pra ficar em sertão, não. Nasci no lugar errado. Eu ia embora, mas ia cuidar da minha mãe. (pausa)
Como é que as coisas vem na minha cabeça? Só através dos livros que eu conheci e a televisão, mas eu nunca...
Olha, menina, eu tenho uma família gigantesca; ninguém saiu do seu lugar. Só eu que saí pelo mundo. Isso é impressionante. Eu tenho o espírito de andar pelo mundo, porque tem gente que fica ali... Não tenho ninguém aqui em São Paulo, da minha família não tem ninguém. Todo mundo tá lá, cada um no seu lugar de sempre. O máximo que muda é de uma casa pra outra. Essa é a mudança.
P/1 - Se você pudesse mudar alguma coisa na sua trajetória de vida, o que você mudaria?
R - Eu não teria tido uma filha. O resto eu teria feito tudo. Porque ela me fez sofrer demais. Eu acho que ela roubou a minha alegria. Você não tem ideia, minha filha, foi muito tempo de sofrimento com ela. Os melhores anos da minha vida. Agora eu não deixo mais, porque eu só faço o que eu quero agora. Ela tem 34 anos, eu dei uma profissão pra ela, eu dei médico pra ela se tratar. Ela jogou fora, então ela que cuide da vida dela. Eu não posso fazer mais nada por ela, porque tudo o que eu fiz ela recusou, então não posso fazer, não posso obrigar.
Você ajuda uma pessoa que quer ser ajudada, concorda? Mas ela não quer ser ajudada. Então, agora eu risquei ela da minha vida. Ela vai ficar na casa dela e eu vou ficar na minha. Eu não quero que ela more mais comigo. Só tem dois anos que ela tá fora da minha vida, porque o resto ela ficou, dos meus dezesseis anos até os 48 anos. É muito tempo.
Não é que eu seja uma mãe ruim. Eu fiz de tudo pra ajudar ela. Todo mundo que me conhece sabe a minha história, dela e de mim. Só que eu ajudei demais. Se a pessoa não que ajuda, você vai fazer o quê? Prefiro ajudar quem quer ser ajudado. Ela fica lá e eu fico cá: “Oi. Tudo bem?” “Tudo bem.” “Ah, tudo bem.” “Tudo bem. Tudo bem.” Mais nada.
P/1 - Vocês se falam por telefone?
R - É, por telefone.
P/1 - E ela pergunta do menino?
R - Ela fala com ele também.
Só quero que ela seja feliz no cantinho dela. Não quero que nada de ruim aconteça com ela, mas eu quero ela longe da minha vida. Porque a minha vida foi em função dela. Hoje eu quero viver a minha vida. Escrever, ter cabeça para escrever. Com problemas dentro de casa, com grito, com barulho, você não escreve, não, minha filha! Você precisa de silêncio pra escrever as suas cenas.
P/1 - Qual é o seu maior sonho hoje?
R - É Pedro Almodóvar fazer o meu roteiro que eu fiz pra ele! E eu quero conseguir isso.
P/1 – Você já tem algum plano pra conhecê-lo?
R - Eu quero fazer... Estamos fazendo um documentário pra eu ir até Madri pra falar com ele, mas se não acontecer eu vou pegar um avião e vou lá na produtora dele. Se ele não falar comigo fico na porta lá até ele falar comigo. Vou cansar ele, ele vai me olhar, todo dia eu vou estar lá. Água mole em pedra dura tanto bate até que fura! Uma hora ele vai resolver.
P/1 – O que você achou da experiência de dar esse depoimento para o Museu da Pessoa?
R - Ah, eu achei ótimo! Porque tem pessoas que precisam de incentivo na vida, sabe? Pensam que porque não teve estudo, nunca vão ter nada. E não é verdade. Se você tem coragem e tem muita vontade de ter, de fazer uma coisa, tudo é possível, sem estudo mesmo. Deve ter pessoas assim, mas precisa ter muita força. E a força vem, não sei de onde mais vem, senão eu estaria lá no sertão até hoje.
P/1 - Obrigada.
R - De nada.
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