IDENTIFICAÇÃO Meu nome é René Wrany, sou nascido em Campinas em 16 de novembro de 1955. FAMÍLIA Meu pai, falecido em 93, é Otto Wrany, nascido em 1927, na Iugoslávia. E minha mãe é Dorothea Stadter Wrany, nascida em Campinas, em 1930. Stadter é alemã e meu pai é origem iugoslava. Conheci meus avós e conheci meu bisavô, que foi o fundador da empresa, que foi fundada em 1906. O mês eu não sei, tentei descobrir de tudo quanto é jeito qual o mês de fundação. Ele comprou a loja já, mais ou menos, funcionando, agora o mês eu não sei. Eu ia inventar um mês pra ter data, porque no ano passado fizemos 100 anos, mas no fim, desisti da idéia, começar a inventar coisa não dá certo (risos). Meus avós, por parte da minha mãe, que é da onde é a empresa, meu avô, pai da minha mãe era o Alfredo Stadter e minha avó chamava Elza Baumer Stadter. E do lado do meu pai, era Otto Wrany também e a esposa dele é a Rosa Stock Wrany. Todos imigrantes. O meu avô que foi dono da empresa era nascido em Campinas. O pai dele que veio, imagino em 1897, 98, que veio da Alemanha, ele já teve o filho dele, o Alfredo, que foi meu avô, aqui, nasceu em Campinas. Ele foi para a Alemanha estudar comércio, conheceu a minha avó lá e daí vieram para o Brasil. E do outro lado os meus avós era húngaros, de ascendência alemã. A situação na época era muito difícil na Europa, o meu avô tinha uma formação de funileiro e ele veio para o Brasil, largou a esposa com filho, que era meu pai, lá na Iugoslávia e veio tentar alguma coisa no Brasil. Veio pra São Paulo, arrumou emprego, mandou dinheiro pra lá e trouxe a esposa e o filho. Depois eles tiveram outro filho aqui no Brasil. Ele ficou muitos anos trabalhando em São Paulo, era uma profissão valorizada, a Dako veio se instalar em Campinas e o convidou pra ser gerente. Naquela época, era tudo feito à mão, os fogões. E ele foi gerente da fábrica em Campinas. Meu avô veio pra...
Continuar leituraIDENTIFICAÇÃO Meu nome é René Wrany, sou nascido em Campinas em 16 de novembro de 1955. FAMÍLIA Meu pai, falecido em 93, é Otto Wrany, nascido em 1927, na Iugoslávia. E minha mãe é Dorothea Stadter Wrany, nascida em Campinas, em 1930. Stadter é alemã e meu pai é origem iugoslava. Conheci meus avós e conheci meu bisavô, que foi o fundador da empresa, que foi fundada em 1906. O mês eu não sei, tentei descobrir de tudo quanto é jeito qual o mês de fundação. Ele comprou a loja já, mais ou menos, funcionando, agora o mês eu não sei. Eu ia inventar um mês pra ter data, porque no ano passado fizemos 100 anos, mas no fim, desisti da idéia, começar a inventar coisa não dá certo (risos). Meus avós, por parte da minha mãe, que é da onde é a empresa, meu avô, pai da minha mãe era o Alfredo Stadter e minha avó chamava Elza Baumer Stadter. E do lado do meu pai, era Otto Wrany também e a esposa dele é a Rosa Stock Wrany. Todos imigrantes. O meu avô que foi dono da empresa era nascido em Campinas. O pai dele que veio, imagino em 1897, 98, que veio da Alemanha, ele já teve o filho dele, o Alfredo, que foi meu avô, aqui, nasceu em Campinas. Ele foi para a Alemanha estudar comércio, conheceu a minha avó lá e daí vieram para o Brasil. E do outro lado os meus avós era húngaros, de ascendência alemã. A situação na época era muito difícil na Europa, o meu avô tinha uma formação de funileiro e ele veio para o Brasil, largou a esposa com filho, que era meu pai, lá na Iugoslávia e veio tentar alguma coisa no Brasil. Veio pra São Paulo, arrumou emprego, mandou dinheiro pra lá e trouxe a esposa e o filho. Depois eles tiveram outro filho aqui no Brasil. Ele ficou muitos anos trabalhando em São Paulo, era uma profissão valorizada, a Dako veio se instalar em Campinas e o convidou pra ser gerente. Naquela época, era tudo feito à mão, os fogões. E ele foi gerente da fábrica em Campinas. Meu avô veio pra cá e moraram no Cambuí. Eu tenho um irmão que não participa da empresa. Ele mora no Rio Grande do Sul e nós temos pouco contato. Tem contato por telefone, mas nós não somos muito ligados. Ele mora lá, tem a vida na cidade de Rio Grande do Sul, lá no finzinho do Brasil. INFÂNCIA Eu morava no Botafogo, próximo ao colégio Culto à Ciência. Naquela época, eu brincava na rua. Era rua de asfalto, mas o único movimento que tinha - que eu morava próximo de uma fábrica da Antarctica - era o movimento dos caminhões da Antarctica. Dava pra jogar futebol na rua tranqüilo. Eu ia a pé pra escola, para o Grupo Orozimbo Maia, que era lá em cima, na Andrade Neves. Depois fiz ginásio, colegial no Culto à Ciência, também ia a pé. E também eu ia de bonde pra cidade, era tranqüilo, eu não tinha preocupação com violência. A preocupação começou quando eu tinha 17, 18 anos, lá pra 72, 73, que a rodoviária se instalou ali no cruzamento da Andrade Neves com a Barão de Itapura. Daí começou a ter mais movimento na rua, pedintes batendo na sua porta e nós começamos a ficar preocupados. De vez em quando, alguma pessoa deixava a porta aberta, era assaltada, mas não um assalto de entrar uma gangue com arma. Tinha alguns roubos, roubavam botijão de gás, algumas coisas assim nas casas nas redondezas, mas fora isso, era uma tranqüilidade, nada a ver com hoje. Eu lembro que nas minhas férias, eventualmente, eu ia pra algum lugar, mas as férias eram na rua. Eu saía de manhã, voltava para o almoço, voltava para jantar, minha mãe sabia que eu estava na redondeza ali brincando na rua, futebol, tudo quanto é coisa. Caçar passarinho, naquela época, podia. Naquela época, não era ecologicamente incorreto e podia matar passarinho. Nossa Árvore tinha de tudo, era muito bom. Meus filhos não têm isso, não dá pra ter isso. Não tinha televisão. Eu me lembro de quando eu era adolescente que foi aparecer a televisão lá em casa. Não tinha televisão, não tinha vídeo game, não tinha computador, nós tínhamos que usar a imaginação pra brincar. Hoje não, hoje a molecada senta na frente da televisão, ou na frente do vídeo game ou do computador, e não precisa mover um músculo, só mexe o olho. COTIDIANO O que eu lembro muito bem é que eu ia muito com a minha mãe no açougue. Nós íamos fazer compras a pé. Na rua passava um verdureiro ou então ia à feira a três, quatro quadras de casa. Eu ia na feira pra ajudar a puxar o carrinho, pelo menos nas férias, aquelas coisas, no açougue, duas quadras. Onde hoje é a rodoviária, quase em frente, tinha um açougue, e eu lembro de vez em quando ir lá com a minha mãe que comprava carne, frango. Mas a maioria das coisas eu acho que ela comprava na feira mesmo. TRANSPORTES Eu pegava o trem ali na estação, que até hoje existe, aliás, a estação ali em cima, no começo da Andrade Neves. Eu tinha um tio que tinha fazenda - eu chamo de tio, mas não era tio - e tinha fazenda na região de Bauru. Fui umas duas vezes nessa fazenda, passar dois, três dias e pegava o trem que era o meio de transporte. Era uma farra, pegar trem era muito bom. É diferente da Maria Fumaça que tem hoje. Maria Fumaça tem que tomar um cuidado muito grande porque vem fagulha, queima você. Eu lembro do balanço que fazia, que era lento, era uma viagem longa. Você vai a Bauru, de carro, hoje, em uma hora e meia e eu lembro que a viagem de trem durava quatro horas. Fazia várias paradas e tinha aquele chocalho plum, plum, plum, plum. Quando ia fazendo o barulhinho era uma farra. Só de pensar que eu ia pra aquele lugar já era uma farra total. Era muito bom, muito gostoso. FORMAÇÃO A primeira escola que fiz foi na Orozimbo Maia. Eu fiz o pré-primário e o primário. Eu lembro que nos primeiros anos, meu pai ia trabalhar e me levava de carro, me deixava na esquina. E na volta, no pré-primário ou no primeiro ano, minha mãe ia me buscar a pé. Era uma caminhada de 15, 20 minutos de casa. E depois, acho que no segundo ano, eu tinha um vizinho que estudava comigo, mais meu irmão que era mais velho, e a gente voltava numa turma, voltava todo mundo a pé. Não tinha muitas ruas importantes onde pudesse haver atropelamento. Tinha a Barão de Itapura, mas tinha sinaleiro e nós sabíamos que tinha que atravessar no sinal vermelho para os carros. Depois disso, eu fui para o Culto à Ciência, que era mais perto da minha casa. Eu lembro que quando eu estava no pré-primário, eu usava um avental branco e aquilo me incomodava. Primeiro, que sujava muito e, segundo, que parecia um vestidinho. E eu lembro que a molecada maior ficava tirando sarro: “Ah, está de vestidinho” Aquilo me enchia o saco. O uniforme, você ia com um short azul marinho, uma camisa, mas tinha um avental branco, ia com aquilo. Depois eu entrei no Culto à Ciência e era diferente. Eu não cheguei a pegar, mas um pouco antes de eu entrar, os meninos tinham que trabalhar, tinham que ir de casaco, de terno. Eu não cheguei a usar terno, mas eu cheguei a usar camisa de manga comprida. Meia, tinha que ser branca, e camisa de manga comprida branca, não podia desabotoar e rolar. Imagine num pátio, no intervalo, numa época de novembro, aquele calor do cão, aquela molecada brincando de pega-pega. Imagina como a molecada voltava pra dentro da classe. Aquela camisa suja, suando até o olho, e tinha que fechar a camisa até aqui, porque senão você tomava bronca. Não podia abrir, desabotoar. Aquilo era uma tortura, tortura, pra criança. Imagina criança, molecada com camisa de manga comprida. E era uma escola que, até hoje, quem estuda lá, tem muito orgulho. É uma escola muito tradicional, estudaram pessoas ilustres lá como o Santos Dumont. Era a melhor escola, preparava você pra um vestibular. E era difícil. Na época, você precisava prestar um exame pra você conseguir entrar, pra fazer o ginásio. Sem exame você não entrava. Era um mini vestibular que você tem hoje nesses colégios técnicos, colégio técnico da Unicamp ou Escola de Química. CASA DE FERRAGENS PAULISTA Quando eu tinha lá pelos meus 8 anos de idade, meu pai foi assumir a loja do sogro. Meu pai era projetista, desenhista projetista e, quando ele mudou pra Campinas, ele foi ser sócio de uma construtora. Ele e um engenheiro montaram uma construtora. E surgiu um novo sócio, ele não queria, o sócio dele achava bom o novo sócio e começaram a se desentender. Meu pai resolveu oferecer pra ele uma representação de elevadores, pra ser representante da Otis, existe até hoje em Santos. Na época, em 1960 e poucos, começaram a surgir prédios em Santos, era uma perspectiva maravilhosa pra ganhar dinheiro. Mas, na época, o meu avô, apesar de ter feito escola de comércio na Alemanha e ter assumido a loja do pai dele, ele não gostava muito de comércio. Ele gostava muito mais de plantação, de chácara, de criação. Trabalhar no comércio, pra ele, era meio pesado. Ele tinha arrumado um gerente muito bom e esse gerente, praticamente, tocava a loja pra ele. De repente, esse gerente teve um AVC, na porta da loja. Ele estava na porta da loja, puf, travou metade. Quando é que ele sara? O médico falou pra ele: “Não sara mais, travou metade.” Meu pai tinha acabado de sair da sociedade e o meu avô falou: “Olha, eu estou afastado da loja, você não quer me ajudar um tempo, enquanto eu me recomponho na firma? Você não assumiu nada em Santos ainda, tal...” Meu pai falou: “Um pouco de tempo, uns três meses, eu fico.” Meu pai assumiu, meu avô sumiu. Um assumiu e o outro sumiu. “Não, a loja é problema seu agora, eu não quero mais saber da firma.” E meu pai estava muito preocupado porque a loja, nessa época, tinha decaído muito. É aquela história, os olhos do patrão engordam o porco. Como meu avô não ia muito pra loja - só ia lá, abria de manhã, ia fazer as coisas da vida dele, o que ele gostava, chegava de tarde pra fechar a loja - meu pai falou pra ele: “Olha, o faturamento dessa firma não permite que nós dois vivamos dessa empresa. O senhor e sua esposa e eu e minha mulher, filhos.” Passaram uns meses, a coisa começou a rodar, começou a ir bem, o meu pai desistiu de assumir a distribuição da Otis e assumiu a firma. A loja tinha uma construção e uma parte tinha pátio, tinha depósitos, aqueles depósitos antigos, o prédio antigo cheio de pó. Você começava a mexer nas caixas e achava coisas do arco da velha. Você achava uma caixa de bala Na época, nós vendíamos bala, munição. E você achava facas, armas, coisas que não vendia mais e que vão ficando abandonadas num canto, jogadas num canto. Quando me deixavam, eu ia mexer. Era uma farra eu ir lá. Hoje é tudo vem em embalagem de papelão, mas naquela época era tudo em caixa de madeira. Você ia ao depósito e era aquela pilha enorme de caixas de madeira. Era farra. Nós subíamos naquelas caixas, minha mãe ficava louca comigo que eu já voltava sujinho. Naquela época, você falar de loja de ferramenta era sinônimo de sujeira mesmo. Hoje não. Hoje você tem que manter uma loja limpa, tem que manter uma faxineira. Naquela época não existia faxineira. De manhã você dava uma varrida ali onde o padre passa e era aquela poeirada do cão (risos). PRODUTOS Quando meu pai assumiu estavam começando as indústrias. Até foi um bom divisor. Até 60 e poucos, vendia-se material pra fazenda, semente, armas, pólvora, bala e ferramentas em geral como prego, arame. Era mais pra construção civil e pra fazenda. Vendia arado, vendia formão. Eu lembro que vendia ácido muriático, vendia carbureto. Naquela época, existia lampião de carbureto. Hoje você nem sabe o que é aquilo. Eu cheguei a brincar com aquilo pra caçar rã. O lampião de carbureto tinha um bico ejetor que saia uma luz meio azulada. Você punha água e embaixo você quebrava a pedra de carbureto e você regulava, cada gota de água que caia liberava um pouquinho de gás que saía e você botava fogo na ponta. Eu lembro de pegar carbureto, a molecada gostava de caçar rã, tinha chácara, batia um vento, apagava aquela coisa. Bastava qualquer sujeirinha, entupia o bico, você não podia colocar a mão porque estava quente, tinha que esperar esfriar, abrir, já andava com uns araminhos, desentupia, punha outra vez e começava a pingar, pingava demais, fazia fum, saia um fogão. A diversão era você sair com aquilo, lampião de carbureto. Eu lembro que todos os funcionários usavam calça velha, porque você comprava bombonas enormes de vidro, de ácido, não sei pra que servia, mas as pessoas compravam ácido por litro. Você tinha que virar aquela bombona num funil, aquilo batia no chão e pingava, vinha tudo na calça e se pegasse na pele furava. A calça, o sapato, era tudo furado. A situação de insalubridade devia ser uma maravilha, naquela época. A pessoa morria acho que de infecção de tudo quanto é coisa. Aquele ácido saía aquele fumaceiro, a pessoa cheirando. E foi quando começou a Bosch, começou a ter ferramentas elétricas importadas. Meu pai se tornou distribuidor de ferramentas Bosch. Como ele também já tinha ligação com construtora começou a vendar as ferramentas elétricas pra construtoras. JUVENTUDE Tinha o clube com aquelas boates, como nós chamávamos. Todos os clubes de Campinas tinham o Carnaval. Hoje não tem mais quase Carnaval. Tinha barzinhos, tinha aqueles pontos que tinha três, quatro barzinhos espalhados pela cidade. Sempre tinha alguém que tinha um carro, então já enchia de molecada o carro, cabiam quatro e iam oito lá dentro, iam pra um barzinho ou pra o outro. Eu acho que não é muito diferente do resto. A diferença era a tranqüilidade. A preocupação da época era a bebida. Aqueles acidentes de carro que vira e mexe nós ficávamos sabendo: “Ah, morreu. Bateu o carro aqui, bateu o carro ali.” Não existia a preocupação de cinto de segurança, que foi surgir bem depois, ninguém usava esse cinto. Eu lembro da primeira vez que eu vi um Fusca com cinto de segurança: “Mas o que é aquilo?” O bacana, eu lembro, era o cara pegar o cinto, que era preso aqui na lateral, naquela coluna, o cara pegava o cinto, esticava, prendia. O Fusca tem aquele tampão, o cara pegava o cinto, jogava lá atrás, ficava no vidro de trás cruzado dos dois lados: “Coisa bacana. O dia que eu tiver meu Fusca, vou fazer a mesma coisa.” (risos) Tinha aquelas teorias de que se usasse cinto você poderia morrer dentro do carro preso e ninguém usava cinto, até hoje tem gente que não usa. Meu filho não entra num carro sem o cinto. Às vezes, eu ligo o carro, pra tirar da garagem, e ele: “Pai, você não pôs o cinto ainda.” “Eu vou por.” “Mas você não pôs ainda, está tirando o carro da garagem já.” TRABALHO Eu fui para a faculdade em 74. Fui fazer Engenharia Civil e fiz em Itatiba. No horário que eu não estava na faculdade, eu comecei a ir pra loja do meu pai, que eu gostava. Eu ia lá aprender, fuçar, começar a vender por telefone. Telefone era muito difícil ainda. Naquela época, o cara vinha no balcão pra você atender. Hoje eu converso com o Brasil inteiro por e-mail ou por telefone. Você disca, fala com fornecedor de São Paulo, tem, não tem, você pode até não ter no estoque, despacha pra mim, eu estou sem caminhão, me põe no ônibus, me põe no Sedex-10, no dia seguinte está aqui. Naquela época, pra você falar com São Paulo, você precisava ligar pra telefonista, pedir linha, podia demorar uma hora, duas horas, três horas. A telefonista falava: “Tal pessoa está na linha.” Você ia fazer o pedido. A coisa era mais lenta, mas o interessante é que se ganhava dinheiro; acho que era mais fácil ganhar dinheiro. Eu lembro de quando surgiu o computador e eu falei pro meu pai: “Nós vamos botar computador nessa firma.” “Que isso René?” Eu falei: “Nós não podemos ter uma empresa sem computador, precisamos ter um controle.” Porque o cara chegava, ligava pra você: “Você tem” - por exemplo - “Dez martelos?” “Peraí.” Você mandava o funcionário: “Vai lá na prateleira vê se o modelo tal tem dez.” Não dá pra você fazer isso. Hoje você tem que estar no computador ligado: “Tem, não tem, o preço é tanto.” “Não dá pra dar um desconto?” “Espera um pouquinho só.” Você já puxa seu custo e já sabe se pode dar ou não desconto. Naquela época não. Eu imaginei: “Puxa, a hora que eu tiver um computador, vai ser mole.” Hoje não, hoje eu tenho computador, se eu não estiver com o computador já não posso nem estar com a porta aberta, é uma semana pra falência, mas naquela época nem telefone funcionava. Eu lembro que eu tinha telex na empresa. Ficava aquele barulho. Quando alguém passava mensagem ficava glaglaglaglagla. Eu lembro quando apareceu o fax. O fax era caríssimo. Eu tinha um amigo que tinha um representante em Manaus e ele falou: “Está indo pra lá, volta não sei quando.” Eu falei: “Me traz um fax.” Meu pai falou: “Mas você vai comprar fax pra quê? Quase ninguém tem fax.” Eu falei: “Não, os clientes nossos não têm fax ainda, mas os nossos fornecedores, as indústrias já têm fax, eu posso passar um pedido, não preciso ficar perdendo tempo, ficar conversando, negociando. Passa o pedido, escreve e passa folha.” Cada vez trabalhando mais, correndo mais atrás do prejuízo, mas naquela época era muito tranqüilo. Eu, como não tinha muito contato com ferramenta, fui começando a aprender coisas. Eu checava nota, eu que conferia, pedia, pra ver se o preço batia. Hoje você puxa no computador todos os preços na hora. Naquela época não: “Pega a lista de preço.” “Onde está?” “Está ali.” Fazia lista de preço na mão, uma tabela escrita. Ou então montava preço na mercadoria: “Quanto custa tal mercadoria?” “Espera um pouquinho, deixa só na prateleira ver o preço da mercadoria, na prateleira.” O cliente ligava cotando dez itens com você, você anotava os dez itens num pedaço de papel, ele falava quantos ele queria, você desligava o telefone, você ia na prateleira, subia a prateleira: “Ele precisa de três chave de fenda, tem? Tem Dois martelos, uma picareta, tem, tem. Quanto custa?” E depois ligava pro cara: “Tenho isso, isso, custa tanto.” TRAJETÓRIA PROFISSIONAL Eu trabalhava na Lix da Cunha. Eu me formei em 79, trabalhei um ano e meio na Lix da Cunha. A obra em que eu trabalhava acabou no final de 80 e não tinha obra nova; eu fui mandado embora. Meu pai falou: “Vem trabalhar comigo.” Eu trabalhei uns três meses com ele e ele estava super feliz. Daí, o cara que era meu supervisor falou: “René, entrou uma obra, eu estou precisando de você de volta na Lix da Cunha.” Eu falei: “Pai, eu estou voltando para Lix.” Foi uma tristeza eu ter saído, mas eu precisava fazer isso. Eu falei: “Eu me formei em engenharia, estou trabalhando com meu pai porque eu fui mandado embora, senão eu estaria lá.” Voltei. Eu lembro que na Copa de 82, eu trabalhava na Lix da Cunha. A Lix da Cunha é uma empresa familiar aqui de Campinas. Um camarada, que era recém-formado engenheiro, que era sobrinho de um dos donos... Eu tinha três anos de formado, o cara tinha um mês, dois meses de formado. Nós saímos de uma reunião e ele falou: “René, o seu holerite já saiu? Vê lá, vê quanto saiu de aumento pra você.” Fui lá, nada de aumento. E ele falou pra mim: “Para mim veio um aumento de x.” E o salário dele, recém-formado, era maior que o meu. Eu falei: “Ah não.” Fui direto pra sala do diretor Leôncio Menezes: “Preciso de um aumento.” “Ah, não tem jeito, a firma, não sei se você está percebendo, está numa situação difícil.” Eu falei: “Está difícil pra mim. O Marcos acabou de ter um aumento.” “Ah, mas ele é diferente, é preciso entender.” Eu falei: “Não, não preciso entender. O senhor pode me dar a minha conta que eu estou saindo.” Meu pai pedindo pra eu trabalhar pra ele... Daí o Leôncio falou: “Puxa René, mas você vai largar a gente?” Eu falei: “Não, eu não vou largar vocês.” Eu estava fazendo, na época, uma obra pra Eucatex, que é do Paulo Maluf: “Você pode, pelo menos, terminar a obra pra nós, mais 60, 90 dias e termina a obra.” Eu falei: “Eu vou, mas daí você me manda embora. Você me dá todos os avisos, aquelas coisas todas.” Acabei a obra, me mandaram embora. Foi em 82, lá pra outubro de 82 que eu comecei a trabalhar com o meu pai. Eu fui trabalhando com meu pai, trabalhei com ele até 90 e poucos,, quando meu pai começou a ter uma doença. Nós não sabíamos, mas era uma doença neurológica, ele morreu disso, mas ele começou a se incomodar com as coisas que eu fazia. Eu mandava o meu gerente fazer uma coisa, passava uns dias, ele falava: “Você me mandou fazer assim, assim, seu pai mandou fazer diferente. Vocês precisam resolver o que vocês querem.” Eu ia falar com o meu pai, ele falava: “Eu tenho direito, a firma é minha” “Você tem direito, a firma é sua? Então vamos fazer uma coisa? Você fica com a sua firma e eu vou cuidar da minha vida.” Ele levou um susto e falou: “Não, eu saio da empresa. Mas eu posso vir de vez em quando?” Eu falei: “Não, você não pode vir de vez em quando, você pode vir todo dia aqui me ajudar. Agora, se você vai falar alguma coisa com os funcionários que seja diferente do que eu falei, você tem que falar comigo antes.” Ficou mais um tempo, mas ele começou a ficar com dificuldades, levou uns tombos. Começou a ficar mais... Se afastou mesmo e, em 93, ele faleceu. Eu estou desde 82 lá. TRANSFORMAÇÕES Quando eu assumi a loja, primeiro incrementei o que estava acontecendo. Eu comecei a aumentar, mudar algumas coisas. Eu tinha estado do lado de uma construtora que não estava sendo visitada, porque meu pai tinha aquele perfil, ele ficava dentro da loja esperando o cliente chegar. Foi quando eu comecei, pelo menos, a fazer um telemarketing, ligar para as construtoras, oferecer, fazer um contato. De vez em quando pegava e visitava um, visitava outro e isso já deu um bom incremento no faturamento, a firma começou a crescer. Depois houve uma mudança quando a construção civil do Brasil inteiro deu uma estagnada, lá pra 1990. Quando eu entrei na firma, em 82, você vendia até areia no deserto. Nessa época se vendia muito. O faturamento da empresa começou a crescer, só que, de repente, em 1990, 91, 92, começou a cair porque a construção civil em Campinas começou a rolar morro abaixo. Foi aí que eu tive que começar a colocar novos produtos, começar a fazer atendimento. Eu não fazia atendimento à indústria, só vendia pra uma metalúrgica e tive que começar a procurar novos caminhos. Eu comecei a ver que a briga era... Uma multinacional chama a atenção, a concorrência pra essa multinacional é maior. Eu tive que mudar um monte de conceitos da empresa, preço, atendimento, qualidade de produto. Em 2000, minha loja pegou fogo, nos primeiros dias de novembro. Um dia me telefonaram, de madrugada: “Sua loja pegou fogo.” Cheguei lá, no escuro ainda, tinha uma fogueira. Eu estava fazendo uma reforma na loja e trabalhava até tarde, fechava a loja, tinha um marceneiro trabalhando, muito pó de serragem, cortando madeira, cortando ali, porque o centro de Campinas, como é muito antigo, tem muito cupim e as prateleiras de madeira estavam todas comidas e eu tinha tido uma fiscalização da Receita Estadual, e quando eles pediram nota fiscal, eu fui pegar na prateleira aqueles arquivos com nota fiscal, de repente vi que a metade dela estava toda comida de cupim. Eu fui levar para o fiscal, o fiscal conseguia ver que não tinha sonegação, mas eu falei: “O que eu faço?” Ele falou: “Olha, não tem jeito, você tem que dar um jeito nisso daí.” Eu chamei o carpinteiro e falei: “Olha, nós vamos arrancar todas essas prateleiras com cupim e vamos fazer tudo novo, mas antes de fazer tudo novo, vamos passar um produto químico para proteger.” E foi feita, à noite, uma remoção. Você pegava aquelas tábuas de quatro, cinco metros e você carregava com dois dedos porque era tudo furada já, não tinha mais, os cupins já tinham comido tudo. E aquilo foi feito com rastro de serragem dentro da empresa. No dia seguinte, a faxineira entrava antes e ia fazer uma limpeza, antes de abrir a loja. Só que dois, três funcionários fumando, eu imagino, deve ter caído uma bituca de cigarro lá pelas dez, onze horas da noite, que eu já tinha saído da empresa. Caiu naquele pozinho de serra, eu fechei a loja e fui embora. Lá pelas três horas da manhã, os vizinhos, do prédio vizinho, começaram a ver chama no telhado, que já tinha chegado no telhado, perdi a loja. Foi um período muito difícil. Primeiro, aquele baque. Eu tinha o seguro na empresa, mas o seguro você só sabe se o seguro foi bom ou ruim depois que você sofreu a sua perda. Um seguro predial, residencial, uma coisa muito, não existe um valor de mercado. Hoje você faz o seguro de um carro, seu carro é ano tal, modelo tal, no mercado vale tanto, você fez o seguro. Numa empresa não. O seu segurador chega pra você: “Bom, esse prédio, quanto vale?” “Ah, uns 100 mil reais.” “Quanto você tem de estoque?” Naquela época, não tinha computador que pudesse avaliar, eu estava iniciando a colocação de computador e não tinha o estoque levantado. “Quanto você tinha de estoque?” “Ah, uns 200 mil.” “Prateleira, mesa, ferramenta, cadeira, quanto tem?” Assim que você faz o seguro - e eu acho que é assim até hoje - mas hoje você pode puxar no computador quanto você tem no estoque, pelo menos, mas quando eu fiz o seguro nem computador eu tinha, eu tinha acabado de conquistar uma meia dúzia de computador na firma que queimaram junto. A seguradora é uma situação... As seguradoras sofrem muitos golpes, no mínimo, metade de coisas que entram de reclamação é golpe, eles não vão pagar você assim: “Pegou fogo?” “Pegou.” “Perdeu tudo?” “Perdeu tudo.” “Então está aqui seu cheque.” Eles fazem uma investigação muito minuciosa e você se sente um bandido. Contratei advogado, falei: “Esses caras não estão querendo me pagar.” Depois que eu vi que é praxe, realmente. Eles investigam sua vida particular, eles vão atrás de banco, vão atrás de vizinho, vão atrás de funcionário pra ver se você devia, se você não devia. Eu derrubei o que sobrou, recebi o seguro, eles me pagaram. O seguro correspondia a, mais ou menos, uns 60% do valor perdido, mas eu reconstruí a loja. Eu pensei até em sair do centro, mas eu precisava reconstruir aquilo que foi perdido, internamente. Era aquela coisa: “Pô, René, está difícil aqui no centro, vamos pra outro lugar.” “Não, não.” Reconstruí o prédio, o dinheiro não foi suficiente pra tudo, mas eu tinha muita ferramenta que de tabela da indústria não valia valores altos. Eram ferramentas que estavam no estoque da loja, que era muito grande, muito pesadas, da época da construção da Petrobras ainda, tinha 20, 30 anos. Ferramentas importadas, que não tinham valor comercial. Foi só não comprar essas mercadorias que eu reconstruí a loja. Eu fiquei mais um tempo, até 2004, demorei sete meses pra voltar a funcionar, reconstruí a loja e voltou a funcionar. Fiquei até um tempo que eu disse: “Sabe de uma coisa? Essa cidade não serve mais pra mim. O meu perfil de cliente é outro e eu não atendo mais cliente que vai bater na minha loja. Na cidade hoje é roupa, coisas assim que as pessoas querem ver. Ferramenta o cara quer estacionar o carro na porta.” Eu construí um prédio na saída pra Paulínia, aqui na Vila Nova, na Buarque de Macedo. Compramos o terreno, construímos o prédio, vim pra cá e aluguei meu prédio na cidade, em 2004. Então, depois de 98 anos no centro, eu sai de lá pra um lugar que é mais confortável pra mim. Na cidade, começou a precisar ter guarda na porta, porque entrava trombadinha na loja pra roubar ferramenta. Você se estressa muito, porque é muito barulho, é camelô, aquelas brigas de camelô com fiscal, aquelas correrias no meio da cidade, aqueles caras com microfone fazendo propaganda da loja vizinha, qualquer cidade grande tem. Aquilo lá começou e eu falei: “Eu não quero mais isso.” Eu vim pra um lugar que o único barulho que tem é de trânsito de carro, mas tem pouco cliente, os clientes que me acessam o fazem por e-mail ou por telefone. Eu estou com metade dos funcionários porque lá tinha muito varejo. Varejo, você tem aquele movimento o dia inteiro de gente, mas você olha quanto sobrou de dinheiro... Um cara entrou e comprou um real, o outro comprou dois reais, e o movimento pesado que eu fazia era por telefone, então não justificava mais ficar com meu prédio no centro da cidade. Saí do centro da cidade e vim pra cá, um lugar mais sossegado. PRODUTOS Eu tenho alguns produtos que estavam no meu estoque no centro, então eu trouxe, mas são mercadorias que faz seis ou sete meses que eu não vendo, coisas pequenas como percevejo, preguinho encartelado, porquinha, parafusinho. Pra pessoas do centro, mesmo, chegou uma época que eu comecei a vender até coisa pra encanamento como torneira, pedaços de cano, porque tem gente que mora no centro e que precisa dessas coisas pra consertar. Então, tinha esse movimento. No lugar onde estou não tem. Hoje, eu estou numa loja que não tem mais isso. Eu precisava sair do centro. Eu moro em Barão Geraldo, o caminho da roça que eu fazia, era do centro, pegava essa Buarque de Macedo, pegava o Tapetão, estava em Barão Geraldo. Eu falei: “Puxa vida, eu podia ir pra outro bairro. Eu podia pegar e ir pra João Jorge, eu podia ir pra Norte-Sul.” Eu falei: “Se eu tiver que sair, vamos sair pra um lugar que é mais perto pra mim.” Hoje eu estou na saída pra minha casa, não pego mais trânsito. Eu fechava a minha loja às seis horas e até chegar na minha casa, eu demorava meia hora no trânsito. Hoje não. Eu ligo o carro e em 15 minutos eu estou na minha casa, não pego trânsito nenhum. Eu precisava sair do centro e eu uni o útil ao agradável. VENDAS Na minha loja hoje eu atendo abrasivos. Abrasivos são o quê? São discos de corte, discos de lixas e ferramentas elétricas voltadas, inclusive, pra quem trabalha com inox. Eu coloquei na minha linha, uma ferramenta importada alemã que é top de linha. É concorrente, é um produto com o dobro do preço da Bosch. É um produto diferenciado pra um público consumidor exigente que usa muito e que uma Bosch, essas outras marcas de mercado, não satisfazem, não agüentam. É um produto que para muito pouco dentro da empresa. Hoje, eu saio com esses produtos, marco hora, vou nessas indústrias, vou na linha de produção, eu mostro a minha linha, mostro o meu produto, depois que eu vou fazer uma negociação posterior com o departamento de compras. Eu saio pra divulgar, é o que gosto de fazer. Ficar sentado dentro de uma loja, pra mim não. Todo dia, se você me ligar, me achar dentro da minha loja, é difícil. Eu gosto disso e do jeito que eu estou trabalhando exige que eu faça isso. Porque o meu produto ninguém vai procurar na loja. O meu produto, eu preciso oferecer para o cliente. Depois que o cara vira cliente e eu, praticamente, vou só de vez em quando fazer uma visita, ver se há alguma necessidade nova do cliente. Mas eu vou lá, abro o cliente. Eu tenho funcionários na loja que fazem o atendimento, que é passar preço, negociar condição de pagamento, esse tipo de coisa, entrega, fazer alguma negociação. E eu estou na rua fazendo, mostrando produto, mostrando alternativas, soluções para o cliente. Quando eu estava na cidade, eu tinha em torno de 100 a 150 vendas por dia, em média. Hoje eu tenho 15, dez vendas por dia. Você pode passar o dia inteiro na minha loja e não entra um cliente. No máximo, um motorista pra retirar alguma coisa, quando é alguma urgência. Eu estou despachando mercadoria para o cara ou mando meu motorista levar. Ou, se é de outra cidade, eu despacho por transportadora ou por Sedex. Você vai lá dentro, você fala: “Puxa, a firma aqui faliu, não entra ninguém, não sai ninguém.” Só toca telefone e entra e-mail. Mudou. Antes era uma loja de varejo, era o dia inteiro, aquele entra e sai de gente, agüentar bafo de bêbado na sua cara. Gente que não sabe o que quer comprar. Gente que pergunta: “Quanto custa isso?” “Quinze reais.” “Dá pra fazer por dez?” “Como assim? Você está pedindo 30% de desconto?” O cara não tem noção, muito parâmetro, você começa a discutir, gente que compra de camelô produto falsificado e você tem que ouvir: “Por que o seu produto custa 500 reais e lá em cima, no camelô, custa 100?” Eu não tenho paciência pra isso. Meus funcionários já falavam pra mim: “René, vai embora, vai embora, vai pro escritório.” Eu começava a bater boca com cliente. As coisas que você vê, você não acredita. Um cara entrou, numa ocasião, lá, comprou uma maquina no camelô que não existe. O fabricante Makita não fabrica essa máquina. Eu tinha o catálogo mundial e o cara falou: “Não, eu preciso de disco pra ela.” Eu falei: “Eu não conheço essa máquina.” “Como? O senhor é distribuidor Makita, tem que ter.” Eu falei: “Vamos ver que máquina é.” No catalogo mundial não existia a máquina e eu perguntei: “Onde o senhor comprou?” “Ah, eu comprei ali nos camelôs.” “Então por que você não vai comprar os acessórios lá com o camelô?” “Ah, porque ele não tem, mas o senhor tem que ter, o senhor é distribuidor.” Eu falei: “Mas, isso daí é fabricado no Paraguai, não existe, a Makita não fabrica.” Tinha um selinho Makita em cima, máquina que não existe, não é fabricada pela empresa e o cara comprou. Acho que eu não tenho idade mais pra isso, não tenho mais paciência e a minha loja era na Rua Treze de Maio com Álvares Machado. Álvares Machado é rua que uma quadra pra cima você tem duas quadras de camelôs e uma quadra pra baixo você tem mais duas quadras de camelôs. E todos eles vendem ferramentas. Todas as ferramentas dos camelôs são 10% do preço das minhas, aparentemente iguais, só que não são a mesma coisa. Você agüenta o dia inteiro aquilo. Eu falei: “Não” E não justificava pagar uma folha de pagamento alta pra funcionário ficar vendendo um real, dois reais. Eu cheguei a ter 16 funcionários. Hoje eu tenho quatro funcionários, vendendo, mais ou menos, a mesma coisa em valor. Todo mundo trabalha sem estresse, todo mundo sossegado, entra e-mail de uma cotação, você tem tempo, cada um senta na sua mesa, faz a cotação, manda por e-mail, não tem bate-boca, pode até fazer uma negociação: “Você mandou tal preço. Mas não tem aquele...” Loja de varejo no centro, seja qualquer cidade, tem um balconista atendendo, já tem mais um aqui perguntando, outro ali também perguntando: “Mas isso quanto custa?” “Não dá pro senhor atender?” “Calma, eu estou atendendo.” “Não, mas eu só preciso saber se o senhor tem.” Todo mundo ficava estressado. Eu trabalhava de segunda a sábado. Hoje, eu não trabalho mais aos sábados. Para os funcionários é uma maravilha, você tem um dia a mais. Porque trabalhava das oito a uma, até você fechar sua empresa e o funcionário, eu ainda pego meu carro e vou para casa, eu tenho que fechar a empresa, porque se eu vou sair às duas horas, vou chegar às três horas, vou almoçar às três horas da tarde no sábado, matou o sábado. O meu funcionário vai pegar o ônibus, dois ônibus, até ele chegar na casa dele já é final da tarde também, ele tinha só o domingo pra descansar. Eu não abro mais, eu estou fora do centro, eu não tenho varejo, trabalho mais, privilegio mais minha saúde, minha família, sem prejuízo financeiro, trabalho mais sossegado. Quando tinha loja no centro, eu tinha coisas para o Dia dos Pais. Aí você fazia, comprava alguns pacotes, comprava ou da Bosch, ou até montava caixas de ferramenta, porque muita gente quer dar pro pai uma caixa de ferramenta, mas não sabia o que comprar. Então, você montava um conjunto básico que o pai, se ele gosta de mexer, ia encontrar um martelo, um alicate, uma chave de fenda, fazia uns conjuntinhos, eu punha. Hoje que eu estou fora do centro, não tem mais isso, não tem mais varejo lá. Quem vai na minha firma entra e fala: “Eu quero isso.” Ele sabe o que quer. No varejo, muitas vezes, o cara não sabe o que quer. Às vezes, o cara quer fazer alguma coisa, mas não tem idéia do que fazer, como fazer, o nome da ferramenta, quanto custa, daí você fica orientando, é outro perfil. A minha loja tinha outro perfil lá no centro, tinha que por coisa para o Natal também, tinha pacote, fazia decoração de Natal. Em alguns anos nós chegamos, inclusive, como era na Rua Treze de Maio, nós chegamos a abrir à noite. Tinha até um certo movimento, mas depois chegamos a conclusão que não justificava desgastar a mim e aos meus funcionários pra trabalhar à noite, mas nós já chegamos a fazer decoração, colocar coisas para o Natal, mas eu falei: “Não, não, não.” FAMÍLIA Quando meu bisavô comprou, eu não sei que nome a loja tinha antes, mas era Casa Alemã. Talvez viesse até de alemães, meu bisavô já comprou de alemães, talvez já fosse Casa Alemã. Não tem documento dessas coisas. Era Casa Alemã. Durante a Guerra, eu sei que foi mudada pra Casa Paulista por causa da conjuntura. Meu bisavô comprou não sei se era um ou vários sócios judeus alemães. Ele veio, ele fugiu, embarcou num navio cargueiro, na Alemanha, pra não servir o Exército da época do Kaiser. Na época, era Kaiser que existia lá. E veio parar aqui no Brasil, conseguiu, não sei como, do Porto de Santos chegar a Campinas. Pode ser que já tinha indicação, não sei bem isso. Eu o conheci velhinho já, ele morreu com 94 anos. Ele veio parar em Campinas, veio ser gerente dessa loja e quando deu a epidemia de Febre Amarela eles se mudaram pra São Paulo e ele resolveu ficar, resolveu não acompanhar os patrões, ficou com a firma, deve ter comprado. O cara estava abandonando o negócio. Ele alugou o prédio, pagava aluguel, não ganhou o prédio, ele assumiu o negócio, o nome da loja era Casa Alemã. Deve ter comprado o estoque do cara, uma parte do estoque e foi tocando. Em 1909, ele construiu a loja, construiu o prédio da loja onde nós ficamos praticamente até 2000 quando pegou fogo. Ele construiu o prédio, comprou terreno, construiu um prédio, era meia quadra, e esse meu bisavô se tornou um dos homens mais ricos de Campinas na época. Ele dizia que pra ir pra São Paulo era uma viagem. Ele ia a cada dois anos pra Alemanha e ficava seis meses lá, porque não se fabricava nada no Brasil, nem prego. Ele ia pra lá, conta-se que ele descia no Porto de Hamburgo, na Alemanha, lá o dono da fábrica que fabricava tal coisa estava recepcionando, hospedava ele na sua casa e ele ficava lá, fazia um pedido: “Eu vou querer que você mande pro Brasil, isso, isso, isso.” Ele ia pra outra fábrica, ficava na casa do outro dono, fazia pedido. Aproveitava, passeava, cuidava da amante dele que ele tinha lá. Fazia as coisas, voltava para o Brasil no navio, praticamente, junto com a mercadoria. Precisava ser uma pessoa muito... Você vai comprar um estoque pra um ano e meio? Você precisa ter muito dinheiro e imaginar muito bem o que você vai vender nesse um ano e meio. E ele ficou rico, mas ele ficou muito rico. O meu avô, quando foi trabalhar com ele, era sócio e gostava de passear na Europa. Botava o filho pra sustentar ele lá na Europa e de tempos em tempos mandava - não sei, uma correspondência, isso eu ouvi semana passada, a minha mãe contando, que ela era criança e ele lembra do pai dela chegando furioso na casa dela - porque o pai dele fazia isso: “Meu pai mandou uma comunicação da Alemanha que é pra mandar mais dinheiro pra lá, que ele está sem dinheiro.” E não queria saber como estava a firma, o pai dele vivia bem, esbanjava bem. Meu avô tinha um sítio, vendeu o sítio e comprou a empresa do pai. Comprou a outra parte. Como eram dois irmãos, comprou a parte do irmão dele e assumiu a firma. E o pai dele, trouxe a amante para o Brasil, mas ele continuou levando uma vida de milionário. Ele morava numa casa - eu lembro da casa que ele morava, hoje não existe mais -, mas era maravilhosa. Era uma sala... Sabe aquela coisa de você chegar na casa dos parentes mais velhos, seu pai já dava um beliscão, você cumprimenta, dá beijo, agradece, pede desculpa, é assim. Tinha uma sala monstruosa, redonda, a parte central era uma cúpula de cristal, a iluminação entrava direto de cima, mas era uma mansão em que o cara morava. Agora, o cara vendeu a firma pro filho quando ele tinha uns 60 anos, mas o velho foi morrer com 94 e só fumava charuto cubano, só tomava cerveja alemã, aqui no Brasil, e gostava de passear na Europa. Cada dois anos ele ia pra Europa, era a vida dele. Depois que tinha vendido a firma, ele começou a vender as propriedades, a cada ano, pra ir pra lá. Ele foi vendendo, passou 30 anos da vida dele vendendo propriedades pra levar essa vida. Mas quando ele morreu, a viúva dele, que era a amante porque a esposa dele já tinha morrido nessa época, ficou morando nessa mansão e mais duas casinhas de aluguel que mal-e-mal dava pra pagar as despesas da mansão. Mas o cara, certo, ganhou e gastou o que ele ganhou. Viveu bem, viveu muito bem. Viveu num luxo. Eu lembro, eu fui uma vez jantar na casa desse homem, era criança, sentava naqueles sofás, daqueles chenilles importados, tapetes persas pela casa inteira. Era uma coisa assim, aquela casa que você entra e está cheirando tinta, porque está tudo pintadinho, maravilhoso, o cara tinha um padrão de vida alto. Nós somos classe média, nunca tivemos dinheiro pra torrar. Meu pai, desde que eu era criança, sempre teve carro. Eu lembro que ele tinha um Dolfini. Era um carro usado, bem usado, ele já comprou o carro usado, bem usado, e foi comprar carro zero em 76. Eu já estava quase me formando, estava na metade da faculdade, foi o primeiro carro zero que ele pôde comprar que foi um Passat, naquela época. Nunca nós tivemos carro, nunca deu carro pra nós. Quando minha avó ficou doente e precisava levá-la no médico, meu pai insistiu que minha mãe tirasse carta. Ela tirou carta e ele deu um Fusca pra ela poder levar minha avó no hospital. Depois, meu avô ficou doente e vai ao médico, volta do médico, minha mãe fazia isso e tinha um carro, mas nós sempre fomos uma família de classe média. FUNCIONÁRIOS Naquela época, ganhava-se dinheiro muito fácil. O meu pai entrou também, em 1970, devia ganhar muito dinheiro, mas gastava fácil. Quando eu comecei a entrar na firma do meu pai, comecei a ver. Meu pai tinha um gerente que entrou na firma menino, porque era filho do dono da Fazenda Mato Dentro. Ele era filho do administrador, que era grande aqui dentro da firma, chegou pro meu avô e falou: “Olha, eu tenho um menino aqui que precisa aprender alguma coisa, eu posso mandar ele pra a sua loja?” Ele foi trabalhando desde criança, começou varrendo loja, levando o burro pra pastar, fazia serviços assim, e, se aposentou como gerente. E esse camarada ganhava muito no Bicho. Mas ele ganhava muito, muito mesmo. E era gerente do meu pai. Ele tinha a casa em que ele morava, tinha casa de aluguel, tinha um rancho no Mato Grosso pra pescar, tinha um sítio aqui perto do Hotel Fazenda Solar das Andorinhas. Um padrão de vida bom. E a explicação é que ele ganhava muito no Bicho. Eu via ele ganhar no Bicho. Virava e mexia, chegava o bicheiro na loja com um pacote de dinheiro. Agora, eu nunca vi ele perder no Bicho. Quem ganha muito no Bicho, tem que jogar muito. Pra você ganhar um pacote assim, você tem que jogar um pacote assim. Com certeza, ele devia roubar muito da empresa do meu pai e ele era de confiança. Ele devia roubar com as duas mãos, passou a vida roubando. Eu sei disso, a maior certeza foi quando eu entrei na loja, quando eu comecei ir mais, quando num período que eu trabalhei na loja do meu pai, quando eu tinha saído da empresa. Eu comecei a controlar as coisas, falei: “Espera um pouquinho só, esse alicate, que é caríssimo, outro dia nós tínhamos 15.” Eu lembro disso até hoje “Nós tínhamos 15, nós temos dois.” “Ah foi vendido.” “Foi vendido? Quem vendeu? Chama os funcionários. Quem foi que vendeu?” “No vale, levanta os vales.” Vale, naquela época, era o seguinte, era um papel com carbono. É ilegal o vale, o Estado entende que é venda sem nota, mas não, você tem freguês que vem todo dia buscar uma coisinha, hoje ele vem buscar um alicate de dez reais, amanhã vem buscar uma broca de um real, você não vai fazer uma nota, chega no final do mês você fechava tudo, mas tudo anotado a mão. Se eu sou gerente, faço um vale pra você, chega no fim do mês, eu junto aqueles vales tem mil reais, 500 reais, está tudo certo, eu rasgo o vale, faço a nota, acabou. Hoje está controlado no computador. Bom, tinha sumido um monte de alicate importado, caríssimos, e eu não descobri quem vendeu. Acho que eram oito ou dez alicates. Não venderam. Um dia, eu fui atrás de uma máquina, uma máquina elétrica Makita, era uma máquina caríssima: “Cadê a máquina?” “Não, não tem, acabou a máquina.” “Mas espera um pouquinho só. Eu lembro que na semana passada eu vi a máquina.” Eu ficava fuçando, moleque, molecão: “Tinha uma máquina lá em cima, naquela prateleira” -eu lembro até hoje - “Tinha uma máquina lá em cima, não tem mais.” “Ah, então foi vendida” “Essa não pode ter sido vendida no cupom, em alguma coisa...” Que um cupom de máquina daquela... Hoje, um cupom marca o que se quer. Antigamente, o cupom só marcava o valor, mas como a máquina tinha garantia, você precisava preencher a garantia, você tem que fazer uma nota descriminada no nome do cara. “Vamos para o talão de notas. Não. A máquina tinha na semana passada e hoje não tem mais.” Passou um tempo, ele já tinha idade pra aposentar e, de repente, pediu a aposentadoria. Veio falar pro meu pai que o filho dele estava desconfiando, que ele estava se desligando da empresa. Eu nunca nem pensei nele, eu achava que era algum funcionário que estava roubando. Ele se aposentou, ficou alguns anos aposentado, mas como ele era amigo de todo mundo, era amigo nosso, eu gostava dele, ele me criou, porque sempre quando eu ia lá ele estava lá. Ele faleceu, passou o tempo a viúva dele veio conversar comigo: “René, eu tenho umas ferramentas pra vender. Você não quer comprar?” “Ferramenta?” “É que o Mário tinha um quartinho cheio de ferramentas, tudo nova, que nesses anos ele foi ganhando ferramenta, sabe?” Eu fui no quartinho dele, um quartinho desse tamanho, tinha mais ferramenta do que eu tinha na minha loja. Além de vender e embolsar o dinheiro. Agora, como o dinheiro não faltava na empresa, a coisa ia, o cara passou 20, 30 anos roubando a empresa e ele era o cara de confiança. Meu pai faleceu e não admitia que o cara tivesse roubado dele. Eu falei: “Pai, o cara não roubou. O cara só faltou carregar a loja pra casa dele.” “Não, mas ele é de confiança, ele é de confiança.” LIÇÕES DO COMÉRCIO O comércio depende da abordagem. Acho que você tem que trabalhar muito pra crescer na vida, porque se você crescer sem trabalhar muito, eu acho que não vai valer à pena, não vai ter valor. Eu vi, nesses anos trabalhando, muita gente ficar muito rico e depois perder tudo porque veio muito fácil, veio de maneira desonesta e todo mundo tem que trabalhar dando alguma coisa pra sociedade, em exemplo, em impostos. Você tem que pagar imposto, você tem que ser correto com você, com os seus dependentes, com os seus funcionários. Às vezes, eu sou até mais real que o rei. Eu me incomodo com pessoas que sujam a cidade, com pessoas que não pagam imposto, pessoas que desperdiçam água, desperdiçam energia. Pra mim, vale à pena você deixar alguma coisa pra cidade, deixar alguma coisa plantada nos seus filhos. Pra mim, viver é isso. Tem que deixar coisas boas para os outros. Não é: “Eu ganhei dinheiro, eu fiquei rico, eu passei, fui aqui, fui pra lá.” Isso pra mim não serve. MEMÓRIAS DO COMÉRCIO DE CAMPINAS Eu acho muito importante. Eu acho que o futuro depende do que nós fazemos agora. E você tem que preservar algumas coisas do passado, mostrar o que foi feito, que teve muita gente que trabalhou muito, tanto aqui quanto em outros lugares, pela cidade, pela humanidade, pela vida de todos. Tem que fazer, mostrar que foi feito, o que já teve, muitas coisas boas. Pra mim foi bom, foi um prazer. Foi ótimo.
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