Projeto: Correios – 350 anos aproximando pessoas
Depoimento de Manuel Moreira Júnior (Moreira de Acopiara)
Entrevistado por Rosana Miziara e Stela Tredice
São Paulo, 15/07/2013
HVC_032_Manuel Moreira Júnior (Moreira de Acopiara)
Realização Museu da Pessoa
MW Transcrições
P/1 – Você prefere que eu te chame como?
R – Moreira de Acopiara.
P/1 – Moreira, você pode falar o seu nome, local e data de nascimento?
R – Bom, meu nome completo é Manuel Moreira Júnior, mas me chamam Moreira de Acopiara, que é uma homenagem ao lugar onde eu nasci, interior do Ceará, nasci em 23 de julho de 1961, num lugar denominado Trussu, município de Acopiara, sertão central do Ceará, e lá vivi até os 20 anos de idade.
P/1 – Seus pais são dessa região, o seu pai e sua mãe, de Trussu?
R – Meu pai sim, mamãe era de Iguatu, que é uma cidade vizinha a Acopiara.
P/1 – E os seus avós maternos e paternos?
R – Meus avós maternos da Paraíba e paternos de Acopiara mesmo.
P/1 – Você sabe um pouquinho a história, assim, dos seus avós paternos, o que eles faziam, seu avô?
R – Pouca coisa porque quando eles faleceram eu era muito criança, mas tenho boas lembranças do meu avô materno, puxando um cavalo pra eu andar.
P/1 – O que era da Paraíba?
R – O que era da Paraíba.
P/1 – Como é que eles foram parar nessa região?
R – Ah, conheceu minha avó por ali por Iguatu, acabou se casando, arranjou uma terra pra viver por ali e foi ficando, né, construiu uma família bem numerosa lá.
P/1 – O que ele fazia?
R – Vivia de agricultura de subsistência, tinha uma pequena propriedade rural, né, plantava arroz, criava um gadinho, essas coisas de interior do nordeste.
P/1 – E sua mãe ajudava, como é que era?
R – Seguinte, mamãe, ela estudou e era professora do interior, né, dava aula ali na zona rural, ela tinha 30 anos quando conheceu o meu pai, que era viúvo, pai de nove filhos, meu pai tinha 50 anos, aí mamãe parou de trabalhar, parou de ensinar e foi cuidar dessa filha, ou seja, dessa nova sala de aula, né. Então ela alfabetizou aqueles nove meninos e depois alfabetizou os demais moradores da fazenda e à medida em que eu e os meus dois outros irmãos fomos crescendo ela foi lendo muito pra nós, contando muitas histórias e incutindo no nosso coração o gosto pela leitura. Porque quando ela se casou ela levou na bagagem muitos livros e também muitos cordéis, cordel é bom porque tem um enredo curto, poucos personagens e é baratinho, então quando mamãe não podia comprar um livro que custa hoje 30, 40 reais, ela comprava um cordel, que custa três, quatro reais, né. E ela lia muito pra nós lá na fazenda, e o cordel é feito mais pra ser lido em voz alta, pra ser declamado, tanto é que havia pessoas que nem saber ler sabiam, mas de ouvir decoravam e recitavam poemas inteiros, que o cordel é isso, é poesia oral, né, e eu fui gostando daquilo, fui me acostumando com aquele ritmo. Com 13, 14 anos de idade eu comecei a escrever os meus primeiros versinhos, mas uma coisa ainda sem qualidade.
P/1 – Deixa eu só voltar um pouquinho, aí a sua mãe casou com o seu pai, ele tinha nove filhos e depois você e seus irmãos são filhos da sua mãe com o seu pai, ele teve mais?
R – Mais três, três filhos.
P/1 – Então na verdade o seu pai teve 12 e da sua mãe com o seu pai são três.
R – Somos três.
P/1 – Vocês moravam aonde?
R – Num lugar chamado, a fazenda, né, chamado Cantinho.
P/1 – Mas aí essa fazenda era é essa que era do seu avô, como é que ficou, era fazenda de quem?
R – Do meu pai.
P/1 – Seu pai tinha uma fazenda?
R – Era.
P/1 – Fazenda do quê?
R – De gado, criava gado e plantava algodão, milho, feijão, essas coisas do interior do nordeste.
P/1 – Como é que era essa fazenda, em que lugar ficava?
R – É o lugar melhor do mundo, no pé de uma serra, um riacho passando assim, dois açudes enormes que nunca secavam, muita fruta, muito peixe, fruta do pé mesmo, muita água pra gente tomar banho, muito terreiro pra brincar, muitos meninos, muita liberdade, e eu tive o privilégio de ser também uma criança e um adolescente muito amado, tanto por minha mãe e meu pai quanto por minhas irmãs do primeiro casamento do meu pai, minhas tias, as primas mais velhas. Então fui uma criança muito feliz lá no nordeste, muita gente reclama: “Ah, o nordeste, seca”, mas não, eu não conheci isso, meu pai tinha uma situação financeira razoável, não nos deixava faltar nada, eu fui muito feliz quando criança e adolescente.
P/1 – Como é que era a casa, como é que vocês dormiam nos quartos, como é que dividia tanto irmão?
R – Era uma casa muito grande, só que quando eu nasci os meus irmãos do primeiro casamento do meu pai já estavam todos adultos, a maioria já tinha se casado, mas estavam ali por perto, né, e acho que só tinha duas, dois desses irmãos, duas irmãs dentro de casa e um irmão, era, depois cada um procurou o seu caminho. Uma casa enorme, casa de fazenda, uma casa com o alpendres muito amplos, terreiro muito grande também, né, pra gente jogar bola e brincar.
P/1 – Quais eram as brincadeiras?
R – Jogo de futebol, menino brinca de tudo, né, nos terreiros, gostava muito de tomar banho nos açudes, de pescar, de jogar futebol, de correr lá por aquele caminhos, pegar passarinho, essas coisas que criança gosta no interior do nordeste, né, nos interiores de um modo geral.
P/1 – Na sua casa como é que era, quem que exercia a autoridade, seu pai, sua mãe?
R – O meu pai era mais velho do que a minha mãe 20 anos, mas quem mandava lá era mamãe, ela o chamava de meu filho e era, eles se amavam muito, né, eles viveram 40 anos ainda, que meu pai morreu com 90 anos, se casou com ela com 40, com 50, e era um amor muito lindo, né, mas ela é que dava as ordens: “Rufino, tem que botar esses meninos pra estudar”, “Tá bom, minha filha”, “Rufino, precisamos levar esses meninos no médico”, a gente sempre ia uma vez a cada seis meses, às vezes nem tinha nada. Porque o acesso lá da fazenda a cidade era difícil, quase 50 quilômetros por uma estrada de terra que quando chovia ficava praticamente intransitável.
P/1 – A cidade qual que era mesmo?
R – Acopiara.
P/1 – Ah, por isso o nome.
R – É, tem até uma história interessante, que eu assinava Moreira Júnior e em 1986 eu participei de um concurso de poesia aqui em São Paulo e assinei, botei lá Moreira Júnior, aí quando saiu o primeiro lugar: Moreira Júnior, fui lá pra ver era outro Moreira Júnior (risos), aí eu não tinha sido nem classificado. Aí eu era muito fã do Patativa do Assaré e pra homenageá-lo e homenagear a minha cidade pensei comigo mesmo: “Agora vou assinar Moreira de Acopiara” e acabou dando muito certo porque nunca mais ouvi falar no outro Moreira Júnior e a partir daí minha carreira deslanchou.
P/1 – Era o nome.
R – É.
P/1 – Como é que eram as comidas na sua casa, vocês comemoravam festa, natal, páscoa, tinha comemorações de datas?
R – Tinha tudo, mês de maio eram as novenas, tinha a festa da padroeira também, que mamãe participava, o padre, era uma família muito católica, né, muito praticante, o padre estava sempre por ali, mamãe ajudando, meu pai era meio ateu, mas colaborava muito lá com a igreja, né. E tinha as festas de São João, as festas juninas ou joaninas, como muitos dizem hoje, tinha o natal, a semana santa também, tinha todos esses rituais aí, né, respeitava muito os dias santos também.
P/1 – Você teve, assim, educação religiosa, apesar do seu pai ser ateu?
R – Fiz, fiz catecismo, fiz primeira comunhão, fiz crisma, participei muito dos movimentos da igreja na minha juventude, mas depois a gente vai se ocupando com tantas coisas, né, aí eu fui lendo muito a bíblia, li toda, pra lá e pra cá, aí depois fiquei meio desacreditado de muita coisa que tem ali.
P/1 – Com quantos anos você entrou na escola, Moreira?
R – Com 11 anos eu fui para o Trussu, para a vila, pra casa da minha tia pra fazer o primeiro ano.
P/1 – Primeiro ano primário?
R – É.
P/1 – Mas você já tava alfabetizado?
R – Muito bem alfabetizado por minha mãe, inclusive já lia contos, muita poesia, lia tudo já, eu tava muito bem alfabetizado, porque mamãe nos alfabetizou muito bem, de uma forma muito arcaica, mas muito eficiente, eu lembro que ela comprava um jornal quando ia a Acopiara, ou a Fortaleza ou a Juazeiro, e ela recortava as manchetes, separava as letras, formava o alfabeto ali, colava numa folha branca, depois a gente ia juntando as sílabas, decorando aquilo, daqui a pouco já estava lendo e lendo muito bem.
P/1 – Você lembra de alguma história que ela te contou naquela época, que ficou na sua cabeça?
R – Não lembro exatamente a história, mas todos esses contos infantis ela contava, todos, os contos dos irmãos Grimm, os contos que estão nos livros do Câmara Cascudo, e essas histórias populares, esses contos populares ela contava muito.Tinha também aDilosa, que era uma negra velha que cuidava das coisas, ajudava lá em casa, que a gente amava muito.
P/1 – Quem que era a Dilosa?
R – A gente amava muito, era a esposa do Antonio Raimundo, ela ajudava lá em casa e nós gostávamos muito dela, inclusive mamãe disse, eu nasci na mesma época em que nasceu o filho dela, o Francisco, e mamãe não conseguia amamentar e mamava nos peitos da Dilosa (risos), e era muito bom, a gente queria muito bem a ela, ela contava muitas histórias também.
P/1 – Que história que ela contava?
R – Não lembro agora, mas contava muitas histórias, essas histórias de Trancoso, esses contos de fada, contava todos.
P/1 – Aí você com 11 anos, quando você chegou na escola, onde que era a sua escola?
R – Lá na Vila Trussu.
P/1 – Mas na casa da sua tia você foi morar?
R – Na casa da minha tia Laís, ali eu fiquei acho que uns quatro anos, aí com 15 eu fui estudar em Acopiara já.
P/1 – Como é que era a casa da sua tia Laís?
R – Uma casa muito grande também, uma casa quase centenária, até hoje tá lá, também já era uma vilazinha, né, e eu era muito bem cuidado por ela, por minha prima Brígida, estava ali só pra estudar.
P/1 – Como é que foi entrar na escola, como foi esse período, assim, como é que foi pra você entrar na escola já com 11 anos alfabetizado?
R – Ah, foi muito bom e era um sonho, a criança, era uma novidade pra mim e me dei muito bem, um pouco mais velho do que as crianças da época, mas bem mais adiantado, né, porque eu tava muito bem alfabetizado, já lia muito, escrevia bem tudo.
P/1 – Você tem alguma professora que tenha te marcado, que você lembra desse período?
R – Várias, eu lembro da Toinha, que foi quem me ajudou a alfabetizar, né, mamãe, antes de ir pro Trussu mamãe me deixou um ano lá indo às tardes pra lá, eu ficava estudando com ela. Aí depois lá no Trussu tem a Elida, que era uma boa professora, tinha a Helena Rodrigues também maravilhosa, tinha a Edith Veras, eu me lembro muito bem da Dona Edith, era uma senhora, eu acho que são as mais marcantes. Depois na Acopiara uma que me marcou muito foi a Maria Elza, professora de português, tinha ainda o padre, Padre Geraldo, que foi quem mais me emprestou livros, quem mais falou de livros, autores e textos comigo, entre os 12 e os 19 anos.
P/1 – Aí você saiu de Trussu e foi pra Acopiara, em Acopiara você ficou morando aonde?
R – Fiquei morando na casa de uma madrinha, madrinha Salete, que é uma outra pessoa que eu amo muito até hoje, sempre que volto a Acopiara me hospedo na casa dela ainda, né, outra pessoa que amava e ama muito ainda os livros, também foi quem me apresentou muitos livros bons, muitos autores maravilhosos, depois eu fui pra Iguatu.
P/1 – Em Trussu você fez até que série?
R – Até o quarto ano, até a quarta série.
P/1 – Até a quarta série, mas aí como é que era, você visitava os seus pais, voltava, como é que era o contato?
R – Geralmente eu ficava de segunda a sexta no Trussu, aí sexta-feira à noite ou sábado de manhã eu ia para a fazenda, que era 12 quilômetros, pertinho.
P/1 – Você ia como?
R – A gente ia de bicicleta, ia a cavalo, ia de carro quando aparecia carona, cheguei a ir a pé algumas vezes, caminhando, e quando eu estava em Acopiara a mesma coisa, sexta-feira quando terminava a aula eu corria lá pro sítio, porque eu gostava muito da fazenda, a casa grande, o conforto, mamãe, o colo de mãe é muito bom.
P/1 – E aí em Acopiara era o que chamava na época de ginásio?
R – Era, aí lá em Acopiara eu fiz até a oitava série, se bem que a sexta e a sétima eu fiz em Iguatu, aí depois voltei pra Acopiara.
P/1 – Você tinha, assim, nessa idade, assim, ginásio: “Ah, quando eu crescer eu quero ser tal coisa”, você tinha algum desejo?
R – Olha, eu comecei a escrever os meu primeiros versos com 13 anos de idade, por essa época eu conheci também o Patativa do Assaré, que era o melhor poeta nordestina, aliás, ela foi o melhor poeta nordestino de todos os tempos, poeta popular, né, e eu gostava muito de ver e ouvir o Patativa recitando aqueles poemas enormes, tudo de cor.
P/1 – Quando você conheceu ele?
R – Ele fazia o que eu faço hoje, ou seja, ele ia, andava ali pela região, Acopiara, Iguatu, região toda do Ceará, foi mostrando os livros dele, declamando nas universidades, nos teatros, nos bares, nas praças, nas casas de família, onde chamavam, né, e eu gostava muito, ele tinha um programa de rádio também aos domingos que eu ouvia e gostava muito, mamãe gostava também, né. Aí eu dizia, na minha inocência, que quando crescesse queria ser igual ao Patativa, né, e com 16 anos eu datilografei uns poemas e mostrei pra ele, inclusive ele me deu muitos conselhos.
P/1 – Com quantos anos?
R – Com 16 anos, porque tinha um poeta chamado Zé Ferreira que pra me bajular e bajular meus pais dizia que eu era muito bom, que eu era um bom poeta já, né, e eu ficava todo animado, aí quando eu mostrei os poemas pro Patativa ele leu aquilo com muita atenção, depois disse: “É, seus poemas são muito ruins”, aí eu fiquei desapontado, aí ele percebendo disse: “Mas estão acima da média para um jovem da sua idade” e prosseguiu: “Se você continuar lendo muito, se exercitando na escrita, com os olhos e com os ouvidos bem abertos para o que está acontecendo ao redor do mundo pode ser que daqui uns 20, 30 anos você venha a se tornar um grande poeta”. Aí eu contei essa história pra mamãe, que era uma mulher muito inteligente, e ela disse: “Meu filho, preste atenção no que o Patativa disse, ele é um poeta consagrado, o Zé Ferreira está equivocado, ele quer nos corromper” e acabou dando muito certo.Prestei muita atenção no que o Patativa falou, ele mostrou muitos erros que eu cometia, me abriu os olhos pra muitas coisas, me deu muitas aulas boas mesmo e acabamos fazendo alguns trabalhos juntos no final da vida dele, que morreu em 2002, foi o melhor, é ainda minha principal referência porque ele era um poeta completo, né. Dizem que o Leandro Gomes de Barros é o melhor poeta do Brasil, nordestino, eu discordo completamente, o Leandro foi o melhor cordelista e o Patativa era um poeta completo, entre ser poeta e cordelista há uma grande diferença, a maioria dos cordelistas são só rimadores, versejadores e isso é muito pouco pra quem quer ser poeta, e o Patativa era poeta.
P/1 – Você lembra dos primeiros versos que você deu pra ele ler?
R – Não, não lembro, faz muito tempo, né?
P/1 – Daquela época você lembra de algum verso, alguma coisa que você já tinha feito?
R – Olhe, tudo que eu escrevi até os 32 anos de idade eu acho que serviu apenas como aprendizado, eu descartei tudo, até publiquei alguma coisa até essa idade aí, mas hoje eu não publicaria mais, toda a minha obra hoje é tudo coisa que eu escrevi dos 32 anos pra cá, eu procurei esquecer tudo o que eu escrevi antes.
P/1 – É mesmo?
R – É, hoje muita gente, um dia desses um pai vindo me pedir conselhos, que a filha tem 16 anos, quer porque quer publicar um livro e: “Ela escreve muito bem, olhe aqui”, “Rapaz, não é assim, não é isso, não, isso aqui, deixe o tempo correr, manda ela ler, escrever, fazer oficina de literatura, porque antes de publicar livro mande ela se preocupar em fazer um bom trabalho, um trabalho consistente, não é só fazer um bocado de palavras que é poesia, que é conto, que é romance, não, escrever é muito mais profundo”.
P/1 – Moreira, vamos voltar um pouco pra sua adolescência, quer dizer, você começou a escrever já, e você tinha turma, você saía, quais eram os programas, sua diversão nessa época, além de escrever?
R – Em, no Trussu ainda minha tia tinha livros de Castro Alves também e tinha muitos cordéis, tinha outros poetas, eu gostava de ler aquilo, meus amigos de infância gostavam de ganhar brinquedos de presente, sei lá o que, e eu gostava de ganhar lápis, caneta e livro, né, essa coisa já tava em mim desde muito pequeno. Em Acopiara, com 15, 16, 17 anos, a gente tinha duas turmas, na escola e no futebol, que eu jogava futebol também, eu me reunia com o pessoal que gostava de poesia, de ler, e tinha outra turminha que gostava de beber cachaça, jogar sinuca e fumar maconha, e nos chamavam de otários, né, e hoje eu e esses meus sete, oito amigos, que gostávamos de poesia, nos salvamos todos, né, os outros eu tenho notícia de um que tá na Acopiara ainda bebendo cachaça e não foi pra lugar nenhum, chego lá, ele fica me assediando: “Moreira, me arranja aí, paga aí uma cachaça”, essas coisas, que me dá muita pena. E da outra turma um é professor universitário, o outro é jornalista, que é, tem um que é repentista bom, apresentador de televisão, que é o Geraldo Amâncio, um poeta maravilhoso, Gildeu Sales, jornalista, é editor de uma revista, o Lucarocas é poeta também, professor, né, e gostava de jogar futebol também, né, tinha uma turminha que jogava muito bem, enfim, foi uma adolescência muito boa.
P/1 – Você tinha algum desejo de sair da região, mudar de lugar?
R – Não, eu não tinha porque eu gostava muito lá, principalmente lá da fazenda, gostava de Acopiara, sucede que meu pai ficou velho, não tinha mais como tocar aquilo e precisou vir morar na cidade, até por uma questão de praticidade, ele já tava com mais de 70 anos, e nós adolescentes, a gente não tinha o que fazer em Acopiara, a gente não tinha o que fazer em Acopiara, não tinha emprego, não tinha profissão, aí o jeito foi vir morar em São Paulo atrás de ganhar a vida aqui em São Paulo.
P/1 – Mas aí quem continuou, fechou a fazenda, alguém continuou tomando conta?
R – Aí a fazenda foi vendida em 1978, eu tinha 18 anos.
P/1 – Seus pais vieram pra cá?
R – Não, ficaram, meus pais ficaram morando em Acopiara, na cidade.
P/1 – Na cidade.
R – É.
P/1 – E aí quem veio pra São Paulo?
R – Eu sozinho, um outro irmão foi pra Fortaleza e depois, uns dois anos depois, o meu irmão mais novo veio pra Vitória do Espírito Santo.
P/1 – Por que você decidiu vir pra São Paulo?
R – Porque eu tinha uns amigos já morando aqui.
P/1 – De Acopiara?
R – É, uns coleguinhas lá da região e tinha uma tia também que me abriu as portas aqui, me incentivou: “Venha pra São Paulo, venha trabalhar por aqui”.
P/1 – Você já tinha vindo pra São Paulo alguma vez?
R – Não, primeira vez.
P/1 – Qual foi a sua impressão quando você chegou aqui? Você veio como?
R – Eu vim de ônibus, foi de susto.
P/1 – Como é que foi a viagem?
R – A viagem de três dias, se bem que foi uma viagem tranquila, mas o que me assustou muito foi a entrada de São Paulo ali, quando disseram: “Chegou em São Paulo”, aí até chegar na Marginal do Tietê e não chegava nunca na rodoviária e aquele ônibus andando, andando, se bem que não tinha tanto trânsito, mas demorou muito. Aí quando chegou na rodoviária outra viagem até São Bernardo, né, eu acostumado com Acopiara que todo mundo conhecia todo mundo, a gente atravessa a cidade toda em 15 minutos, 20 minutos, foi um choque muito grande, uma mudança brusca.
P/1 – Essa sua tia morava em São Bernardo?
R – Morava em São Bernardo do Campo.
P/1 – Aí você foi morar com ela?
R – Fui.
P/1 – Como é que era ela, a casa?
R – Também uma casa grande e tinha um sobrinho do esposo dela, que é meu amigo, meu compadre, Beto, a gente foi morar juntos numa edícula, ficamos lá vários anos.
P/1 – Quando você chegou aqui você tinha ideia, você ia trabalhar e estudar, o que você pretendia fazer, quais eram os seus planos?
R – Precisava fazer as duas coisas, mas aí eu vi que a realidade era outra, você chega lá do nordeste, chega despreparado, não tem profissão, o estudo era pouco também, né, aí eu tive que trabalhar em subemprego, né, trabalhei em posto de gasolina.
P/1 – Foi seu primeiro emprego, no posto de gasolina?
R – Foi.
P/1 – Como foi?
R – Ah, era muito ruim porque era mês de junho, um frio danado e eu lá abastecendo carro, depois ia lavar carro, né, sofri muito. Depois eu fui trabalhar numa churrascaria e foi onde eu passei mais tempo, fiz vários trabalhos, passei por vários setores da churrascaria, aí saí de lá pra ser gerente de uma choperia grande também, depois de dois, três anos.
P/1 – Aí você virou gerente?
R – Foi.
P/1 – Nesse período que você tava aqui como é que você se correspondia com a sua família que ficou lá em Acopiara?
R – Por carta, toda semana mamãe mandava uma cartinha pra mim, eu respondia, ou respostava, como ela dizia, né, mamãe escrevia muito bem, gostava muito de ler e quem lê muito escreve bem também, né, então toda semana tinha uma cartinha de mamãe, eu respondia, e a gente se comunicava assim.
P/1 – Você guardou essas cartas?
R – Eu guardei, mas depois, hoje eu nem sei onde é que elas estão, talvez estejam lá em Acopiara ou lá em Fortaleza, que eu tenho muitas coisas guardadas lá, muitas caixas.
P/1 – tem alguma carta que tenha te marcado, assim, que você lembra?
R – Muitas dela, muitas.
P/1 – Fala de uma.
R – Eu vou falar só de uma, pronto, quando eu vim de lá eu deixei uma namorada, Joana d’Arc, o primeiro amor, a primeira paixão, aí a que mais me marcou foi a que ela me mandou dizendo que eu esquecesse a Joana d’Arc, (risos) que ela tava com outro lá, aí aquilo foi como uma punhalada no meu coração, né, acho que essa que mais me marcou (risos), mas tem muitas outras também.
P/1 – Fala de outra.
R – Que me emocionaram muito, falando de saudade: “Meu filho, quando é que você vem passear aqui? Quando é que você vem me ver? To com saudades”, meu pai também mexe e vira ele escrevia uma cartinha.
P/1 – Você respondia como?
R – Também no mesmo formato, né, eu procurava fazer umas cartas bem bonitas pra ela porque a gente, ela gostava, né, e ela era muito exigente, ela, eu lembro que quando a gente sentado lá, lendo qualquer texto, qualquer livro, se a gente tava lendo um parágrafo e errava uma vírgula, engolia um ‘s’ ou um ‘r’ ela fazia a gente reiniciar o parágrafo, então a gente tinha que ler com muito cuidado, tinha que ler bonito, tinha que ler bem, e na hora de escrever então tinha que ter mais cuidado ainda.
P/1 – E encomenda, ela te mandava coisas de lá?
R – Eventualmente sim, quando vinha um portador, ela mesmo chegou a vir passear aqui em São Paulo, aí trazia as coisas de lá que a gente gostava, as coisas lá do interior.
P/1 – Tinha algum carteiro que você conhecia, você ficava esperando carta da família, como é que era?
R – Não, hoje eu tenho, hoje a menina que entrega carta lá na minha rua já virou minha amiga, quase toda semana ela tá lá, toca a campainha, quando eu não to deixa lá na quitanda em frente, que me conhece também.
P/1 – Você recebe muita coisa por correio?
R – Recebo muita coisa.
P/1 – O que você recebe?
R – Recebo muitos cordéis dos colegas lá do nordeste e do Brasil a fora, muitos livros, alguns jornais que, para os quais eu escrevo, revistas também, e muita correspondência, dia desses chegou uma carta de um preso, né, pedindo pra eu mandar um cordel pra ele, aí eu mandei, fiz um kit, juntei lá o que tinha, mandei pra ele, depois ele mandou outra carta agradecendo.
P/1 – Quem que é essa carteira, como é o nome dela?
R – Eu não sei o nome dela, só sei que ela me conhece e sempre que eu cruzo com ela na rua: “Oi, poeta, hoje tem coisa pra você”, mas ainda não perguntei o nome dela.
P/1 – Bom, vamos voltar pra lá, aí você trabalhou nesse posto de gasolina, aí de lá você foi trabalhar numa churrascaria.
R – Sim.
P/1 – Você tinha alguma coisa em mente: “Quero ser escritor, quero”?
R – Era o meu sonho.
P/1 – Você continuava escrevendo?
R – Sempre escrevendo muito, lendo muito e gastando boa parte do meu salário mínimo com livros e tinha certeza que um dia ia dar certo, né, publiquei cinco livros e vários cordéis pagando, né, por minha conta, só depois do quinto livro é que eu cheguei a uma editora e aí pronto, aí foi quando eu saí do emprego formal e fui. Aí no começo foi difícil porque, mas aí a gente vai estando com as pessoas certas nos locais certos e como disse o meu amigo Zé Nêumanne Pinto: “Fazendo os versos certos”, aí as portas foram se abrindo.
P/1 – Vamos voltar, quando que você lançou o seu primeiro livro, você bancando?
R – Foi em 90 e, acho que 92 mais ou menos, 93.
P/1 – Quantos anos você tinha?
R – Trinta e dois, 33 anos já.
P/1 – Qual foi o primeiro livro?
R – Chama-se: “Meu jeito de ser feliz”, uma reunião de alguns poemas que eu tinha escrito naquele ano, era um livro pequeno.
P/1 – Você lembra de algum?
R – Não.
P/1 – Você só lembra depois do quinto?
R – É (risos).
P/1 – Você nessa época, você fez algum cordel em forma de carta?
R – Fazia muito, fazia e mandava, inclusive pra mamãe, que amava poesia, mandava pro Lucarocas também, que é um poeta lá de Fortaleza, ele me respondia em forma de versos.
P/1 – Mas você fazia cordel em forma de carta e ele te respondia também assim?
R – No mesmo padrão.
P/1 – Quando você recebe um em formato de carta você tem que responde assim?
R – Não necessariamente, mas é um exercício que eu gosto, né, muito bom, eu to com acho que seis ou sete pelejas virtuais, que é um outro exercício que eu to gostando muito, eu fiz um agora com Glauco Matoso, poeta maravilhoso aqui de São Paulo, poeta cego. E tinha uma moça que tava fazendo doutorado e o tema da tese dela era cordel da internet, aí ela pediu pra eu escolher um poeta pra fazer uma peleja virtual, cada um faz uma estrofe, aí eu escolhi o Glauco Matoso e ficou muito bom, né, e ele é um poeta estupendo, né, rápido, eu mandava, daqui a pouco ele mandava de volta a estrofe dele, eu mandava, a gente ficava naquela troca de emails rapidinho e num instante saiu. Depois eu fiz mais umas seis ou sete com outros poetas bons, com o Jonas Bezerra, com Genilson Alves, que é lá de Caruaru, Jonas é de Iguatu.
P/1 – Virtual.
R – É, Cleydson Monteiro, que é da Paraíba, quem mais? Gildeu Sales, tem vários, e é muito bom, um exercício muito bom.
P/1 – Isso na verdade antes você fazia por carta?
R – Não, depois, que essas pelejas virtuais são agora, recentemente.
P/1 – Mas antigamente, como não tinha internet...?
R – Fazia por carta.
P/1 – Que eram essas com a sua mãe, com esse outro escritor.
R – Lucarocas, e também com Manuel Monteiro, grande poeta pernambucano que mora na Paraíba.
P/1 – Que era trocado por carta?
R – Por carta.
P/1 – Elas tão guardadas, você não sabe direito aonde?
R – Essas estão guardadas, inclusive eu trouxe aqui uma ou duas pra lhe mostrar.
P/1 – Ah, você pode ler pra gente?
R – Deixa eu ler uma que o Manuel Monteiro me mandou: “Estamos a 21 de setembro, caro amigo Moreira de Acopiara, em Campina, doce abrigo”, Campina é Campina Grande, é a cidade dele: “Em Campina, doce abrigo, que me acolheu uma vez no ano 53 e permanece comigo”, ele começa dizendo assim: “Moreira, essa carta vou escrevê-la de improviso, se não prestar me perdoe, não mangue ou faça ar de riso, porque meu raciocínio não anda muito preciso”. Ele já tá com seus 76, 77 anos, diabético: “Caro poeta, lhe mando a quarta e quinta edições da revista Cordeletras, um espaço nosso e dos bons, aqui, sem constrangimento, tocamos nosso instrumento, cantamos nossas canções. É tanto que se quiser colaborar nesse espaço escreva para a revista, pois gostarão do seu traço e para que lhe publiquem o melhor que pude faço, mas não garanto porque, como colaborador, não tenho a última palavra, mas sabendo o seu valor creio que publicarão ou, no mínimo, ficarão conhecendo um trovador”. Ele era muito, ele é muito bom: “Sou um escravo das letras e amo a literatura, percebo que essa revista promove a boa cultura, pra tê-la quinzenalmente já fazem assinatura. O preço é 30 reais para ter dez exemplares e ela já está voando para diversos lugares, estou muito satisfeito porque indo desse jeito ela vai ganhar os ares. Na última página, aonde escrevo, vou dizer tudo o que sei, contribuir como possa, mostrando o que acumulei nessa longa caminhada, nos muitos passos que dei. Poeta de Acopiara, estimado companheiro, fique em paz, pegue o abraço do amigo Manuel Monteiro”. Tem uma outra aqui.
P/1 – Isso você recebia pelo correio?
R – Pelo correio.
P/1 – Você respondia pelo correio?
R – Pelo correio. Tem uma outra aqui do Jonas, a do Jonas é muito comprida, mas eu vou ler só as primeiras estrofes.
P/1 – Pode ler.
R – Jonas é um menino, quando ele tinha 15 anos de idade já declamava os meus poemas na rádio, no programa que o pai dele tem há 30 anos, o pai dele é repentista e ele, Jonas, é hoje um dos melhores repentistas do nordeste, escreve também muito bem, e nós nos correspondemos muito por carta em versos. Diz assim: “Iguatu, 30 de agosto de 2002, o ano. Saudações, caro poeta, escrevo-lhe muito ufano, pois grande amizade temos e esse plano que fizemos vai ser muito mais que plano. Recebi a sua carta, mas não sabia que vinha com toda essa inspiração, perfeição em cada linha, a distância desanima, mas nossa carta aproxima sua cidade e a minha. Por aqui tudo vai bem, os meus irmãos, os meus pais, as cantorias, amigos, o programa, os festivais, quem dá de conta da lida possui mais chance na vida do que quem força não faz. Na mudança de estação ficou melhor, admito, até previsões fizeram de ser seco e esquisito, mas começou o inverno, a mata mudou de terno e o sertão ficou bonito. Depois que você saiu daqui em muitos momentos recordamos a grandeza que tem nos seus pensamentos, me intimido ao respostar por não poder alcançar seus vastos conhecimentos. Eu no início de março viajei pra mais distante, pra Tabira, Pernambuco, lá encontrei um gigante dessa minha geração, se abrangeu a profissão com outro representante, o nome dele é Zé Carlos, um modestíssimo rapaz, tem 23 de idade, canta há cinco, porém traz uma grande inspiração, nos versos faz construção que nem veterano faz. Minha agenda de trabalho tá crescendo a cada hora, se um dia aqui fracassa no outro dia melhora, ouro no próprio setor, se nunca teve valor vai começar a ter agora. Vandinho está na gandaia”, Vandinho Pereira, é um outro amigo nosso querido: “Vandinho está na gandaia, separou-se da mulher, viaja quando deseja, namora com quem quiser, aprende quando pesquisa, trabalha quando precisa, não canta porque não quer”. (risos) Vandinho é um poeta maravilhoso, mas é só hobby, né, não canta de improviso porque não quer: “Abrace oportunidades que a natureza oferece, na ABLC a fama só lhe enaltece pelas coisas que escreve, quem é do seu jeito deve ser visto como merece”. ABLC é Academia Brasileira de Literatura de Cordel, cujo o presidente é o Gonçalo Ferreira da Silva, que eu acho que vocês já entrevistaram, né, pelo menos já fotografaram, que a fotógrafa me falou, nessa época eu tinha acabado de ser eleito pra ABLC, lê mais?
P/1 – Pode ser, claro.
R – “Dou-lhe parabéns, feliz por essa grande vitória, as vitórias e derrotas que temos na trajetória nos enchem de incentivo, colocadas no arquivo de quem quer fazer história, temos que lutar sem trégua pra colhermos bons frutos, pros insubstituíveis ganharem substitutos da mesma capacidade, quando acaba a validade se lançam novos produtos. Poeta, vi que é difícil uma carta responder, como você também tenho preguiça de escrever, mas eu confio no dom, quem faz o que sabe é bom, ruim é fazer sem saber. Por aqui encerro a carta bastante entusiasmado por receber confiança de quem valor tenho dado e um mote quero trazer, jamais irei esquecer o lugar que eu fui criado”. Aí vem o mote aqui que a gente desenvolveu também, gostou?
P/1 – Maravilhoso. E aí quando você escreveu seu primeiro livro você participava, que locais aqui em São Paulo, ou em algum outro estado, você ia declamar, se relacionava com outros cordelistas?
R – Eu, quando escrevi o primeiro livro, eu participava muito de saraus.
P/1 – Aqui em São Paulo?
R – Aqui em São Paulo, lá no ABC principalmente e, como eu trabalhava numa churrascaria, tinha muito professor que ia lá, muito empresário, muito trabalhador lá da Wolks, da Ford, da Mercedes Benz.
P/1 – Que ano que era isso?
R – Noventa e dois, 1992, 93, e eu fui muito feliz nesse primeiro, segundo e terceiro livros porque eu vendia ali mesmo na churrascaria, pros clientes, aí fui fazendo amigos, fui conquistando essas pessoas e vendi até fácil esses meus livros.
P/1 – Quando você começou a frequentar a Feira de São Cristóvão, isso é depois, mais pra frente?
R – Bem depois, quando eu fui ao Rio de Janeiro pra eleição da ABLC eu fui conhecer a Feira de São Cristóvão e lá também conheci os cordelistas de lá, os repentistas.
P/1 – Quando você foi pra lá a primeira vez, por que você foi pra lá?
R – Primeiro porque era muito falado, muito famosa, né, Rio de Janeiro é uma cidade linda, maravilhosa.
P/1 – Você não conhecia até então?
R – Não, morria de vontade de conhecer, há quem fale mal do Rio, da violência, disso, daquilo, mas, enfim, tem os problemas que tem toda a cidade grande, né, eu adoro o Rio de Janeiro, tanto é que até hoje quando eu vou pra lá adoro passear em Santa Teresa, Copacabana, Ipanema e ver aquela, o centro velho também e a Feira de São Cristóvão, eu me sinto em casa, vejo shows lá.
P/1 – Naquela época, a primeira vez que você foi quando foi, 92 você falou?
R – Não, foi bem mais tarde, já foi depois de 2000, 2001, 2002.
P/1 – Foi a primeira vez que você foi pra lá?
R – Que eu conheci o Rio de Janeiro foi.
P/1 – Mas você já conhecia o pessoal que frequentava a Feira de São Cristóvão ou você ficou conhecendo lá?
R – Fiquei conhecendo lá, alguns eu conhecia de nome, que era o caso de Gonçalo Ferreira da Silva, Geraldo do Norte, Mestre Azulão, Campinense, esses eram, eu conheci lá, mas eu já conhecia de nome.
P/1 – O Sebastião Nunes Batista você conheceu como?
R – Não, eu não cheguei a conhecer, só de nome, esse poeta não é do meu tempo, não, mas é um bom poeta.
P/1 – Você tem um trabalho que você começou a fazer oficinas de cordel da penitenciária, como foi que começou esse trabalho?
R – Sim, é assim, Diadema é tida como uma cidade onde eles valorizam muito a cultura e eu todo ano passo por todas as bibliotecas da cidade, a Secretaria de Educação também me contrata pra palestras, pra recitais com os alunos do EJA, eu acho uma beleza e tenho um bom relacionamento lá com a Secretaria de Cultura. E em Diadema tem um CDP, Centro de Detenção Provisória, que tem mil e 400 presos e lá dentro tem educação, desde alfabetização, ensino fundamental, ensino médio e ENEM, aí paralelamente eles resolveram levar oficinas de desenho e pintura, de teatro, de circo, história em quadrinho, literatura e em 2010 resolveram fazer, ficaram me conhecendo, já sabiam de mim, quiseram fazer um teste com cordel. Aí o pessoal lá do CDP entrou em contato com a Secretaria de Cultura, que me chamou, aí fizemos um contratozinho pra fazer um teste, né, ficar lá três meses, ver como é que vai ser, aí no começo foi muito ruim pra mim porque eu muito apreensivo, aquele clima pesado, aquele ar muito carregado, a gente passa por 11 portões até chegar lá no local, aquele cheiro forte de creolina com sabonete Protex e maconha e cigarro, é pesado mesmo, né. E eu precisava sempre de um tempo pra entrar no ritmo, em todas as apresentações, né, mas aí quando, porque o preso lá dentro tá dominado, qualquer afago que a gente faz nele ele gosta muito, né, aí você chega lá com a linguagem poética, muitos são do nordeste, encontrei até parente lá dentro já, pessoas que me conheciam. Aí o lance lá é assim: eu fico seis dias com um grupo de até 30 presos, nesses seis dias a gente discute cordel, mas eu falo basicamente onde nasceu o cordel, como chegou ao Brasil, quem foram os precursores, os principais nomes de ontem e de hoje, os principais temas, a evolução gráfica, o que é métrica, o que é rima, o que é oração, que é o conteúdo do cordel, aí como se faz um cordel, aí a gente escolhe democraticamente um tema e começa a elaborar um texto. No último encontro o texto já tem que tá pronto, eu faço em casa alguns exemplares do cordel e levo pra gente discutir o cordel, a gente lê aquilo, tirar dúvidas, e o resultado é maravilhoso, no final do ano a gente junta alguns textos que a gente escreveu durante o ano e faz um livrinho pros presos ficarem, mandarem pras famílias, pra Secretaria de Cultura mandar pras bibliotecas da cidade, né. A gente perde muito contato com, porque o preso sai, a gente perde o contato, mas os que ficam recebem e é muito emocionante, é aonde eu menos ganho e onde eu mais gosto de trabalhar.
P/1 – Quanto tampo já você dá essa...?
R – To lá desde 2010, então três anos vai fazer, estou no terceiro ano agora.
P/1 – Quando acaba você mantém contato com esses presos?
R – Alguns, já encontrei preso na rua, dia desses eu tava estacionando o carro num estacionamento de um Extra quando dei fé uma pessoa: “Ô, professor, venha cá, eu sou fulano de tal, você lembra de mim?”, eu não lembrava, porque são tantos, né, e a gente é até orientado pra não conversar muito com eles lá dentro, não dar muita corda, a gente nem se identifica, aí eu digo: “Rapaz, o rosto não me é estranho, mas não me lembro do nome”, aí ele se identificou e foi muito emocionante. Outra vez eu fui comprar um CD aqui numa loja no centro de São Paulo e o sujeitinho ali me rodeando, me assediando, quando eu terminei disse: “Olha, eu sou fulano de tal lá do CDP de Diadema, quero lhe agradecer aqui pela, você foi muito importante pra mim lá dentro, tal” e é comum presos ganhar, receber o alvará, alvará de soltura, né, vai embora no meio da oficina, mas deixa uma cartinha lá de agradecimento. Outro que fez a oficina depois de meses também vai embora, deixa uma cartinha lá com a coordenação pra me entregar, geralmente agradecendo, né, deixando o endereço pra entrar em contato. Já precisei ir em casa de mãe de preso que saiu, a mãe ligou desesperada: “Olha, o fulano quer que você, vou fazer um almoço aqui pra minha família porque o meu filho saiu da cadeia, ele só fala em você, quero que você venha aqui”, eu fui, foi muito emocionante. E agora, a história mais interessante foi essa, no primeiro, que eu declamo muitos poemas pra eles, né, todo o início de oficina é com poema, o encerramento também, eles pedem: “Diga mais um poema”, aí no primeiro dia um preso disse: “O senhor faz lembrar muito um poeta da minha terra”, tá bom, aí depois ele falou novamente e no último encontro, quando eu estava me despedindo, ele só olhava: “Até a voz é parecida com um poeta da minha terra”. Porque a gente não se identifica lá dentro, o coordenador só chega, diz: “Olha, tal dia começa a oficina de cordel aqui”, aí eu chego e já começo, não digo, não me apresento, eles não me apresentam, aí eu falei: “Qual é a sua terra?”, ele disse: “É em Quilexô”, que é entre Acopiara e Iguatu, né? Aí eu: “Tá bom, e como você conheceu esse poeta?”, ele disse: “É, programas de rádio que tem lá no nordeste, eu já ouvi pessoas recitando poemas dele”, eu falei: “E como é nome dele”, eu pensei no Patativa do Assaré, né, ele disse: “Moreira de Acopiara”, aí eu me arrepiei todo, aí fui embora. Aí quando foi no final do ano, todo final do ano a gente faz um encerramento, chamam aí dez presos, três ou quatro de cada oficina, pra ele vir, pra descer, aí a gente tem que chamar um parente desse preso, a mãe ou o irmão ou o pai, mas dificilmente dá certo porque às vezes o pai não quer ir, a mãe não pode, ou o pai não deixa a mãe vir, às vezes o preso não tem ninguém por perto, né, aí não dá certo, aí liga pra outro e liga pra outro e tal, até que eu disse: “Ah, liga pra esse preso aqui, o nome dele é José Hamilton”, jovenzinho, uns 27 anos, moço bonito: “Liga pra mãe do Zé Hamilton”, aí deu certo. Aí vai o prefeito, o pessoal da Secretaria de Segurança, a juíza, o promotor, alguns vereadores, alguns convidados, aí descem uns dez presos escoltados, dez, às vezes mais, aí tem um coquetel, tem uma falação, aí os presos vão mostrar o que fizeram, o pessoal do teatro mostra uma cena, o pessoal da história em quadrinho mostra o trabalho também, do circo também, aí o pessoal do cordel. Aí o Severino, que é o coordenador, disse: “Agora o Moreira de Acopiara vai apresentar o pessoal do cordel” (risos), aí o José Hamilton: “Rapaz, quer dizer que você é o Moreira de Acopiara”, a emoção foi total, a mãe dele chorou, coitada (risos): “A gente curte demais o seu trabalho, a gente gosta, a gente ouvia lá no nordeste e você aqui, que coincidência, que mundo pequeno, mas se encontrar justo aqui”, assim mesmo, né.
PAUSA
P/1 – Queria só pegar um pouquinho o gancho dessa questão que o senhor falou, né, que uma época o senhor trocou cartas com um presidiário, né, que faziam cordel, o senhor chegou a mandar um cordel pra ele, esse cordel como que foi, foi um cordel específico pra ele, como que foi isso?
R – Não, foi assim, um preso do CDP de Diadema, que os presos do CDP, CDP é Centro de Detenção Provisória, são os presos que ainda não foram condenados, quando eles são condenados, são julgados, aí eles pegam uma pena, aí vão cumprir essa pena numa penitenciária, vão pro interior, vão pra os mais diversos locais aí. Esse que saiu de Diadema levou cordéis meus lá pra onde ele foi, interior de São Paulo, e no cordel por acaso tinha o meu endereço e lá ele socializou esse cordel com outros presos, aí um desses presos me mandou uma carta pedindo pra eu mandar pra ele outros cordéis, que ele gostava muito de ler, que estava ali, que tava perto de sair e queria que eu mandasse outros cordéis. Aí eu mandei cordéis meus, cordéis que eu já tinha, né, fiz lá um kit e mandei pra ele, depois ele me escreveu de novo agradecendo, foi isso, não foi um cordel específico, não.
P/1 – Você falou agora do Patativa do Assaré, antes da gente continuar eu posso fazer uma pergunta lá de trás que você falou? Você conheceu o Patativa do Assaré, levou seu trabalho pra ele avaliar e depois você disse que você acabou fazendo trabalhos com ele no fim da vida dele, quais trabalhos foram esses?
R – A gente se apresentou juntos aqui em São Paulo.
P/1 – Vocês se conheceram como, você lembra o dia que vocês se conheceram, como foi?
R – Ele tava em Iguatu, recitando lá numa loja inclusive, uma loja de eletrodomésticos, e eu fui lá e comprei um livro dele, né, fazendo exatamente o que eu faço hoje, às vezes me convidam pra...
P/1 – Mas você tinha noção que era o Patativa do Assaré já?
R – Tinha, tinha porque mamãe falava muito dele e ele era muito querido ali, muito famoso, né, tinha um programa de rádio, aí eu fiquei sabendo: “O Patativa vai estar na Loja Chique”, ó o nome loja lá no centro de Iguatu, tal dia, vamos supor sábado, quatro horas da tarde, aí juntou aquele monte de gente e ele declamou ali uma hora mais ou menos e eu fiquei lá na plateia babando. Aí quando terminou ele ficou ali, expos o material dele, justamente o que eu faço hoje, eu fui lá e comprei um livro dele, né, eu tinha 15 anos, mas eu já tinha visto ele muitas vezes por ali, por Acopiara, no cinema lá em Acopiara, ele passou por lá, fez uma palestra maravilhosa, né. Aí pra datilografar os poemas e mostrar pra ele foi quando eu tinha16 anos, sim, aí depois aqui em São Paulo, ele foi convidado a fazer umas apresentações aqui, a gente, ele veio e nós fizemos juntos em faculdade, no Rio de Janeiro e no nordeste também.
P/1 – Como que ele era, como é que era o convívio com ele?
R – A pessoa melhor do mundo, a pessoa mais humilde, mais ingênua, né, simples, trabalhou na roça até os 60 anos de idade e criou a família na roça, foi alfabetizado em casa, estudou com professor particular três, quatro meses, o suficiente pra aprender a ler e escrever e fazer contas, mas depois disso ele leu muito, leu a obra de Camões, de Castro Alves, de Olavo Bilac toda, e era um leitor muito atento, muito cuidadoso. Sempre fazia os seus versos enquanto trabalhava na roça e escreveu poemas maravilhosos como a: “Triste partida”, que virou canção, que mais Luiz Gonzaga gostava de cantar, a que mais me emociona também: “Vaca estrela e boi fubá” que gravou Rolando Boldrin também. Deixou um livro maravilhoso chamado: “Cante lá que eu canto cá”, que é uma reunião dos poemas dele até os 60, 60 e poucos anos de idade e deixou, ele não publicou muitos cordéis, publicou acho que 15, 16 cordéis e uns seis, sete livros só, mas tudo coisa muito boa.
P/1 – E esse primeiro livro que você fez pela editora, você fez cinco livros antes, você falou, aí teve um que você foi, levou pra editora, como é que foi isso?
R – Não, foi assim, a minha, porque eu nunca também tive desejo de procurar editora, tenho, conheço pessoas que ficam mandando textos pras editoras, muita gente me procura: “Moreira, me apresente pra uma editora”, não, não é assim, deixa a coisa rolar, acontece, se tiver que acontecer acontecerá naturalmente. Eu tinha publicado dois cordéis, um se chamava: “O bê-á-bá do repente” e o: “Bê-á-bá do cordel”, eram dois cordéis, cordel é isso aqui ó, tinha publicado um que era o: “Bê-á-bá do cordel”, que era falando de cordel, o que é cordel e um outro: “Bê-á-bá do repente”, o que é repente, o que é cantoria, o que é embolada, tal. E uma dona de uma editora comprou esses cordéis em uma livraria, na Livraria Cortês, e lendo aquilo achou por bem transformar aquilo num livro, aí me chamou lá pra uma reunião pra gente elaborar um projeto: “Ó, vamos fazer um livro didático disso aqui, você escreve um outro texto sobre xilogravura e um texto em prosa falando de tudo isso”, beleza. Aí eu fiquei mais uns meses trabalhando naquilo, ela publicou, um livro que se chama: “Cordel em arte e versos”, que já vendeu aí mais de cem mil exemplares e é um livro que tem vida longa porque todo ano há uma venda grande, entrou em todos os programas de governo. Aí pronto, a partir daí as portas começaram a se abrir, né, aí as outras editoras começaram a me assediar: “Moreira, quando tiver um projeto aí manda pra gente”, tal, o que é muito bom, né, você viver de poesia, de cordel no Brasil, que dizem que leem pouco, né, mas é assim mesmo.
P/2 – Só voltando um pouquinho, o senhor falou da coisa da poesia oral, né, da tradição, que o cordel vem de uma tradição oral, como que isso era na sua cidade, quer dizer, tinha lá sua família, mas tinham outras pessoas, era uma coisa bem forte em termos de tradição da sua região específica?
R – Até hoje, porque o cordel foi inventado muito antes de inventarem a palavra, aliás, a escrita, né, quando inventaram a palavra já inventaram a poesia rimada e metrificada, por quê? Porque é mais fácil de decorar, é mais fácil de memorizar e foi dessa forma oral que chegou ao Brasil, só a partir de 1865 é que começou a passar para o papel e a partir de 1890 poetas como Leandro Gomes de Barro e Silvino Pirauá acharam que se fizessem em formato de livrinho assim poderia inclusive ser comercializado, né. Aí eles inovaram na linguagem, no formato e depois introduziram a xilogravura aqui, porque com a xilogravura, com a gravura condizente com o texto fica mais apresentável, né.
P/2 – Você também faz gravuras?
R – Não, não faço, eu sempre mando pra colegas xilógrafos.
P/1 – Quem são eles?
R – Erivaldo da Silva do Rio de Janeiro, Maércio Lopes no Crato, no Ceará, NireudaLongobardi aqui de São Paulo, enfim, Gerônimo Soares, que mora lá em Diadema, filho de Zé Soares, que foi um grande poeta. Bom, aí o cordel, a poesia oral chegou com o colonizador português, o colonizador europeu, ali por Salvador e se espalhou ali pelo nordeste, Recife, que era, e ainda é, ao meu ver, a capital cultural do Brasil, a Meca da cultura brasileira, e naquela época as pessoas iam aqui de São Paulo pra estudar em Recife, né, e tinha muitos poetas bons, muito repentistas, muitos cordelistas. Até hoje lá no município de Acopiara é comum as pessoas se reunirem, eu to falando Acopiara, mas não é só Acopiara não, eu to falando Acopiara porque eu conheço, as pessoas se reúnem pra dizer poesia, pra declamar, quando eu to lá não dou conta dos convites pra um almoço, pra um jantar, mas na verdade o que eles querem é me ouvir declamando um poema, né, aí tem poetas, mas tem aqueles que não sabem escrever, mas sabem declamar e declamam muito bem, aí é um sarau, como acontece aqui em São Paulo também.
P/2 – Você acha que os Correios, nessa função de disseminar essa cultura foi importante, ao seu ver, assim, no Brasil?
R – Com toda a certeza, é ainda, é grande o número de envelopes que eu recebo pelos Correios com cordéis, né, poetas lá do Recife, do interior da Paraíba, do interior do Ceará, que mandam cordel pra mim, outros mandam texto pra eu analisar, outros mandam uma cartinha pedindo pra mandar cordel pra eles.
P/2 – Quer dizer, internet não apagou, não abafou essa correspondência?
R – Não, não, mas eu sinto que diminuiu, a internet contribuiu muito com o cordel porque é mais um meio da gente divulgar o cordel, mas eu acho que diminuiu bastante o vai e vem de cartas, né, porque hoje é muito mais fácil você mandar um email do que uma carta, né.
P/2 – Mas não tem o valor do impresso?
R – Pra mim tem, eu prefiro muito uma cartinha, um envelopezinho, quando eu abro ali, cheio de novidades, mesmo a carta manuscrita, eu gosto muito mais do que um email, do que um telefonema, celular eu uso porque eu sou obrigado, mas...
P/1 – O cordel vem manuscrito, você recebe manuscrito?
R – Não, sempre impresso em offset, em gráfica ou em tipografia, mas eu gosto muito de receber cartas manuscritas ainda, tem mais sabor, tem mais valor pra mim.
P/1 – Quem que te manda essas cartas manuscritas ainda?
R – Manuel Monteiro, algum parente lá de Fortaleza, meu amigo Lucarocas, Jonas Bezerra, o pessoal lá de Recife também manda bastante.
P/2 – Os fãs escrevem?
R – Bastante, muita gente me escreve.
P/2 – Teve algum fã, alguma carta de algum fã específico que tenha te tocado que você se lembra?
R – Ah, todas me tocam muito, todas eu aprecio muito e guardo com muito carinho.
P/2 – Você costuma responder?
R – Não deixo nenhuma sem resposta e sempre mando um agrado, quando não me pedem nada eu sempre mando, nem que seja um cordel ou um agrado pra gente marcar mesmo, né, porque a gente, ninguém é nada sozinho, são esses leitores que divulgam a gente, Monteiro Lobato já fazia isso, Monteiro Lobato era conhecido como um grande, uma pessoa muito atenciosa, né, as pessoas mandavam bilhete pra ele, ele sempre respondia, não esquecia aniversário, não esquecia nenhuma data importante.
P/1 – Tem um cordel de preferência seu, que você gosta sempre de declamar?
R – Tem muitos.
P/1 – Escolhe uns pra gente.
R – Pronto, deixa eu dizer um poema que se chama: “Anos dourados”, “Anos dourados” foi assim, eu fui a uma escola esses dias que adotou um dos meus livros e ao final uma adolescente de uns 13 anos mais ou menos, era uma turminha de quinto ano, ela perguntou: “Tio, você tem Orkut?”, eu falei: “Não tenho”, “Mas você tem MSN”, “Tenho não”, “Você tem Facebook”, “Tenho não”, na verdade eu tenho essas bobagens aí quase todas, né, o que eu não tenho é tempo e nem saco pra ficar ali horas e horas. Aí o que me surpreendeu foi o comentário seguinte dela: “Não sei como é que você consegue viver sem isso”, aí eu imaginei, poxa vida, o Patativa do Assaré foi genial, né, Zé da Luz foi maravilhoso, Catulo da Paixão Cearense, só falando de poetas, Castro Alves, né, Graciliano Ramos foi um autor maravilhoso, Machado de Assis eu amo até hoje, Camões então e não vou nem falar em Dante Alighieri, que escreveu a coisa mais linda do mundo que se chama: “A divina comédia”, né, Chico Buarque de Holanda agora recentemente, é mais jovem, melhor poeta da MPB. Acho que esses homens foram geniais e produziram tanto e tão bem porque não precisaram de internet, esse facilitador aí que é uma faca de dois gumes, né, eles iam direto pesquisar na fonte. Aí com aquilo na cabeça me lembrei das inúmeras dificuldades pelas quais eu passei lá na fazenda, sem energia elétrica, sem escola por perto, sem shopping center, sem McDonald’s, mas com muito açude pra tomar banho, muito peixe pra pescar e muita fruta no pé, muito terreiro pra jogar bola e brincar, muito menino e ao mesmo tempo muito amado, né, muita liberdade, aí escrevi esse poema que se chama: “Anos dourados”. É assim: “Eu não posso acreditar que no passado fiz isso, olhando pra trás não creio que fiz tanto rebuliço e estou aqui inteirinho após trilhar um caminho com tão pouco compromisso. Eu não andava de carro com cinto de segurança, muito menos com airbag, ainda tinha confiança pra viajar de carona e até na mais feia zona provar minha liderança, andei descalço na lama, bebi água de torneira e brinquei na terra quente, exposto a chuva e poeira e em carro de rolimã eu parecia uma rã num tronco de bananeira. Saía de casa cedo, sem ter hora pra voltar, minha mãe sofria sem poder me localizar e aflita passava o dia, até porque não havia telefone celular. Não sei como não morri, nem como venci meus medos, andava de bicicleta entre pedras e arvoredos, decorava tabuada e era uma luta danada pra construir meus brinquedos, no São João soltava bombas e achava isso um colosso, brincava de cabra cega, cospe fogo e cai no poço, pulava muro de escola e escutando radiola fazia grande alvoroço. Dormia em cama patente, estudei caligrafia, usei Kichute, usei Conga e fiz datilografia, lia a revista O Cruzeiro e escutava no terreiro meu pai dizendo poesia, fui um menino danado, de atitudes deprimentes, levei topadas e quedas, quebrei ossos, quebrei dentes, mas nunca busquei culpados, esses tristes resultados eram somente incidentes. Tive brigas e esmurrei meninos da minha idade, fui esmurrado também e na mesma intensidade, ainda assim não morri, pelo contrário, aprendi a dar valor a amizade, eu subia em pé de coco com objetos cortantes, me empanturrava de doces, bebia refrigerantes, tomava banho de açude e zombava da saúde convivendo com fumantes. Apanhei frutas no pé, comi e não me dei mal, nunca senti se quer uma contaminação fatal, fui teimoso, fui omisso, não morri por causa disso, nem sei se isso era normal, comia queijo de coalho com goiabada cascão, não me prendia a internet, nem a globalização, conversava com os vizinhos, escutava os passarinhos, namorava no portão. Não tinha TV de plasma com cem números de canais, Playstation, Net, Nintendo, efeitos especiais, vivia exposto a perigos, porém conquistei amigos até hoje essenciais, fui deixado de escanteio em várias ocasiões, mas aprendi a lidar com as minhas frustrações. Meu pai foi homem notável e me tornou responsável por essas e outras e ações, andava horas debaixo de sol forte e céu azul, não havia McDonald’s, shopping center, Red Bull, tênis de marca, importado, estresse, chope, enlatado, Habbib’s, nem zona sul. Quase não passei de ano por causa de Matemática, não havia provas extras, jeitinho, nem qualquer tática, só passava quem sabia, no meu tempo não havia aprovação automática e era preciso aceitar achando bom ou ruim, desrespeitar uma lei naquele tempo era o fim e às vezes não compreendia porque meu pai protegia mais as leis do que a mim. Eu sou de uma geração de livres e de infratores, de enfrentadores de riscos, astutos negociadores, humanos e criativos achadores de motivos para serem vencedores. Tive algumas privações, porém muita liberdade e não me perdi no meio de tanta modernidade, nem de tanto compromisso e hoje aqui só digo isso pra não morrer de saudades”.
P/1 – Que lindo!
R – É um pouco da minha história, né, (risos). Você sabe que tem um outro poema que se chama: “Ser poeta popular”, porque esses poemas não nascem assim do nada, tem que ter um motivo, né, falam aí em inspiração, musa, eu não sei o que é isso. Dia desses eu fiz um poema que se chama: “Anos dourados”, perdão, dia desses eu fiz um poema que se chama: “Ser poeta popular”, que, assim, eu vinha de Brasília num avião e do meu lado dois cidadãos que vinham se gabando muito da fazenda, as milhares de cabeças de gado, não sei o que mais e perguntaram, um deles perguntou: “O que você faz?”, eu digo: “Rapaz, eu faço poesia, eu faço cordel”, aí: “O que é cordel?”, aí eu fui explicar, aí: “E o que é ser poeta, o que é ser poeta nessa linha aí mais popular que você faz?”. Aí eu fiquei meio sem resposta, né, mas aí quando cheguei em casa já cheguei com uma ideia pra fazer um poema, deixa eu ver se eu me lembro aqui, se não lembrar pelo menos algumas estrofes eu me lembro. É assim: “Ser poeta popular é percorrer longa estrada, é fazer do tempo escada e dela não se esquivar, é conseguir melhorar a vida de um companheiro, é construir um roteiro sem prejudicar ninguém e é ver a face do bem na solidão de um terreiro. É viajar todo dia nas asas da liberdade, é ter criatividade para falar de alegria, é buscar sabedoria, é defender os direitos, é ver como são perfeitos os muitos grãos de uma espiga, é ter sempre mão amiga, sem enaltecer seus feitos. É trabalhar na memória real e imaginário, é ser sempre um voluntário na construção de uma história, é correr atrás de glória sem esquecer as paixões, é botar nos corações os sentimentos risonhos, é viver plantando sonhos para colher emoções. É ver na sua carreira um jeito bom servir, é conseguir divertir a família brasileira, é lutar a vida inteira sem reclamar do destino, é ser como um tangerino defendendo um evangelho, é conseguir ficar velho com coração de menino. Ser poeta popular é não ter muito requinte, é emocionar o ouvinte na hora de se expressar, é ter cautela e amar como pouca gente amou, pisar por onde pisou Inácio da Catingueira e é colher flor na roseira que a mão do tempo plantou. É botar os pés no chão, mesmo com pedras e espinhos, depois trilhar os caminhos por onde andou Gonzagão, é ter na palma da mão os raios da lua cheia, fazer castelos de areia como sendo coisa séria, ter um verso em cada artéria e um poema em cada veia. Não é querer ser herói, mas fazer tudo que agrada, depois valorizar cada atitude que constrói, é saber onde é que dói e amenizar a ferida, ter a melhor acolhida, saber que o orgulho não presta, fazer da vida uma festa, fazer da luta”. Deixa eu dizer essa estrofe de novo: “Não é querer ser herói, mas fazer tudo que agrada, depois valorizar cada atitude que constrói, é saber onde é que dói e amenizar a ferida, ter a melhor acolhida, saber que o orgulho não presta, fazer da luta uma festa para amenizar a vida. Ser poeta popular é ser bem mais que erudito, é tentar fazer bonito, mas não se precipitar, é deixar rolar, cantar do modo mais natural o sertão, o litoral e o rio que serpenteia, é cantar a sua aldeia para ser universal”. É isso, e aí?
P/1 – E a sua ligação com a sua cidade hoje, com Acopiara, como é que é?
R – É boa, mas não é tão boa assim porque dizem que santo de casa não faz milagre, né, mas, enfim, eu tenho lá minhas raízes, tenho minha madrinha que eu amo muito, tenho os meus amigos e eu me renovo quando vou pra lá, qualquer oportunidade eu corro pra lá, né. Aí muda prefeito, tem uns interesses lá e eu não sou ligado, os prefeitos, os candidatos vem atrás de mim atrás de apoio e eu pulo fora porque digo que quem precisa de apoio sou eu, né, mas, enfim, eu gosto muito de Acopiara.
P/1 – Moreira, você casou?
R – Duas vezes, estou no segundo casamento.
P/1 – Qual foi a sua primeira paixão?
R – (risos)
P1 – Lá atrás na adolescência?
R – A primeira paixão é aquela da carta que eu falei, que mamãe mandou.
P/1 – Joana d’Arc.
R – Joana d’Arc, mandou esquecer, interessante que eu a reencontrei esses dias aqui em São Paulo, tá aí, virou minha amiga agora, mas depois eu me casei com uma moça lá de Iguatu, né, fiquei 12 anos com ela, depois não deu certo, aí eu fiquei um tempo só, aí encontrei uma paraibana, to com ela até hoje.
P/1 – Tem filhos?
R – Tenho não, por um problema meu inclusive, mas to ajudando criar um menino, sobrinho da minha esposa, que é a coisa, a experiência mais maravilhosa que eu to passando nos últimos dias, nos últimos anos, o menino tem dois anos e meio, maravilho, uma experiência maravilhosa.
P/1 – Qual que é o seu cotidiano hoje?
R – Bom, agora eu tenho andado muito aí pra, faço muitas apresentações, tenho uma agenda aí bastante cheia, não tão cheia assim, mas todo mês tem algumas apresentações, dois dias por semana CDP e preciso produzir, né, estou sempre produzindo alguma coisa, algum poema, algum cordel e escrevo muito lentamente, não é uma coisa muito rápida, eu gosto de achar o verso certo, a palavra certa, nem que isso demore dias, fico semanas trabalhando um único poema, um único cordel. Faço de um dia pro outro quando tem urgência, quando é coisa por encomenda, por exemplo, eu vou fazer uma apresentação agora dia 20 pra uma empresa de cosméticos, aí ontem, de ontem pra cá to preparando um poema falando da empresa pra chegar lá e declamar na abertura logo um poema falando deles, da história deles, né, isso eu faço rápido. Mas quando vai a emoção, aí demoro dias e não tenho pressa porque a minha preocupação nunca foi produzir, mas sim fazer um bom trabalho, produzir bonito, dizer bonito, porque pra fazer um amontoado de versos bem rimados e metrificado é muito fácil, agora, o conteúdo, aí é difícil e a minha preocupação maior é fazer um bom trabalho, não uma grande quantidade.
P/1 – As empresas te contratam pra fazer isso?
R – Muito, empresas, escolas, faço muito cordel por encomenda pra político, pra gente que se casa, gente que nasce, gente que aniversaria, gente que morre, muitas vezes já aconteceu da viúva me ligar: “Ah, meu marido era muito seu fã, na missa de sétimo dia ou de trigésimo dia quero que você faça um cordel contando a história dele pra distribuir”, aí eu faço, aí também não vai emoção, né, ganha um cachê pra fazer aquilo. Pra político então eu faço, fiz doze agora na última eleição, pra candidatos, né.
P/1 – Quando que você começou a viver do seu trabalho literário?
R – Já tem uns, foi a partir de 95, 96 mais ou menos, aí no começo inclusive foi difícil porque não entrava quase grana, mas aquilo que eu lhe falei, a gente vai conhecendo as pessoas e as portas vão se abrindo. Hoje tá tranquilo, né, tenho, faço muita coisa na Secretaria de Educação de São Bernardo e Diadema, na Secretaria de Cultura dessas duas cidades também, né, e viajo muito, esse ano já fui ao Mato Grosso, já fui a Brasília duas vezes, já fui ao Rio não sei quantas vezes.
P/1 – E pra fora do país, você já foi representar o Brasil?
R – Ainda não, já fui sondado, mas na época era uma coisa, assim, muito urgente, eu não tinha passaporte pronto, aí não deu tempo, tenho alguma coisa agendada no Ceará agora em agosto, Recife.
P/1 – O que é no Recife, no Ceará?
R – No Ceará é justamente a festa de aniversário de carreira do poeta Geraldo Amâncio, que ele é de Cedro, o Cedro é perto de Acopiara, uns 80 quilômetros, e ele vai fazer um grande festival, quatro dias, dias 22, 23, 24 e 25 de agosto, e ele me convidou hoje pra fazer, pra declamar alguns poemas na abertura do festival dele, né, é o Governo do Estado do Ceará que tá patrocinando, a prefeitura de Cedro.
P/1 – E em Olinda?
R – Olinda, já estive lá também, é mesmo linda (risos).
P/1 – Olhando sua trajetória de vida, quer dizer, você tem alguma coisa que a gente, deve ter muitas, né, que a gente nem tocou aqui, que você acha importante deixar registrado?
R – Não, é isso mesmo, a vida da gente é isso, né, um acúmulo de experiências, coisas boas e ruins e a gente vai tirando proveito de tudo, né, eu gostei da conversa com vocês.
P/1 – Moreira, olhando sua trajetória de vida, assim, que a gente conversou, se você tivesse que mudar alguma coisa na sua trajetória você faria algo diferente, você mudaria alguma coisa?
R – Sim, eu acho que sim, eu tinha me esforçado pra fazer um curso superior, me esforçado mais, né, eu cheguei a passar no vestibular e não entrei na faculdade, na época eu não tinha grana, não tinha como, né. Mas aí o meu melhor professor era o Patativa do Assaré, que estudou quatro meses com um professor particular ali, mas tinha uma cultura aí que ganhava de muito doutor de fato. Eu pensei: “Se o Patativa não precisou cursar nenhuma universidade então não vou precisar também”, mas acho que foi uma grande besteira que eu fiz porque a universidade com certeza lhe abre muitas portas, né?
P/1 – Você prestou vestibular do quê?
R – Letras.
P/1 – Aonde?
R – Aqui em São Bernardo mesmo, né, mas não entrei, não tinha como fazer na época, hoje até dava, mas agora também já tem muito trabalho, quase toda noite eu tenho compromisso, escola, uma apresentação, uma palestra, aí vai ficando mais difícil ainda, né, na época eu não tinha dinheiro, agora eu não tenho tempo (risos).
P/1 – O que você achou da experiência de contar sua história de vida aqui pro Museu da Pessoa?
R – É fundamental, a geração do futuro, as próximas gerações precisam olhar pra geração do passado no caso, eu gosto muito de olhar a geração do passado, me espelhar nela, né, história de vida aí de, eu tava vendo a de, o Paulo Freire, maravilhoso, conheci, assisti uma aula dele como ouvinte, né, e Luiz Gonzaga, Patativa do Assaré. A gente tem que se espelhar nessa gente, a gente tem que ter, nós temos que ter nossos ídolos, senão fica muito sem graça, né.
P/1 – Queria agradecer em nome do museu, muito bonito seu depoimento.
P/2 – Só queria uma notinha de rodapé, só pra transcrição, você falou em Vila Trussu.
R – É.
P/2 – ‘T’, ‘r’, ‘u’.
R – Dois esses.
P/2 – Trussu, é isso mesmo.
FINAL DA ENTREVISTA
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