Tecban - Histórias Diversas
Entrevista de Andréa Brazil
Entrevistada por Genivaldo Cavalcanti Filho
São Paulo/Rio de Janeiro, 20 de julho de 2022
Entrevista nº PCSH_HV1263
Realização: Museu da Pessoa
Transcrita por Mônica Alves
Revisada por Genivaldo Cavalcanti Filho
(00:18) P/1 - Bom dia, Andréa. Tudo bom?
R - Bom dia, tudo bem!
(00:24) P/1 - A gente vai começar com a pergunta mais básica: o seu nome completo, a cidade onde você nasceu e a data de nascimento.
R - Sou Andréa Brazil, carioca, nascida aqui na zona oeste, em Senador Vasconcelos. Tenho 49 anos, nasci em 1973, [em] oito de março. Na verdade, tem controvérsias; eu nasci às 00:55, então eu já considero [dia] nove. Embora seja um dia muito significativo, ou seja, o Dia Internacional da Mulher, para mim tinha um pouco de ressalva, porque é o dia do aniversário do meu pai e eu não tenho a presença da figura paterna na minha vida, então eu reivindico o dia nove, porque é mais forte para mim ele ter me registrado no mesmo dia que ele, mesmo sendo um pai ausente, do que o Dia Internacional da Mulher, que tem tanta importância para todas as figuras femininas.
(01:24) P/1 - E o que você sabe sobre a origem da sua família? É uma família do Rio de Janeiro mesmo ou eles vieram de outros lugares?
R - Sim, tudo carioca, tudo do Rio de Janeiro, meu pai, minha mãe, ambos falecidos. A referência que eu tenho deles é tudo carioca mesmo, está no sangue, né? Eu não sei, nunca tive essa coisa de saber as minhas origens, saber quem foram os meus ancestrais, mas a gente sabe que a gente é tudo um povo tudo miscigenado, então com certeza tem muita miscigenação aí.
(02:07) P/1 - E falando um pouco sobre a sua infância, você tem alguma história da sua infância que te marcou até hoje, alguma coisa que você lembra até hoje?
R - A parte da minha infância é o que eu acho que é um pouco da referência de toda criança LGBT no Brasil: o estranhamento,...
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Entrevista de Andréa Brazil
Entrevistada por Genivaldo Cavalcanti Filho
São Paulo/Rio de Janeiro, 20 de julho de 2022
Entrevista nº PCSH_HV1263
Realização: Museu da Pessoa
Transcrita por Mônica Alves
Revisada por Genivaldo Cavalcanti Filho
(00:18) P/1 - Bom dia, Andréa. Tudo bom?
R - Bom dia, tudo bem!
(00:24) P/1 - A gente vai começar com a pergunta mais básica: o seu nome completo, a cidade onde você nasceu e a data de nascimento.
R - Sou Andréa Brazil, carioca, nascida aqui na zona oeste, em Senador Vasconcelos. Tenho 49 anos, nasci em 1973, [em] oito de março. Na verdade, tem controvérsias; eu nasci às 00:55, então eu já considero [dia] nove. Embora seja um dia muito significativo, ou seja, o Dia Internacional da Mulher, para mim tinha um pouco de ressalva, porque é o dia do aniversário do meu pai e eu não tenho a presença da figura paterna na minha vida, então eu reivindico o dia nove, porque é mais forte para mim ele ter me registrado no mesmo dia que ele, mesmo sendo um pai ausente, do que o Dia Internacional da Mulher, que tem tanta importância para todas as figuras femininas.
(01:24) P/1 - E o que você sabe sobre a origem da sua família? É uma família do Rio de Janeiro mesmo ou eles vieram de outros lugares?
R - Sim, tudo carioca, tudo do Rio de Janeiro, meu pai, minha mãe, ambos falecidos. A referência que eu tenho deles é tudo carioca mesmo, está no sangue, né? Eu não sei, nunca tive essa coisa de saber as minhas origens, saber quem foram os meus ancestrais, mas a gente sabe que a gente é tudo um povo tudo miscigenado, então com certeza tem muita miscigenação aí.
(02:07) P/1 - E falando um pouco sobre a sua infância, você tem alguma história da sua infância que te marcou até hoje, alguma coisa que você lembra até hoje?
R - A parte da minha infância é o que eu acho que é um pouco da referência de toda criança LGBT no Brasil: o estranhamento, “essa criança é diferente”, “você sabe que seu filho vai ser viado”, minha mãe brigando com um amigo que era gay, que falou isso para ela. Ela relutando, reproduzindo falas machistas por causa da criação, da ignorância dela. Infelizmente, ela não tinha uma mente muito aberta, então eu lembro de padrastos diversos, porque a minha mãe teve relacionamentos muitos fracassados e eu sempre no meio desse furacão.
Eu tinha padrastos legais e ela, sempre sofredora, por ser sempre dependente do homem, como o alicerce. Ela tinha a necessidade de ter um homem que sustentasse ela, ela foi criando… Na cabeça dela, acho que ela tinha que ter um homem para assumir o papel de homem da casa, financeiramente. Ela sempre procurava um apoio na figura masculina, então isso já é uma referência para mim, para eu ser a independente que eu sou hoje e para não ter a dependência que ela tinha, por causa das experiências fracassadas.
Eu lembro de situações muito complicadas para uma criança LGBT no Brasil, [de] preconceito, [de] ver a sua mãe quase morrendo por causa de relacionamento. Eu lembro de minha mãe tentando suicídio, eu salvando a minha mãe de uma dessas tentativas, eu vendo a minha mãe quase sendo assassinada pelo meu último padrasto, que foi com quem ela casou - ela nunca tinha se casado na vida - então essas coisas são as marcas da minha infância, aí some aquele lado lúdico da criança que brinca. Quando eu brincava era com brincadeiras com referências já divergentes. Já desenhava vestidinho, eu já desenhava as heroínas dos desenhos, eu já gostava só da figura feminina e aí eu chamava atenção. “Isso não é coisa de homem, isso é coisa de viado”. E escutar isso a minha infância inteira não foi legal, então essas são as referências.
Lembro também de acordar cedo, ter uma carga de responsabilidade que não era normal para uma criança, porque a minha mãe, coitada… Eu falo isso tudo com muita pena, com muito respeito por ela; ela me transformou na pessoa forte que eu sou, exatamente por causa das pequenas falhas dela. Eu lembro de acordar às seis da manhã para gravar cinco horóscopos de rádios diferentes pra ela, arrumar por alto a casa, limpar, varrer, fazer arroz, para ainda ir para a escola. E eu lembro muito de uma mãe que acabava me tratando como se eu fosse empregada dela, digamos assim. Eu tinha que limpar as coisas e ela acordar e levantar. Eu não podia fazer nenhum barulho.
Infelizmente essas coisas me marcam, mas eu não guardo nenhuma dor, nenhuma mágoa dessa mãe. Pelo contrário, eu entendo que ela também sofreu muito na vida para me criar e isso transformou ela nessa mulher dura, que não tinha muita sensibilidade para um abraço e que demorou muito para identificar a criança LGBT que ela tinha dentro de casa.
Lembro de a minha infância toda ter sido só com ela, eu e ela, e depois dos meus quatorze anos de idade, ela engravidou desse meu padrasto, que foi o último, que foi o marido dela. Hoje eu tenho uma irmã, uma irmã paterna.
Eu não tive a presença do meu pai verdadeiro. Quando ela descobriu a minha sexualidade, percebeu que eu realmente era uma criança gay, ela tentou me mandar para o meu pai, que foi uma experiência desastrosa. Eu fui tratada com muita violência, com muita hipocrisia por parte do meu pai. Ele nunca tinha tido muita responsabilidade comigo e quando ela me mandou para ele, aconselhada pelo meu padrasto, ela me mandou pensando que isso resolveria o problema. Na cabeça dela era um problema e, como eu dizia, a minha mãe reproduzia muitos discursos machistas. Aí ela me manda para o meu pai, falando: “Isso foi a falta do pai, eu errei como mulher”. Sabe? Essas coisas ridículas.
Fui morar com o meu pai. Com pouquíssimo tempo, meu pai levantou a mão para me agredir pela primeira vez, sem nunca ter tido nenhum contato comigo. Essas são as lembranças de infância.
Uma última lembrança, que eu não quero que fique pesada essa entrevista, mas uma última lembrança que eu tenho é da minha mãe tentando ir atrás de mim, arrependida de ter me mandando para o meu pai por influência do padrasto, já gravida. Eu lembro deles omitirem que a minha mãe ia me visitar, a minha família paterna querendo me afastar totalmente dela, e ela ficando largada, perdida em Campos à noite e isso me revoltou muito. Quando eu descobri que alguém… Parecia, sabe, aquelas cenas de novela. A revelação: “A sua mãe está em Campos, ela veio atrás de você”. E o meu pai não queria que a gente se visse mais.
Eu lembro deles se estranharem quando se reuniu toda a família no quintal da casa dele - outra cena que marcou muito a minha infância. E eu lembro do primeiro gesto meu: ao contrário da mãe leoa, a filha leoa, porque meu pai levantou o peito, estufou o peito para ir para cima da minha mãe, e eu lembro de ir para cima de uma pilha de tijolos, pegar um tijolo, daqueles tijolos brutos que não tem buracos, de barro puro, duro e eu falei: “Encosta um dedo na minha mãe para tu ver”. Essa é a cena que lembra uma das fases da minha infância - no caso, já na pré-adolescência. Eu falei: “Encosta um dedo na minha mãe”. E peguei o tijolo para ir pra cima dele. A família [dizia]: “Deixa disso, deixa disso.” E aí eu lembro de ter voltado com a minha mãe para o Rio de Janeiro.
Pesado, né? Começamos pesado.
(09:19) P/1 - Campos era Campos de Goytacazes? Desculpa!
R - Isso.
(09:16) P/1 - Entendi. E aí depois você voltou a morar com a sua mãe no Rio mesmo?
R - Sim, mas novamente não deu certo, porque insistiram naquela coisa do: “Isso tem cura, isso tem recuperação”. E não tinha.
Eu lembro de, novamente, acho que aos dezesseis, por conta própria, eu correr atrás e ir embora atrás da minha família paterna - no caso, a minha madrinha. Eu achava que eu ia ter um acolhimento melhor da minha madrinha.
A minha madrinha tinha dois filhos e também ficou comigo um tempo, tentando novamente levar a história da minha mãe, porque ninguém entendia a minha mãe ouvir mais o meu padrasto, que era militar, machista. Mas eles não entendiam que agora ela tinha uma criança com ele, que ela dependia dele financeiramente para tudo, e aí era muito fácil eles julgarem a minha mãe e quererem me manter longe dela, para eu não viver mais aquele tipo de violências psicológicas, digamos assim. Mas também cometeram violências psicológicas. Por exemplo, essa minha madrinha não sabia, mas eu já sabia que ela tinha tido relacionamento homossexual, e ela falava que era melhor ter um filho bandido do que um filho homossexual. Essa foi uma das frases de violência que eu ouvi da minha madrinha, que era minha madrinha e tia, irmã do meu pai.
Eu tinha uma vida de… Eu lembro de ter tido uma vidinha de rica, vamos botar assim, de tia sócia de clube, de poder ir com os meus primos para piscina e clube particular. Morei em Juiz de Fora, gosto muito de Juiz de Fora por causa disso, por causa da sensação boa que eu tive, de parecer que eu tive um padrão de vida que não era o meu no Rio, com a minha mãe, porque a minha mãe se submetia muito às violências masculinas para nos sustentar. Ao mesmo tempo eu me livrava disso, mas o que mais me doía era a falta da minha mãe, eu queria estar perto da minha mãe.
Eu lembro dessa violência também sofrida também com a minha madrinha, porque eu sabia - e ela não sabia que eu sabia - que ela já tinha tido um relacionamento com uma outra mulher e falou que era melhor ter um filho ser bandido do que ser homossexual, então foi mais uma violência.
Por incrível que pareça, o meu tio, marido dela, que era machista, gaúcho, não reverberava essas palavras, me tratava com respeito. Isso que me chocava. Eu falava: “Gente, como pode a minha madrinha, uma mulher, fazer esse tipo de fala?” O meu primo era extremamente machista, mas ele também me adorava. Depois é que ele começou a implicar um pouco com a minha sexualidade, porque ele percebia que eu era diferente, meu primo mais novo. Anos depois a gente se reencontrou e ele se tornou o meu melhor amigo. São contrastes loucos, né? Enfim…
(12:36) P/1 - E nesse período ainda de infância, início da adolescência, Andréa, você tinha algum sonho? “Eu quero ser tal coisa, eu quero trabalhar com isso”, alguma coisa assim?
R - Eu fiquei muito confusa com que área iria trilhar, mas eu tinha um sonho de ser estilista desde aqui, quando começou tudo, na infância. A criança que desenhava a She-Ra, a Feiticeira, todos os personagens femininos de He-Man, de She-Ra… Eu só desenhava as mulheres por causa das roupinhas, porque eu achava… Então eu percebi que aquilo era uma inclinação que eu teria. E no contexto, eu ainda era muito confusa com que área eu iria trilhar, porque eu escutava muito essas coisas de: “Isso não dava dinheiro”, não sei o quê.
Eu nunca na minha vida imaginaria que eu seria uma gestora, e eu nunca imaginaria na minha vida que eu… Eu precisava de uma profissão, na minha cabeça eu precisava de uma profissão, porque eu imaginava que o sistema não fosse me respeitar se eu não tivesse uma profissão. Acabou que esse sonho adormeceu, esse sonho da estilista adormeceu e eu fui trilhando o meu caminho. Aquele caminho normativo: estudar, concluir pelo menos o segundo grau.
Eu lembro de ter passado para o segundo grau numa dessas fases que a minha mãe sofria muita pressão psicológica por ter um filho viado e ela ter parido recentemente, ser mãe novamente, realizando um sonho dela, que era ter uma menina, que hoje é a minha irmã Alessandra, e ela ficar entre a cruz e a espada, ser obrigada a se submeter a um pai, a um homem que era o homem da casa, e eu ficar sempre em segundo plano. Novamente, ela precisava ficar me jogando na casa de tios, de tias, e eu lembro de alguns constrangimentos que eu passei.
Eu lembro de ter passado… Na época era uma prova que a gente prestava para o segundo grau e eu entrei para o Miécimo. Lembro de ter entrado para o Miécimo e ela muito orgulhosa, batendo no peito: “Meu filho, meu filho foi aprovado”. E eu lembro de estudar com a pressão psicológica do meu tio, me perguntando quando é que eu iria embora, porque ela tinha que assumir a responsabilidade do filho que ela tinha, ela tinha que enfrentar o marido e tinha que encarar qualquer situação para que eu saísse da casa deles, que eu estava ali de favor, esse tipo de coisa. É só isso, só porrada!
(15:32) P/1 - Você falou a respeito da escola, mas você também comentou que você se mudou muito, nessas idas e voltas para casa de parentes e voltava para a mãe. Como é que foi a sua vida escolar, mudando sempre de casa?
R - Essa parte é muito engraçada, vocês não vão acreditar. Só a oitava série eu fiz em cinco escolas diferentes. Só a oitava série, a antiga oitava série. Eu comecei a oitava série aqui na Barata Ribeiro, aqui no Rio. Foi quando ela me mandou para o meu pai, e aí em Campos eu precisei achar um lugar que me aceitasse. Tinha uma diferença muito grande daqui no Rio, capital, em Santíssimo, onde eu estudava na Escola Municipal Fernando Barata Ribeiro, [em] que eu sofri também muito preconceito. Foi quando ela descobriu de fato, porque os orientadores ainda tinham aquela coisa, sabe? “Tem algum problema com o seu filho!” Ela foi chamada [por] brincadeirinha de coleguinha.
Eu assim, entrando numa fase de pré-adolescência, passando por… A Pabllo Vittar conta que ela foi humilhada na escola, mas não foi só a Pabllo. Ela é uma referência, mas eu também sofri esse tipo de assédio, de bullying. Por incrível que pareça, sempre eram as mulheres que debochavam de mim, que me ironizavam, e os garotos acabavam entrando no jogo da brincadeirinha e do assédio com outras intenções. Você percebia que tinha uma outra nuance naquela… Sabe? Que dava para jogar um jogo com eles, mas as meninas não, elas vinham com formas pejorativas, para me diminuir mesmo.
Eu fiz o Barata Ribeiro, aí a minha mãe me descobre e me manda morar com o meu pai. Meu pai, depois de quase um mês parado de escola, me manda para uma escola que eu, em pouquíssimo tempo, conquistei todo mundo, incrível! A escola toda começou a se aproximar dessa figura, dessa criança afeminada. Eu comecei a me apegar a todo mundo.
Lembro de professores falando: “Você acha que você consegue fazer essa prova?” E eu falei: “Eu vou tentar”. [Lembro] de fazer e tirar nota boa, sabe? Só que a minha relação com o meu pai estava insustentável, aí eu falei: “Eu quero ir embora”.
Foi o primeiro momento que a minha tia quis me levar para Juiz de Fora, e aí a escola fala assim: “Mas você está na reta final, você consegue!” Você, por mais que… No Rio, a Matemática ainda estava [na] matéria de sétima série e em cálculos eles já estavam terminando a de oitava - eu lembro da equação de segundo grau, cara! Eu lembro disso, equação de segundo grau. Na escola, o professor falou assim: “Você está pegando tudo tão rápido, você tem certeza que vai abandonar isso tudo?” E eu falei: “Eu prefiro ser reprovado e ir embora, não aguento mais o meu pai”.
E aí foi uma nova vida já lá em Juiz de Fora, com a minha tia madrinha. Ela me colocou numa escola particular. Eu lembro dela ter pago a matrícula dos três: minha, da minha prima e do meu primo. Eu lembro dessa história também, que liderei um manifesto contra o aumento da mensalidade. Muito novinha, já revolucionária. Lembro da minha madrinha falando: “Nossa, a mensalidade está dobrando por mês! Começamos com duzentos, foi para quatrocentos". Eu lembro disso até hoje. “E agora estão querendo cobrar quatrocentos por cada uma das crianças.”
Eu, escutando isso, me uni com as crianças da escola, com jovens, adolescentes. Eu lembro da revolucionária fazendo protesto, manifesto, e de ser convidada a me retirar da escola pela… Porque era escola de freira, católica, se eu não me engano. Acho que era… Esqueci o nome da escola, não vou falar o nome errado. Fui convidada [a sair]. Minha tia olhou para a minha cara e eu falei: “Ué, vamos embora. Eu não quero ficar aqui, a senhora não vai pagar oitocentos”. Acho que eram oitocentos reais na época ou oitocentos mil, não lembro… “A senhora não precisa pagar isso! Eu estudava em escola pública, não precisa!”
Consegui, mas na verdade a minha intenção era outra, [era] ir para uma outra escola que me permitisse estudar à noite, mas a minha tia não deixou. Ela já [estava] de olho, no controle: “Não, porque à noite vai se soltar”. E aí eu lembro de ter passado por uma outra escola.
Lembra da história da minha mãe, sempre atrás de mim, de novo? [Aconteceu] mais uma vez. Acho que a minha mãe estava precisando muito de mim, se sentindo arrependida de tantas idas e vindas, e me trouxe de volta. Fui concluir minha oitava série na escola Alcides Carneiro, pública, no Mendanha, aqui em Campo Grande. Ela já estava morando numa “casa” , aí eu lembro da minha mãe… Ela conseguiu me matricular nessa escola e novamente eu conquistei a escola toda em pouquíssimo tempo, então eu era a figurinha, era a popular da escola, porque tanto os meninos quanto as meninas ficavam ao meu redor. Nessa escola eu não sofri tanto assédio e consegui concluir finalmente o primeiro grau.
Mas aí veio uma nova fase de perseguição do meu padrasto e mais uma vez a minha mãe precisou que eu ficasse na casa dos outros. Aí começou aquela fase de eu passar no concurso da escola, do segundo grau, que foi no Miécimo. Entrei para o Miécimo Da Silva, aqui em Campo Grande, e aí ela ficou orgulhosa de mim. Eu tinha que escolher qual curso e lá no Miécimo só tinha três opções: Contabilidade, Administração ou Edificações. Eu achava que, por desenhar bem, eu ia para Edificações, mas não era isso que eu imaginava para o meu futuro. Pensei: “Então acho que vou fazer Administração”.
Administração se tornou o mais viável para mim por causa da escala de horários. Lembro de já precisar, desde a oitava série, ficar vendendo coisas na escola para poder ganhar dinheiro, aí eu falei: “A empreendedora já existiu ali!” “Vou fazer brigadeiro.” Vendia brigadeiro na escola, as pessoas compravam e eu levava dinheiro para casa, e isso mostrava já o que viria pela frente, mas consegui, terminei o segundo grau.
(PAUSA)
(22:37) P/1 - Voltando, Andréa, você terminou o segundo grau e aí o que veio depois, o que você começou a pensar em fazer?
R - Bom, nessa linha do tempo agora eu não consigo me lembrar muito bem da sequência, tanto que até mesmo contando essa história do meio da minha infância, para eu conseguir terminar os meus estudos, veio a… Bom, eu lembro de eu ter feito o primeiro ano do segundo grau, beleza. Lembro que no segundo ano do segundo grau começou de novo esse negócio de ficar saindo de casa - acredito que eu já estivesse com os meus dezesseis, dezessete anos, por aí. Lembro que eu travei, não engatei no segundo ano, e veio o falecimento da minha mãe. Eu não consegui terminar exatamente, aí com dezoito anos a minha mãe vai e tem um infarto, eu já… Isso, eu já estava no segundo grau, fazendo estágio na… Eu já tinha feito estágio em todos esses bancos porque era assistente de administração; era muito comum ter estágio e eu fiz estágio em três bancos, Caixa Econômica, o antigo Banerj e o Banco do Brasil.
Eu lembro de estar fazendo estágio no Banco do Brasil e ter conseguido libertar a minha mãe, financeiramente, do meu padrasto. A relação deles já estava insuportável, a criança já tinha nascido, a minha irmã já estava com três para quatro aninhos. A gente já estava vivendo uma vida eu, ela e minha irmã, na casa que a gente tinha aqui no Caxangá, em Santíssimo. Eu consegui que ela se libertasse dessa relação.
Eu digo que eu consegui porque eu era o único apoio dela, e a partir do momento que eu começo a ter uma renda, ela passa a não ser mais totalmente dependente dele. Lembro da situação dela na justiça, brigando por uma pensão, porque ele era militar - eu falo que ele era militar porque ele também morreu, ele faleceu há pouco tempo, tem uns três, quatro anos. Eu lembro que a minha mãe, por ser casada com ele legalmente, teve que botar ele na justiça por causa da filha, porque eles tinham uma filha, a Alessandra. Eu lembro dela assinando recibo para uma lata de leite em pó para a própria filha, eu achei aquilo um absurdo! Aí eu começo a sustentar a minha mãe com a minha bolsa do estágio, e eu achei isso libertador para ela. Fiquei muito feliz do filho viado poder ajudar a mãe que sofria na mão do de um homem machista, que era pai da criança e cobrava uma lata de leite que dava para a própria filha.
Só que nesse período que a gente começou a se entender, ela começou a entender um pouco mais da minha sexualidade, porque lá nos dezesseis [anos] a oscilação está acontecendo ainda. Lá nos dezesseis, eu lembro de ter falado para ela assim: “Não adianta, eu não vou mudar. Eu sou assim, se eu não falar para você, você sempre vai ficar sempre sabendo da boca dos outros, das vizinhas fofoqueiras. Ou você me aceita como eu sou, ou não vai ter conversa”. E a partir disso, acho que dezessete para os dezoito ela já começa a entender de uma outra forma e começa a enfrentar as pessoas por mim, lá no meu bairro. Eu, ela e minha irmã, ela começa a enfrentar as pessoas.
A gente foi morar nesse bairro quando eu tinha oito anos de idade, então quer dizer, dez anos se passaram, dez anos dentro de um bairro, escutando piadinha; é óbvio que em algum momento ela ia ter que enfrentar isso. Então eu lembro dos meus dezoito anos, quando a gente estava começando a se entender, ela começando a conversar comigo sobre a minha orientação sexual, sobre eu ser um jovem gay, afeminado. Finalmente, quando a gente está se entendendo, eu lembro de estar no Banco do Brasil, no estágio. Teve uma greve violenta neste ano desses bancos e eles pegaram os estagiários para cobrir o atraso que estava, negócio de documentação. Eu trabalhava na microfilmagem e eles falavam que para todos os estagiários que quisessem atualizar, colocar os serviços em dia, cada dia de trabalho valeria dois dias das greves gerais, e eu fui exatamente trabalhar num sábado, depois de uma balada.
Eu fui para a noite e lembro da minha mãe muito magoada comigo, porque eu fui para essa balada. Teve um bom tempo que eu me senti culpada por isso, pelo que aconteceu depois. Eu lembro de ter chegado em casa virada, só tomar banho e me arrumar, e ir para o banco cumprir com a minha jornada de trabalho para pagar dois dias da greve deles, mas eu lembro que na noite que eu fui para a balada, ela me falou: “Não vai, fica em casa hoje”. Eu falei: “Fico pra quê? Eu preciso me divertir também, preciso me distrair também”. Coisa de jovem, não é nem de adolescente, eu já tinha meus dezoito anos. Eu não ouvi, e aquilo… Eu fiquei me sentindo culpada por muito tempo depois, porque no dia seguinte, enquanto estava no Banco do Brasil, eu me lembro de estar passando muito mal por estar virada, fazendo o meu serviço lá, que era colocar os papéis dentro de uma máquina, a microfilmadora, com documentos. Lembro de estar passando muito mal por estar virada e [de receber] uma ligação, falando: “Chama o André”. Eu fui, e era a minha mãe no telefone: “Eu estou passando muito mal, estou indo agora para o HPM. Deixei a sua irmã na dona Marisa, a vizinha de frente”. Aí eu comecei a chorar, falei: “O que houve?” Ela: “Estou indo para o HPM”.
Eu lembro de ter… O pessoal do banco tirou dinheiro: “Toma, pega um táxi e vai encontrar a sua mãe”. E eu falei: “A minha mãe está passando mal, gente". Eu lembro de [dizer]: “Você quer que eu vá te buscar?” E ela: “Não, porque não vai dar tempo.” Essa frase ficou muito marcada para mim: “Não vai dar tempo.” E eu: “Como assim, não vai dar tempo?”
Acho que a minha pegou o 397, o ônibus; para quem não conhece, é um trajeto de quase uma hora pela Avenida Brasil, até chegar no hospital. Falei assim: “Você vem com alguém?” Ela falou: “Não, ninguém quis vir comigo”. Isso me doeu muito.
Minha mãe só conseguiu chegar até o centro, atravessar e cair na porta do hospital, então essa memória mexe muito comigo. Eu já estava no hospital esperando ela, porque eu estava no Andaraí. Engraçado que anteontem eu passei pelo… Eu fui fazer umas entregas de moletons e passei na frente desse banco em que eu estagiei e onde me ligaram para informar que a minha mãe estava passando mal. Era nesse banco, Cesec Barão de São Francisco, no Andaraí.
Eu lembro que dali para o Hospital da Polícia Militar era muito rápido. Cheguei, obviamente, antes dela, por isso eu queria ter ido buscar ela em casa, mas ela falou essa frase: “Não, não vai dar tempo”. E realmente não deu.
Quando eu cheguei, eu fiquei esperando ela lá em cima. Ela tinha direito a esse hospital, e aí eu lembro deles falando… De eu estar cochilando, sentada, esperando ela, aí alguém dar um tapinha em mim e falar assim: “Você está esperando a sua mãe, sua tia, né?” Eu falei: “Minha mãe, por quê?” “Vamos ali embaixo, porque aconteceu alguma coisa”. E quando eu desci a rampa lá do HPM, eu vi a minha mãe caída na rua.
Ali o meu mundo acabou. Aos dezoito anos de idade a minha mãe me deixou, ela teve um infarto fulminante na porta do hospital e eu achei que aquilo era culpa minha, que eu não tive como fazer nada. A partir dali a vida começou a ser mais dura comigo. Perdi a minha mãe, que era meu porto seguro, a única mulher que eu tive, e quando eu fui para o Souza Aguiar eu lembro de ter encostado nela, no corpo dela, e aí sai aquele último respiro, parece que é um ar que sai, e eu ainda meio que surtado, achando que ela estava viva.
Foi ali que a minha vida tomou outra nuance. A partir dali eu quis morrer e não sabia o que no futuro me esperava. A gente falava muito sobre independência, sobre ter liberdade, fazer o que quisesse, não ter pais controlando, que respeitassem, mas ali veio uma nova carga na minha vida, porque a minha mãe morreu e deixou a casa que a gente tinha, que ela tinha lutado tanto para construir. Essa casa ficou comigo, mas eu tinha uma irmã que tinha quatro anos quando ela faleceu, então essa casa era minha e da minha irmã, na minha visão. Só que aí começou uma nova parte da minha história, que foi começar um enfrentamento direto entre eu e o meu padrasto militar.
Quando a gente foi enterrar a minha mãe… Eu lembro de no velório ter muitos LGBTs e meus amigos da noitada, querendo cuidar de mim. Lembro dos meus três amigos homossexuais na época limpando a casa, fazendo comida, tentando cuidar de mim, porque eu tinha acabado de perder minha mãe, e eles no enterro sendo olhados de cima a baixo pela família aristocrática da minha mãe, porque minha mãe tinha uma tia rica, que também nunca fez porcaria nenhuma por ela - a tia Sônia, de Botafogo. Todo mundo me olhando com desdém porque eu estava com esses três amigos homossexuais, todo mundo olhando com muito desprezo para a gente, e poucas pessoas da família do meu padrasto.
No mesmo dia do enterro da minha mãe, ele veio em casa, atrás de mim, e falou: “Agora que a sua mãe morreu, você vai ter que sair de casa". Eu falei: “Como é que é?'' E eu ainda em estado de choque. “Você vai ter que sair da casa. A gente vai fechar essa casa pra depois ver o que vai fazer com ela”. Aí eu lembro do primeiro enfrentamento entre ele e eu - parece coisa de novela, né? Eu falei: “Você acha que eu vou sair da casa que a minha mãe construiu para mim? Ela nem sonhava em ter a minha irmã. Você acha que eu vou sair da casa que a minha mãe construiu sozinha, se submetendo a machos e homens escrotos? Você acha que eu vou sair da casa da minha mãe, porque você acha que é melhor?” Lembro de ter feito o meu primeiro escândalo no bairro, abrir… Ele veio para cima de mim, e eu saí pela janela e arreganhei os portões da garagem, fazendo um escândalo no bairro, gritando: “Socorro! Ele está me ameaçando! Ele está vindo para cima de mim, ele está querendo me tirar da casa da minha mãe!”
A partir disso ele saiu da minha vida e sumiu durante um tempo, mas continuou depois a me pressionar. Era uma coisa tão ridícula, uma casa simples, que nem vale muito dinheiro, mas ele queria me tirar daquilo, eu lembro disso.
Começou uma nova fase. Começo a morar com amigos LGBTs nessa casa. No primeiro momento foi um casal de lésbicas, eu pedi para elas ficarem comigo porque eu estava com medo de ficar sozinha, acordava em pânico em muitas madrugadas, chorando, lembrando da minha mãe, achando que ela estava viva.
A primeira amiga que veio na minha cabeça foi uma amiga que descobriu a sexualidade dela na escola comigo; ela me perguntou como se descobria se era homossexual, aí ela falou que uma amiga dela queria saber, igual naquele programa do Serginho Groisman: “Ah, uma amiga minha perguntou”. E aí eu falei: "Hã, fala”. Aí ela falou assim: “Eu queria entender quando a gente se descobre homossexual”. Lembro de ter falado para ela fazer a seguinte experiência: “No momento que você estiver sozinha no seu quarto, você se imagina com uma pessoa do sexo oposto e com uma pessoa do mesmo sexo que você, que você sinta atração ou que você goste de olhar, que sinta algum afeto diferente, se imagine na situação, sexualmente, e veja qual delas você vai se sentir… Vai sentir desejo, você vai sentir tesão”. Eu lembro de ter ensinado isso para ela. Foi a Ana Paula.
Eu falei: “E aí, a sua amiga fez o teste?” Ela: “Fez”. E aí eu falei: “Com quem ela sentiu mais desejo?” Ela: “Com a mulher”. Aí eu falei: “Tá, agora pode falar que foi você, né, Ana Paula”. Aí ela: “Como você sabe?” Falei assim: “Ai, Ana Paula, está na sua cara que você é sapatão”. E aí foi a descoberta.
Isso na época da escola. Eu terminei o meu segundo grau bem depois, por causa desses… Eu também dei uma encalhada no segundo ano, porque veio a morte da minha mãe, então essas amizades da escola foram levadas para a vida durante muito tempo. Eu tenho uma amiga até hoje, lésbica, que regula a idade comigo, que é a Valéria, que foi essa… Foi a paixão platônica da Ana Paula na escola. Teve uma época que eu morei com as duas na minha casa, as duas juntas, namorando, meio que casadas.
Daí foi indo ladeira abaixo, porque toda vez era… A minha casa parecia um albergue de LGBTs. [Era] uma casa de um quarto, sala, cozinha e banheiro, mas toda pessoa em uma situação de vulnerabilidade… Aí eu fui entender que os pais botavam os seus filhos para fora. Alguns queriam sair de casa para ter uma independência, para fazer o que quisessem. Eu entendi que na verdade era também não se sujeitar às regras da casa, era querer um canto para fazer o que quisesse; era isso que eu percebia em alguns LGBTs. “Eu não posso levar namorado para casa, então eu vou para a casa da Andréa, porque lá eu posso fazer o que eu quiser”. Não!
Aí, sabe, o confronto com outras coisas, com pessoas oportunistas, pessoas diversas; não era só LGBT, não. [Eram] mulheres que engravidaram, que a família botou para fora de casa. Isso tudo vai começando a circular na minha vida, na minha casa, pessoas com problemas.
Eu ainda era trabalhadora, contratada de empregos formais, mas chegou uma fase em que eu não estava mais dando conta. Eu lembro que eu estava no Banco do Brasil quando a minha mãe faleceu. Parei de ir para o estágio, me gerou um trauma muito grande. Eu não conseguia voltar a trabalhar e eles, tendo a maior paciência comigo: “Volte quando você estiver melhor, volte quando estiver melhor”. Nenhum tipo de pressão, só que eu não consegui voltar mais, porque eu morri, porque eu estava trabalhando quando a minha mãe precisou de mim, então eu acho que gerou um bloqueio.
Depois disso começou a minha via crucis de emprego formal - uma gay afeminada em emprego formal, você imagina, né? E aí, a gente vai chegar no que se torna depois o conceito da CapaciTrans.
Acho que é isso, cheguei na minha maioridade, nos meus dezoito de uma forma trágica. Teve muita situação de violência, de riscos. Eu me expus muito a riscos. Vinha na minha cabeça a sensação ruim de: “Tá, você queria liberdade. Sua mãe morreu, agora você tem liberdade, você pode ser o que quiser, pode fazer o que quiser”. Eu lembro de mim andando nas ruas à noite, sabe? Ficando com estranhos. Eu lembro de situações que… Eu estava cagando, cagando para a morte, sabe? Acho que eu esperava que alguém fizesse alguma coisa comigo, desde que eu perdi a minha mãe.
Se for para falar a verdade, acho que o que mais [estava] me machucando, a maior perda que eu pude ter na minha vida foi perder a minha mãe, essa mãe que reproduzia tanto discurso machista, tantas falas LGBTfóbicas, por medo de eu sofrer, e só foi me aceitar com uma maioridade. Por incrível que pareça, eu lembro de uma cena muito, muito forte: eu entrando num bar e ela comigo, minha irmã atrás no colo; eu entrando no bar, pedindo uma Coca-cola, a gay afeminada. “Aí, me dá uma Coca-cola?”. E um cara de dois metros por três de largura, sei lá, um negão - nenhum fala pejorativa, negão grandão - debochando de mim e a minha mãe entrando logo atrás. Ele não viu minha mãe e ela: “Algum problema? É meu filho”. Aí eu vi que a minha mãe tinha me aceitado. E depois disso acabou, não deu tempo nem da gente usufruir a Andréa Brazil que eu sou hoje, a Andréa Brazil que eu me tornei. Ela não pôde usufruir dessa fase em que eu estou sendo uma pessoa mais reconhecida, respeitada, mesmo enquanto travesti.
Eu não contei para vocês, mas ela falava para mim que se eu fosse virar - ela achava que virava, né? - se eu fosse virar travesti, que eu teria que chegar no meu bom carro em casa, com o vidro fechado… É bonitinho até a primeira parte. Quando entra na parte…
(42:25) P/1 - Era isso que eu ia dizer, o vidro fechado eu já pensei: “Opa”. (risos)
R - É, que eu teria que chegar no meu bom carro, com o vidro fechado e só sair de dentro do carro dentro de casa. Ou seja, ela não aceitaria a condição de travesti. Ela aceitaria ser veado, mas travesti não.
Eu lembro dela falando que uma vez, numa dessas… Nessa pré-fase dela me aceitar eu fiz aplicação de uma técnica tipo megahair para fazer uma performance que tinham me convidado. Eu coloquei um cabelo fake, na época o meu cabelo era curto. Eu lembro dela falar que se eu chegasse em casa com aquele cabelo ela ia arrancar fio por fio.
A minha mãe reproduzia discursos machistas. Ela era isso, ela achava que a travesti era marginal, a travesti não prestava, é isso que ela escutava da sociedade e ela reproduzia. Eu não posso culpar a minha mãe, minha não é culpada, a minha mãe jamais foi culpada. Ela foi vítima de uma sociedade patriarcal, machista, LGBTfóbica, sexista, porque ela também escutou muito, eu também escutei muito, assim: “Qual mãe? A puta, mãe do viado”. Eu escutei muito isso na minha infância, ela conversando. Poucas pessoas eram amigas dela. Quem eram as amigas da minha mãe? As que eram vistas como putas do bairro. Hoje essas pessoas pregam o discurso de moralistas, as putas do bairro hoje são as moralistas do bairro. É complicado, né?
(44:04) P/1 - Você tinha comentado que ia começar a falar agora sobre o surgimento da Andréa ativista, me conta como foi isso?
R - Depois de todas essas experiências, dessas convivências com pessoas LGBTs na minha residência, na casa que acabou sendo uma casa de acolhimento temporária -, e para algumas pessoas por muito tempo, teve pessoas que ficaram comigo três, cinco cinco anos, foi um período de estruturação da profissional que eu seria, do que eu seria como profissional. Teve momentos de estar na minha casa com mais de cinco pessoas e teve momentos de estar sozinha também; essa convivência com pessoas LGBTs, iguais a mim, foram me fazendo enxergar como era o movimento LGBT, como eram as demandas de cada tipo de pessoa -, gays, lésbicas, gay afeminada, gay padrão, sabe? Travestis.
Eu, vivendo ainda de empregos formais, comecei a sentir, comecei a sofrer as discriminações, as perseguições em ambientes formais de trabalho. Fui atendente telefonista na… Fui teleoperadora. Por ser uma coisa em que as pessoas não me viam, só me ouviam, achei que eu não ia sofrer esse tipo de assédio e sofri. Nesse meio tempo eu fui me tornando cabeleireira, porque eu falei assim: “A única maneira de eu ficar independente é sendo cabeleireira e dona do meu próprio salão”. E aí comecei a gostar de mexer com a imagem feminina - na minha cabeça, no início, eu via como se fosse uma coisa só feminina, que eu ia cuidar só de mulheres e o tempo foi mostrando que não.
Comecei a sofrer discriminação em entrevista de emprego em salão de cabeleireiro, eu fui… Eu me formei em cabeleireira, comecei a fazer o curso de cabeleireira lá em Campos, lá no passado, e eu fui retomar aqui no Rio, depois da morte da minha mãe. Aí me tornei maquiadora, cabeleireira. Nessa coisa de ter uma profissão que me desse independência, para me libertar do mercado de trabalho, que não era realmente respeitoso, que não era inclusivo, eu pensei: “Só se eu for dona do meu próprio salão, a solução vai ser ter um salão e me libertar disso”.
Não me senti à vontade de ser profissional do sexo. Eu não sabia trabalhar com isso, não sei trabalhar com isso até hoje. Não sei cobrar cobrar o cliente, eu não sei, sabe? Não tenho a mesma estrutura que as minhas manas trans e travestis têm na pista. Acho elas muito mais corajosas e muito mais fortes que eu, porque a vida impôs isso para elas. Elas são jogadas nesse mercado e muitas acabam achando que só podem isso, e eu me recusava a achar que eu só podia isso.
Eu fiz parte da primeira turma do projeto Damas do Rio de Janeiro, quando era um projeto piloto. Lembro de estar na boate Casa Grande, em Bangu, e a artista do dia, Hanna Suzart, falar sobre esse projeto. Isso já foi com os meus dezoito, dezenove, vinte anos - não me lembro, me perco na linha do tempo. Eu lembro dela falando disso, mas o mais importante é a proposta. Eu lembro dela falar, no meio do intervalo do show dela.
Eu lembro dela fazendo Gloria Estefan, aí a gente consegue ter uma ideia. Ela fez Reach: “If I could reach, higher”. E ela balançando as asas, igual… Gente, uma coisa louca! Aquilo era um mundo novo para mim: o mundo das boates, o mundo onde eu via pessoas trans, travestis, e aí eu fui perceber o que era realmente a população LGBT, o que eram os locais onde a gente poderia ficar à vontade, namorar, se relacionar, enfim.
Lembro de Hanna falar sobre um projeto na prefeitura para a população trans e travesti, para a população de travestis, que é, se eu não me engano… Era porque ia haver um evento no Rio de Janeiro, grandioso. Eu não lembro se era alguma coisa relativa à ECO 92, não lembro direito, mas para vocês verem como tem tempo e como já era um projeto higienista. César Maia, o prefeito, queria fazer um projeto para pessoas trans e travesti não ficarem nas ruas. Elas seriam capacitadas durante dois meses e elas fariam um mês de estágio em um órgão da prefeitura. Esse projeto, para mim… Eu falei: "Pô!” A pessoa ia receber uma bolsa e essa bolsa era referente às passagens para poder ir às aulas.
A partir disso, eu começo a entrar no meio das ativistas. Fui aluna da mesma turma que Luana Muniz, Marjorie Marchi, que foi presidente da AstraRio, a Associação de trans, travestis e transsexuais do Rio de Janeiro, e eu fui me entendendo enquanto travesti. Fui percebendo que a minha personalidade, eu, Andréa Brazil existia, mas eu ainda ficava no transformismo, só me montava para sair à noite, para poder namorar, para poder ser linda de forma mais feminina, para parar de ser tratada como gay afeminada, digamos assim. E aí essa convivência, entrar para a turma do projeto Damas, foi um divisor de águas, porque eu falei assim: “Eu quero fazer parte disso. Eu quero entender como é isso, o que é um projeto para pessoas trans e travestis”.
A partir do momento que eu entro no Damas, eu passo a ter uma identificação absurda com a Hanna Suzart. Eu via que uma travesti poderia ser imponente, poderia ser coordenadora de projetos, ela… A Hanna Suzart, para quem não conheceu, é só jogar no Google que consegue achar a imagem dela, acho que ainda acha. H-a-n-n-a Suzart, Suzart com Z e T mudo, Hanna Suzart foi uma pioneira, uma inspiração para mim e foi a coordenadora técnica do projeto de travestis para travestis, dentro da Prefeitura do Rio de Janeiro, que na verdade a gente sabe, né, que era para higienizar o Rio de Janeiro, para tirar as travestis das ruas, para que elas pudessem ter um trabalho formal. A gente sabe que até hoje não é assim que funciona, só que na época eu achei que isso seria libertador, achei aquilo inovador.
Aí eu passo… Eu lembro, nesse momento, de compor uma turma de pessoas trans e travestis. Lembro de colocar a minha primeira saia longa de dia, uma saia, uma blusinha apertada. Eu usava peitos falsos, eu usava… Eu tinha um top que tinha enchimento, lembro de colocar isso para parecer mais feminina, sabe? Eu lembro desses artifícios. Lembro de usar papel higiênico para ir preencher aquele vão, porque eu não tinha ainda silicone, hormônio, nada disso no meu corpo, porque eu não tinha essa noção - eu tinha medo, enfim.
Acabei me destacando na turma. Eu vi uma matéria no RJ e o projeto era coordenado por uma pessoa da prefeitura, uma mulher cisgênero, a Naira, e a travesti Hanna Suzart comandava como a técnica do projeto. Não entendia nada do que era projeto, mas ali eu fui exatamente para tentar entender. E ali comecei a ser Andréa 24 horas, me vestia de forma feminina sem medo da sociedade.
Abro o meu primeiro salão de bairro no ano 2000, na cara e na coragem, sem um real no bolso. Uma amiga que tinha um armarinho topou entrar comigo como sócia, falou: “Não, a gente compra tudo no cartão, no cheque pré, aí compra o lavatório”. A minha amiga sapatão que morava comigo vendeu a televisão, que ela não precisava.
A partir dessa convivência com Hanna Suzart, que foi uma inspiração para mim, eu fui entendendo qual era o objetivo desse projeto: era que as pessoas trans pudessem desenvolver técnicas de entrevistas, comportamentais, para ambiente de trabalho formal. A verdade é essa, era uma higienização, há o tipo de roupa…. Comecei a prestar atenção nesses detalhes. Como eu disse, Hanna Suzart era a travesti responsável técnica, era criadora do projeto, e tinha a Naira, que era a pessoa da prefeitura.
Com um mês e meio de curso, já indo para as aulas - eu consegui entrar nessa primeira turma - eu lembro de uma frase deles, na entrevista: “Por que você quer fazer parte dessa turma do projeto Damas?” Aí eu falei assim: “Primeiro porque eu sou uma travesti em situação de vulnerabilidade, não tendo emprego formal” - estava desempregada mesmo, não era mentira. “Sou cabeleireira, mas não consegui nada ainda na área e eu quero poder trabalhar em algum lugar sendo quem eu sou”, embora eu ainda estivesse na transição. E lembro de ter falado que eu queria ser uma multiplicadora.
E aí, o que acontece? A partir desse momento, eu vi uma matéria no RJ que mostrava uma sala de aula, tipo um salão de cabeleireiro. Eu já era cabeleireira, não estava gerando renda ainda através disso, mas já percebia que eu tinha capacidade de ensinar. Aí eu fui na Naira, na prefeitura, e perguntei para ela o que era aquilo que tinha aparecido no RJ ontem, que eu tinha ficado curiosa. “Ah, aquilo é o xodó da prefeitura. São as casas de capacitação, obra social da prefeitura do Rio de Janeiro. A gente vai começar com três, quatro unidades, se eu não engano, mas o objetivo é botar dez no Rio de Janeiro inteiro em comunidades, e lá vai ter cursos de cabeleireiro. “
Bati no ombro dela, toda íntima, como se eu tivesse intimidade. “Eu não posso dar aula lá, não? “Aí ela: “Você, Andréa Brazil?” Falei: “É, por que não? Por que não uma professora travesti de cabeleireiro?” E ali, junto com esse momento de montar o meu primeiro salão, eu comecei a dar aulas também de cabeleireira. Eles me deram uma turma experimental de trinta alunos.
Antes do curso acabar, antes do projeto em si acabar eu já consegui mostrar um potencial meu, e aí eles me deram uma turma experimental de trinta alunos na unidade de Campo Grande, que era perto da minha casa, na comunidade chamada… Antigamente era a favela do Barbante, agora eu não sei que nome leva. Enfim, eu me destaquei e fui tão elogiada que eles já me deram logo em seguida mais duas turmas - ao invés de uma, me deram duas turmas, e começaram a me colocar em outras casas do Rio.
Lembro de ficar quatro anos nisso, como professora da obra social da Prefeitura do Rio de Janeiro, espalhado - a cada dois meses eu estava em um lugar do Rio. Essas obras foram realmente acontecendo, começou com quatro e daqui a pouco terminou em dez, quando eu estava no quarto ano já tinha dez. Aí eu pensei que eu estava fazendo algo pela minha comunidade, pela minha população. Eu estava ensinando.
A maioria de pessoas da turma eram mulheres cisgênero, não LGBTs; mães, evangélicas. Eu pensava que estava fazendo uma contribuição para o ativismo. Só que nesse meio tempo, uma das alunas da turma era a Marjorie Marchi, que acabou se tornando presidente da Associação de Travestis e Transexuais do Rio de Janeiro por muito tempo. Carolina Ferraz fez laboratório com ela para interpretar uma travesti no filme… Acho que é Glória o nome do filme e Carolina interpreta uma travesti. Hoje é considerado transfake isso, mas na época Marjorie Marchi deu uma consultoria para ela, enquanto presidente da AstraRio.
Eu começo a me jogar muito mais no movimento. A Marjorie me monta a Astra de fato, com diretoria, com quatro mulheres trans, e uma delas fui eu. Passo a ser uma das diretoras da Astra e aí eu passo a entender mais o que é ativismo. Inclusive a Marjorie jogou na minha cara uma vez, quando eu falei para ela… Ela: “Você está sumida do movimento”, aí falei: “É porque eu estou dando aula na obra social e eu estou em outro bairro agora, mas eu acho que eu estou contribuindo de alguma forma para o ativismo, porque eu estou ensinando para essas pessoas que uma travesti pode ser uma professora, pode ser professora de uma mulher cisgênero, de uma mãe, de uma avó, e entenderem como é a demanda de uma travesti”. E aí eu escutei da Marjorie: “Não, você está ganhando o seu dinheiro, isso não é ativismo”.
Aquilo foi um soco na boca do meu estômago, sabe? Eu achei que aquilo já era uma contribuição, eu tentar educar aquelas mães para que elas não reproduzissem a transfobia em casa, então aquilo me deu um… Sabe? Uma baldada de água fria. Aí é onde ela me agrega para dentro da diretoria da Astra e a gente vai para a Conferência Estadual de políticas públicas LGBT no Rio de Janeiro, na época do Sérgio Cabral. Aí eu começo a ser uma ativista de fato, sabe?
Eu lembro também de um estresse que rolou entre eu e Luana Muniz, que foi considerada como rainha da Lapa: “Ah, tá pensando que travesti é bagunça?” Eu, sem conhecer Luana Muniz, bati de frente com ela, porque ela era aluna do projeto junto comigo. Um professor do dia estava falando sobre cuidados capilares, próteses capilares, exatamente porque a maioria de nós, travestis, a gente usa artifícios de perucas, lace, interlace, megahair. Uma das aulas era sobre cuidados com próteses capilares, e aí a Luana, sempre deslumbrante e riquíssima nos ouros… Eu não sabia nada sobre ela, não sabia quem era Luana Muniz, e aí eu lembro do professor perguntar… Ela estava com o cabelo castanho com mechas loiras, megahair também, os amarradinhos; eu também usava restos do cabelos dos outros no meu cabelo, as pessoas me davam: “Ah, toma. Cortei, pode ficar”, aí eu ia jogando esses cabelos no meu.
Foi quando eu fiz uma ligação com a Isabeli, uma trans que ficou comigo durante três anos, morando comigo na minha casa, uma travesti, e aí eu passo a me entender enquanto travesti na convivência com ela, na convivência com Damas; foi tudo um encontro. Eu me encontrei enquanto travesti quando deixei uma pessoa fazer o meu cabelo e o meu cabelo caiu todo - não foi a Isabeli - e precisei ir atrás de alguém que fizesse megahair, e aí eu conheci a Isabeli. “Ah, tem a Isabeli, lá no Caminho do Padre”, era vizinha. Eu consegui, ganhei de uma cliente minha. “Ah, eu tenho essa peruca aqui que é cabelo humano, você pode cortar e fazer o seu megahair”. Eu falei: “Poxa, obrigado”. Estava cheia de buracos no cabelo, na cabeça.
Quando eu coloquei aquele primeiro megahair na minha cabeça, eu falei: “Gente, essa sou eu, essa é a Andréa Brazil”. E aí foi todo um processo junto com o Damas, junto com o ativismo, com a cabeleireira, a independência, e com o passar do tempo ensinando, trabalhando com essa coisa de lidar com aulas. Acho que essa foi a construção.
Quando eu abri o meu salão de bairro, eu pensei assim: “Eu vou pegar pessoas LGBT do bairro para fazer cabelo comigo, para aprender a fazer cabelo comigo, para que essas pessoas não sofram o que eu sofri.” Então aí já veio o conceito do que seria a CapaciTrans. A partir do momento que eu via uma pessoa gay afeminada, uma pessoa trans encontrando dificuldades, eu falava assim: “Quer aprender a fazer cabelo comigo?”
Eu conheci uma pessoa, na época não tinha transicionado, eu falei assim… Ele trabalhava, na época era ele, eu falei: “Quanto você ganha por hora de trabalho?” Ele trabalhava numa rede de fast-food, não vou falar o nome. Quando essa pessoa falou para mim: “89 centavos por hora”, eu falei: “O quê? Você quer aprender a fazer cabelo e ganhar em uma hora dez, vinte, trinta reais?” “Quero”. Então a partir deste momento eu consigo modificar o pensamento de uma pessoa, que ainda não tinha transacionado. Eu estava transicionando também, porque coloquei o meu primeiro megahair através da Isabeli.
Essas pessoas que passaram a compor o salão [eram] pessoas bissexuais, lésbicas, pessoas que eu percebia que seriam travestis, que ainda não tinham se… Que ainda não tinham dado o grito delas de liberdade e independência, porque eram reféns de família, de casa, de morar com mãe, com pai, com padrasto. Fui colocando essas pessoas para trabalhar com a gente no salão, ganhar o seu dinheirinho e se libertarem, se encontrarem. Foi exatamente o que aconteceu comigo, tudo foi muito simultâneo.
Comecei a chegar em um estágio em que a Isabeli administrava o salão e eu ia dar aula.
Voltando lá na Luana Muniz, eu, com esses restos de cabelo dos outros que eu usava na época… Luana perguntou: "Professor, como é que eu faço para fazer uma balaiagem vermelha que fique com dois tons, com duas nuances de vermelho?” Eu lembro de humildemente falar assim: “Ué gente, é só ela jogar um 666 nesse cabelo que vai uniformizar, e vai ficar dois tons de vermelho, porque ela já está com as mechas abertas.” Aí o professor: “Quem falou isso?” “Eu.” Aí ele: “Você é cabeleireira?” Eu falei: “Sou, só não estou trabalhando porque ainda não consegui um trabalho, uma vaga”. Aí ele: “Tá certo”.
A Luana olha para minha cara e fala: "Imagina se eu vou dar o meu cabelo para uma pessoa com um cabelo desses”. Sabe? Porque ela sempre teve esse ar meio que superior, a “rainha da Lapa”. Aí eu falei: “E quem disse que eu quero fazer o seu cabelo?” E aí começa um embate entre eu e uma travesti poderosíssima da Lapa. Eu não sabia, e o pessoal: “Cala a boca, cala a boca. Ela é a rainha da Lapa”. Aí eu: “Dane-se, ela é rainha da Lapa e eu sou a rainha do Caxangá”. Daqui a pouco [me disseram:] “Andréa, para ela acabar com você são dois tempos”. Eu falei: “E daí?”
A Hanna Suzart deu um basta; deu um tapa na mesa, mandou trancar a porta. Quando ela viu que o clima estava ficando pesado, ela fecha a porta e fala: “Professor, e para isso aqui, tem problema… Tem solução?”. Ela tira a peruca dela, que eu achava que era o cabelo dela. Quando ela tira, fiapinhos de cabelo na cabeça. Ela tinha alguma debilitação, alguma doença, algum problema recorrente que eu não sabia, então aquela imagem da poderosa mostra toda a sua fragilidade. Isso também foi um aprendizado para mim, quando ela tira aquela peruca e fala assim: “Para isso aqui professor, tem solução?” Por que Hanna fez isso? Para intermediar a briga, para amenizar, e para mostrar que têm problemas muito mais sérios do que… Sabe?
Isso tudo eu trouxe para a vida, eu trouxe para a CapaciTrans, então fiquei assim, com essa… Nesse ativismo. Fiz parte da diretoria…. Olha que coisa, né? Marjorie me trouxe para a diretoria da Astra, mas quando eu fui pré-aprovada para dar aula na obra social, a responsável da prefeitura foi e entrou na sala e falou: “Gente, a Andréa já é a primeira contratada da turma do Damas. O projeto ainda nem acabou e a gente já conseguiu uma colocação para ela”. Claro que eles queriam mostrar que a travesti poderia ocupar outros lugares que não só as esquinas, e aí eu lembro dela falar assim: “Ai, eu queria pedir uma salva de palmas, que nós temos a nossa primeira contratada”. E eu lembro de Marjorie falar assim: “Desculpa, imagina se eu vou bater palma para viadinho”. Aí eu falei: “Oi?”
É muito conflitante até mesmo ser travesti no meio das iguais. Muitas ainda são… Têm uma certa barreira de entender quando uma se destaca, quando outra… Sabe? Isso ainda é um problema entre nós, era um problema, existe uma briga de egos. Não vou negar, isso existe em qualquer movimento, LGBT, movimento de cisgênero não-LGBT, existe uma briga de egos. Em nenhum momento o ego estava pegando na minha cabeça, mas eu percebia que incomodava que uma se destacasse mais rápido que outras por mérito, sem muito esforço, sem quem indique.
A partir desse momento eu começo a ter essa posição de destaque, só que eu fico quatro anos e meio na prefeitura dando aula, na obra social, e isso de certa forma me afasta um pouco do movimento. Conheço Carlos Tufvesson, que hoje é Coordenador Executivo da Diversidade Sexual. Conheci através da Astra, ele convidou toda a diretoria da Astra para… Acho que [era comemoração de] quinze, dez anos do ateliê dele em Ipanema. Foi um outro universo, que a gente foi convidado a estar presente, num ateliê de um estilista famoso no Rio, que costurava para as celebridades. Carlos sempre me tratou com o devido respeito.
Olha, os anos se passaram, passaram-se mais de dez anos; eu hoje sou uma parceira da Coordenadoria Executiva da Diversidade Sexual aqui no Rio de Janeiro, eu sou amiga do Carlos Tufvesson, e aí a gente volta e me relembra lá daquele passado, no qual eu era uma coadjuvante e Marjorie se preocupava quando eu estava aparecendo demais, por ela ser uma travesti preta, gorda, fora dos padrões. É óbvio que as pessoas iam prestar atenção na sociedade higienista e olhar para a travesti branca, ouvir a travesti branca, então eu era uma ameaça para ela. Ela me colocou na diretoria para eu ficar no meu lugar, ao invés dela pensar: “Não, o que a Andréa tem para contribuir? O que a Andrea pode contribuir para a nossa luta? Vamos ouvir a Andrea também, vamos fazer isso juntas”. Não! Eu era uma ameaça para ela sim, não por implicância dela.
A sociedade foi muito cruel com essa travesti preta, gorda, que já foi marginalizada, que já foi marginal, que pegava cliente, que era obrigada a roubar porque o cliente não pagava, sabe? Isso tudo o ativismo me ensinou. Eu não estou passando a mão na cabeça da pessoa que rouba, mas o que a sociedade não entende é que o cliente usa os nossos corpos na pista, depois ele quer humilhar, bater, ameaçar, e quando a gente tem uma travesti em situação de vulnerabilidade, já cansada de tanta porrada, eu aprendi com a Marjorie porque que isso acontece, com a convivência. Mesmo com todo o conflito de egos, eu entendo porque algumas travestis acabam achando que o comum é roubar o cliente, que é comum, porque… É por isso que a sociedade fica: “Ai, depois é vítima da sociedade” Não! A gente é vítima da sociedade sim, a gente é excluída de oportunidades, A gente não tem a mesma oportunidade que uma pessoa cisgênero, isso está sendo muita luta de todas que vieram antes de nós, de todas que morreram antes de nós. Muitas aí morreram na pandemia, na covid, porque ainda precisavam estar nas ruas, cuidando das outras que estavam nas ruas, sabe? No auge do HIV e Aids, ainda aqui, na área do Rio de Janeiro, foi uma das que esteve no auge, no… Na linha de frente, quando isso era lido como uma peste LGBT, como uma doença gay, como uma doença de travesti.
Essas lideranças que vieram antes de nós, que se sobressaíram… Embora eu tenha 49 anos, eu só fui me identificar enquanto travesti de 26 para 27 [anos], quando eu estava com o meu salão de bairro, quando eu já era professora da obra social. Ali eu pude ser Andréa Brazil. Eu sou uma privilegiada por um lado, porque depois que eu tinha um trabalho, um salão de bairro, mesmo que fraco, mesmo que não rendesse muito, sustentava cinco cabeças que moravam comigo; mesmo que de forma pequena, micro, sustentava vidas, mudava vidas, dava profissão para outras pessoas LGBT.
Eu fui entendendo que isso tudo virou o conjunto do que hoje é o CapaciTrans, sabe? A vivência, eu aprendi com Marjorie. Eu lembro de, dentro do ônibus com Marjorie, falar: “Marjorie, como que é essa situação de uma travesti que rouba o cliente e o ativismo tem que protegê-la?" Aí ela falou assim: “Andréa, a gente não está passando a mão na cabeça da travesti porque ela roubou. A gente está pedindo que ela responda juridicamente da mesma forma que uma pessoa cisgênera, que uma pessoa não LGBT. Que ela responda por lei, mas que ela seja respeitada; se ela for presa, que ela vá para um presídio do gênero que ela se identifica. Que ela responda por lei, mas de forma justa, que não seja linchada ao chegar no presídio, que ela tenha direito de defesa, como qualquer cidadão”. Aí eu fui entendendo e aprendendo o que é o ativismo.
Com todas as minhas ressalvas, com toda a tentativa de silenciamento por medo da Marjorie, eu aprendi muita coisa com ela. E outra coisa que eu aprendi com Marjorie foi [que] se eles fecham as portas para a gente, a gente arromba, sabe? O que eu aprendi com todas elas, Marjorie, Hanna, Luana Muniz é dosar tudo isso. Enquanto umas são mais violentas, outras tinham uma diplomacia, como a Hanna Suzart.
Hanna Suzart foi eleita como a mulher mais elegante da prefeitura do Rio de Janeiro, porque ela ia sempre nos seus bons terninhos para dar aula, mas ela tinha o quê? Uma postura higienista, ela sabia que a sociedade ia acolher ela melhor a partir daquele perfil, então hoje eu sou um meio-termo disso tudo, sabe? Eu não me preparo mais como antes, eu não me maquio, não faço mais cabelo para estar em uma reunião com o presidente de não sei o que, não sei o que lá, com o dono da rede de supermercados, sabe? Eu não tenho mais essa postura higienista, porque eles tinham que entender que a travesti não é obrigada a ter passibilidade para ter o cargo. A travesti, a pessoa trans não é obrigada a parecer ser cis e isso é uma reprodução do viés normativo da sociedade: “Ah, vou contratar essa, porque essa parece mulher.” A gente não tem que parecer nada! A gente é o que é! Eu precisei passar por todas essas representatividades para hoje encontrar o meu local de fala.
Agora a gente vai pular na linha do tempo, do aprendizado da travesti que foi silenciada por inseguranças das colegas, que foi invisibilizada pelo movimento LGBT como um todo, que precisou ficar trabalhando, ganhando o seu dinheirinho, ajudando outras pessoas a mudarem as suas vidas a partir do seu salão de bairro, a capacitadora e, projetos socionormativos, digamos assim.
Uma coisa que me chamava atenção quando eu dava aula na prefeitura era o baixíssimo índice de pessoas trans e travestis nas ruas, mesmo tendo uma travesti como professora, porque essas pessoas não se sentiam acolhidas em uma turma com 90% de pessoas cisgênera, não-LGBT, com 80% de mães evangélicas - não discriminando aqui, porque não me cabe discriminar a religião de ninguém, eu não estou aqui para isso. Eu estou dizendo que é complicado você, travesti, dar aula para uma mãe evangélica, uma avó evangélica. Eu confrontei, isso tudo foi um laboratório na minha vida, mas um laboratório imposto, um laboratório assim: “Você não vai? Para você ser a Andréa Brazil você tem que lidar com isso tudo”. Hoje eu vejo dessa forma.
Como eu falei para vocês, eu fiquei nessa linha do ativismo, e aí tive um entremeio, uma decepção com Marjorie, uma situação violenta. Lembra do coquetel dos quinze anos do ateliê do Tufvesson? Na volta houve um estranhamento entre Marjorie e Weluma Brown, famosa chacrete; era uma das trans que tinha uma lenda urbana, de que ela teria sido uma das chacretes do Chacrinha, mas hoje eu tô dentro do movimento e sei que não foi bem assim. Eu sei que houve um teste, mas não foi bem assim.
Weluma Brown morreu, Marjorie Marchi já morreu, Luana Muniz morreu. Pessoas que conviveram comigo na luta já se foram e deixaram alguma marca na história. Essas ativistas com quem eu convivi, acabaram cada uma contribuindo com a Andréa que eu sou hoje.
Eu nunca imaginei na minha vida que a cabeleireira de bairro ia precisar vender a própria casa por dívidas, por dificuldades financeiras, porque o salão não rendia como eu esperava. A concorrência começou a entrar no meu caminho, porque [era] salão de bairro, então eu precisei vender a minha casa, porque tudo que a gente fazia na casa, que é essa casa própria com a minha irmã. [Ela] precisou ser vendida, mas esperei minha irmã ficar maior de idade, aí a gente entrou em um acordo e vendemos juntas. Aquela ameaça do meu padrasto, lá da infância, foi tudo bem resolvido quando nós duas ficamos adultas, sentamos e conversamos. “Vamos vender, eu não quero mais morar nessa casa”.
Aí você me pergunta: por que você vendeu uma casa própria, Andréa? Você já não era cabeleireira? Não era respeitada no bairro? Sim, eu achava que era, mas eu também continuei sofrendo muita LGBTfobia. Eu vou dizer que transicionei aos 26, com salão de bairro, mas antes disso ainda enfrentei muito linchamento social. Tinha noites que… Perto da minha casa tem uma casa de… Tinha uma casa de show chamada Big Field. Quando os moleques chegavam de madrugada, eles apedrejavam minha casa, sabe? Tacavam pedras. Eu acordava assustada, eles vinham da madrugada bêbados e daí passavam pela rua, então eu sofri esse tipo de linchamento social enquanto cabelereira de bairro.
[As pessoas pensam:] “Nossa! O salão da Andréa bomba, né?” Eu lembro que falei para vocês que sofri discriminação em salões de cabelereiros. Uma contribuição que eu tive muito grande, também discriminatória, foi no salão de uma sapatão. Ela era barbeira, era trabalhava muito bem no [corte] masculino, e alguém me indicou para trabalhar com ela. Ela tinha o relacionamento com a namorada dela, ia para a igreja evangélica com a namorada dela, de mãos dadas, e quando eu fui trabalhar com ela, ela falou para eu não usar roupas femininas e não me maquiar. Contraditório, né? Eu sofri esse tipo de coisa: “Ah não, não vem com esse tipo de blusa, não vem com esse tipo de roupa.” Era a tal da higienização.
Mas ela era muito boa em masculino, então eu sempre tiro alguma coisa de bom; eu sou a famosa Poliana travesti. O lado bom de conviver com essa dona, essa barbeira, eu não lembro nem o nome… Nice, Nice Ferraz! Quando eu trabalhei com ela, eu a observava cortando os masculinos e eu fiquei boa em masculino. Ficar boa em masculino me fez ser a boa do meu bairro e a concorrência se incomodar comigo, e o meu salão sempre cheio, pessoas aprendendo comigo, virando cabeleireiras no bairro através de mim. Então eu percebo que eu achava que eu estava sendo respeitada no bairro, e aí eu começo a ver comentários na internet: “Ah, já fui lá no salão da Andréa, já foi lá passar o ‘pêniscard’?” Senhoras evangélicas sentavam na minha cadeira e falavam assim: “A minha igreja vai me recriminar porque eu vim fazer cabelo com você.” Sabe? Então eu cansei desse bairro, eu cansei desse lugar. Achava que no bairro eu era acolhida, [mas era] aquele mesmo bairro que falava: “O viado, o filho daquela puta.” A puta era a minha mãe, então eu dei um basta, rompi todos os meus vínculos com o bendito Jardim Caxangá.
Fui morar alguns metros à frente, quilômetros - não sei medir, sou péssima nisso, tá, gente? Eu vim morar em Vasconcelos, após a estação de trem, numa quitinete. Vendi a minha casa, fiquei um bom tempo… Ah sim, teve um momento bem triste também, que acho importante ressaltar. Vendi a casa e continuei no bairro durante um tempo e vim para a pista, para poder fugir da concorrência ou vencer a concorrência. Abri o meu salão, aluguei uma quitinete numa vila que era de frente com um ponto de ônibus e montei o meu salão ali, aí eu pensava: “O cliente vai descer do ponto, já vai vir e entrar direto no salão”.
Foi uma alternativa legal, durante um tempo. Comecei a revender roupas que eu comprava, ativei aquele meu sonho de ter uma marca de moda. Eu comprava e revendia, ainda não era autoral, mas aos poucos estava vindo o quê? Aquele sonho da infância. Eu já estava liberta, né? Travesti, independente, sempre me virando de algum jeito, só que eu precisei fazer o curso de empreendedorismo para entender onde eu estava falhando, para entender essas nuances de altos e baixos, por que em um mês eu ganhava mais de dois mil, três mil e no outro mês eu não ganhava nem quinhentos, e aí eu comecei a precisar. E aí surge um curso de empreendedorismo chamado Micro Rainbow, para LGBTs. Vou, faço esse curso.
Agora já é a terceira e última fase, que é onde a gente vai chegar na Andréa do CapaciTrans. Eu fiz esse curso de empreendedorismo pela Micro Rainbow, que vem uma edição por ano no Brasil. Ele é internacional, é apoiado por financiamento de Londres, sabe? Fundação Europeia. Depois de fazer o curso, eu me destaquei novamente na turma, acabei virando monitora, primeiro pesquisadora deles. Eles me pediram para eu entrevistar todos os ex-alunos das turmas anteriores, mais de cem pessoas. Eu trago números para eles, trago resultados para eles; me torno monitora deles em duas edições, dois anos seguidos. Aí eu começo a montar a ideia do que seria o CapaciTrans. Começo a separar o que é o meu projeto de negócio, o que seria a minha empresa, do que é um projeto social. Eu sempre misturava tudo, lembra? Só porque eu montei um salão eu quero capacitar outras pessoas para serem ativistas? Não é assim que funciona, então eu aprendo a separar o que projeto social do que é projeto de negócio, ou o que é um empreendimento social, o que é um negócio… Como é o nome? Negócio criativo é o nome que dão agora.
A partir desse momento eu estruturo, escrevo a minha ideia… Ah, perdão! Tem mais uma passagem. Depois dessas três, quatro turmas que eu passo na Micro Rainbow, um dos psicólogos, o Luciano, um amigão nosso, parceiro, que era psicólogo na Micro Rainbow, me traz uma proposta de pré-acelerador de negócios, uma capacitação aceleradora da… Oferecida pela UNISUAM. Ele leva isso para a turma: “Olha, gente, quem já é empreendedor aqui pode fazer esse pré-acelerador e ainda concorre a ser premiado no final com uma sala, e não sei o que”. E eu viajei na batatinha, falei assim: “Caraca, imagina eu com uma sala com…”
Faço o pré-acelerador de negócios na UNISUAM. Quando eu faço o pré-acelerador de negócio… Ah, mais um detalhe: ele ofereceu essa vaga para uma sala de aula com mais de trinta pessoas; só duas se inscreveram, só uma foi até a entrevista final - eu. aí eu faço o pré acelerador de negócios, aprendo a trabalhar com pitch, sabe? Passo por todo esse treinamento, e aí hoje… Lembra que eu falei lá no Damas que eu queria ser uma multiplicadora? Hoje eu reproduzo isso, eu ensino para as outras, e prioritariamente para as minhas iguais. Quando eu inscrevi o CapaciTrans, o primeiro projeto foi assim que eu tive uma aula de capacitação de recursos na UniSuam, com Joana Cardoso, da Empodere-se 021. Tive uma aula com ela de capacitação de recursos, eu vou, e ela fala assim: “Ah, existem diversas formas”. Ela deu todas as estratégias, mas uma ficou na minha cabeça: “Ela se cadastra na plataforma Prosas”, e aí cheguei em casa me cadastrando na plataforma.
Eu sempre jurei que no dia que eu tivesse internet não ia ser para ficar em Tinder, em Facebook, em bate-papo, que eu não ia querer aplicativo de pegação. Não que seja um problema, mas eu jurava que no dia que eu tivesse internet seria para o meu crescimento, e foi o que eu fiz acontecer depois desse curso, dessa capacitação: cheguei e me cadastrei no Prosas.
Quando eu fui ver eu estava com um projeto escrito para o edital Itaú Mais Diversidade, e assim, na ousadia, na cara e na coragem. Mandei a proposta e um mês depois eu recebi um e-mail falando que eu tinha sido pré-aprovada entre mais de trezentos projetos inscritos. E aí eu fui defender o CapaciTrans pela primeira vez em São Paulo. [Foi] meu primeiro voo de avião, eu chorava igual criança, sabe? Eu dentro do avião, chorando, e a moça do meu lado, "Calma, não vai acontecer nada.” Eu: “Não, eu estou emocionada mesmo, era meu sonho viajar de avião.”
Ao mesmo tempo eu fui desenvolvendo a minha marca de moda. Eu fui me encontrando, [encontrando] qual seria a minha moda. Volto a resgatar aquele sonho. Eu queria parar de revender roupa dos outros; eu queria uma marca autoral, queria uma coisa minha e descubro, fazendo empreendedorismo. [Isso] me fez entender que o meu negócio tinha que ter a minha cara, tinha que ter representatividade, tinha que ter responsabilidade social, e aí eu crio a marca Andréa Brazil, Moda Além de Gênero.
Primeiro eu reproduziria roupas para todos os tipos de corpos, só que eu precisei… Eu encontrei um nicho, que foi os nichos das bandeiras, e aí eu criei os ‘moletrans’, os casacos com as cores das bandeiras LBGT, bandeira pan, bi. Essa moda é uma moda para qualquer corpo, ela não depende de gênero; o casaco que uma pessoa que se identifica com o gênero masculino vai usar é a mesma roupa que uma pessoa trans vai usar. É essa moda que eu quero promover e é isso que eu tento ensinar nas aulas.
Eu montei o primeiro projeto, o CapaciTrans, falando que eu ia ensinar empreendedorismo, moda e imagem. Eu não esperava, o Itaú Mais Diversidade selecionou quatro para ganhar cinquenta mil [reais], um total de duzentos mil que seriam investidos, só que na apresentação individual muitas coisas aconteceram. Na apresentação individual eu falei assim: “Pô, eu já estou aqui em São Paulo, isso já é uma vitória”. Eu estava feliz enquanto eles foram falando, eu lembro que [era] em um prédio: “Olha, gente, a gente vai ter que descer e vai dar o resultado lá embaixo". A gente teve que descer e desocupar o prédio, porque já tinha passado do horário.
Eu fui muito tranquila, meu Powerpoint travou na hora de falar. Fiz o meu Powerpoint no hotel que eles me colocaram, porque eu não tinha um notebook. Eles falaram: “Andréa, você consegue falar do seu projeto sem a apresentação do Powerpoint?” Eu falei: “Claro, é o sonho da minha vida”. “Pois então, os seus dez minutos já estão contando.” E aí eu falei: “O meu projeto, o projeto CapaciTrans, é um projeto de travesti para travesti, para capacitação…” E aí, pa,pa,pa… Quando eu fui vendo os resultados dos aprovados, que iam ganhar os cinquenta mil, eu fiquei feliz por todos eles, porque são projetos grandiosos, nas regiões Ribeirinhas, no Nordeste, sabe? Pessoas LGBT que estão lá morrendo por sua intenção. Eu estava feliz.
Daqui a pouco o Ricardo Salles, do Mais Diversidade, falou: “Mas, a gente deu uma chorada para o Itaú e a gente conseguiu mais 160 mil para mais quatro projetos ganharem quarenta mil.” Aí eu falei: “Voltei para o jogo”. Então foi nesse momento que todos os outros projetos foram sendo chamados, e eu fui a última. Quando ele falou: “CapaciTrans, Rio de Janeiro”, todo mundo pulou em cima de mim, todos os outros projetos vencedores.
A gente começa o CapaciTrans em 2019, numa quitinete aqui em Vasconcelos, como eu contei para vocês. Saí do meu bairro porque eu não aguentava mais aquele bairro de gente falando pelas minhas costas, debochando da travesti que eu era, da cabeleireira que eu era, mesmo sendo uma excelente profissional. A partir disso eu começo as aulas… Eu tinha prometido no edital, quando eu contei a minha proposta, que eu ia dar turmas na zona oeste e no centro. E aí eu começo parcerias, começo aulas pelo grupo Pela Vida, que também nos acolheu. Eu dava [aulas de] Empreendedorismo na cidade e na minha quitinete, aqui em Vasconcelos, eu dava [aulas de] Moda e Imagem - de manhã eu dava Moda e de tarde eu dava Imagem. [Eram] dez travestis na minha casa, capacitando e fazendo comida junto, ou então comprando quentinha e aprendendo.
Aí começou a história do CapaciTrans. Eu venci esse primeiro edital e em seis meses o Itaú já estava publicando o nosso trabalho, o resultado da primeira turma, “Formatrans”, eles publicaram na rede deles. Começaram a chover ataques LGBTfóbicos e as meninas começaram a ficar muito doídas, muito magoadas; começaram a rebater, por causa das pessoas que falavam: “Vou tirar a minha conta do Itaú”. E o Itaú falou assim, ligaram na hora para mim: “Não esquenta, a gente está com vocês”. Sabe? Isso para mim foi um grande suporte. “A gente não vai deixar de apoiar o CapaciTrans por causa disso, a gente não vai deixar de fazer”.
Hoje eles estão na quarta edição. Esse ano eu fui embaixadora deles, do edital Itaú Mais Diversidade Orgulho Mais. E em 2019, quando a gente começa as primeiras ações do CapaciTrans, eu conquistei, antes mesmo de vencer o edital, o olhar e a atenção do Padre Luís Coelho. Ele me encontrou em uma peça da Renata Carvalho, que ela interpreta uma [peça chamada] E se Jesus fosse uma travesti? Eu chorei muito na peça, e aí o padre veio conversar comigo.
Eu estava tentando ainda… A Marjorie, por ter falecido… Consegui tomar a diretoria da Astra, porque estavam perdidas as documentações. Eu me torno presidenta da Astra durante um tempo, só que eu comecei a caminhar muito sozinha, ninguém fazia nada; eu acabava tentando me virar sozinha e não estava dando conta. Tentei meio que transformar a Astra em um CapaciTrans, vi que não estava rolando e comecei a fazer uma campanha online, escrever lá: “Gente, a gente está querendo fazer um projeto para pessoas trans.....” O Padre Luís Coelho viu.
Ele me conheceu na peça da Renata Carvalho. No intervalo, a gente estava conversando. Ele [disse]: “Eu queria saber mais sobre o seu projeto.” E desde então ele nunca mais abandonou a gente. Ele falou assim: “Eu não me conformo de as religiões falarem que abraçam a causa e não fazerem nada especificamente pelas travestis, pelas pessoas trans. A gente vai querer te ajudar de alguma forma. Não sei como, mas a gente vai”.
Não deu um mês que ele teve essa conversa comigo e ele mandou para a minha quitinete dez cadeiras e aquele quadro que estava me incomodando ainda há pouco na entrevista, aquele quadro que está na parede. Ele manda para a gente dez cadeiras, das melhores, para as alunas se sentarem nas aulas - tudo conquistado com apoio dos paroquianos dele. Os paroquianos doaram, eles compraram e mandaram entregar lá na minha quitinete.
Hoje eu estou na minha terceira casa, já me mudei três vezes. Saí da quitinete para uma casa maior, porque eu precisava ter uma casa que pudesse virar um ateliê, que eu pudesse dar aula também em casa, se fosse o caso.
Não satisfeitos, eles conseguiram interceder junto à diocese, e o mais bonito deles é que eles fizeram a gente vencer o edital em Atlanta - perdão, Graças a Paróquia Anglicana São Lucas e ao padre Luís Coelho, que levou o nosso nome pra lá. A gente começou a produzir vestes litúrgicas; ele queria que as pessoas vestissem uma veste litúrgica produzida por travestis, e ele falava sobre isso. A gente venceu, conquistou dez mil dólares, e o mais importante, que eu quero ressaltar aqui nessa entrevista: eles nunca tentaram catequizar a gente, nunca tentaram enfiar nenhuma doutrina religiosa na nossa cabeça. Eu lembro dele falando assim: “Andréa, eu queria muito apresentar vocês para a paróquia. Você pode levar alguma das meninas para a gente fazer a entrega simbólica do cheque de dez mil dólares? Mas não precisa ser na hora do culto, elas não são obrigadas a assistir.” Isso, para mim, tem um respeito absurdo, é um respeito à não imposição de crenças - inclusive, ele me respeita demais por saber que eu sou agnóstica.
A gente tem um elo de padrinho e filha mesmo, sabe? Ele é o meu padrinho, ele é o padrinho da CapaciTrans. Tenho muito orgulho de ter um padre como nosso apadrinhador e toda uma paróquia, uma diocese que nos respeitou sempre, nunca nos impuseram [nada].
Hoje, se a gente tem uma sede em Santa Teresa é graças a essa interlocução do padre Luís Coelho com a diocese do Rio. Eles têm um casarão histórico e eles nos cederam, então hoje a gente tem uma sede em Santa Teresa, um casarão que a gente não pode transformar ainda, não pode transformar em uma casa de acolhimento, porque não é essa a proposta. A proposta é as pessoas que fazem parte da CapaciTrans, que precisem morar lá, morarem, mas tem um teto limite, porque também é da diocese, então existe uma limitação. Não posso sair colocando um monte de pessoas; adoraria poder acolher pessoas que estão em situação de rua, mas não é esse o caso.
As parcerias não só começaram aí. A partir do momento que a gente vence o Itaú Mais Diversidade no primeiro ano e vence [em] Atlanta, com o padre Luís Coelho, no mesmo ano eu venço o meu primeiro edital do Fundo Elas, com o Instituto C&A. O Instituto C&A desde 2019 caminha com a gente. Mesmo com a situação da pandemia… Eles precisaram dar uma pausa, no auge da Covid a gente teve… Eles não puderam fazer muitas coisas, [mas] parece que esse tempo só serviu para eles irem maquinando como iam ajudar o CapaciTrans. Eles estão reformando a sede do CapaciTrans, eles mesmo decidiram isso; estão reformando a nossa sede, que era um casarão histórico, em situação bem precária, muito mato… Agora está sendo reformado, custeado pelo Instituto C&A, que se tornou nosso apadrinhador.
Eu já venci três editais do Fundo Elas; o último foi recente, o Empodera. Eu já posso pedir música para o Fantástico, né? O Itaú já renovou com a gente uma linha de patrocínio, a Coordenadoria Executiva da Diversidade Sexual fechou também uma parceria com a gente, me permitiu promover uma turma de empreendedorismo, então são mais de 250 vidas trans, travestis em sua maioria, mas também gays, lésbicas, bissexuais, mulheres cisgêneras, mães solos que são abandonadas e estão sozinhas e podem contar com a gente.
O CapaciTrans é isso, é todo o histórico de uma vida de uma travesti que quase foi assassinada naquele salão, no ponto de ônibus, sabe? Eu já quase fui assassinada dentro do meu salão porque eu, num momento de fragilidade, deixei uma pessoa entrar e a pessoa tentou me matar para me roubar. Não era só transfobia. Aquele cara entrou já com má intenção, ele se aproveitou da fragilidade de ser uma trans. "Ah, deve estar sozinha, deve estar carente, não deve ter ninguém." E tentou me matar para me roubar. Quando eu quase morri, ali eu me questionei muito, questionei muito a vida, questionei Deus ali; acho que ali eu me tornei agnóstica. Falei assim: "Eu não acredito que tu me criou para morrer na mão de uma pessoa só porque em um momento de fragilidade eu abri meu coração, abri minha casa".
Ali eu me torno agnóstica, perco um pouco da crença em tudo, questiono todas, todos e todes; questiono crenças, questiono tudo. Mas também respeito, só não ataco. Eu respeito, mas questiono. Eu já fui kardecista, eu já fui espiritualista, então eu admiro todas, mas eu presto atenção nas coisas que me trazem contradições, como eu contradigo a Bíblia. Quando usam a Bíblia contra nós, a minha resposta é: "Interessante, é fácil questionar biologia usando a Bíblia, mas é fácil acreditar em cobra falante e em mulher que saiu da costela de um homem." Sabe? Então, já que é para usar a Bíblia, vamos usar da forma correta, né? É isso.
Tivemos várias pessoas ligadas a Andréa Brazil que transformaram a Andréa nessa mulher que eu sou hoje. Eu tive uma travesti de sessenta anos que entrou na minha vida querendo transicionar, mas não se encontrando. Não sabia o que ela era, quer dizer, ela sabia o que ela era, mas ela vivia… Ela já tinha sido militar, pastor, casada, avô, e ela se encontra enquanto Nicole Scarlett McCoy. Aprendi muito com Nicole, sabe? O que era ser uma pessoa trans com mais de sessenta, o que era virar uma ninfetinha com o cabelo todo grisalho, e ela contar com a Andréa Brazil para ser essa… Sabe?
Andréa trouxe muitas libertações de amarras para muitas pessoas, independente da CapaciTrans. Essa Nicole trouxe toda a família para me conhecer. Tinha uma veneração por mim, uma admiração profunda pela Andréa ativista. Então não são só casos oriundos do CapaciTrans, são casos de vivências, pessoas que mudaram sua realidade, sua perspectiva, se aceitaram enquanto travestis. Mas eu precisei passar por todas aquelas que antecederam, para ser quem eu sou hoje; precisei passar por silenciamento para entender qual é o meu local de fala, precisei entender que uma trans preta se sentiu ameaçada pela travesti branca.
Tem uma campanha que vocês conseguem acessar na internet, que foi feita pela UNAIDS, ONU se eu não me engano, mas a campanha é Igual A Você. Coloquem: Campanha Igual A Você, travestis e transexuais. Vocês vão ver Marjorie, ver Luma, me ver e vocês vão perceber qual era o medo da Marjorie ali, porque no vídeo, no dia dessa gravação eu percebi que Marjorie estava me mandando embora, estava me mandando ir para casa. Estava em uma reunião com a diretoria da Astra, eu estava falando e a Marjorie falou: “Você não queria ir embora? Pode ir, vai lá para a zona oeste, Vasconcelos”. Eu estava na Central do Brasil, no Rio sem LGBTfobia hoje - na época era Rio Sem Homofobia - aí eu falei: “Ué, por que?” “Não, porque agora a gente vai para uma gravação”. E eu falei: "Por que eu não posso ir para essa gravação? Por que eu não fui convidada? Se é para toda a diretoria…” Eu tinha que me impor.
Depois que o vídeo foi ao ar eu entendi por quê. Eles selecionaram mais de dez pessoas trans: mulheres, travestis. Quando vocês virem o vídeo vocês vão entender. Eu vou deixar aqui, não vou dar o… Eu entendi o medo da Marjorie, porque… Não, não dá, eu tenho que falar! Mais de dez pessoas tinham que gravar assim: “Igual a você, tenho família, amigos, tenho projetos, trabalho e planos, tenho amor, fé, crenças…” Sabe? Eles pegaram isso e fizeram um mix de cada uma falando um pouquinho. Eu apareço no vídeo quatro ou cinco vezes; as pretas, uma vez cada, mesmo sendo a presidente, a vice. A sociedade é higienista, a sociedade preza pela branquitude, e eu precisei entender isso vivenciando isso, então eu me coloco no meu local de privilégio, de fazer com que outras referências pretas hoje falem no CapaciTrans, que outras pessoas fora do padrão normativo corporal falem, falem!
Quando o Instituto C&A fechou com a gente, ele trouxe 25 gestores de C&A do Brasil inteiro, do Brasil todo, para um evento, uma aula nossa do CapaciTrans. Eu falei assim: “Tem coisa que não sou eu que tenho que falar, não me cabe. Eu sou uma travesti branca, então eu queria que vocês ouvissem Sher Machado.”
A Sher foi uma aluna da turma de moda, depois ela transicionou para a turma de empreendedorismo, porque ela descobriu que o negócio dela não era moda, que era outro. Hoje, se vocês jogarem no Google, procurem lá, Sher Machado - Transcurecer. Ela é uma celebridade, vencedora de prêmio esse ano. Ela foi CapaciTrans. Gabi Van, uma das líderes da liga trans masculina, é CapaciTrans; Liz Lemes, assessora de projetos, trans preta, é assessora de projetos da prefeitura na Coordenadoria de Projetos da Diversidade Sexual. Essa era a proposta da CapaciTrans, era isso que eu queria para minha vida e se eu morrer amanhã eu já morro feliz, porque eu cheguei lá.
(01:43:46) P/1 - Quer dar uma pausinha? A gente pode continuar?
R - Tranquilo, a emoção vem, porque vem tudo. É um turbilhão, né?
(01:43:56) P/1 - Como é que você enxerga hoje em dia o mercado de trabalho para a população LGBT, especificamente também para a população trans? Como você acha que está isso? O que tem que melhorar ainda?
R - Caminhos bem lentos, mas um caminho de mil léguas só começa no primeiro passo. Todas essas que vieram antes, inclusive eu, me coloco nesse local de fala e questiono: “Tá, você quer trabalhar com a inclusão, mas a inclusão vai até que página? Até a página dois? Me explica o que é a sua inclusão? Você quer uma trans loira, padrão corporal cisgênero? Ou você quer uma pessoa trans que vá com o chuchu na cara?” Chuchu é a barba verde, a gente chama de chuchu. “Essa pessoa vai ser respeitada por você enquanto trans, mesmo assim? O que vocês querem?”
Um dos prêmios que eu ganhei, um dos presentes que eu ganhei também, do Mais Diversidade, foi uma bolsa. Ganhei o curso de consultora de diversidade e inclusão para empresa, então hoje, quando eu falo com essas empresas, inclusive empresas parceiras, eu falo sobre isso: “O que é a inclusão para você? É só no mês do orgulho? Só em junho? Só em janeiro, ou é o ano inteiro? Quais são as políticas que vocês efetivamente fazem?” Então tá um caminho ainda muito árduo.
Muitas empresas ainda estão contratando só para colocar cota, para dizer que são inclusivas, enquanto que o trabalho tem que ser bem mais profundo. Quando eu fiz o projeto Damas, lá no passado, um dos locais que levaram a gente para estagiar foi em um prédio do Detran, no centro do Rio. Quando levaram a gente para lá, levaram cinco travestis, eu era a mais “disfarçada”, enquanto que as outras todas [estavam] com os seus bons peitos, seus bons quadris. Eu era a mais estranha no ninho, eu não era uma travesti padrão; tinha medo até de não ser contratada por não parecer travesti - olha que incrível, né?
Eu lembro de a gente ser entrevistada pela coordenadora do local, e aí eu falei assim para ela: “Como é o banheiro de vocês aqui?” A primeira pergunta que eu fiz para ela, isso há quase vinte anos - já faz vinte anos? Mais de vinte anos atrás! Ela virou e falou assim: “Ah não, aqui o banheiro é neutro, porque cada um vai e fecha a sua porta, vai e sai”. Eu falei: “Ah, menos mal.” Daqui a pouco, cinco travestis, com Hanna e com essa senhora na sala; entra um garoto, um jovem estagiário, sei lá o que era, homem. Ela fala: “Oi, fulano é o nosso estagiário, não sei o que… As meninas vão estagiar aqui também!” Sabe qual foi a primeira pergunta que esse infeliz fez? “Que banheiro vocês vão usar?” Ele não falou bom dia, boa tarde, boa noite! “Que banheiro vocês vão usar?” Então, quando a gente tem isso nos dias de hoje… Mais de vinte anos se passaram e ainda é um problema para as empresas. É onde eu falo que o caminho está muito devagar ainda, ainda está faltando penas mais severas, aplicações de leis, sabe? Mas estamos conseguindo, estamos conseguindo!
Estamos conseguindo que travestis interpretem papéis de pessoas trans na novela, combatendo transfake. Se tem artistas trans, por que vai contratar uma pessoa cis para interpretar um trans? Que haja esse espaço para elas também concorrerem a vaga. Isso é combater o transfake. Se tem artistas trans, por que não contratar uma pessoa trans para interpretar o papel de uma pessoa trans? Por que eu vou botar uma pessoa cisgênera? E assim vai.
Como é o trabalho de conscientização, de respeito, da inclusão das pessoas trans na sua empresa, como é a questão do banheiro? Como é a questão da imposição do nome social no crachá?
Isso tudo a gente vai trabalhando em parceria com quem? Com as entidades públicas. A CapaciTrans não trabalha sozinha. A CapaciTrans trabalha hoje com a Coordenadoria Executiva da Diversidade Sexual, e a gente leva para eles as demandas. “Temos uma trans aqui que sofreu transfobia na clínica da família.” Nosso trabalho é de formiguinha, mas a gente já conseguiu o mínimo, do mínimo, digamos assim, ainda tem muito que se melhorar. Para resumir para a sociedade, para explicar como isso vai ficar, vai ser o dia que a gente não precisar mais falar sobre isso, quando a gente não precisar mais ensinar as empresas, porque vai ser natural a humanização dos corpos trans, quando for natural essa contratação, sabe? Que uma pessoa trans não for constrangida porque ela não parece mulher, não parece homem, ainda mais agora, com a não-binariedade, com as pessoas não-binárias, que não querem se identificar nem com um gênero nem com o outro, porque abominam esse sexismo social. A sociedade massacrou tanta gente com esse binarismo que as pessoas não binárias não querem pertencer a nenhum dos dois, sabe? “Ah, mas o que é isso?” Gente, é uma definição dessas pessoas contradizer o binarismo imposto pela biologia, quando um médico fala: “É menino, é menina”.
Sempre falo que isso tem que ser desde a infância, a conscientização tem que ser desde os pais; chá de revelação é furada, fumacinha rosa, bandeirinha rosa. Daqui a pouco essa criança cresce, se identifica com outro gênero e acabou. Existem crianças trans, existem crianças com três, quatro anos que já demonstram: “Não sou menino! Não sou menina!” Crianças trans existem, já temos casos aí de famosos, celebridades que têm filhos trans, e que desde sempre respeitaram suas crianças trans. Quando você não entende, o problema não é na criança, quem precisa de acompanhamento psicológico é você! Pai responsável… "Não sei lidar com a questão trans!" Beleza, procure apoio psicológico, essa é a orientação que a gente pode dar.
Estamos em caminhos muito lentos. Estamos ocupando os espaços sim, mas por causa de grandes ativistas que vieram antes de mim, antes de nós, até mesmo pessoas que silenciaram outras por medos e inseguranças. A gente tá aí, caminhando, sim.
Hoje a gente dialoga com empresas. Eu posso dizer para vocês que o Instituto C&A [está] fazendo um trabalho bonito de conscientização dessas pessoas. A Unilever, aqui no Rio, veio atrás do CapaciTrans para fazer esse trabalho de inclusão, contratou pessoas trans do CapaciTrans, para trabalhar como promotoras de loja, sabe? É um trabalho, é um caminho de mil léguas que começa com o primeiro passo.
Eu não vou tentar dialogar com uma empresa que eu sei que não é realmente solidária e inclusiva, não vou tentar diálogo com essa empresa. Eu não vou tentar mudar a estrutura dessa empresa se ela não está aberta; eu vou trabalhar com as que estão abertas para realmente entender o que são direitos humanos, o que é equidade, reparação histórica.
Contratar pessoas trans, independente de qualquer coisa, pra mim é o mesmo patamar, o mesmo nível, a mesma questão do racismo; é reparação histórica. Ainda mais quando a gente tem pessoas trans pretas que estão aí, morrendo por serem pessoas trans e pretas. Não basta só sofrer o racismo, ainda sofrem a transfobia. E ainda vêm outros agravantes: não tem um padrão corporal exigido socialmente, não se veste, sabe? Isso tudo precisa ser trabalhado com as empresas. Por mais empresas que deixem a pessoa ser quem ela é, trabalhar de forma liberta. A minha sugestão para essas empresas é: "Aceitem elas como elas são!” Tudo bem que vocês têm as suas regras e os seus limites - óbvio, todo profissional tem que cumprir carga horária, dar satisfação quando não vai, isso é o mínimo que a gente espera, mas não usem isso para discriminar uma pessoa trans, não podem ir em uma pessoa trans e falar: "Ah, chega atrasada! Ah, falta! Ah, é muito questionadora!" Não usem isso, fica muito feio.
Quando vocês incluem essas pessoas de forma verdadeira, de forma transparente, vocês vão ter uma grande aliada. Essa pessoa vai vestir a camisa da empresa com muito orgulho, porque ela vai se sentir incluída e respeitada. Ela mesma vai falar de vocês e vai fazer a autopromoção de vocês, só porque vocês deram uma oportunidade de fato para elas, e vocês vão estar praticando a questão da inclusão, da equidade, da reparação histórica e acima de tudo, de direitos humanos.
Fabíola Lopes, executiva de negócios da Unilever, é uma mulher trans, e ela explicou: "Se vocês compram macarrão x, produto y, que é da nossa empresa, da nossa hub, por que vocês não vão trabalhar com a gente? Por que vocês não vão ganhar com a gente? Por que vocês não vão ser remunerados para trabalhar com a gente?” É isso que eu tento conversar com as empresas. Nós movemos a economia desse país, nós votamos, então cabe à gente também colocar pessoas lá que nos representem, que as empresas façam sua parte. Algumas empresas podem não contratar, mas podem investir valores em editais como o nosso, para capacitar outras pessoas, para que elas empreendam e não fiquem reféns dela. "Ah, beleza. Não vou contratar, mas vou investir aqui um valor, um aporte, já que é deduzido do imposto de renda. Vou investir um valor grande em aporte para mais projetos como o CapaciTrans, como outros projetos pelo Brasil." E assim você vai estar fazendo no mínimo a sua parte, no mínimo, mas procure fazer o máximo.
(1:54:30) P/1 - O que você acha que a sua experiência pode contribuir para pessoas que vivem a mesma situação que você? Para pessoas trans, para pessoas que passam também por essa questão do preconceito no mercado de trabalho? Todas essas questões.
R - Eu acho que diante dessas horas que a gente passou juntos, deu para perceber que eu não me deixei silenciar por ninguém, nem pela minha mãe. Eu chamei a assistente social quando minha mãe tentou me botar para fora de casa, para vocês perceberem que eu tenho… Eu sou assim, mas ninguém é igual a ninguém. Podemos ser todas trans, travestis, LGBTs, mas nem todos têm a mesma empáfia que eu, digamos assim, mas essa empáfia é aliada a uma diplomacia, a uma maneira sutil de falar, "Sabe que isso que você falou é machismo, né? Sabe que isso que você falou é racismo, né?" Sabe? Essa é a Andréa Brazil, que com um sorriso corrige a pessoa, nem todo mundo é assim. Por isso muitas pessoas gostam de ouvir a Andréa, porque a Andréa tem uma linguagem não violenta, só que a Andréa já passou por muitas violências, e nem todo mundo é obrigado a ser igual.
É óbvio que o meu sangue me ferve quando eu vejo crimes racistas no Brasil, quando eu vejo essa higienização racista, a demonização dos corpos pretos, a demonização dos corpos trans, qualquer matéria: "Ah lá, a travesti roubou." Sabe? A gente tem que limpar desse viés inconsciente, desse prejulgamento, a gente tem que se higienizar disso, porque é isso que eles querem. Quem está no poder quer isso, a cisgeneridade branca, patriarcal, burguesa, porque eles movem o dinheiro, eles querem ser os únicos donos do poder, então a minha ideia é: desconstruam por dentro, joguem o jogo.
Eu também não falei, mas eu já fui professora da Faetec. Eu fui professora por quatro anos na Faetec, de cabeleireira, um contrato a nível, parecia… Eu me sentia uma concursada porque eu recebia junto com os professores, mas eu não era, eu era uma contratada. Quando eu entrei, a coordenadora, que hoje é uma grande amiga minha, ela falava: "Não, dentro da sala o nome é professor André". Eu falei: "Eu já sou Andréa Brazil, então vai ser Andréa Brazil, professora sim!" "Não, não pode!" "Pode sim!" "Ah não, porque o sistema, quando alguém lá da central…" Eu falei: "Deixa eu te falar uma coisa, Claudia..." Maravilhosa, hoje uma grande amiga. "Deixa eu falar uma coisa para você, Claudia! Isso aqui é do Estado, do governo do Estado. Você sabia que se eu levar isso para o Rio LGBTfobia, que é do Estado também, pode gerar um processo administrativo para você?" E aí ela passou a me enxergar com outros olhos.
Ela passou a acompanhar a vida das Kardashians. Tem o pai das Kardashians, o padrasto, sei lá, que transicionou e ela passou a ver aquilo. Eu não entendi a referência, mas por ser uma pessoa trans, ela passou a me olhar com outros olhos e trouxe [isso] para dentro da Faetec, para falar sobre pessoas trans. Ela passou a me dar local de fala e passou a respeitar a professora Andréa, então a gente tem que saber jogar o jogo.
Eu entrei de camisa de malha soltinha, sem demonstrar, cabelinho preso e quebrei a estrutura por dentro, sabe? "Opa! Vamos começar? Vamos começar melhor?" Mas é óbvio que meu sangue sobe também quando eu vejo as violências com os corpos trans, por prejulgamentos. Meu sangue sobe quando eu vejo essa política higienista de segurança pública do Rio de Janeiro, meu sangue sobe de ver que pessoas pretas são assassinadas só por serem pretas, entendeu? E aí eu sempre faço comentários do tipo: "Depois chamam de violentas as pessoas trans, depois chamam de violentas as pessoas pretas, porque falam fogo nos racistas." Só que os pretos é que estão levando bala. O corpo preto tem o alvo na testa, o corpo trans tem o alvo na testa, no coração. Os crimes de ódio às pessoas trans, travestis são com requintes de crueldade, adolescente jogando álcool e tacando fogo em trans em fila de ponto de ônibus, então isso dói para a gente.
De qual maneira o CapaciTrans faz? Tenta capacitar essa pessoa para dar uma autonomia, para que ela não fique refém das ruas, que não seja uma imposição que ela seja profissional do sexo, que ela faça isso se ela quiser. A minha auxiliar, minha estagiária era profissional do sexo nas horas vagas e foi minha assistente durante dois anos no CapaciTrans; hoje ela é uma educadora social de saúde no Garupa, na prefeitura do Rio de Janeiro. Ela falava: “Madrinha, você vai precisar de mim hoje? Eu estou com um cliente”. “Não, meu amor, vai ganhar teu dinheiro.”
A gente não higieniza a pessoa, ser profissional do sexo não é crime. O que é crime é a exploração desses corpos, a cafetinagem, as pessoas que traficam esses corpos. Iisso é crime no Brasil, isso que é crime, o crime não é você ser profissional do sexo, então a gente não tem que higienizar ninguém. Eu falava para ela assim: “Você quer, além disso, ser isso também? Estamos aqui para isso, o CapaciTrans está aqui para isso, para dar várias opções”.
O nosso eixo é moda, imagem. Quando a gente fala ‘imagem’ é para combater essa coisa de: “Vou trabalhar com salão de beleza”. Não, vamos trabalhar com imagem pessoal, cabelo, maquiagem, penteado. Vamos ser maquiadoras de cinema, teatro, televisão, sabe? Não é: “Vamos padronizar beleza, modelo tal”. Não, vamos quebrar esses padrões. O CapaciTrans faz isso.
Quando a gente faz isso, a gente está dando autonomia para as pessoas trans, mas também para mulheres, gays, bissexuais, pessoas em vulnerabilidade. Os principais critérios para a gente sempre são os critérios dos cortes de vulnerabilidade dessa pessoa. As prioridades sempre são pessoas trans, travestis, pretas; essas são as prioridades para uma seleção, para trabalhar - para trabalhar não, para se capacitar com a gente e depois talvez ser indicada para o mercado de trabalho, com empresas que realmente façam inclusão. Esse é um caminho que tem dado certo diante da dimensão que o CapaciTrans tem tomado durante esses três anos e meio - quase dez editais vencidos. A travesti aqui branca aqui, que usa o seu privilégio para deixar outra pessoa falar, outra pessoa aparecer… Não estou aqui por ego.
É aquela missão que eu falei antes, lá no projeto Damas, no passado: eu queria ser essa multiplicadora e eu queria ser aquela criança estilista, lembra? Hoje a minha marca também está tomando uma proporção, aos pouquinhos ela tá crescendo. Qual era o objetivo dessa marca? Que as pessoas trans, travestis e LGBTs da turma, alunas, venham ganhar dinheiro com a gente, produzir com a gente. Essa é a mensagem que eu tento passar para as outras empresas: “Olha, a minha marca inclui esses corpos, porque elas precisam gerar rendas, elas precisam de autonomia. Por que a sua empresa não faz isso também?” Então esse é o recado que eu posso deixar para empresas e instituições parceiras.
(02:02:27) P/1 - Quem é o seu grupo de apoio?
R - Quem é o meu grupo de apoio?
(02:02:34) P/1 - Isso, as pessoas com as quais você pode contar naqueles momentos que a coisa está complicada, que você está se sentindo super pressionada. Quem é a sua rede de apoio pessoal?
R - Quem cuida de quem cuida, né?
Eu posso dizer que eu tenho uma família de coração que está bem próxima a mim. Meu irmão de coração, meu cunhado, minha irmã. Eles, na verdade, são lá daquele bairro de onde eu saí, daquele bairro que eu sofri violência, que eu sofri transfobia, que eu sofri LGBTfobia. Até no momento, no dia que eu quase fui assassinada, no dia seguinte foi para casa deles que eu corri, e foram eles que cuidaram de mim. Se você fala da minha primeira rede de apoio, é essa família que me adotou lá no passado, a família Teixeira - Bete, Nívia, Bruno, Reinaldo, o meu cunhado, todos eles. São de coração, me adotaram, e eu adotei eles também.
Hoje eles também prestam um serviço para a CapaciTrans. Meu irmão me leva nos locais, eu preciso estar em dez lugares ao mesmo tempo, ele faz transporte. O Reinaldo faz as nossas artes, grava as aulas da gente. Eu os pago para trabalhar com a gente, porque eles também são multiplicadores, eles estão me ajudando a multiplicar e são superabertos à população, sabe? Não olham com desdém, nunca olharam, a partir do momento que me incluíram.
Quem criou o meu primeiro e-mail foi Reinaldo, o meu cunhado. O primeiro e-mail, que até hoje é o mesmo. Era na casa deles que eu usava a internet, sabe? Então eu tenho muita gratidão por essa família, que é a família que me acolheu quando eu me senti muito sozinha, mesmo eu estando no meio de um monte de LGBT’s. Foi uma família cisgênera, nenhum deles ali eram propriamente LGBT’s de fato, mas tinham aquela travesti como uma filha. Eu sou a filha travesti deles e eles são a minha família cis, então eu posso dizer que eles são os primeiros.
Tem a minha madrasta também, ex-mulher do meu pai. Ela tem uma admiração profunda por mim, mas eu também sou muito grata a ela, porque antes de eu transicionar… Ela também não entendeu muito bem isso, só que ela mora na zona sul, ela cuida do meu sobrinho que… Eu tinha uma irmã que faleceu, a filha dela, minha irmã por parte de pai. Ela também foi abandonada pelo nosso pai, mas a Ivani sempre separou muito essas coisas. Ela era diferente da minha mãe, a minha mãe fazia alienação parental mesmo, falava: “Teu pai não presta”. E a Ivani não, abafava todos os podres do nosso pai para a minha irmã.
A minha irmã sofreu um acidente de carro e morreu anos depois, de aneurisma. Ela teve uma criança, que é meu sobrinho. Meu sobrinho hoje está com dezesseis anos, criado pela avó, que era a minha madrasta e é também uma grande amiga. Ela está sempre nos eventos da CapaciTrans, ela investiu no meu curso de corte e costura. Depois que ela entendeu o que era a minha transição, hoje ela brada. Qualquer post meu, vocês vão ver ela lá vibrando, orgulhosa, mas também ela precisou passar por um aprendizado. É uma pessoa que eu sei que se eu precisar correr eu posso correr, na verdade é mais uma troca.
E a minha equipe, que são os alunos que passaram pelo projeto. Eu tenho uma equipe de apoio que se eu precisar gritar, se eu precisar de socorro, eu tenho. São pessoas que estão comigo no casarão, por isso elas estão lá também, porque eu sei que se eu precisar eu vou poder contar. São o André, a Dara - eu chamo de Dara, mas é Ágata Tariga, foi aluna da primeira turma da quitinete - Vivi, que é uma menina lésbica, que está aqui agora, acabou de chegar e quase atrapalhou a nossa entrevista. Eu olhei para ela de cara feia. O André foi um aluno que participou… Eu até queria que o pessoal visse depois o único registro que a gente tem assim, online, aberto para todos: é o Transformando na Moda com o CapaciTrans, no Youtube. Vocês vão conhecer um pouco do que é o CapaciTrans, vão conhecer o André Amorim, que hoje é o meu aluno, o meu filho, meu irmão.
As pessoas pensam que gays também não sofrem. Ele veio parar no Rio, de Goiás, também passou por muita dificuldade; ele estava quase desistindo de tudo e iria voltar para Goiás quando ele resolveu se inscrever no Transformando na Moda. Hoje é professor de corte e costura comigo no CapaciTrans. Ele foi vencedor, ninguém sabia que o Transformando na Moda ia ser um reality, que ia ter prêmio no final. Foi uma surpresa no final, depois vocês vejam.
O André foi vencedor e hoje ele é o meu instrutor. Eu brigo muito por ele, porque as pessoas trans não entendem muito bem quando uma pessoa cisgênera está ensinando, elas se sentem… Mas é porque ele sempre me ouviu, então ele merece esse lugar de pertencimento, de estar ali, porque é um aprendizado para ele também.
A minha equipe de apoio, lá do casarão… A Kelly ficou comigo mais de dois anos e meio. Kelly está hoje como Educadora Social na área da saúde da prefeitura, cuidando de pessoas em situações de vulnerabilidade, em situação de rua, e foi cria do CapaciTrans. Eu não falo isso por ego, eu falo isso por orgulho, orgulho de mãe mesmo, de madrinha, como eles me chamam, então essa é minha equipe, minha rede de apoio. Eu sei que se eu gritar, se eu precisar de socorro, eu sei que eles vão vir pra cá cuidar da mãe deles, da madrinha. (chora)
(02:08:45) P/1 - E quais as coisas mais importantes para você hoje em dia, Andréa?
R - Que essas vidas mudem, que essas pessoas reconheçam que elas são capazes, que elas não deixem ninguém dizer que elas não podem. A coisa mais importante para mim do CapaciTrans é: nunca deixe que te digam o que você não pode, não se deixe ser silenciada, silenciado, silenciade, nunca deixem de acreditar em vocês. Eu quase deixei de acreditar, quando eu perdi a minha mãe eu quis morrer, quando eu passei fome eu quis morrer, eu já quis. Eu tive também pessoas que iam na minha casa com saquinhos de pouquinho de arroz, ovo e batata, porque eu não estava trabalhando e não conseguia fazer programa. Eu não tinha coragem de ir para pista, eu tinha medo, eu achava que era aí que eu ia morrer mais rápido, por isso eu tenho uma admiração profunda pelas meninas que trabalham na pista, na noite, e eu entendo os limites delas. Quando elas vêm para o CapaciTrans fazer uma capacitação, elas [dizem:] “Pô, madrinha, desculpa, tô chegando atrasada. É que eu estou muito cansada, ontem eu fiquei na pista até tarde, porque eu tinha que pagar o aluguel”. Eu as entendo, a sociedade não entende, acha que tá ali por escolha, acha que é fácil estar numa pista, correndo risco de tomar tiro, ou paulada, ou ser queimada viva. Acha que: “Ah, eu escolhi isso”.
O que me dá orgulho é ver elas tentarem e falarem assim: “Chega. Agora vai ser quando eu quiser, com o público-alvo que eu quiser. Eu não vou mais ficar aqui nas esquinas, eu agora vou trabalhar, viver, vou trabalhar com executivos, em hotel de luxo, que tem segurança.” Ainda assim é um risco, mas… Sabe? É essa pegada que eu tento levar para elas, para as meninas trans, mas aí temos os homens trans, que nem isso se sentem confortáveis de fazer, não se sentem confortáveis em fazer programa. As meninas lésbicas também não se sentem muito à vontade, mas tem as que façam, enfim, a gente... O que eu posso dizer é que eu quero que isso só continue se perpetuando.
Você me perguntou o que eu mais quero. Eu acho que o que eu mais quero é que se eu morrer amanhã, que essa equipe que está junto comigo… A gente agora é institucionalizada, a gente criou uma associação institucionalizada. Que eles deem continuidade. Eu espero muito que eles consigam levar isso aí adiante, e que o CapaciTrans não morra junto comigo, como aconteceu com a Astra, com a Marjorie. Embora eu tenha tentado administrar a Astra, eu não dei conta, e outras pessoas que tentaram pegar a Astra também não deram continuidade. Parece que esses legados vão ficando com essas pessoas que mais se empenharam para aquilo acontecer, parece que o legado vai morrendo com elas, então eu queria que isso não acontecesse com o CapaciTrans. Que o legado siga adiante, que outras pessoas lembrem sempre de se colocar no lugar do outro, praticar a empatia.
Eu, Andréa Brazil, quero que quem ficar, independente de ser gay, lésbica, trans ou não-binário, que essa pessoa dê continuidade a esse sonho de serem multiplicadores sociais, priorizando quem estiver em maior vulnerabilidade. E que isso tenha prazo de validade, que a gente não precise mais falar sobre isso, que sejam naturalizados os corpos trans, sejam humanizados os corpos trans; que parem, que se coloquem no lugar dos outros, pratiquem a empatia de fato, não só quando veem uma materiazinha no jornal e se emocionam. Não, vamos praticar isso no dia a dia. O CapaciTrans tenta trazer essa mensagem.
(02:13:02) P/1 - Bom, então vamos à última pergunta, Andréa. Como foi contar um pouco da sua história para a gente hoje?
R - Libertador. Foi bom mexer nessas feridas, fazer um apanhado, desde aquela criança LGBT, aquela criança gay afeminada que os primos mexiam, que já chamavam de Andréa; os priminhos já brincavam, já debochavam, já me bolinavam.
Eu sofri um abuso sexual do meu primo quando eu tinha seis anos. Não julgo, não tenho pena, porque hoje ele está internado numa clínica. Falei ontem com o irmão dele. Ele está internado em um clínica de tratamento de dependentes. Ele também era menor, também era uma criança. Isso acontece, infelizmente. Os abusos acontecem em famílias, com vizinhos.
Eu fui uma criança que foi abusada, mas eu não o condeno por isso. Perguntei por ele ontem para o meu primo. Ele está com 57 anos, cinquenta e pouco anos, e eu tinha, na época, de seis para sete anos. A minha tia cuidava da gente para os nossos pais trabalharem em Itacuruçá.
Quando ele abusou de mim, ele não percebeu que estava me violentando. Ele era uma criança também, ele devia ter doze, catorze anos, não lembro. Só sei que o órgão, para uma criança com o corpinho, uma criança de seis anos… Muitas pessoas linchariam, matariam ele, digamos assim, nos dias de hoje, e a gente sabe que não é assim que funciona. Tudo vai de uma educação sexual dentro de casa, familiar, e a gente não tinha isso. Minha tia, praiana de roça, cuidando de todos os sobrinhos, é óbvio que a gente não pode exigir da coitada, então isso acontece.
Essa criança que passou por isso tudo, hoje tá aí, conseguindo falar sobre tudo isso para tantas famílias. Eu já fiz live falando sobre o amor para as pessoas com relação ao olhar de uma pessoa trans. Eu não me considero no direito de ser amada, mas eu me considero no direito de amar. Todos os homens que se aproximam de Andréa Brazil é com algum tipo de interesse, seja por conotação sexual ou financeira, achando que eu sou rica e eu não sou. Mesmo que eu fosse, eu não gastaria com relacionamento, eu não sustentaria um relacionamento à base de dinheiro. Sou contra essa prática de “eu estou bem e você vai ficar comigo só porque eu estou bem”. Não, tinha que ficar comigo quando eu comi o osso, agora que eu estou comendo filé mignon não quero ninguém. Prefiro cuidar dos meus iguais, dos meus alunos, dos meus filhos, dos meus gatos. Eu tenho treze gatos e uma cachorra, que às vezes eu peco porque eu não dou todo o afeto que eles precisam, mas eu tento não deixar na rua para não morrerem, tento fazer alguma coisa.
Hoje eu tenho o CapaciTrans e também tenho uma Suipa em casa, então eles são os meus filhos. Eu não consigo ficar fora do Rio, dormir fora; eu nunca durmo na sede do casarão de Santa Teresa por causa dos bichos.
Eu sou grata a tudo isso, tudo que eu passei, por todas as porradas que eu levei eu sou grata, por todas as pessoas boas que eu encontrei no caminho. Eu não me considero uma pessoa sozinha, embora eu às vezes me sinta só. Muitas vezes eu me sinto só, mas eu sei que eu não sou. Eu sei que se eu gritar alguém corre, então eu sou muito grata por tudo isso.
Sou grata demais pela mãe maravilhosa que eu tive, porque eu sabia o que ela estava fazendo. Lembrar disso mexe nessa ferida, mas me faz bem, porque eu lembro com carinho dela. Eu gostaria de tê-la aqui do meu lado para aproveitar e usufruir do que hoje consegui. Eu nunca na minha vida me imaginei sendo convidada para palestrar, para falar, para ter a minha história espalhada por aí. Saber que eu fui convidada para a CPI da vereadora Erika Hilton em São Paulo, para falar sobre violências trans… Eu fui indicada, o meu nome surgiu: “Olha, a Andréa tem um trabalho bonito no Rio”.
Isso nunca foi por ego, é por pertencimento. Vejo que estou chegando em um lugar em que eu não me imaginava e que muita gente falou que eu não seria capaz, então eu só tenho a agradecer, até mesmo o convite de vocês, querendo que essas histórias fiquem aí, imortalizadas. Eu só tenho a agradecer. Vou parar, senão eu vou desabar a chorar aqui.
(02:17:57) P/1 - Olha, a gente que agradece. Eu também estou me segurando um pouquinho aqui, mas muito obrigado, pessoalmente, e também em nome do Museu da Pessoa por essa conversa. Muito obrigado mesmo!
R - Muito obrigado a vocês. Genivaldo, desculpa se eu acabei atrasando para a gente marcar isso, mas as atividades foram me tomando. A covid, que nunca tinha me pego no auge da pandemia, me pegou.
Para mim, foi libertador um evento de cinco dias com um dos nossos maiores patrocinadores. Eu não podia estar presente em todos dias, mas eu consegui deixar a Ágata me representando, porque nesse movimento do Fundo Elas, só podia ser representante uma mulher trans, ou uma travesti, ou uma figura feminina, e quem está com a gente, lá do começo, era a Ágata. Negativar [a covid] no penúltimo dia pra mim foi libertador, eu saí correndo para o encontro e fui acolhida por aquelas mulheres indígenas, pretas, quilombolas, sabe? Como uma delas, vitoriosas como elas, com uma significância dentro desse movimento.
São duas frases que eu gosto de falar: “Não farão política sem nós” e “Nós por nós sempre”. E eu não limito isso, eu não excluo ninguém; [são] as pessoas que excluem a gente, então que fique esse recado aqui também.
A gente vai vir com uma próxima turma de moda, em que a gente vai falar sobre moda para corpos diversos de verdade. A gente não quer mais pessoas reproduzindo padrões, então a próxima turma de moda vai ser moda inclusiva para corpos com deficiências, com limitações, moda de qualquer representatividade - aí vem a moda afro, a moda LGBT.
A gente vai querer que pessoas venham falar sobre moda para corpos diversos, corpos plus sizes, GGG mesmo, porque uma pessoa me encomendou um casaco rosa e falou assim: “Eu estou realizando um sonho, porque alguém está disposto a fazer o meu casaco, mesmo sabendo que eu sou extra plus size”. Isso me emocionou muito. Eu falei: “Se a nossa moda não te incluir, eu não estou fazendo o meu trabalho direito.” Ele ficou emocionado demais e eu também, por causa da emoção dele, então eu só tenho a agradecer.
Todo esse reconhecimento em vida é importante demais para uma travesti, muito obrigada!
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