Projeto Conte Sua História
Depoimento de Irene de Lourdes Yasuoka
Entrevistada por Sonia London e Nori Navarro O. Marchini
São Paulo, 23/05/2018
Realização: Museu da Pessoa
PCSH_HV679_Irene de Lourdes Yasuoka
Transcrito por Márcia Rocha de Almeida
Revisado e editado por Viviane Aguiar
P/1 ...Continuar leitura
Projeto Conte Sua História
Depoimento de Irene de Lourdes Yasuoka
Entrevistada por Sonia London e Nori Navarro O. Marchini
São Paulo, 23/05/2018
Realização: Museu da Pessoa
PCSH_HV679_Irene de Lourdes Yasuoka
Transcrito por Márcia Rocha de Almeida
Revisado e editado por Viviane Aguiar
P/1 – Bom, Irene, bom dia, obrigada por estar aqui.
R – O prazer é meu.
P/1 – Vamos ter esse momento delicioso de conversa aqui, de troca, pra gente te ajudar a contar sua história aqui no Museu da Pessoa, deixar sua história aqui. Pra gente começar, eu queria que você me dissesse seu nome completo, data e local de nascimento.
R – Eu nasci em São Paulo, no bairro do Ipiranga. E eu nasci Irene de Lourdes Tezolin e, depois dos 18 anos, eu me tornei Irene de Lourdes Yasuoka. Eu nasci no dia 11 de agosto de 1956.
P/1 – E o nome dos seus pais?
R – Meu pai é Brás Tezolin, descendente de italianos. Minha mãe é Olivia Torres Tezolin, descendente de índio, afrodescendente também. O pai dela era espanhol e a mãe dela era cafuza.
P/1 – Nossa! E os dois nasceram aqui no Brasil?
R – Os meus pais sim. Os meus avós não. Meu avô materno nasceu na Espanha e, da parte do pai, na Itália.
P/1 – E como que eles se encontraram aqui no Brasil?
R – A minha mãe morava em Pinhal quando era menina e ela ficou órfã de pai e mãe muito cedo. Então, ela veio pra São Paulo pra morar com as irmãs. E as irmãs tinham muita preocupação da menina solteira, sem pais, então, queriam que ela arrumasse logo um casamento. Minha mãe se casou muito cedo. Minha mãe se casou acho que com 16, 17 anos, já estava casando.
P/1 – E você sabe como que ela encontrou o seu pai?
R – Eles se encontraram num baile, porque tinha um bailinho, convidaram ela, ela foi com as irmãs mais velhas. E lá os dois se encontraram e começaram a namorar. E os meus tios já chegaram nele e falaram: “Ela tem que casar logo”. E ele casou rapidinho, mal se conheceram. Eles eram muito pobres, os dois. Ele veio da roça, trabalhou muitos anos no café e também veio com a família pra São Paulo. Ele estava há pouco tempo em São Paulo, ela também. Aí se conheceram.
P/1 – E que bairro que era?
R – Vila Califórnia.
P/1 – E até hoje eles moram lá?
R – Não. Meu pai foi trabalhando, trabalhando, conseguiu comprar uma casa quando eu tinha cinco anos. Nós nos mudamos pra Diadema, mas parecia uma chácara porque só tinha mato e a minha casinha lá perdida no meio! E foi lá que ele conseguiu comprar uma casa, um terreno e arrancar toco, arrancar árvore e construiu a casa. Água de poço. Mas ele mesmo e os irmãos ajudaram. E eles, com os próprios braços deles, eles construíram a casa. Eles faziam sempre assim, eram em 10, 12 irmãos, eles sempre se reuniam e construíam a casa de quem tinha um terreno pra construir, faziam poço e tudo, cerca. Entregavam a casa pronta. E, em cima da casa, me marcou, eles sempre arrancavam uma árvore e punham em cima do telhado para inaugurar a casa. Toda casa quando era construída.
P/1 – Como que é?
R – Eles arrancavam... Tinha muito mato, né? Eles cortavam a ponta da árvore e colocavam em cima da casa. Eu não sei o que significa isso, mas era uma tradição: toda casa que era construída, terminou a casa, tinha um pé de árvore lá em cima da casa! (risos)
P/1 – E você foi pra essa casa com...
R – Com cinco, seis anos.
P/1 – O que você lembra?
R – Eu lembro que tinha muito mato, mato, mato. Eu acho que era uma fazenda e ela foi dividida em lotes, e as pessoas compraram. Então, os vizinhos eram muito longe. Mas a minha infância foi muito agradável. Eu ficava o dia inteiro no mato colhendo frutinhas, florzinhas, borboleta. Foi uma infância muito agradável, muito agradável! Eu brincava o dia inteiro naquele... Parecia um cerrado, e tinha tudo, umas frutinhas que eu aprendi a comer aquilo lá, falaram que era fruta, eu comia! (risos) Mas a gente ficava o dia inteiro colhendo, a gente brincava de casinha, fazia fogãozinho de lenha de verdade, minha mãe dava panelinha, a gente fazia comidinha de verdade, a gente matava passarinho. Eu tinha dois irmãos e eles caçavam passarinho com estilingue. E, um dia, eles apareceram com uma coruja. Estava fácil de pegar a coruja porque ela estava dormindo! (risos) E a minha mãe falou: “Coruja não, coruja vocês não podem comer, coruja come rato!”. Mas foi assim, uma infância muito legal!
P/1 – E você se lembra de um canto, algum lugar dessa casa que você gostava, de que você se lembra bem?
R – Olha, eu lembro que o meu serviço na casa era lavar louça. E tinha uma mesa enorme de madeira no fundo do quintal, tinha uma mesa enorme de madeira, e tinha um poço. Então, eu tinha que tirar a água do poço, encher duas bacionas de água, e uma eu lavava, a outra eu enxaguava. E eu secava no sol aquela louça. E eu ficava com o pé na lama. Quando estava calor, caía aquela água no chão, eu ficava cantando. Minha mãe dava a maior bronca que eu me sujava inteira de barro pra lavar a louça! Foi legal, foi uma infância... Eu não sabia o que era pobreza, porque eu não tinha outra pessoa pra eu falar que eu queria um tênis igual o dela, eu queria uma coisa. Porque todo mundo que eu conhecia ali estava na mesma situação que eu. Tinham vizinhos muito longe, mas a gente se reunia pra nadar, pra pegar peixinho. Mas todo mundo era igual, não tinha diferença de classes. Então, pra mim, aquilo lá, eu não saiba o que era nada. Mas eu não sabia o que era, mas eu sempre falava sozinha e eu sonhava. E tudo que eu falava, hoje eu tenho. Eu falava que eu ia casar, que eu ia ter isso, que eu ia ter aquilo, que eu ia viajar, que eu ia andar de avião. Minha mãe falava: “Como ela sabe essas coisas? Ninguém fala pra ela!” – não tinha revista, não tinha televisão – “Como ela sabe essas coisas?”.
P/1 – Como era a rotina nessa casa, da família?
R – A rotina era assim: o pai levantava cedo, muito cedo, e levava uma hora caminhando para chegar onde tinha uma condução para ele ir trabalhar.
P/1 – Ele trabalhava no quê mesmo?
R – Ele era mecânico. E trabalhava sempre com ônibus, ele consertava motores de ônibus. E meu pai mecânico e a mãe dona de casa, cuidando dos filhos. E tinha uma escola que era bem longe, a gente ia andando. Aí no caminho da escola eu ia pegando dálias, margaridas, rosas. Eu chegava na escola com um ramalhete desse tamanho pra professora! Aí eu lembro que as professoras ficavam pedindo carona pra voltarem pra casa, porque lá não passava ônibus. As professoras ficavam na estrada pedindo carona pra voltar.
P/1 – E você ia como pra escola?
R – Eu ia andando.
P/1 – Sozinha?
R – É. Naquela época, todo mundo, não tinha perigo. Eu ia com a criançada. Eu saía da minha casa sozinha, com a minha irmã, mas um pouco adiante encontrava outra, encontrava outra, e ia colhendo as flores que eu achava nas casas, roubava uma dália aqui, uma rosa ali, pegava nos quintais. E chegava cheia de flor pra professora. E a professora ia embora com aquele monte. Eu ficava de olho se ela não jogava fora! (risos) Então, foi legal.
P/1 – E os seus irmãos, você é próxima deles de idade?
R – A minha irmã é três anos mais velha. E, depois de seis anos, tive um irmão e, depois, no ano seguinte, nasceu outro.
P/1 – São quatro, então?
R – Somos. Éramos! Um faleceu.
P/1 – E vocês faziam isso tudo juntos?
R – A minha diferença para os meus irmãos era muito grande, mas a gente ficava o dia inteiro brincando. Fazia lição, tinha que fazer lição, e a gente se reunia em casa na hora da comida, que tinha café da manhã, almoço, café da tarde e jantar. Aí, a gente se reunia, depois tomava banho e cama. No dia seguinte, tudo de novo. Mas era muito agradável. Foi muito bom, eu não me lembro de coisa triste na minha infância. Foi muito agradável, brinquei muito.
P/1 – E você ficou até que idade nessa casa?
R – Essa casa ainda existe. Eu saí de lá pra casar, tinha 18 anos. Eu era muito respondona, era arteira, minha mãe me batia todo dia! Todo dia, eu levava varada. Minha mãe pegava uma vara e ela descascava a vara assim, tirava aquela... A vara ficava branca. E ela era comprida, ela me alcançava. Onde eu estava, a vara chegava até mim! Eu apanhava todo dia (risos).
P/2 – O que você fazia pra apanhar?
R – Eu era arteira, eu era muito arteira. Hoje, eu vejo a minha neta, eu era igual, eu era muito arteira. E a minha mãe brigava comigo, e eu era respondona, eu nunca ficava parada, quieta. Eu xingava ela baixinho, ficava (sussurrando). Aí ela: “Tá me xingando?”. Hoje eu falo pra ela: “Mãe, você me batia todo dia!”. “Ai, como eu me arrependo, você é a melhor filha que eu tenho! Como eu me arrependo, como dói meu coração!”
P/1 – Irene, qual a lembrança que você tem da escola? Então, você ia pra escola, saía dessa casa e ia a pé pra escola?
R – A escola, eu lembro de uma roda grande, uma roda grande, a gente cantava música, de passa-anel, de ciranda-cirandinha. Todo mundo chegava correndo na escola porque queria brincar na roda. Era uma roda muito grande e naquela roda tinha crianças de todas as salas de aula, não era só da minha classe. E as carteiras eram de madeira, o piso era de madeira. E as professoras, eu gostava de todas, não tem nenhuma que eu possa reclamar, gostava de todas as minhas professoras.
P/1 – E dos amigos, o que você lembra?
R – Os amigos, eu lembro de amigo de infância. Eu lembro de umas meninas que eram muito pobres, elas não almoçavam. Na hora do almoço, elas comiam pão com açúcar, eu tinha muito dó delas, ficava com muita pena! (choro) A mãe saía cedinho pra trabalhar, ficava aquela criançada, e eu queria levar todo mundo pra comer na minha casa. Minha mãe falava: “Não, não pode”. Mas isso eu acho muito triste, lembrar disso, que as meninas, minhas amiguinhas comiam pão com açúcar na hora do almoço. Acho muito triste!
P/1 – E você levava comida de casa?
R – Eu tinha comida na minha casa, eu levava o que eu podia. Mas eu não podia chamar ela e um monte de irmãos pra vir comer na minha casa.
P/1 – Então, vocês ficavam o dia inteiro na escola, como que era?
R – Não, eu digo que eu brincava com elas quando eu voltava da escola. Elas eram amigas que iam pra escola junto. E aí elas falavam: “Você vai almoçar? O que sua mãe fez?”. “Minha mãe fez frango, minha mãe fez isso, fez aquilo.” Frango era só domingo, era muito caro na época. Mas a minha mãe... Sempre passava carroça vendendo peixe, vendendo dobradinha, linguiça, essas coisas. Minha mãe fazia muita verdura, fazia catalônia com bacon, que eu adoro! Minha mãe fazia. E eu falava para as meninas o que eu ia comer. Eu via que elas tinham uma vontade de comer, coitadas! (choro) Desculpe, eu estou triste, não quero falar coisa triste. Não gosto de diferença social, isso aí me deixa muito triste.
P/1 – Então, vamos voltar pra essa época mesmo. Aí, você na escola...
R – Na escola, eu defendia minha irmã, que minha irmã era boba. As meninas brigavam com ela, e eu tacava pedra nas meninas. As mães das meninas vinham reclamar com a minha mãe, aí, eu apanhava! (risos) Minha irmã era mais velha que eu, mas ela era bobona! Eu defendia ela, eu tacava pedra nas grandonas, e depois as mães das meninas vinham com a filha com o calcanhar roxo, que a pedra pegou no pé. Então, era isso. Eu era muito danada, era muito arteira! Eu era muito arteira. Um dia, deu uma cheia no rio, tinha um rio que divide São Bernardo de Diadema. E deu a cheia, ninguém podia chegar perto, que era perigoso. E eu atravessei aquele rio, eu podia ter sido levada pela água! Minha mãe me pegou pelos cabelos, mas eu apanhei esse dia até! (risos) Apanhei muito, muito!
P/1 – E essa escola você fez...
R – Essa escola ainda está lá. Eu fiz até a oitava série lá. Depois, eu fiz um curso de enfermagem, porque o que seria o colegial, eu podia fazer magistério, podia fazer o científico, podia fazer enfermagem, decoração. Tinha cursos técnicos que eu poderia fazer. Aí, eu optei por enfermagem, que eu já queria sair trabalhando.
P/1 – Mas lá você ficou até...? Naquela época chamava ginásio, é isso?
R – É, ginásio. Da primeira série, quando alfabetiza, aí tinha até a quinta série. A quinta série era a admissão para o ginásio. O ginásio era o que hoje fala oitava série?
P/1 – É.
R – Não, lá era do primeira até o quarta. Aí, me formei no ginásio lá. Depois, eu comecei a estudar a noite, trabalhava. Eu comecei a trabalhar com 14 anos.
P/1 – Ah, é? O que você fazia?
R – Ah, meu Deus... Tinha um mercadinho, lá vou eu contar história! Tinha um mercadinho que era de dois espanhóis. E eles precisavam de uma pessoa pra ajudar. Aí, eu fui ajudar. Só que essa mania que eu tinha desde menina de querer ajudar os outros, as pessoas vinham, pessoas pobres vinham comprar um quilo de açúcar, um quilo de arroz, e eu estava acostumada... Meu pai fazia despesa com muita comida, meu pai comprava bastante, saco de coisas, porque a gente era pobre, mas meu pai sempre foi preocupado com alimentação. Nunca faltou. Eu não posso queixar de alimentação, nunca faltou nada. E eu tinha dó dessas pessoas que chegavam lá e falavam: “Me dá meio quilo disso, meio quilo daquilo”. E eu enchia, punha um monte! Era a granel, eu punha o saco cheio e ainda dava uma piscadinha assim. Parecia o Robin, roubando o patrão para ajudar o coitado. Mas eu fazia isso, nem sabia que era errado. Mas eu estava fazendo o que eu tinha vontade, tinha dó das pessoas. E eu fazia isso. Trabalhei nesse mercadinho. Aí, eu arrumei um emprego em uma empresa de recepcionista, me treinaram lá pra ser recepcionista e eu muito faladeira, muito. Aí, arrumei esse emprego, trabalhei. Depois, fui trabalhar numa empresa chamada Copacabana Discos, que era da Universal Discos, que era do Rio, veio pra São Paulo, abriu a Copacabana. E eu trabalhei na Copacabana, no escritório também.
P/1 – Mas vamos voltar de novo à sua escola. Você, então, fez até a quarta série e aí você foi para o...
R – Depois que eu terminei o ginásio, eu fui fazer colegial, mas eu não quis fazer colegial. Aí, eu fui para o curso de enfermagem.
P/1 – Mas foi lá na região mesmo, ou você veio já pra São Paulo?
R – Não, não, não. Lá na região mesmo.
P/1 – Onde? Diadema mesmo?
R – Não tem mais essa escola. Fiz datilografia, esses cursos que tinham também, para eu poder trabalhar. Mas esse curso de enfermagem era equivalente ao colegial.
P/1 – Por que você foi fazer enfermagem?
R – Porque eu queria trabalhar, eu queria trabalhar. E eu gosto de cuidar de pessoas, eu gosto.
P/1 – E chegou a trabalhar como enfermeira?
R – Não, eu fiz o estágio no hospital e tudo. No estágio, tive contato com pacientes, trabalhei. Mas, depois, logo que eu saí da enfermagem, eu conheci meu marido. Aí, ele falou: “Não vai trabalhar porque não compensa você trabalhar, você vai ganhar pouco. É melhor você ficar em casa, e eu trabalho. É mais econômico você ficar em casa”. Aí, eu parei de trabalhar.
P/1 – Mas, então, antes de casar, você fez todos aqueles outros trabalhos. Você foi...
R – Mas não trabalhei como enfermeira.
P/1 – Mas você trabalhou lá no mercadinho.
R – No mercadinho, foi menina, 14 anos, 12, 14 anos.
P/1 – Mas você ganhava?
R – Ganhava, ganhava. Só que eu não gostava, porque ele mandava eu varrer. Se ele mandasse eu pegar na vassoura e varrer a frente da loja, do mercadinho, eu morria de vergonha! Eu achava humilhante eu ter que varrer, eu não gostava de varrer. Porque tinha um menino tão lindo que passava, descia a rua, o menino tinha um terninho, acho que ele era office boy. Ele descia aquela rua e ele me olhava. Se ele me visse com a vassoura, eu ia morrer de vergonha, porque ele ia achar que eu ia ser a varredora (risos). Eu não queria que o menino me visse varrendo! Então, quando ele mandava eu varrer, eu inventava, ia ao banheiro, esperava o menino passar. Deixava de ver o menino, porque com a vassoura ele não ia me ver!
P/1 – (risos) E você ganhava, você lembra quanto você ganhava naquela época?
R – Não, não lembro. Mas eu acho que devia ser um salário mínimo.
P/1 – E o que você fazia com esse dinheiro?
R – Eu dava pra minha mãe, quando eu era mais nova, eu dava pra minha mãe. Depois, eu fiquei mais esperta. Aí, eu não dava não, eu gastava tudo em roupa. Aí, minha mãe dava dinheiro pra eu ir pra escola (risos). A minha irmã dava dinheiro em casa, e a minha mãe me dava o dinheiro (risos). Porque eu gastava o meu e gastava o da minha mãe.
P/1 – Então, você gastava o seu salário em roupa.
R – Sempre fui muito vaidosa. Sempre.
P/1 – E aí, os trabalhos que você foi fazendo, era isso, você se sustentava com esse dinheiro?
R – Me sustentava.
P/1 – Sempre foi trabalhando?
R – Sempre fui trabalhando. Trabalhava durante o dia e estudava à noite. Dormia na sala de aula, cansada. Aí, minha mãe acordava cedo, fazia gemada pra mim, porque eu era magrinha que nem a Inara. Minha mãe fazia gemada, de medo de eu ficar doente, fazia aquela gemada com bastante espuma, gostosa.
P/1 – E nessa época de adolescência, como que você se divertia?
R – Bailinho de garagem de escola. Eu era da comissão de festas de tudo quanto era escola que eu ia. A comissão de festas era eu, estava lá! Aí, todos os bailinhos, festinhas. Essa era a diversão, porque não tinha dinheiro pra ir ao cinema, jantar fora. A gente nem sabia o que era isso! Imagina, naquela época, sair pra jantar fora! Ninguém tinha carro, ninguém dirigia naquele meio. Já não era tão mato, já estava mais povoado, mas, mesmo assim, era distante. Quando a gente falava em São Paulo, a gente falava: “São Paulo, você vai pra São Paulo?”, como se fosse uma pessoa do interior bem distante. E Diadema é aqui do lado.
P/2 – Tinham grupos de amigos aí?
R – Tinha, todo mundo que saía, vixe, se eu for contar! A gente matava aula, se tinha alguém que aparecesse com carro lá, essa pessoa levava todo mundo pra Santos, o carro ia superlotado. A gente descia a serra em horário de aula, ia lá, molhava os pés, brincava na água de noite, depois subia. Meia-noite estava em casa, porque era meia-noite a hora de chegar da escola!
P/2 – Seus pais não sabiam?
R – Não, imagina se soubessem? Eu apanhava todo dia da mãe quando era menina e depois de adulta, que eu cresci um pouquinho, eu apanhava do pai, porque não podia saia curta, não podia decote, não podia batom, não podia, não podia! Era proibido. E eu saía com aquela saiona enorme. Na época em que eu era mocinha, usava microssaia, não era mini, era micro, era aqui. Usava um shortinho da mesma cor, do mesmo tecido. Todo mundo com roupinha de mocinha, e eu com aquela saia enorme. Eu enrolava, enrolava, enrolava. Quando meu pai me via com aquela... Na rua, um dia ele me pegou. Eu estava com uma saia de preguinha verde, aquelas preguinhas assim, que tem cintura baixa e preguinha. Ele me viu com aquela saia, meu Deus! Toda enroladinha e uma jaquetinha assim por cima pra esconder aquele enrolado. Só via a perna de fora (risos)! Mas eu apanhei! Meu pai tirou um chinelão, era desse tamanho o chinelão dele. Porque meu pai tem dois metros, imagina o tamanho do pé dele? Ele pegou aquele chinelão, mas eu fiquei marcada de chinelão, não sabia onde era branco, onde era roxo, onde era vermelho. Mas eu apanhei tanto! A minha irmã era esperta, minha irmã desenrolava a saia dela bem longe. A minha, eu desenrolava só quando eu estava no portão! (risos) Então, eu apanhava. Quando era sábado e domingo que não tinha aula, que tinha festinha de aniversário, alguém chamava, nove horas, chegou nove e cinco, surra. Eu apanhava todo final de semana.
P/1 – Sempre passava do horário?
R – Sempre passava, nunca cheguei às nove. No melhor da festa? Minha irmã falava: “Mas por quê? Vamos embora”. E eu falava: “Não, vou ficar mais um pouquinho, tá tão bom!”. E ficava. E apanhava.
P/1 – E você se lembra de alguém especial, uma amiga, um amigo?
R – Eu tinha uma amiga que era assim, ela era pra tudo. Sabe aquela amiga pra tudo? E, infelizmente, há dois anos atrás eu rompi a amizade com ela. O nome dela é Lindinalva de Oliveira. Essa Lindinalva, a mãe dela fazia coxinha na casa dela e vendia, ela abastecia todos os barzinhos, padarias da região. Eles iam buscar na casa dela, ela fazia pra fora. E essa menina era muito minha amiga. E eu sempre tinha programas, tinha lugar pra ir, eu era muito convidada, sempre era assim, todo mundo me chamava. E ela, ninguém chamava, porque ela era uma pessoa e, até hoje, coitada, ela não é uma pessoa interessante (risos). Eu gostava dela, mas... Eu gostava muito dela, mas ela não era uma pessoa interessante. Mas ela era generosa. Então, eu chegava da escola, eu passava na casa dela, que a casa dela era do lado da escola. E eu morava muito longe da escola, então, quando eu descia do ônibus, que eu vinha do trabalho, eu passava na casa dela. Aí, a Dona Assunta sempre me esperava com um pratão de coxinha! E eu adorava as coxinhas da Dona Assunta. Mas eu levava essa menina, aonde eu ia, eu levava. Todas as festas, tudo que tinha, tudo que me convidavam, eu levava a Nalva. A Nalva era minha amiga. Levava ela em todo lugar, era minha amigona.
P/1 – E ficou até agora, há pouco tempo?
R – Então, aí ela se casou e foi morar em Santos. Trabalhou no banco, foi ser gerente de banco e o banco transferiu ela pra Santos, ela foi pra Santos. E ela teve um casamento que se desfez rapidamente e ela teve dois filhos. Mas eu sempre ia visitá-la, porque, como ela mora lá, ela ficou morando na casa da mãe. Ela saiu de Santos depois que separou do marido, ela voltou a morar na casa onde era da mãe. Os pais dela já morreram, e ela ficou morando na casa. E eu sempre ia visitar meus pais, passava lá e fazia uma visitinha. E sempre ajudava ela no que podia, sempre ajudando no que podia. Mas eu levei ela pro Cecco [Centro de Convivência e Cooperativa].
P/1 – O que é o Cecco?
R – O Cecco é um centro de convivência que tem dentro do Parque Ibirapuera. E lá tem um curso muito legal de marchetaria italiana. E ela gosta dessas coisas, como eu também adoro mexer com as mãos. Então, eu levei ela para o Cecco pra fazer marchetaria lá. E, aí, ela fez dança com a Marisa também. E ela se sente uma cigana, ela se veste de cigana, fez curso de cigana e ela é esotérica. Então, vai nessas festas de cigano, frequenta lugares onde os ciganos moram, ela gosta dessas coisas. E eu apresentei ela pra Marisa, que é nossa professora de dança, e ela fez dança cigana lá. Aí, a Marisa convidou ela pra dar aula de dança cigana, porque na época a Marisa dava dança do ventre e ela dava dança cigana. E, aí, fazendo a dança cigana, ela se sentiu muito importante na função de ser uma professora de dança lá do grupo. E eu fui fazer a dança cigana, e ela, no dia da apresentação, falou: “Tem que dançar com uma calça comprida por baixo, porque cigano não mostra a perna. Cigano mostra aqui, mas a perna nunca. Tem que dançar com calça”. E eu não tinha roupa cigana. Ela me emprestou a roupa dela. E ela é mais magra que eu. Ela, sendo mais magra, a saia ficou... Ela tem um milhão de saias de cigana, ela emprestou para o grupo todo. E a saia apertada, eu ia... E um calor de dezembro, eu ia dançar com uma calça comprida e com aquela saiona? Eu falei: “Não, eu vou sem calça”. E depois a saia é tão rodada, tem 24 metros de roda! Você pode fazer assim que não aparece nada. E eu dancei sem a saia. Quando eu cheguei lá, ela me viu sem a saia, sem a calça, porque pra ela é uma religião aquilo, não pode. E eu estava sem a calça. Ela ficou muito brava e brigou comigo, e cortei o relacionamento. Falei: “Brigar comigo na frente de todo o grupo?”, que a gente tinha um camarim, a gente estava se trocando. E ela falou: “Cadê sua calça?”. Eu falei: “Não veio”. Eu sou teimosa, falei: “Não vou pôr calça”. “Se você não pôr a calça, você não dança”. Eu falei: “Eu vou dançar. E vou dançar sem calça”. E fui lá e dancei sem calça. Ela ficou muito louca que eu enfrentei ela! Mas eu fui. Eu não devia ter feito, mas eu sou assim, eu sou impulsiva. Acho que, se fosse minha mãe na hora, ia me dar umas varadas e meu pai umas chineladas!
P/2 – E você que rompeu?
R – Não, ela foi muito grossa comigo na frente de todo mundo, a Marisa viu. Todo mundo. Ela: “Você não tem que dançar assim, eu falei, você não vai dançar”. Eu falei: “Vou dançar”. Eu era do conselho gestor e falei: “Eu vou dançar, eu vou dançar sim”. E me impus, falei: “Eu vou dançar”. E entrei e dancei. E a Marisa falou: “Irene, eu gosto muito de você, fiquei muito chateada com o que aconteceu”. A Marisa foi a meu favor. Aí, eu me senti forte. Mas eu falei: “Olha, Nalva, eu trouxe você aqui, eu arrumei vários cursos legais pra você, eu sempre te ajudei, sempre fui legal com você. Todos os momentos que você precisou de mim, eu sempre estive ali. Agora você vai brigar comigo só porque eu estou sem calça? Que eu tenho que dançar com a calça comprida, você está querendo fazer isso? isso não me convence, você não é minha amiga, você não gosta de mim. Isso não é motivo pra você brigar comigo!”. Ela falou assim: “Eu não vou te pedir desculpa”. Eu falei: “Não?”. “Não, porque você está errada.” Eu falei: “Eu não te desculpo. Você não pede desculpa, mesmo se você pedir, eu não desculpava, porque você foi muito grossa comigo”. Ela falou: “Então, vai ser feliz”. Eu falei: “Pode deixar, já estou sendo”. E nunca mais falei com ela. Fui ser feliz. Ela mandou eu ser feliz, estou sendo! Tem gente que você não precisa carregar. Se vale a pena, você carrega. Se não, você deixa no caminho. Eu deixei, não estava valendo a pena.
P/1 – Então, voltando um pouco a esse começo de vida mais social, de bailinho, de turma, você disse que sempre estava organizando tudo. E os namorados, quando começou?
R – Muitos, um por semana! Foram vários! Eu ia à casa da tia, conhecia um, era ali. Eu ia à casa da avó, conhecia outro, tinha vários namoradinhos, muitos! Eu namorei pouco tempo, mas namorei muitos. Eu casei muito cedo.
P/1 – Com que idade foi o primeiro namorado?
R – Eu acho que eu dei meu primeiro beijo com 15 anos. Foi com esse menino que atravessava, que descia a rua e eu escondia a vassoura pra ele não me ver varrendo. José Carlos Dias Amorim, não sei nem se está vivo.
P/1 – Vocês namoraram?
R – Namoramos. Ele era muito amigo do neto da minha vizinha de muro. Então, eu não precisava nem sair de casa. Eu ia para o fundo do quintal recolher a roupa, fazer qualquer coisa, ele ficava lá em cima e eu lá embaixo. Eu ficava beijando assim. Ele assim e eu assim, ele lá de cima! (risos) Meu pai: “O que essa menina está fazendo lá fora?”. “Fui recolher roupa!” Eu era muito danada, gente, vocês não fazem ideia. Quando as minhas filhas fazem qualquer coisa de arte, eu falo: “Tenho que perdoar, não posso ficar brava”. Porque minhas filhas não chegam nem no pé do que eu era!
P/1 – Isso você tinha 15 anos, então?
R – 15 anos.
P/1 – E quando que você conheceu seu marido?
R – Eu conheci meu marido com 17, 18 anos. Eu, tomando ônibus. Ele fazia FEI [Faculdade de Engenharia Industrial], ele estava no último ano da FEI e estava fazendo estágio na Ford em Rudge Ramos. E eu peguei um ônibus que passava numa avenida que eu descia e logo em seguida ele descia, mais à frente. E, nesse dia... A vida dele também foi muito difícil, a vida do meu marido. Meu marido nunca namorou, não teve uma vida de rapaz bem namorador, não. Ele carregou sacas de café nas costas até 17 anos. Ele veio para São Paulo, ele só falava japonês, que ele morava num lugar que só tinha japonês, uma colônia de japoneses. Ele viveu no sítio, o pai dele aproveitava dele, porque ele era o mais forte. Os irmãos todos magrinhos, e ele é grande, ele é mais forte. Então, ele que era o que carregava o peso, né? Então, quando teve duas secas, uma atrás da outra, isso no Paraná, eles tiveram que vender tudo e vir pra São Paulo. Quando eles vieram pra São Paulo foi que o pai pegou esse dinheiro do sítio, dos caminhões que vendeu, trator, essas coisas e comprou duas casas. A família era grande. E o filho mais velho morava com pai e mãe, era a tradição. Então, a cunhada dele, eles foram morar numa casa onde tinham os dez irmãos, meu sogro, minha sogra e a minha cunhada, que tinha acabado de casar. Então, a minha cunhada fazia de tudo pra eles casarem logo, pra casa ficar com menos pessoas e ela poder criar os filhinhos dela. Então, era essa situação. Quando ele me conheceu, ele queria casar, ele queria casar logo. Quando ele me olhou, ele falou que entrou no ônibus, viu aquela menina, ele falou: “É com essa que eu vou casar”. Ele falou pra mim: “Eu vi, eu falei, é com essa que eu vou casar”. Ele é objetivo. E ele é muito esforçado. Ele veio com 17 anos, ele foi fazer Mobral, foi fazer supletivo, entrou na FEI – entrar é fácil, sair que é difícil! Não repetiu nem um ano, saiu da FEI em tempo hábil, não repetiu nunca. E, quando eu o conheci, ele estava saindo da FEI, fazendo estágio na Ford, que ele fez engenharia mecânica. E, quando ele me viu, nesse dia, ele trabalhava. O pai, quando veio, comprou essa casa e comprou duas oficinas de auto-elétrico para os filhos trabalharem. E os filhos trabalhavam nessas oficinas. E ele trabalhava sábado, domingo à noite pra ajudar o irmão. Então, o irmão deu um carro pra ele. Ele tinha um carro. E, nesse dia, o carro tinha quebrado, o carro estava na revisão, não sei o que aconteceu com o carro. E ele me viu dentro do ônibus. E eu namorava outro em casa, outro japonês! Eu namorava, mas a história desse japonês eu não vou contar porque é muito longa. Depois eu conto em off pra vocês, mas é muito longa a história do outro japonês (risos). Deixa eu contar só essa! Eu namorava o outro japonês em casa. E, aí, ele me viu. E, quando eu desci do ônibus, ele desceu atrás.
P/1 – E você viu ele também, quando ele entrou no ônibus?
R – Não, ele já estava, porque ele vinha de São Paulo. E, quando ele me viu, eu desci do ônibus. Eu olhei ele, porque ele era bonitão! E ele era um japonês diferente, tinha um cabelo black. Eu nunca tinha visto japonês de cabelo black. Aquele cabelão assim, aquilo eu falei: “Nossa, japonês black!”. Aí, quando eu desci, ele desceu atrás. Ele começou a conversar comigo: “Oi, tudo bem? Aonde você vai?”. Eu falei: “Eu trabalho ali”. Aí, ele pegou, eu falei: “E você?”. “Ah, eu faço estágio na Ford.” Eu falei “Mentira!”. Desceu aqui e faz estágio na Ford? Eu falei: “Você desceu no ponto errado, porque é mais pra frente”. “Não, não, desci porque quero te conhecer!” Aí, ele foi caminhando comigo até onde eu ia. E, quando ele parou na esquina, eu falei: “Agora eu tenho que ir, tchau, estou atrasada”. Ele pegou, agarrou e me beijou! Só que, quando ele me beijou, passou ali naquele momento quem?
P/1 – Quem?
R – A irmã da cunhada dele, uma japonesa fofoqueira, que foi contar pra minha sogra que o Mário estava lá beijando uma menina que namorava outro japonês! Que a menina estava enganando o japonês e o Mário, que a menina estava com os dois! Então, antes de eu conhecer a família, a família já me odiava. Foi uma situação muito, muito, muito conflitante. Aí, quando isso chegou no ouvido dele, porque ele pegou o meu telefone e ficava me ligando. Só que ele não queria namorar, porque ele não tinha como, ele não tinha nem tempo! Ele trabalhava de noite, estudava de dia, fazia estágio, não tinha dinheiro. Mas ele queria casar com a Irene. Só que ele não tinha tempo, ele não me pediu em namoro. Ele me beijou lá, me agarrou e me deu um beijo sete horas da manhã na porta da empresa. E a outra, amarga, viu. Mas ele não me pediu em namoro. Mas ele ficava ligando: “Oi, tudo bem? Como é que vai, como é que não vai?”. Ele estava me... Falou: “Vou ficar segurando essa menina, quando eu puder eu namoro”. E eu estava namorando com o outro, que eu não gostava. E depois eu conto a história pra vocês, que é uma história muito engraçada e trágica também! Aí, quando ele ficou sabendo, a minha sogra chegou nele e falou: “Olha, quem é essa mulher? Quem é essa que está te seduzindo, essa sedutora de japonês?” (risos) A sogra foi brava com ele! Aí, ele pegou e me ligou muito bravo. Eu falei: “Não me liga mais! Não quero mais falar com você. Você me pediu em namoro? Eu sou alguma coisa sua? Você perguntou se eu tenho namorado? Você me pediu em namoro? Você não é nada meu, por que você está assim?”. “Mas eu tinha intenção de namorar!” “Tinha intenção e já está desse jeito?” Falei: “Não quero!”. Aí, eu rompi, não atendia mais ligação. Eu nunca liguei pra ele mesmo, ele que ligava. Eu nunca mais liguei. E era Copa do Mundo de 70 e pouco, 74. Tinha Copa?
P/1 – É, tinha.
R – Teve uma Copa, e nós fomos dispensados mais cedo do trabalho pra assistir o jogo em casa. E eu fui a pé, falei: “Vou a pé pra casa”. Estava uma tarde bonita, eu fui a pé. Estava andando, ele me viu. E ele começou a me seguir com o carro dele. Aonde eu ia, esse japonês ia atrás. Eu atravessava a rua, ele ia, ele vinha. E ele foi até a minha casa me seguindo e parava, me chamava: “Eu preciso falar com você, eu quero falar com você”. E eu: “Não!”. Aí, ele ficou conhecendo onde eu morava. Ele ia lá, conversava com a minha mãe, conquistou a minha mãe. Então, teve uma cena que ele chegou lá, era um sábado de manhã, e meu pai trabalhava aos sábados também, se não ele não ia fazer isso! Aí, ele pegou, falou pra minha mãe que queria falar comigo. Minha mãe falou: “Olha, ela mandou falar que não está”. Aí, ele entrou, eu estava atrás da porta! (risos) Ele abriu a porta: “Irene, não faz isso comigo! Fala comigo, eu preciso falar com você, me perdoa”. E começou. Eu já tinha desistido do outro, já não estava mais namorando com o outro e comecei a namorar com ele nesse dia do jogo. E começamos a namorar, e ele falou: “Eu quero falar com o seu pai, porque eu quero coisa séria. Eu namoro e caso em um ano, porque eu quero namorar e casar em um ano”. Ele se formou, arrumou um emprego na Atlantic de petróleo, foi ser vendedor da Atlantic. Ele vendeu o carro que o irmão dele tinha dado, já deu entrada numa casa, já casei com casa própria. Mas foi duro, porque nós não tivemos namoro de passear. Não tivemos, porque o dinheiro era tudo pra comprar. Então, eu casei com uma casa, em um ano, ele montou minha casa todinha. Tinha tudo, máquina de lavar roupa, tinha todo o conforto. Porque naquela época não era todo mundo que tinha máquina de lavar roupa. Ele sempre deu tudo, tudo. Tudo que ele podia fazer pela família, ele fez. Ele é muito trabalhador e muito seguro com o dinheiro, porque, como ele trabalha muito, ele valoriza muito o que ele tem. Então, o meu problema de relacionamento com o meu marido é que ele é uma pessoa que não tem amizade com ninguém, não gosta de parente, não gosta de amigos, não gosta de nada. Não bebe, não fuma, não joga, não ri. Você conta piada pra ele, ele não entende, fica sério assim pra você! (risos) Então, é uma pessoa muito... É o meu oposto! Você pega o oposto da Irene, está ali! A única coisa que eu falo pra ele: “O único prazer da sua vida sou eu, trate bem, porque está difícil”. Difícil, mas eu estou há 42 anos casada. Mas nós somos muito diferentes. Ele sempre foi muito seguro. Eu nunca tive um marido pra me levar num cinema, num teatro, num passeio. Escola de filho, reunião de escola sempre fui eu. Ele falava assim: “Eu tenho que cuidar de ganhar dinheiro. Você tem que cuidar da saúde e educação das crianças”. Então, escolha de escola foi minha, reunião de escola, tudo eu. Saúde, sair de madrugada com filho doente, ficar no hospital sozinha com filho, sair correndo, dirigindo no meio da noite com medo de criança morrer, era eu, sempre sozinha. Ele nunca foi comigo! Então, faltou esse lado. Mas, por outro lado, ninguém tem tudo, a vida não é cor-de-rosa pra ninguém. A gente tem que se adaptar às situações. Eu até hoje estou aprendendo a lidar com ele, e ele está aprendendo a lidar comigo. O que ele já mudou, ele já mudou muito, pra melhor. Eu acredito que eu também mudei pra melhor. Então, eu acho que o amor é uma coisa assim, que você constrói. Porque pra você viver com uma pessoa legal, que topa tudo, é fácil. Agora, você vai lidar com uma pessoa tão diferente de você, com uma educação diferente, com uma cultura diferente, muitas diferenças. Eu acho que precisa ter muito amor, porque, senão, você não vive 42 anos com uma pessoa, não vive! Então, é isso.
P/1 – E vocês têm filhos?
R – Nós temos duas filhas, que foram assim... Praticamente, só minha, porque eu que levava na escola, que levava no médico, eu que levava, eu que ficava com elas, tudo só a mãe. Ele só entrava com o dinheiro.
P/1 – Como elas chamam?
R – Melissa Mari e Melina Marie. Essa Melina, ela me deu muito trabalho de saúde, eu tive muito problema de saúde com ela. Mas, graças a Deus, ela está ótima! Ela, durante 15 anos, ela foi uma menina muito doente, que, inclusive, depois que eu poderia ter trabalhado, eu não fui trabalhar, porque eu tinha que ficar com ela, eu tinha que cuidar dela. Mas, depois de 15 anos, essa menina nunca mais ficou doente, essa menina fez veterinária, foi pra Austrália, que quase eu morri de ver meu ovo de casca mole indo embora, com uma mochila nas costas! Eu lembro dela olhando pra mim e entrando. Ficou na Austrália um ano, fez intercâmbio agrícola, e depois ela voltou, fez mestrado, fez doutorado, está fazendo pós-doc. É professora de veterinária na USP [Universidade de São Paulo]. Essa é minha mais nova. A mais velha é uma menina que eu nunca vi: ela tem a inteligência do pai, que o meu marido é muito inteligente. Ela tem a inteligência do pai e a criatividade e a alegria da mãe. Eu olho pra ela, eu me vejo. Eu falo: “Eu sou o rascunho, ela é a perfeita!”. Ela é muito querida. As duas são, mas a Melissa sou eu. Eu olho pra Melissa, eu me vejo nela, fisicamente inclusive. E ela passa por problemas que eu passei também, algumas situações que ela passa, eu vejo que ela passa. Mas só que ela tem um (estala os dedos), ela tem aquele... Ela tem cultura mais do que a mãe, ela tem traquejo, ela trabalha, é uma excelente profissional, ela sabe muito, muito, muito sair das situações. Melhor do que eu.
P/1 – E as duas moram com vocês?
R – Não, a mais velha mora em Sorocaba. Ela é médica, onco-gineco, e tem o consultório dela, trabalha no hospital, é cirurgiã. Então, é o meu orgulho, as duas são o meu orgulho. Valeu a pena eu viver só por isso, por elas. Eu já tive muita coisa boa na vida, já tive muitas viagens, tenho carrão, tenho casa boa, tenho muita coisa boa na vida. Mas a única coisa que realmente eu me orgulho são minhas meninas. É tudo, tudo, tudo!
P/1 – E a mais nova mora com você ainda?
R – Não, a mais nova é professora em Pirassununga, na USP de Pirassununga. Ela trabalha com animais de grande porte, vaca.
P/1 – Então, como que é sua vida? Sem as filhas, como que é?
R – A minha vida foi assim, que nem eu contei: uma infância maravilhosa, juventude sapeca, mas foi pouca, foi curta. O casamento foi uma castração, só trabalho, trabalho, trabalho. Na educação das meninas, e “não pode isso”, “não pode aquilo”. Não podia sair no portão que esse homem não deixava. Eu podia andar pelada se eu quisesse, saia curta, decote, isso ele nunca se incomodou, batom, podia tudo. Mas não podia ter amizade com ninguém, que tinha que ficar fechada, não podia conversar. Se eu estivesse num avião, conversava com a pessoa do lado: “O que você está conversando? Você conhece? Pare de conversar com estranho”. Desse jeito! Então, eu não podia conversar com ninguém. Depois que eu fiz, que eu cheguei à maturidade, que ainda sou uma menina, mas já estou na maturidade! (risos) Depois que eu cheguei em certa idade, eu falei: “Chega! Já criei minhas filhas, já eduquei, já formei e já informei. Agora eu vou cuidar de mim, eu vou fazer tudo que eu quero”. Eu toco numa escola, toco num cordão, toco tamborim num cordão de escola, porque eu gosto de alegria, eu gosto de gente! Então, eu fui lá. Quero Carnaval. Nunca toquei, tem que aprender a tocar um instrumento, vou lá tocar tamborim! Saio num cordão aqui na Vila Madalena, venho passear, é só alegria! Fiz cinema, fiz um curta, fiz fotografia, fiz desenho, fiz pintura, estou fazendo ainda. Que mais que eu fiz? Eu faço tudo que eu quero! Faço dança, danço carimbó, danço dança do ventre, danço dança cigana, danço dança de salão, faço ioga, faço tai chi. Só faço coisas que eu gosto! Vivo cheia de gente, adoro cozinhar! Esses grupos que eu frequento de terceira idade sempre têm festas – a cozinheira sou eu. Adoro fazer comida pra muita gente. A minha cozinha, chamo todo mundo pra me ajudar e faço aquelas comidas, aquele monte de comida. E o marido tem que aguentar. Porque eu aguento toda a chatice dele, ele tem que aguentar minha alegria também. Agora, eu me impus, falei: “Não, agora eu tenho que me empoderar de mim, eu tenho que viver um pouquinho! Daqui a pouco eu estou morrendo e não fiz nada, que eu não vivi o que eu sou. Eu sou Irene, eu sou alegria! Eu quero viver, eu quero ser alegre”. E agora está ótimo, estou fazendo tudo que eu quero. Única coisa que me incomoda agora são as doenças, porque aparece dor aqui, dor no pé, dor no joelho. Mas isso não é nada, dorzinha a gente cuida. A cabeça é que tem que estar boa. E a cabeça está ótima!
P/1 – Me conta como que foi fazer esse...
R – O filme não fiz sozinha. Foi o seguinte: eu fui fazer um curso de cinema no MAM [Museu de Arte Moderna] e era um documentário. E nós éramos em uns dez alunos, aqueles dez alunos tinham que contar histórias. E eu contei a história de uma menina que fez dança comigo e com a Marisa, a Cristina Bocalini. E eu contei a história dela. E todo mundo teve que vir com uma historinha, cada um com a sua e eu contei a história da Cris. Aí, eu contei a história da Cris, e a história da Cris foi a escolhida pra virar o filme. E eu fui à casa dela, peguei várias fotografias dela e fui na Fotóptica. Preparei todas as fotos bonitinhas e levei para o MAM. E o professor viu, gostou, e eu cheguei lá com a história pronta, as fotografias. E um foi para o som, outro foi para a câmera, cada um fez a sua parte. E a minha parte foi contar a história. E eu faço parte do filme, porque o professor me convidou pra fazer uma pontinha lá né! (risos) Eu e a Ivani, nós fazemos parte do filme. Mas esse filme deu tanto trabalho, deu tanto problema depois! Porque essa menina é uma pessoa especial, ela não é uma pessoa normal, tanto que eu conheci ela no Cecco.
P/1 – Conheceu ela onde?
R – No Cecco. Cecco é um centro de convivência.
P/1 – Ah, sim, no Ibirapuera.
R – É da Secretaria de Saúde. Ele é um local onde pessoas especiais, vulneráveis, têm que ter contato com pessoas pseudonormais (risos).
P/1 – (risos)
R – Então, a gente tem que conviver com eles, e a gente conviver com eles, pra melhora deles. E a gente pra aprender também muita coisa legal. E essa menina, quando eu... Ela teve problema desde os nove anos. A história dela é que ela teve problema de glândula, de tireoide, e ela não podia com iodo. E a mãe levou ao médico, o médico falou que tinha que tomar muito iodo. Ela foi tomando doses altíssimas de iodo, sendo que ela não podia tomar! Então, ela começou a ter grandes problemas de saúde. Mas ela foi, foi indo, chegou uma hora que ela não aguentou, que estourou. Aí, ela teve que tirar a tireoide. Quando tiraram a tireoide, ela ficou muda, ela não conseguia falar. Aí, fizeram uma cirurgia, tiraram um pedaço do nariz para pôr na corda vocal, para ela recuperar a voz. Ela ficou uns três anos sem falar. Isso deu depressão nela, ela ficou depressiva. Aí, teve púrpura, teve câncer, teve todas as doenças que você pode imaginar, aquela coitada tem! E ela, quando eu a conheci, ela estava indo para o Cecco fazer uma entrevista. E eu estava com o meu material de dança, que eu ia fazer a dança do ventre. Ela viu aquelas roupas, aquelas coisas, e ela falou que o sonho dela era fazer dança. Então, o filme dela fala da dança, a dança ajudou ela a superar. Quando eu conheci essa moça, ela pesava eu acho que uns 200 quilos, ela estava enorme, ela não conseguia andar. Não sabia andar sozinha, andava com aquele crachá de pessoa especial, a mãe junto. Não tinha um dente na boca – porque a doença púrpura fez os dentes caírem todos! Então, eu conheci ela desse jeito. E cara de boba, não estava bem. E, depois que ela entrou na dança, ela começou a adorar dançar e começou a comprar roupa de dança e começou a se unir com o grupo. E ela começou a se fortalecer. E virou a melhor das dançarinas do grupo! A história é essa, depois se você quiser, eu te passo o filminho pra você assistir.
P/1 – Ah, sim!
R – E da minha parte foi isso, foi contar a história e fazer a sinopse também. E foi isso.
P/2 – Mas deu um problema?
R – O problema, o que foi o problema? O problema é que ela se sentiu... Eu não sabia que ela ia se sentir assim. Se eu soubesse... Ninguém sabia, ninguém me avisou, eu não sabia. Essa história do filme, ela começou a se sentir uma celebridade. Quando o filme ficou pronto, ela queria fazer uma festa no MAM, chamar bufê, fazer... Eu falei: “Não, não pode! A mulher lá, a Milu Villela jamais ia permitir uma coisa dessas, fazer uma festa lá no anfiteatro deles. Não pode”. “Não, mas o meu lançamento, do meu filme, da minha vida, não pode ficar assim!” Então, ela começou a se sentir! Aí, nessa época, ela fazia uns cursos de autoajuda com uma Sigma, que eles alugam hotel e fazem palestras, umas coisas. Cobram muito! E ela ia e fazia. Ela pegou esse filme, o professor deu uma cópia pra ela e deu pra todo mundo e falou que – eu vou resumir, tem outras coisas que aconteceram, que ela queria fazer do evento uma entrega do Oscar! (risos) Ela queria fazer festa de qualquer jeito. Como não pode fazer no MAM, ela fez na casa dela. Ela deixou de comprar remédio, que ela toma muito remédio, pra fazer essa festa! Pra comprar flor pra todo mundo. O professor falou, o nosso professor falou: “Olha, é pra vocês comprarem um buquezinho pequenininho porque não se entrega corbeille de flores. No cinema é pouquinho. Vocês vão com um ramalhetinho e entregam pra ela no dia” – que teve a apresentação. Ela lotou aquele auditório, deu flor pra mãe de santo dela, pro cara do Sigma, pra mãe, pro pai, pro irmão, pra todo mundo! Pra Marisa, pra diretora do Cecco, para os professores que fizeram a festa! (risos) Mas era tanta flor, parecia que você estava num velório muito chique pra ter tanta flor daquele jeito. Mas ela queria isso, ela vive num sonho. Tanto que o nome do filme fala sobre o sonho dela. Quando vocês virem o filminho, fala sobre o sonho de uma pessoa.
P/2 – E você ficou bem de ter participado, de ter feito?
R – No dia do filme, se você vir minha foto, eu estou tão brava! Porque eu fiquei revoltada com o pessoal do Sigma. Porque eles apareceram lá, todo mundo com aquele uniforme, aquela camiseta preta escrito Sigma. E ela foi lá na frente, homenageou eles. Eles não fizeram nada, pra que homenagear aquele grupo? E, depois, eles usaram esse material que o professor falou: “Olha, isso aqui não pode cair na internet, porque vocês estão concorrendo a prêmio. Não pode ir”. Aí, eles, o pessoal do Sigma, não sei o nome, mas eles pegaram esse material e fizeram um curso sobre isso. E ela foi, apresentou o filme, dançou, contou a história e falou que tudo na vida dela melhorou graças a eles, que ela não tomava mais remédio nenhum graças a eles. E fez tudo isso e na internet, o depoimento dela, o filme, foi tudo!
P/1 – E agora você com ela?
R – Não, essa pessoa, coitada, ela é doente. Porque eu fiquei com muita pena da família. Agora, depois que aconteceu esse filme, eu já... Eu me senti mal, porque eu falei: “Olha, que mal que eu fiz pra cabeça dela!”. Porque ela está se sentindo. Não era pra isso. É uma coisa normal, não precisa ficar se sentindo desse jeito, dar essa importância pra uma coisa, um filminho que foi feito numa escola com professor ali. Mas ela vive só assim, sonhando com grandes coisas. É uma megalomania. A última que aconteceu com ela, são várias, mas ela entrou nesse Sigma aí, que ela vai pra tudo quanto é lugar. Ela não consegue nem andar. Mas, bom, no ano passado ela fez 50 anos. Ela falou: “Eu vou fazer uma festa de casamento, porque eu quero casar. E, já que eu nunca casei, eu vou fazer uma festa de casamento”. Ela comprou roupa de padrinho, de madrinha, de daminha, vestido de noiva pra ela, para o pai, para a mãe, roupa pra todo mundo, limusine. “Quero um castelo, vai ter que ser num castelo meu casamento.” Arrumou o castelo em Moema. Em Moema não, como que chama na Zona Leste? Ah, como que chama aquela rua? Paes de Barros! Avenida Paes de Barros. Alugou um castelo e fez o casamento, contratou mestre de cerimônia, tudo, fez o casamento. Só que ela não pagou tudo que tinha que pagar. E quem fez esse casamento foram os filhos da Marisa. O filho da Marisa e a nora, que têm uma empresa que faz festa. Ela não pagou. Então, no dia do casamento, tinha tudo que você pode imaginar, a roupa, a decoração, mas não tinha comida. Os convidados não tinham comida pra comer. Então, foi uma coisa assim. Aí, deu briga, deu confusão.
P/1 – Agora, voltando pra você!
R – É, vamos voltar pra mim. Deixa a história dela pra lá, que é muito longa! Você perguntou: “E aí, como está com ela?”. Eu procurei me afastar. Tanto que nessa festa que ela me convidou, eu falei: “Eu não vou, não quero participar disso”. Porque ela convidou o grupo de dança pra dançar. E eu falei: “Não vou, eu não quero”. Eu não fui a essa festa.
P/1 – E como que é você participar de todos esses... De quantos grupos você participa? Você participa ainda do Cecco?
R – Não. No Museu Afro, eu já fiz tudo que eu tinha que fazer lá e não fui mais. Já aprendi história tudo, Museu Afro. No MAM também já fiz tudo que tinha que fazer. Agora, eu só estou no MAC [Museu de Arte Contemporânea], estou na Cinemateca e estou na Rua Jureia, que é onde eu faço dança e faço o condicionamento físico. Agora eu só estou com três grupos, o Cecco, a Cinemateca... O Cecco é em parceria com o MAC.
P/1 – E são grupos diferentes, de pessoas diferentes?
R – São. Eu levo gente daqui pra lá, de lá pra cá.
P/1 – E o que você gosta desses grupos?
R – Eu gosto de gente! (risos) Eu gosto de gente, eu gosto de estar com pessoas. Então, quando as minhas filhas saíram de casa, foram morar sozinhas, foram cuidar da vidinha delas, eu ligava o dia inteiro pra saber onde estavam, eu queria saber, queria controlar, saber o que estavam fazendo, onde estavam. Porque eu sempre fui mãezona, eu não sabia ser outra coisa. Eu perdi meu emprego de mãe! Não tinha mais função de mãe pra mim, porque elas, graças a Deus, bateram asinhas e foram voar e voam muito bem! Mas eu perdi o meu emprego, e aí? E eu ficava ligando, atormentando elas: “Onde você está, onde você foi?”. “Mãe, eu fui...” Ela fazia faculdade em Marilia: “Fui pra Barretos, fui ver o rodeio lá”. “Mas como foi e não me avisou?” E eu ligava pra mãe de amigo, pra mãe de uma, até alguém chegar nela e ela me falar: “Olha, sua mãe está desesperada, dá um aviso”.
P/1 – E quando você resolveu mudar?
R – Quando elas falaram: “Mãe, vai procurar sua turma, mãe! Você é nova ainda, está tudo bem com a gente, se estiver ruim, a gente avisa! Se a gente precisar de alguma coisa, a gente avisa. Vai procurar sua turma, mãe. Você já ficou tempo demais cuidando da casa, da gente, vai ser feliz mãe”. Aí, eu falei: “Vou ser!” (risos) Aí, comecei. Eu faço caminhada no parque, vou ao museu, vou ao outro, entro aqui, entro ali, tudo de graça! Não pago nada. Tudo de graça, porque meu marido é pão duro.
P/1 – (risos)
R – Eu falo: “Me dá...”. Até hoje, ele que controla o dinheiro, “porque mulher brasileira gasta tudo o que o marido ganha com salão de beleza e roupa”. A mamãe falou! Mas eu não gasto nada, eu não faço nada no meu cabelo, as minhas unhas sou eu que faço, eu não gasto nada. Eu não sei o que é um salão de beleza. Eu faço meu pé, faço minha mão. Só corto o cabelo, e roupa, ele me compra tudo que eu quero. Se eu falar pra ele: “Eu quero dez vestidos”, ele compra dez. Mas se eu falar pra ele: “Me dá dinheiro pra comprar um vestido”, ele fala: “Não, eu vou comprar pra você. Eu quero ir junto”. Ele é controlador, ele gosta de controlar, de saber tudo, de estar por dentro de tudo.
P/1 – Irene, estamos chegando ao fim. Você tem algum sonho, que você queira fazer, aonde você quer chegar?
R – Eu acho que eu estou fazendo tudo que eu gosto. Viagem, eu já viajei muito, eu não tenho mais vontade de viajar. Se aparecer... Mas eu não tenho mais, eu já viajei bastante. Eu não quero comprar mais nada material, eu quero melhorar como pessoa, como ser humano. Eu quero servir de exemplo para as minhas filhas, eu quero que minhas filhas sintam orgulho de mim, e eu acho que elas têm. Eu quero que minhas filhas falem assim: “Eu quero ser que nem minha mãe, quero fazer o que minha mãe fez”. Eu quero que meus amigos falem assim: “Eu vou seguir o exemplo dela, porque ela está fazendo certo”. Eu queria ser um exemplo de pessoa, queria ser boa. Eu quero melhorar, cada dia mais. Eu quero ser uma pessoa boa, porque eu acho que o que a gente leva é só isso, o que a gente fez de bom. Que é muito bom ser bom. É bom para o bom e é bom para quem recebe do bom também. Eu acho muito legal ser bom. Eu quero ser boa, quero ser uma pessoa boa, uma pessoa que alguém olhe e fale: “Ela é uma pessoa boa. Ela tem erros, tem imperfeiçoes, porque é um ser humano, está cheia de erros. Mas ela está se esforçando, está dando o máximo pra ser uma pessoa boa. Pra ter paciência”.
P/1 – E você é uma pessoa boa?
R – Eu acho que eu sou. É difícil ser bom, não é fácil. Você tem que pegar uma linha e seguir aquela linha. É muito difícil você manter a sua linha, é muito fácil você fazer coisa errada. É muito fácil julgar os outros, é muito fácil você fazer coisa errada. Julgar é muito fácil. E, quando você menos espera, você está julgando. Quando você está julgando, você está sendo preconceituoso, e é muito ruim ter preconceito. Eu acho que a gente tem que sempre pensar na igualdade, na igualdade. No respeito. Paciência. E a gente tem que ir se moldando, a gente tem que ir se moldando enquanto a gente está viva. Acho que até o ultimo suspiro, a gente se muda. Mas a gente não muda ninguém não, é a gente que muda. É a gente que muda. A gente tem que se aceitar, se aceitar, aceitar o outro e se aceitar também, não se cobrar muito, não, porque ninguém é perfeito.
P/1 – E como foi contar a sua história aqui pra gente?
R – Eu estou sentindo que eu estou abrindo um livro. Um livro aberto. Tinha coisa que estava fechadinha, que eu nem lembrava mais, que nem a história do pão com açúcar, eu nem lembrava mais, mas mexeu tanto comigo! Mas se você pensar que tem gente que nem pão com açúcar tem, né?
P/1 – E como que foi ver todo esse filme da sua vida?
R – Eu acho que eu não mudaria nada, não, porque, se eu mudasse alguma coisa, eu ia mudar minha essência. E eu sou assim, eu sou isso que eu te pus, te coloquei aqui. Eu sou isso, não posso ser diferente. Se eu for diferente, não vai ser eu. Eu sou Irene de Lourdes Tezolin Yasuoka! (risos) Sou isso! Não daria pra ser outra coisa. Eu poderia ser uma doutora, como as minhas filhas, mas elas são por mim, elas são meu orgulho, minha vida. Tudo de melhor está ali. Eu sou o rascunho, elas são a obra-prima. E minha neta vai ser melhor ainda. Minha netinha é minha vida também. A continuação, a continuação da Irene está ali. Se vocês virem ela rindo, ela deita no chão pra gargalhar, de tanta gargalhada que tem naquela criança! Eu falo: “É a minha continuação que está aí, um pedacinho de mim tá aí!”
P/1 – Então, tá, muito obrigada!
R – Eu que agradeço.
P/1 – Obrigada por ter vindo!Recolher