Projeto Museu Clube da Esquina
Depoimento de Salomão Magalhães Borges
Entrevistada por José Santos Matos
Belo Horizonte, 17 de fevereiro de 2004
Realização Museu da Pessoa
Código do depoimento: MCE_HV002
Transcrito por Bruno Weiers
Revisado por Joice Yumi Matsunaga
P/1 – Então, boa tarde, ...Continuar leitura
Projeto Museu Clube da Esquina
Depoimento de Salomão Magalhães Borges
Entrevistada por José Santos Matos
Belo Horizonte, 17 de fevereiro de 2004
Realização Museu da Pessoa
Código do depoimento: MCE_HV002
Transcrito por Bruno Weiers
Revisado por Joice Yumi Matsunaga
P/1 – Então, boa tarde, seu Salomão.
R – Boa tarde.
P/1 – Eu queria começar a entrevista pedindo para o senhor falar o seu nome completo, data e local de nascimento.
R – Meu nome completo é Salomão Magalhães Borges. Nasci em Belo Horizonte no dia 12 de fevereiro de 1916. Completei, portanto, oitenta e oito anos agora, há dias.
P/1 – E, seu Salomão, o senhor poderia falar o nome dos seus pais e o que eles faziam?
R – Meu pai, José Joaquim Borges, era português. Nascido em Portugal, veio para o Brasil cedinho, ainda recém-nascido, e foi registrado em São Gonçalo, no estado do Rio. Os pais depois voltaram para Portugal e ele ficou em companhia de um amigo dos pais dele aqui no Brasil, ele era português. A minha mãe era filha de Mariana, natural de Mariana, Minas Gerais. Curioso, meu pai é português, a origem toda lusitana.
P/1 – O senhor sabe em que região de Portugal ele nasceu?
R – Ele nasceu na região mais pobre de Portugal que é Trás-os-Montes. Ele nasceu em Ribeira de Pena, Trás-os-Montes. Agora, minha mãe era filha de mameluco. É mameluco, sim, né? O pai da minha mãe era filho de negro e índio, compreende? Então, o lado do meu pai era tudo português, e o lado da minha mãe era negro e índio. É esse o aspecto. Minha mãe era Paulina Raimunda Borges e meu pai José Joaquim Borges.
P/1 – O senhor sabe como eles se conheceram?
R – Não, não tenho ideia, não. Mas eu sei que minha mãe se casou, primeiras núpcias, com catorze anos de idade, ficou viúva aos dezoito, e teve uma filha. Depois se casou com meu pai e se casou com meu pai levando essa filha, chamada Maria, Maria da Conceição. Mas isso deve ter sido por volta de... Meu pai nasceu em 64, final do século passado, século retrasado, século dezenove.
P/1 – O senhor tem mais irmãos?
R – Não tenho. Eu sou o último dos moicanos, o sobrevivente da família. (risos) Meus irmãos todos faleceram, meus pais.
P/1 – E eram quantos irmãos?
R – Nós éramos ao todo oito irmãos, alguns dos quais eu não conheci. Eram Henrique Kemper, Severino, Certório, que eu não conheci, Maria, que eu não conheci. Eu conheci Maria da Conceição, Onezildo, Henrico, cujo apelido era Itu, e Romualda, né, Aldinha. Éramos oito, mas com os quais eu convivi foram poucos, foram três ou quatro.
P/1 – Então o Borges era do seu pai. E o Magalhães?
R – O Magalhães é o seguinte: meu pai e minha mãe eram pioneiros do espiritismo kardecista aqui em Minas Gerais, aliás, por isso eles foram muito perseguidos, é bom que se diga isso, né, sofreram muitas perseguições, porque naquele tempo a intolerância era uma coisa medonha, né? Bom, mas isso não vem ao caso. O caso é que meu pai foi fundador de um centro espírita que existe até hoje, em condições precárias mas existe, Centro Espírita Luz Amor e Caridade. Meu pai fundou esse centro, e na primeira reunião pública do centro, eles receberam lá um espírito que se ofereceu para ser um diretor, o guia espiritual do centro. O nome desse espírito era Salomão Magalhães, que era o nome de um jovem médico, de Bagé, estado do Rio Grande do Sul, e ele se ofereceu para ser o Guia Espiritual. E então o meu pai em homenagem a esse médico me deu esse nome de Salomão Magalhães, e o Borges dele, né? Então é por aí. Por isso é que esse Salomão Magalhães teve uma reunião pública muito tumultuada, a reunião do centro espírita. E meu pai tinha pedido, aliás, foi contra vontade de meu pai que essa reunião se efetuou, porque ainda era cedo para uma reunião pública, pela fluência de maus espíritos em grande quantidade e foi exatamente o que aconteceu. Então o pau quebrou lá, muita gente foi tomada de um espírito mau e começaram a quebrar as coisas, tamboretada. E meu pai descreve isso num livro manuscrito que não chegou a publicar. Mas que ele escreve como foi isso, foi uma sessão muito tumultuada. E o Salomão Magalhães, que era o guia espiritual, não conseguiu segurar a barra dos espíritos maus que estavam lá conturbando a sessão. Foi quando apareceu, então, o Henrique Kemper. Foi um outro irmão que recebeu esse nome de Henrique Kemper. Aí apareceu lá esse Henrique Kemper que tinha sido professor do Salomão Magalhães, professor de Medicina. E o Henrique Kemper então debelou a rebelião dos espíritos e acalmou todo mundo. Então meu pai, em homenagem ao Henrique Kemper, deu ao meu irmão mais velho o nome de Henrique Kemper.
P/1 – Borges?
R – Henrique Kemper Borges. Mas isso aconteceu antes de eu nascer.
P/1 – Ele era mais velho?
R – Ele era mais velho. O mais velho dos irmãos, a mais velha era Maria, a filha do primeiro
matrimônio, a Maria era velha. O Hornezildo tinha apelido de H-O, o segundo, depois vinha o Henrique Kemper, depois eu e depois a Romoalda.
P/1 – E, seu Salomão, o senhor passou a infância em que bairro de Belo Horizonte?
R – Eu nasci e me criei no bairro de Santa Efigênia. Mas essa Santa Efigênia que hoje perdeu a grande parte de seu território, de sua jurisdição e passou a pertencer ao bairro de São Lucas, né? Então eu nasci exatamente na Rua Domingos Vieira, quase esquina com a Rua Maranhão, em Santa Efigênia. E me criei ali, nesse bairro, Santa Efigênia.
P/1
– Qual a lembrança mais antiga que o senhor tem lá do bairro de Santa Efigênia?
R – Olha, eu vou dizer a verdade, não é um negócio muito agradável. A lembrança mais antiga que eu tenho do bairro de Santa Efigênia foi uma noite em que eu fui picado por um escorpião, na ponta do dedo. Naquele tempo as casas eram assoalhadas e tinham porão, então os porões eram ninhos de escorpiões. O nosso bairro, em Santa Efigênia era assim, tinha muito escorpião. E em tempo assim chuvoso havia correção de formiga dentro de casa. E as formigas desentocavam os escorpiões, então eles saíam em procissão, às vezes, formiga carregando escorpião. E lá em casa aconteceu isso. Eu dormindo e um escorpião me picou a ponta desse dedo aqui. Então aquilo me envenenou, eu passei um mal do cão, né? Vomitei biles, evacuei, estive entre a vida e a morte. E naquele tempo não tinha remédio, não tinha soro como tem hoje, a minha rua era muito precária. Mesmo assim, o soro não garante, dependendo da extensão do envenenamento a pessoa morre mesmo, o escorpião é um bicho danado.
P/1 – É verdade, o escorpião mata um recém-nascido em uma hora.
R – É, então. Pois é o seguinte: eu quase morri. Minha mãe é que escolheu as batatas e folhas de dália. Ela que cultivava, tinha um jardim muito bonito lá em casa e ela tinha muita dália. E ela sabia que a batata da dália, o tubérculo da dália, não sei se o nome botânico é esse, uma espécie da raiz da dália, né? Mas é uma batata que dá. Ela pegava aquele tubérculo, cortava em fatias, e depois aplicava sobre a região atingida. Aquilo ficava preto na mesma hora, a dália puxava o veneno, o suco da dália, da batata de dália. Então, aí me tratou com isso, e eu vomitando sem parar, vomitava verdinho, né? Vomitando, evacuando, dor pelo corpo todo, né? Então é mais essa lembrança desagradável que eu passei um mal de cão. Depois aos poucos eu melhorei, só com a batata de dália que eu escapei dessa.
P/1 – O senhor devia ter mais ou menos quantos anos?
R – Eu era muito novinho, eu devia ter uns seis anos. Seis anos, seis, sete anos. Eu me lembro muito bem disso, isso me marcou muito, né? E eu sempre fui uma criança, na minha infância eu fui muito doente. Você escolha as doenças infantis que você conhece, você pode falar, eu tive todas elas. Eu tive, foi gripe espanhola, eu tive catapora, sarampo. Eu tive sarampo, catapora, escarlatina, gripe espanhola, tive caxumba, febre de tifo, tive um monte de coisa e escapei na infância.
P/1 – Escapou da gripe espanhola?
R – Escapei da espanhola. Eu tive a espanhola certinho, ela veio da Primeira Grande Guerra, guerra de 1914 a 1918, eu sou de 1916. Ela chegou ao Brasil e matou muita gente. E eu tive a gripe e escapei da espanhola. Então eu era muito doente. Era demais, doente demais, viu?
P/1 – E, Seu Salomão, de que o senhor, os seus irmãos, os meninos da rua brincavam nessa época?
R – Ah, era época dourada, né? Eram os tempos gloriosos da vida, a mocidade da meninada. A gente, praticamente, brincava mais na rua. Brincava de nego fugido, o futebol de rua era uma beleza, muito campo de pelada, ou na rua mesmo a gente jogava, né? Era futebol e pegador, nego fugido, essas coisas que a gente brincava. E tinha muita brincadeira de mau gosto, por exemplo, a gente fingia uma briga, a gente juntava um pau, um porrete com fezes, e simulava uma briga, e um passava no morro: “Eu vou te dar uma porretada!”. O outro falava: “Não faça assim, não!” “Então segura esse porrete aqui.” Quando o cara segurava o porrete, puxava assim e saía com a mão toda enlameada. (risos) É o tipo de brinquedo, né, a gente fazia tudo isso também. Mas o divertimento maior da petizada, da infância mesmo, era o cinema.
P/1 – Era o cinema?
R – O cinema era um negócio maravilhoso. Maravilhoso, maravilhoso, mesmo, em preto e branco, né? Cinema mudo em preto e branco. Era uma coisa apaixonante. Apaixonante. Principalmente pela música. As músicas que se ouviam no cinema eram clássicos, eram valsas de Strauss, valsas vienenses, executadas ao vivo, peças de câmera, violino, piano, principalmente violino e piano, violoncelo, aquela coisa. Era uma beleza, sabe? E curioso que tinha uma coisa, eu gosto de lembrar disso, tinha um negro. Tinha um negro assim, eu me lembro do Milton Nascimento, do Bituca, mas eu me lembro muito mais do que do Bituca. Esse negro trabalhava no açougue, ele era um pouquinho mais velho do que a gente, assim um ano, dois anos mais velho que a gente. Ele trabalhava no açougue e tinha assim a aparência de um símio, né? E ele tinha os olhos apertadinhos assim como de um chinês, e ele exalava um cheiro de gordura animal porque ele carregava aquilo, quase meio boi nas costas, ele tinha uma força danada. Agora, a habilidade dele pra reproduzir assobiando as valsas de Strauss, aqueles clássicos até, né, muitos clássicos, O Guarani de Carlos Gomes, mesmo Beethoven, Chopin, tinha muitos desses, eles tocavam tudo no cinema. Então eu fui criado, fui embalado por essas músicas maravilhosas tocadas ao vivo. E depois reproduzidas por esse meu amigo, que a gente chamava ele só de Zé do Açougue, né, assoviando: “Fuii, fuii.” (assoviando) Mas ele tinha um assovio maravilhoso, reproduzia tudo, tudo com habilidade incrível. Se ele fosse vivo hoje, ele estava bem de vida, né? Incrível.
P/1 – É? E, seu Salomão, o senhor lembra das primeiras vezes que o senhor foi numa sessão de cinema? Como é que foi o impacto para o senhor enquanto criança?
R – A primeira vez eu não me lembro, não. Eu lembro assim, tenho uma lembrança muito viva das matinês no antigo cinema Avenida, que ficava mais ou menos onde é a Associação Comercial ali na Avenida Afonso Pena, e era uma beleza, sabe? Aquilo ficava assim de menino, né? E a gente pintava, mas a gente pintava e bordava. No cinema Avenida tinha acho que dois, tinha a galeria aqui em cima e depois tinha mais uma embaixo assim. E tinha os pilares, né, tudo de ferro, tudo à base de ferro. A gente subia e descia (risos) aquelas escadas, comprava bala, bala bomba, era chamada de bomba, puxa puxa.
P/1 – Bala puxa, né?
R – Aquelas balas puxa assim, né, pra fazer guerra, era muito engraçado. E era guerra, antes de começar a sessão era guerra de bala, você precisava ver, era muito engraçado, viu?
P/1 – E que filmes passavam?
R – Ah, um programa de matinês de cinema... porque podia ir só em matinê, né? O programa de matinê se constituía do seguinte: era uma comédia em dois atos. Ato era ato mesmo, interrompia, passava uma parte depois a segunda parte. Uma comédia em dois atos, os atores mais... Esse Buster Keaton que está por aí ainda, ele tem um filho aí, né? Ele era um dos engraçados da época, dos cômicos da época. Era uma comédia em dois atos; um drama faroeste, western, em dois atos; e depois o seriado. Tinha também o jornal, o jornal. Tinha o jornal primeiro, depois a comédia em dois atos, o drama em dois atos, faroeste, e depois vinha o seriado com aquele aviso: “Final”, né? “Voltem na próxima semana para assistirem à continuação deste eletrizante filme”. (risos) Não, “desta eletrizante película.” Era isso. Mas era muito interessante. Então as músicas que encantavam, né, as músicas eram um encanto, uma beleza, né?
P/1 – E como é que os músicos estavam colocados dentro do cinema? Eles ficavam em que lugar?
R – Tinha um foco mesmo onde eles ficavam, uma pequena reentrância assim, eles ficavam ali, de maneira que eles tocavam ali.
P/1 – Então, quer dizer, o primeiro contato marcante que o senhor teve com a música foi no cinema?
R – No cinema. O cinema, a música. O cinema e também naquele tempo a minha irmã. Por exemplo, essa irmã por parte de mãe, ela cantava muito bem, ela tinha uma voz maravilhosa, uma voz forte, tocava violino. E ela cantava “Mudinhos” assim, lá na esquina se ouvia, tinha uma voz maravilhosa, era uma pessoa... E era muito comum naquele tempo as pessoas, as moças principalmente, tomarem aulas de música em casa, em domicílio. Havia grandes professores, José Pinto do Nascimento, o José Pinto de Souza, deixa eu ver se eu me lembro mais, José Pinto do Nascimento, Leonídio,
Leonídio, não, era Olegário, que era até avô da Maria, Olegário, grandes mestres de música, né? Aliás, os melhores músicos de Minas Gerais naquela época eram da Polícia Militar, e mais exatamente, do Primeiro Batalhão da Polícia Militar.
P/1 – Por quê?
R – Não sei por quê. A base da Orquestra Sinfônica de Minas Gerais, dizem que ainda é, eles eram os músicos do Primeiro Batalhão. Haviam músicos ali, incríveis. Inclusive, tinha um primo meu, primo irmão meu, eu filei o leite dele, né? Porque eu fui criado com leite de cabra. E eu filei do Salvador. Salvador era maestro, esteve cotado para ser regente, maestro da Sinfônica, tudo, depois por causa de política ele não foi, mas ele era mestre na clarineta, né, tocava demais, o Salvador Vieira. E havia músicos ali especiais, o Júlio Benício de Abreu, o João Soares de Souza que era primo da Maria, muito bom, o Sebastião Viana que está vivo ainda, o pai do... O Sebastião chegou depois a maestro da Polícia Militar, coronel. Sebastião Viana tocava vários instrumentos, era um músico de... até hoje é um grande músico, está vivo ainda. O filho dele é esse menino que faz aí, trabalha até com a Rede Globo, aí, como é que é o nome? Martins Viana.
P/1 – Ah! Aquele.
R – É o pai dele, é o pai dele. É o filho dele, filho do Dico. Sebastião Viana é Dico. Ele parece muito com o pai dele. O pai dele era um assombro, né, e cantava bem o pai dele. O pai dele tocava vários instrumentos, inclusive flauta, flautim, requinta, tocava piano e cantava maravilhosamente bem, o pai do Martins Viana. E até hoje eu guardo de memória uma valsa que ele fez, e ele mesmo que interpretava, ele mesmo cantava. Que era muito comum os bailes, as festas familiares. E os músicos militares tinham que ter as bandas que tocavam nessas festas, né. Dico era infalível, estava sempre nessas festas, tocando e cantando.
P/1 – É, e o senhor lembra de memória, é?
R – Guardei a música de memória até hoje. Uma valsa, né?
P/1 – O senhor sabe um pedacinho?
R – Oi?
P/1 – O senhor sabe um pedacinho?
R – Se eu sei? Eu sei ela toda.
P/1 – Ah, é?
R – É uma música assim, muito, muito... Como é que é o negócio? É assim: “Teu lindo olhar/ Me domina, me fascina/ É um olhar/ Cuja dor, procura, me domina/ Tens no olhar/ Não sei o quê de um amor/ Nasce no luar/ Na serenata de um cantor/ Teus olhos/ São mágicos/ Melancólicos/ E nostálgicos/ Só me traz muito/ Felicidade/ Junto de ti/ Na soledade/ Tens neste teu lindo olhar/ Um feitiço/ Que me chama/ E no santuário/ Foi tu para amar/ Inferno atroz em que tem minh’alma.” (cantando) Isso é do Dico.
P/1 – Que beleza!
R – Bonita a música, né? Naquele tempo o Dico deveria ter o quê? Ele não tinha vinte anos de idade, Sebastião Viana. É pai desse menino, desse Marquinhos. E eu sei a música até hoje.
P/1 – Mas o senhor tem uma boa memória, hein?
R – Tenho uma boa memória, “Teu olhar me domina, me fascina, é um luar cuja luz de cor púrpura me domina...” Eu guardei tudo. E ele escolheu uns termos assim elegantes, né?
P/1 – Ah, sem dúvida.
R – Muito bonita a música.
P/1 – E, seu Salomão, o senhor começou a estudar?
R – Eu vivi numa época, eu passei a minha adolescência, numa época muito conturbada, muito marcada, muito influenciada pelo militarismo. O que havia de bonito em Belo Horizonte eram as paradas naquela época, né? Porque as revoluções, teve a revolução de 22, teve a de 24, teve a de 30, teve a de 32. Meu pai era Capitão da Polícia Militar, Comandante do Esquadrão de Cavalaria, e os meus irmãos, o mais velho, o Onezildo era do exército, e outro sentou praça, era músico. Meus irmão tocavam violão, todos eles. Meu pai tocava violão, meu pai tem uma música. Quer dizer, eu atribuo a autoria a meu pai porque eu não conheço o autor, só vi meu pai. Meu pai e meus irmãos tocavam essa música. A música tem um chorus, é muito engraçada. Mas meu pai é que tocava no violão e cantava essa música, né? A música do sapo.
P/1 – Ah, é?
R – “Eu vivo triste como um sapo na lagoa/ E ando solto pela mata às escondidas/ Eu vivo triste como um sapo na lagoa/ E ando solto pela mata às escondidas/
Vou deixar a maldita serenata/ Para ver se dou um jeito à minha vida.“ (cantando) E vinha por aí afora, é muito interessante.
P/1 – Que beleza!
R – Meu pai. Meu pai tocava isso, tocava e cantava, né? E meus irmãos acompanhavam também, tocavam violão e cantavam. Essa música tem muita influência na minha vida, né? É assim uma das coisas mais gratificantes, mais agradáveis que marcaram mesmo até hoje, até hoje. Tem uma orquestra aí, não sei se você já ouviu. Um tal de André Rieu, você já viu na televisão?
P/1 – Â-hã.
R – Você já viu? Viu que tocam aquelas valsas de Strauss. E não perco, sempre que há um programa que eu consigo ver, eu vejo até o fim, André Rieu. Aquelas músicas todas tocavam no cinema naquela época.
P/1 – Além do cinema Avenida, né?
R – Ah, tinha o Cinema Glória. O Cinema Brasil, quando foi inaugurado foi um acontecimento, né, e acabaram com ele há muito tempo. Acabaram com os cinemas todos, né?
P/1 – Por que foi um acontecimento?
R – Ah, porque era uma coisa chique, né? Cine Brasil era o Cine Teatro Brasil. Ele era até, chegou a conhecer? Cine Teatro Brasil era um cinema muito bem feito. Muito bem construído aquele edifício ali da Praça Sete. Sabe onde é o edifício do Cine Brasil, onde teve o Cine Brasil? Sabe onde é? Internamente conhece lá? Ah, internamente ele era assim, tinha a forma meio de um anfiteatro, compreende? E acústica, todos esses detalhes eram tecnicamente empregados lá no cinema. Era um cinema moderníssimo naquela época, né, o Cine Teatro Brasil. Ali eles faziam baile de carnaval também na época de carnaval, faziam baile de carnaval lá na entrada do Cine Brasil. Era uma coisa linda.
P/1 – O senhor brincava o carnaval?
R – Eu? Eu fantasiava todo ano, eu juntava dinheiro. (risos) Porque aí é o seguinte, eu fui influenciado pelo militarismo, de tal modo que na Revolução de 32, eu me alistei. Com dezesseis anos de idade eu me alistei, abandonei, eu estudava no antigo Ginásio Mineiro, cujo reitor era o José Maria de Alkmin, folclórico político, né, José Maria de Alkmin. Eu estudava no Ginásio Mineiro. E o Ginásio, nessa ocasião era em frente ao Mercado Central. Ah, são muitas minhas recordações. O Mercado Central, por exemplo, pouca gente sabe disso, nesse tempo já era o Mercado Central, no tempo de colegial, estudante. Ele já era o Mercado Central, mas antes de ser o Mercado Central era o estádio do América. América Futebol Clube.
P/1 – Aaahhh.
R – Era um estádio bonito, gramadinho, todo pintado de verde, arquibancada de madeira. Era tudo em estilo inglês, sabe como é que é? Tudo copiado da Inglaterra. Eu lembro que tinha um estádio bonito, bonito mesmo. Dali é que depois ele foi pra alameda onde é hoje o Extra, o Supermercado Extra. Ali, pra mim, o América teve um bom estádio. As recordações vão surgindo, são tantas que eu até me confundo, né?
P/1 – Então, só relembrar, o senhor falou que o senhor se alistou com dezesseis anos.
R – Eu me alistei. E ali eu fui imediatamente a sargento. Na revolução eu fui sargento. Mas minha tropa, meu pelotão não seguiu, foi o primeiro civil, o vigésimo sexto batalhão. Todos os outros batalhões foram organizados por meu pai. Meu pai já estava na reserva e ele se apresentou, então deram a incumbência de organizar batalhões patrióticos, batalhões de voluntários. Então eu me alistei num desses batalhões, até escondido dele, quando ele [viu] assustou, eu estava lá no meio da tropa. (risos) Com dezesseis anos. Depois ele ficou danado da vida, minha mãe chorou muito. Minha mãe não queria de jeito nenhum, né? Mas atraído pela influência da época, né? Banda de música, a banda de música, hino nacional, parada militar. Aquelas paradas eram belíssimas, muito soldado marchando, hino nacional, a introdução da bandeira na tropa, aquilo tudo me arrepiava, eu ficava inflamado com aquilo e fui influenciado por isso tudo e acabei achando que tinha vocação pra militar. Então eu me alistei. Acabou a revolução, o batalhão foi dissolvido e eu já tinha abandonado os estudos mesmo. Então as aulas foram interrompidas em virtude da Revolução de 32, aquela coisa toda. E peguei, o que eu fiz, me alistei como efetivo na Polícia Militar, né? Em 1932 mesmo. Eu já entrei como soldado raso, aí eu falei: “Daqui a pouco eu vou ser coronel, né?”. Então eu sabia tudo, aprendi com meu pai. Administrativamente eu aprendi tudo de um batalhão. Eu era capaz, até hoje nas regras e parâmetros antigos, eu sou capaz de organizar um batalhão, até hoje. Militarmente e administrativamente, nos parâmetros antigos. Hoje está tudo modernizado. Basta dizer o seguinte... Um grupo de combate naquele tempo tinha o quê? Tinha um sargento, dois cabos, dez soldados, só tinha uma automática, um fuzil metralhador. As pessoas falam assim: “Fuzil metralhadora.” Mas não é, é fuzil-metralhador. Um fuzil-metralhador, e tinha ali dentro, o soldado tinha dois municiadores, dois remuniciadores, tinha os volteadores, que era pra proteger a arma automática. Então, pra você ter uma ideia de como é que era isso, um grupo era isso. Um pelotão eram dois, três grupos. Três grupos formavam um pelotão. E três pelotões formavam uma companhia. Três companhias, quatro companhias formavam um batalhão, então era aquilo tudo. Então eu sabia aquela coisa toda, administrativamente eu sabia lidar com mapa de tropa, mapa de intendência, mapa de rancho, folhas de pagamento, escalas de serviço, eu sabia tudo, tudo, tudo. E depois eu fui aproveitando. Isso é que me prejudicou porque eu fui aproveitado como militar na administração. Eu nem passei pela escola de recruta, passei pela escola de recruta mas eu já sabia tudo, eu já tinha feito a escola de recrutas como voluntário, né, no plano de voluntariado. Então eu já sabia aquela coisa toda, eu fui pra trabalhar na administração da companhia. E aí o sargento-chefe que era um primeiro sargento, coitado, era semianalfabeto, ele não sabia nada, né, nem o ginasiano, né, aquelas fórmulas do ginásio, e tal e coisa. O ginásio naquela época era uma coisa tão puxada. Pra você ter uma ideia, no segundo ano ginasial nós estudávamos só línguas: português, inglês, francês, latim e alemão, no segundo ano de ginásio. (risos) Não é brincadeira isso, né?
P/1 – É.
R – E a gente saía do ginásio e ia direto pra faculdade. Mas eu me entusiasmei com negócio de militarismo, abandonei tudo e achei que ia fazer carreira reto. Mas aí minha carreira militar foi um fracasso. Eu acabei fazendo um concurso de serviço público federal, muitos anos, depois de doze anos de frustrações, compreende? Perseguições, briguei lá com um comandante, ele falou: “Enquanto eu for comandante aqui você não entra no D.I., Departamento de Instrução, na Academia aí, né?”. Eu fui lá na Academia em 1935, quando fundaram a Academia, eu passei em segundo lugar, era pra ter feito uma carreira brilhante, chegado a coronel, e tal, mas tive um desentendimento com o coronel lá e ele falou: “Enquanto eu for comandante, você não entra aqui”. Aí ele cumpriu a palavra dele, mesmo depois que ele saiu, ele influenciou de tal modo que me perseguiram, cortaram minha carreira, eu saí deu uma banana, perdoe a expressão, dei uma banana a ele e caí fora. Fiz um concurso do serviço público federal, fui ser escriturário do serviço público, entrei para o Correio, do Correio arrumei o serviço no jornal e a vida foi tomando outro rumo, né? Só lamentei isso, que eu tive que parar de estudar. Parei de estudar. Por quê, eu fui estudar o quê? Eu fui estudar na caserna, eu fui estudar as matérias que constituíam a visão da admissão pra Academia, né? Os exames internos pra sargento, eu fiz todos. Mas depois, quando criaram a Academia eu tive que fazer curso. Então eu me dediquei a estudar as matérias pra fazer os cursos. Chegava lá,
passava, mas o comandante brigava comigo, não deixava eu me matricular, então não teve jeito, eu larguei aquilo tudo.
P/1 – Quer dizer que o senhor foi um autodidata, né?
R – Fui um autodidata. Eu parei por aí. Mas estudava muito, por que eu estudava? Estudava muito porque eu tinha que me preparar para os exames de admissão que não eram fáceis. Os exames era bem puxados lá na Academia, né? Então, depois estudei. Agora, sempre estudei sozinho, sem professor. Eu fiz um concurso depois, era funcionário há muito tempo, já estava quase no fim de carreira, e eu era redator do serviço público federal. Mas eu quero um emprego, um cargo mais bem remunerado. No caso, a melhor remuneração era naquele tempo, até hoje, é auditor da polícia federal. Não sei se é isso. Naquele tempo era agente fiscal do imposto de consumo, agente fiscal do imposto de renda, e depois o Jânio Quadros criou agente fiscal do imposto aduaneiro. Um concurso dificílimo. Eu fiz esse concurso, passei muito bem passado, graças a Deus. Fui nomeado e me mandaram pra Areia Branca, no Rio. E eu fico. Burro, bobo, né? Devia ter ido. Ganham muito dinheiro lá no norte.
P/1 – Areia Branca é onde?
R – É um porto salino, né? Um cara depois esteve lá e me falou: “Você ficava rico lá. Dá câimbra só de assinar guia de exportação”, cada guia de exportação de sal que o agente assinava. O agente naquela época lá era inspetor de alfândega. De cada guia ele ganhava não sei quanto, cem, não sei quantos cruzeiros. Igual tabelião, né? E eu falei sempre: “Podia ter ido”. Mas como é que eu ia sair daqui deixando onze filhos menores, deixando o Jornal, já trabalhava no Jornal e tudo, né? Eu pesei e medi, digo: “Ah, não vou, não”. Pedi pra tomar sem efeito minha nomeação, o Presidente da República despachou favoravelmente para posterior aproveitamento. Só que um ano depois eu estudei novamente a situação, eu falei: “Eu vou pegar esse emprego”. Não é? “Eu estou arruinando a minha carreira de funcionário público.” Digo: Eu vou pegar isso”. Mas quando eu requeri novamente, não me deram satisfação, recebi um memorandozinho do Ministério da Fazenda dizendo que as nomeações estavam suspensas, e que eu aguardasse melhor oportunidade. Estou aguardando até hoje. (risos) Até hoje. Não cumpriram nem o despacho do Presidente da República nos termos da petição, que era pra posterior aproveitamento. Aproveitamento nada. “Não, deixa pra lá.” Aí a vida evoluiu num outro sentido.
P/1 – Seu Salomão, então vamos voltar um pouquinho no tempo. O senhor vai contar um pouquinho da sua juventude, o senhor era assim uma pessoa que gostava muito de se divertir, de namorar, ir a bailes?
R – Olha, eu gostava mesmo, minha paixão, eu tinha três paixões: futebol, três ou quatro, tinha música, futebol, mas a música sempre associada ao cinema, então cinema e música, futebol e carnaval (empolgado). Era louco com o carnaval. Mas o carnaval não era isso não de hoje. O carnaval naquele tempo, as famílias participavam do carnaval. Havia um corso na Avenida Afonso Pena de carros abertos, naquele tempo os carros eram abertos, com capota. E as famílias se organizavam em blocos. Eu me fantasiava, todo ano eu ia pra avenida passear de corso na avenida, serpentina a valer, confete, um monte, né, e a condição essencial: quem se metesse a folião tinha que saber cantar as músicas todas. Eu sei as músicas todas do carnaval daquela época, daquele tempo. Eu cantava as músicas, tinha entusiasmo com o carnaval. O carnaval era uma coisa lírica, uma coisa bonita, era uma coisa linda. Era música, a gente brincava ao som das músicas. As músicas de carnaval do Lamartine Babo, esse pessoal todo, Ari Barroso, Mário Lago. Tinha músicas belíssimas de carnaval. Então minha paixão era futebol, cinema com música e carnaval.
P/1 – Quais eram os grandes sucessos aí do carnaval dessa época?
R – Ah, eu sou de um tempo muito antigo. Essa música que eles tocam até hoje, “Taí”. “Taí, eu fiz tudo pra você gostar de mim.” (cantando) Foi a primeira gravação de Carmen Miranda, essa música, quanto orgulho. Então eu gostava das músicas, eu gostava mesmo. “Jardineira”, “Ó Jardineira, por que estás tão triste?” “A vitória de ser tua, tua, tua, moreninha prosa.” E muitas outras, né?
P/1 – E o senhor gostava de se fantasiar de quê? Quais eram as suas fantasias?
R – Engraçado, o cinema tinha uma influência muito grande nas fantasias. Então eu me lembro que uma vez nós nos fantasiamos de aviadores, os dragões da morte. Teve um outro ano em que nos fantasiamos de, como é que chama, lanceiros da índia, foi um filme que passou. A gente economizava dinheiro. Nesse tempo eu já estava na Polícia Militar ganhando meu dinheiro e economizava dinheiro pra gastar no carnaval. Teve até um ano, muito engraçado, que eu, com medo de gastar dinheiro, pedi a um amigo meu, o Edimar, coitado, que Deus o tenha: “Você guarda o dinheiro pra mim, no carnaval você me dá”. Eu dei o dinheiro todo mês, ele meteu o pau no dinheiro e me deixou na mão no carnaval. (risos)
P/1 – E o senhor ficou sem fantasia?
R – Ah fiquei. Esse ano eu não pude ir no carnaval. Eu fui né?
Mas não.... Arranjei lá uma camisa qualquer da turma e a fantasia. Mas era muito bom o carnaval. O carnaval é o seguinte: tinha por exemplo, música, tinha Original Choro, os choros naquela época eram os precursores das escolas de samba. Só que prevaleciam os instrumentos de sopro, os metais, entendeu? E músicas, eles tocavam todas no carnaval. O choro na frente às vezes era uma banda de música inteira, né? Que os próprios músicos militares participavam. Então tinha o Original Choro que curiosamente era formado quase que por componentes negros ou mulatos, né, de cor, componentes de cor. Isso em uma época mais interessante do carnaval, entendeu? Teve o Infernal’s Choro, que era o pessoal mais ou menos da Savassi hoje, coincidentemente era o pessoal da Savassi, todo mundo fantasiado de demônio, e também com uma banda espetacular, né? E tinha também ainda o Mataquis(?), que era o clube de carros alegóricos, dirigido pelo senhor João Albano. João Albano acho que é avô dessa menina aí, dessa Celina Albano. João Albano era funcionário dos Correios. Então quando esses dois clubes se encontravam, esses dois blocos se encontravam nos choros, chamavam de choro, né, se encontravam na avenida, saía até fogo, um querendo ultrapassar o outro. Mas era muito bonito. Tinha também Os Rouxinóis do Décimo. Agora, eram conjuntos assim com quinhentos, seiscentos figurantes, muita gente, muita gente mesmo. E o povo não ia ver carnaval, o povo participava de carnaval. O povo que se postava, que não podia ver carnaval, ou por falta de dinheiro, por questão de idade, se postava ao longo da Avenida Afonso Pena, exigia que o pessoal cantasse, se não cantasse o pessoal: “Ei! Ta muito mole isso aí!” Vaiava, né, vaiava. Era um negócio muito engraçado. Mas era...
P/1 – E os choros passavam no meio da avenida?
R – Passava no meio da avenida. Não passavam no corso, não. Porque o corso ia até uma certa hora, depois acabava. Acaba o corso, porque também custava dinheiro, né? Pagava por hora os automóveis. E isso que era o carnaval de rua. Mas o carnaval de rua ia lá praticamente da Afonso Pena, lá em cima, até na... Nos tempos mais antigos ia até a Praça da Rodoviária, ali. Pouca gente sabe que ali foi um mercado. Foi um mercado. Foi o Mercado de Belo Horizonte, foi ali na Praça da Rodoviária. Depois foi a Feira de Amostras, a Rádio Inconfidência. Ali era uma área assim muito buliçosa, vamos dizer assim, né? Era quase que de meretrício, mas era de muito divertimento. Tinha o Paissandu, onde se realizavam grandes jogos de basquetebol, de coisa. E grandes exibições de artistas. Eu assisti, por exemplo, grande cantora internacional, lírica, no Paissandu. Ela veio ali. Veio a Belo Horizonte e deu um espetáculo no Paissandu. Eu marchei lá não sei quando, paguei e fui ver. Eu era atriz de cinema também, né? Espetáculo assim de carnaval no gelo, bonito, foi uma coisa bonita ali. A Rádio Inconfidência atraía também, tinha muitos bons atores, muito bons artistas, a Inconfidência. E tinha uma feira. Mas antes disso tudo havia o mercado. O mercado era da minha infância, eu me lembro do mercado.
P/1 – Ah, o senhor se lembra de criança?
R – Do Mercado Municipal. Depois demoliram o estádio do América e fizeram o Mercado Central, na Avenida Augusto de Lima.
P/1 – E isso tudo, o senhor era solteiro?
R – Era solteiro. A minha vida foi muito rápida, sabe? Eu passei a maior parte da minha vida cuidando da família e dos filhos.
P/1 – Então vamos contar um pouco da história da família. Quando e como o senhor conhece a Dona Maria?
R – Eu conheço a Dona Maria há muitos anos, muitos anos. Muito antes da gente começar a namorar, eu já a conhecia porque ela era vizinha e colega da minha irmã. Estudavam ambas no Instituto de Educação. E nessa época eu já era militar, eu já era da Polícia Militar, era soldado ou cabo, não me lembro bem. Mas ela ia muito lá em casa. Ia muito lá em casa pra estudar junto com minha irmã, e tal e coisa. Eu só cumprimentava: “Bom dia”, “Boa tarde”. Não tinha maior interesse. Um dia teve uma festinha ali, eram muito comuns essas festinhas, como eu já falei, de família, né? E nesse dia, eu não sei como, eu saí pra rua, quando eu voltei, assim por volta das nove horas, das onze, estava uma festinha lá em casa. Era aniversário de uma sobrinha minha. Botaram a vitrola, né, naquele tempo era vitrola, punha um disco lá, iam tocando aquelas músicas e o povo ia dançando. Naquela área ali tinha muito estudante de Medicina, eram todos conhecidos da gente. Eles moravam naquelas pensões na Praça Silvio Werneck, e eles eram todos conhecidos. Então estava o pessoal lá dançando, os estudantes, aquelas coisas. Eu cheguei, olhei assim, aí vi minha mãe do outro lado da sala, num quarto, né, e fez sinal pra mim. Eu cheguei lá, atravessei, cumprimentei todo mundo mais ou menos, cheguei lá, minha mãe falou pra eu dançar com a Conceição. Conceição é Maria. “A Conceição não quer dançar com ninguém, não. Mas com você ela vai dançar.” Eu: “Uai, vamos, vamos dançar.” Aí eu comecei a dançar com ela. Engraçado, eu nunca tinha parado pra conversar com ela. Começamos a dançar e eu comecei a conversar com ela. E ela me chamou e falou assim: “Ó, sua namorada está me olhando com uma cara muito feia”. Era uma menina que eu tinha namorado e tinha acabado com ela, eu tinha acabado com ela mas ela não tinha acabado comigo, entendeu? Eu: “Não, isso é impressão sua, e tal”. Aí começamos a conversar, engraçado, e a partir daquele momento eu adquiri a convicção de que tinha que casar com ela. Engraçado isso, né? E ela também. Tanto assim... E minha mãe sempre me falava assim: “Quando você tiver de casar, casa com uma moça igual à Conceição que é uma moça humilde, é uma moça trabalhadora, uma moça honesta, uma moça decente, direita, filha de uma família de pessoas muito boas”. Ela falou um negócio assim, né? E eu sem mais aquela, cheguei perto da minha mãe e falei assim: “Mãe, a senhora não falou que eu tinha que casar com uma moça igual à Conceição?”. “Claro, meu filho, quando você pensar nisso...” Eu já estou pensando, vou casar com a própria Conceição.” E a Conceição mesmo não sabia disso, não. (risos)
P/1 – Foi rápido, então?
R – Foi rápido, foi uma questão de, nós namoramos uns dois meses, já ficamos noivos e tal e daí a pouco casamos. Casamos, ela abandonou os estudos, o pai dela muito implicante, e tal. “Não, dois presuntos não cabem num saco só, não sei o quê, e tal. Ou casa ou estuda, não sei o quê.” Ah, digo: “Então vou casar”. Casamos. Aí esperei uns cinco anos pelo primeiro filho. Ela tinha dezoito anos e eu tinha vinte e dois. E ela era pouco desenvolvida.
P/1 – E, seu Salomão, conta, o senhor teve um curto namoro, mas como era o namoro naquela época?
R – Ah, era um negócio complicado. Namoro era assim, meu namoro era mais ou menos como... Não, tinha uns namoros mais avançados, e tal, eu também participei de alguns desses namoros nas minhas andanças. (risos) Eu também tive minhas namoradas, e até namoradas bonitas. Eu aprendi uma coisa nesse trato com mulher, eu aprendi o seguinte: as mulheres mais bonitas, sejam moças ou sejam, sei lá, prostitutas, são as mais procuradas. (risos) Você não tenha dúvida, então são as mais perigosas. Eu tinha um medo danado de doença venérea, né? Então até pra namorar eu era cauteloso. E eu tinha umas namoradas muito bonitas, mas eu tinha medo delas. Eu tinha medo delas. Elas falavam: “Vem pra casa comigo”. Eu falava: “Não, nada disso”.
Eu tinha uma namorada, tadinha, bonitinha, mas bonita pra burro, né, bonita, cheirosa, Iracema, mas bonita, bonita. E aparentemente era doida comigo, né? Mas eu não acreditei nisso, ela namorou o time do Atlético quase todo. (risos) Inclusive o Bazoni. Mas primeiro ela ela namorou o Kafunga. Mas primeiro ela me namorou. Mas antes disso ela tinha outros namorados, muitos. Mas os que eu me lembro, namorou o Kafunga, depois namorou o Bazoni.
P/1 – Era atleticana mesmo?
R – Atleticana. Mas era assim, sabe? Então a gente, em namoro, no meu tempo era assim. Eu ia pra casa da noiva logo depois do jantar e sete horas chegava lá. Nove horas a corneta tocava no quartel e elas iam dormir. E nem me convidavam pra sair, não, eu já sabia que era hora de sair. Quando dava nove horas, eu saía. O máximo que a gente conseguia era um beijinho no portão na saída, de despedida, né? E era assim escondido, era um negócio muito sério. Eu saía, quando saía tinha que ter o sentinela à vista, né, com, como é que chama? Patrulha. Era um patrulhamento danado, tinha sempre que ser com uma companhia, de pessoa adulta, um negócio assim muito sério.
P/1 – E vocês iam ao cinema?
R – A gente ia muito ao cinema. A gente naquele tempo gostava muito de filme do Nelson Ned. É Nelson Eddy, não é Nelson Ned, não, é Nelson Eddy, Grande cantor, grande barítono, né? Eu gostava muito de música, ela também gostava muito de música, né? Nelson Eddy e Jeanette MacDonald. Duas cantoras primorosas, né, só faziam filmes de música, né? Músicas belíssimas, né? E a gente fazia muito dueto, músicas de cinema, músicas de carnaval. Eu e Maricota, duetos dentro de casa,
nós dois cantando as músicas.
P/1 – O senhor lembra de alguma música? O nome dela?
R – Ah, por exemplo: Rosemarie, Rosa Maria, como é que chama? Eu não lembro, o nome eu não sei, não. Uma música do Nelson Eddy que era muito boa, com Jeanette MacDonald, nós assistimos ao filme, eu e ela, na companhia dela, então nós fazíamos o dueto em casa, né, imitando os atores. Como é que é? “Minha vida que parece muito boa/ Tem segredos que não posso revelar/ Escondidos bem no fundo de minh’alma/ Ra-ra-ra-ra...” Eu não lembro bem, não.
P/1 – Que beleza!
R – “Vive sempre a conversar.” “Vive sempre a conversar a sós comigo/ Uma voz que eu escuto com calor!/ Escolheu meu coração pra seu adubo/
E dele fez um roseiral em flor.” E a gente cantava isso em dueto, eu e ela. Cantava isso e outras músicas. Do Orlando Silva, nós éramos fãs incondicionais do Orlando Silva. Na minha opinião, o melhor cantor popular que o Brasil já teve foi ele, Orlando Silva. Orlando Silva era um assombro. E eu fui até muito infeliz porque conheci Orlando Silva quando eu já estava no Jornal. Ele era muito amigo lá do Tibúrcio, um amigo lá do Jornal. E o Tibúrcio me apresentou Orlando e tal e eu fiquei entusiasmado em conhecer Orlando pessoalmente, né? Mas Orlando já estava meio veterano. Eu fui cair na bobagem de falar com ele assim: “Olha Orlando, mas que coisa maravilhosa, como você cantava bem. Que voz bonita que você tinha”. (risos) Eu fui de uma inabilidade incrível, né? Ele falou: “O que é isso, Salomão? Eu sou um brilhante cantor. Eu ainda sou, minha voz hoje é muito melhor. Naquele tempo minha voz era uma voz juvenil, hoje minha voz é varonil”. Eu falei: “Orlando, você não recordou isso, não, aquele tempo você cantava melhor”.
P/1 – Ah, que beleza.
R – Aí ele ficou danado da vida comigo, Orlando Silva. Mas Orlando é o melhor cantor que eu conheci.
P/1 – Mas, seu Salomão, seguindo a linha cronológica, então o senhor teve o namoro, o senhor casou. O senhor casou em que igreja?
R – Santa Efigênia, onde eu me batizei, inclusive. Apesar de meus pais serem espíritas, eles nunca impuseram a ninguém, nem a mim a sua fé. E a gente tinha que casar mesmo na igreja, não tinha outro lugar onde casar. E eu casei na igreja. Casei na igreja e fui batizado na Igreja de Santa Efigênia. Nessa mesma igreja que está lá.
P/1 – E o senhor se casa e vai morar aonde?
R – Ah, morar era um problema. Porque no início eu fui com meus pais, num barracão na casa de meus pais. Eu ganhava muito pouco, né, soldado, sargento. Eu morei muitas vezes com meus pais no barracão na casa deles. Olha, a minha vida melhorou mesmo a partir do momento que eu construí essa casa, aqui. Enquanto eu paguei aluguel, eu sofri. Família muito grande, eu tive uma enorme dificuldade pra criar essa família aqui. Pra você ter uma ideia, eu trabalhava às vezes, numa época em que eu trabalhava no Correio, nesse tempo eu era escriturário lá no Correio, trabalhava no Diário da Tarde, de manhã cedo. Marilton, meu filho mais velho que levava comida pra mim na redação, saía daqui e ia levar comida pra mim na redação, meu almoço. Primeiro trabalhava no Jornal cedo, Diário da Tarde. Entrava ali pela Rua Goiás e fechava o Jornal, o Jornal era quente, não tinha esse negócio de preparar matéria de véspera, não. Era tudo na hora ali, redigido na hora ali. E era um sufoco. Dez horas a gente tinha o jornal pronto, já na oficina pra ser impresso, pra rodar o jornal. Onze horas, onze e meia, meio-dia o jornal rodando. Então era um sufoco o Diário da Tarde, né? E eu no esporte, naquele tempo eu estava no esporte. Uma coisa puxa a outra, né? A coisa era tão apertada que um dia, o presidente do Cruzeiro, isso já foi anterior, numa época anterior à minha, isso eles contavam na redação. ____ era editor de esportes e ele estava sem manchete, e ele estava desesperado por causa da manchete, né? Então ficou sabendo que o Presidente do Cruzeiro era o Mário Grosso. Tinha ido ao Rio, foi passear no Rio. Então ele botou na manchete: “Missão Secreta de Mário Grosso no Rio”. (risos)
P/1 – (risos)
R – No dia deu uma sacação danada, né? Era muita bobagem. E tinha um outro editor que foi o meu antecessor,
o Julio Melo, era veterano, foi diretor do Departamento de Árbitros. Julio Melo era muito engraçado, quando a situação estava que não tinha manchete nenhuma, o Julião Melo olhava pra nossa cara assim: “Vai mal a Aquática Mineira”. Essa manchete saiu umas mil vezes. O Jornal era muito de crítica naquela época, né, era muito engraçado. E eu então trabalhava no Jornal Diário da Tarde, Correio, depois saía do Correio e entrava no Estado de Minas. E antes de ir pra redação, muitas vezes, pra considerar o horário da manhã, teve uma fase em que antes de eu ir para o Estado de Minas eu ia para a Rádio da Inconfidência.
P/1 – Nossa!
R – Da Rádio Inconfidência eu pulava para o Estado de Minas, e saía do Estado de Minas meia-noite, uma hora da manhã. Então, eu saía de casa às sete horas e não via meus filhos, né? Então a convivência com a família foi mais difícil porque eu não via meus filhos a não ser no fim de semana, né, que eu tinha mais folga. Mas eu saía de manhã cedo, saía seis e meia, sete horas, chegava meia-noite, uma hora, duas.
P/1 – Nossa! O senhor trabalhava muito.
R – Trabalhei demais, trabalhei demais. E nunca fui poupado não. Falam assim: “Oh, funcionário público”. Olha, até hoje eu desafio no Correio, por exemplo, falo isso com certo orgulho porque eu era trabalhador mesmo, eu desafio quem tivesse ou quem tenha de memória mais serviços especiais do que eu no Correio. Eu era quase que um presidente permanente da Comissão de Balanço da Tesouraria, da Comissão de Balanço do Almoxarifado, dos inquéritos mais encrencados, processos, né, inquéritos administrativos, mais encrencados. Quem é que era o Cristo pra presidir? Era eu. O Francelino Pereira impetrou um mandado de segurança contra mim, Francelino era advogado. Impetrou um mandado de segurança contra mim. Ele quis tomar as rédeas do processo, um advogado brilhante, inegavelmente Francelino era um advogado brilhante, sempre foi muito inteligente, né? E no processo administrativo a gente admite um advogado, mas não é pra ele achar que pode tomar conta, não, né? Ele achou que por ser advogado podia tomar conta do processo. Então comecei a indeferir uma porção de petição dele. Quando ele vinha com as petições malcriadas, alegando cerceamento de defesas, e coisas e eu achava que era ofensiva a comissão e eu: “Indeferido, volte em termos,Querendo”. Despachava no mesmo dia pra ele o processo. E ele começou a ficar com raiva de mim. Ele estava pensando que eu estava ali brincando, ué?
P/1 – Pois, é.
R – Fazendo ele de besta, né, impetrou um mandado de segurança contra mim.
P/1 – Mas, seu Salomão, nós vamos falar dos Correios daqui a pouco. Eu queria voltar, pra gente pegar a constituição da sua família.
R – Eu volto.
P/1 – Então o senhor casou, o senhor ficou cinco anos sem ter filhos, aí teve o primeiro filho?
R – Começou o Marilton, está ali, ó. Aí veio a sequência dos filhos.
P/1 – Então, olha só, porque a gente não vai poder falar muito de... Mas vamos falar um pouco de todos. O senhor poderia descrever como era o temperamento deles enquanto crianças, cada um. Aí a gente vai fazendo a ordem. O Marilton, como é que ele era?
R – O Marilton sempre foi muito inteligente e muito voluntarioso. E com a vocação extraordinária para a música. Pra ter uma ideia, tanto quanto eu me lembro, em plena guerra, Marilton nasceu, estava em guerra ainda, ele nasceu em 1943 exatamente. A guerra terminou em 9 de maio de 1945, ele tinha um ano de idade. No primeiro aniversário dele, minha irmã era diretora da Receita Federal, ela fez uma festa lá em casa e encheu a casa de colegas dela. Então o Marilton ganhou muitos presentes. Mas o importante é que ele cantou pra todo mundo ouvir com um ano de idade a “Canção do Expedicionário”, com um ano de idade. Com aquela língua de menino, aprendendo a falar: “Por mais terra pa-pa-pa. (cantando) Por mais terra que eu percorra/ Não permita, Deus, que eu morra/ Sem que volte para lá.” Não é? “Você sabe de onde eu venho?/ Do índio, a terra que eu tenho/ Ta-ra ra-ra.” A Canção do Expedicionário Brasileiro, né? Ele sabia aquilo decor. Então aí dá uma ideia do que era o Marilton. O Marilton sentou num piano uma vez e começou a tocar. Não quero dizer que ele tocou primorosamente, mas tocou o piano, tocou uma coisa no piano. Ele pequenininho. Quando o Lô era pequenininho, foi antes ainda do Milton Nascimento, essa coisa toda, o Marilton tinha umas dez, doze composições feitas por ele. E ele cantava. Ele cantou no Clube dos Artistas TV Itacolomi na ocasião, estava lá Agnaldo Timóteo, uma porção de cantores do Rio, de São Paulo. A estrela foi ele. Cantando uma música dele, composta por ele e tocando violão, o Marilton.
P/1 – Com quantos anos?
R – Ele tinha o que aí gente? Ah, eu não tenho ideia. Se não tivesse dez anos tinha pouco mais de dez anos. Mas ele era uma coisa impressionante, o Marilton. E ele que influenciou esse pessoal todo pra música. O Bituca, Milton Nascimento, o Marilton tinha um conjunto chamado Gemini 7, que tocava no Círculo Militar, tocava no Iate. E o Bituca era crooner.
Muitas vezes o Marilton dividiu o cachê dele, o dinheirinho dele com o Bituca. Ele levava o Bituca com ele, ele cantava uma parte e o Bituca cantava a outra, como crooner lá no Gemini 7. Mas o Marilton que era o crooner do conjunto. Então ele tinha uma vocação extraordinária pra música, né? E tem até hoje. Até hoje ele vive de música, né? Toca em bar, esses negócios, aí. Não falta serviço pra ele,
não, viu? Ele está trabalhando aí e agora está mexendo mais com música eletrônica, né? Mas ele toca pra burro, o Marilton. O que caracterizava mais o Marilton era a vocação pra música e ele era muito voluntarioso, muito inteligente. Uma vez ele fez não sei o quê lá, fez alguma coisa errada e eu dei uns tapas nele. Dei uns tapas nele assim: “Você sabe por que você apanhou, moleque?”. (imitando bravo) “Eu sei, sim, senhor.” (imitando voz chorosa) Eu falei: “Por que foi? Por que você apanhou?”. “Porque o senhor é maior do que eu.” (risos) Ele jogou essa na minha cara. Esse era é o Marilton.
P/1 – E, seu Salomão, então vamos para o segundo aqui da fila, Márcio. Como era o Márcio?
R – Marcinho sempre foi miudinho, ranheta feito essa agenda e os brancos. Aliás, o Marcinho já nasceu branco. Ali na prova dele lá está constando que ele era branco. Ele nasceu com o cordão umbilical. Eu assisti o parto de quase todos os meninos aqui de casa, de quase todos eles, eu assisti. Eu só faltei ter menino também, porque eu ajudava mesmo. O cordão umbilical enrolado no pescoço, quase que ele morreu sufocado, né? E quando ele conseguiu se livrar, ele protestou, chorou, mas o que ele chorou assim de raiva. (risos) Ele nasceu e chorou de raiva. Esperneou. “Ihhhh” e coisa, com raiva do sufoco, né? O Marcinho sempre foi assim, muito genioso, mas danado de inteligente, danado de inteligente. Eu me lembro que a gente já morava no Levy, mas o Marcinho era, quantos anos ele tinha? Eu sei que ele era bem novinho, ele era mais novo que o Bituca, o Bituca era mais velho que ele. Então o Marilton me chamou a atenção: “Pai, o senhor precisa ver uma maleta que o Marcinho tem aqui debaixo da cama, tem coisas aí muito estranhas”. Eu falei: “O que que é? Me fala o que é. O que está acontecendo aí?”. Ele disse: “Nada, ninguém pode mexer nessa maleta aí porque ele não gosta”. Eu falei: “Eu vou abrir essa maleta”. Tirei a maleta debaixo da cama dele, no Edifício Levy, era uma porção de papelzinho dobrado, folha de papel, e aquela letrinha dele esquisita, porque ele é canhoto, né? E quando eu li as coisas dele eu me arrepiei. Eu falei: “Não é possível que esse menino está escrevendo assim”. Coisas belíssimas. Coisas belíssimas. E eu me lembro escrevendo um negócio de um valentão, um negócio assim. E ele usando expressões assim: “Surge um valentão provinciano”. (risos) Com a idade dele, né? “Gestos medidos, andando macio, latindo gírias/ Uma besta.” Vê se isso é linguagem de um... Quando eu li aquilo, ele descrevendo o tipo do valentão: “Surge um valentão provinciano/ Gestos medidos, andando macio, latindo gírias/ Uma besta.” Travessão, eu falei: “Peraí”. O Roberto Drumonnd nesse tempo era redator-chefe da Revista Alterosa. Então eu levei lá para o Roberto, falei: “Oh, Roberto, olha o que o meu filho anda escrevendo”. E o Roberto olhou e falou: “Não vem com essa, não. Você está escrevendo as coisas para o seu filho, falando que é ele.” Eu falei: “É ele, rapaz, deixa de ser bobo. Você acha que eu vou... Você está me insultando. Eu vou escrever coisa para falar que é do meu filho?”. Ainda tive essa expressão para o Roberto, falei: “Oh, Roberto, meu filho está começando por onde eu não cheguei ainda”. Então Marcinho é cabeça. Também ele é mais autodidata do que tudo, né? Ele começou a fazer faculdade, depois abandonou, largou. Ele não tinha paciência para isso, não tinha mesmo. Estudioso, tem uns três ou quatro livros publicados. Marcinho é danado.
P/1 – E então vem a menina, a Sandra.
R – A Sandra. A Sandra muito inteligente também. Muito inteligente, muito bem-humorada. A Sandra é muito inteligente. E a Sandra também... Eu guardo muito a imagem deles quando eles nasceram. A Sandra por exemplo nasceu, uma coisa muito estranha, né? Eu que estava acostumado com menino nascendo e tal. Menino nasce de olho fechado, né? Tem até aquela piada do japonês, conhece? A piada do sujeito que o menino dele nasceu com o olho fechadinho
e tal. E ele ficou preocupado, o menino não abria os olhos, ele levou no médico. Falou: “Doutor, eu estou preocupado com esse menino aqui, é meu filho, né? Ele não abre os olhos de jeito nenhum”. Ele falou: “Quem tem que abrir os olhos é o senhor, esse menino é japonês”. (risos) Conhecia essa piada? “Quem tem que abrir os olhos é o senhor, esse menino é japonês.” (risos) Mas a Sandra nasceu com os olhinhos estatelados, né, estatelados, encarando mesmo todo mundo. Encarando assim como: “Qual é que é?”. (bravo) (risos) Assim a Sandra. A Sandra muito bem-humorada, ria à toa, né? Ria à toa, ri muito, muito inteligente, com muita facilidade para português. É assim, muito boa. Muito boa, mas também pavio curto, viu? Ele é assim uma pessoa de atitude. Ele toma uma atitude e ela não recua, não volta atrás. Ela é danada. A Sônia.
P/1 – Seu Salomão, continuando, o senhor está descrevendo aí então o temperamento, o jeito de cada filho, o senhor vai falar um pouquinho sobre a Sônia.
R – A Sônia é o seguinte: a Sônia é a filha mais enrustida que eu tenho, quer dizer, é a mais calada, ela é supercalada. Não sei se ela guarda algum complexo. Porque a Sônia nasceu de face, compreende, ela nasceu de face. E ela chorou, assim, eu estou reproduzindo a cena que eu vi. Assim. Aqui, a saída, né, e ela aqui, ó, respirando e chorando. Antes de nascer, com a metade do rostinho, a boca e o nariz de fora. Respirando, é o que eu falei, respirando e chorando antes da hora. Respirando e chorando até a parteira conseguir tirar. Então, não sei se é por isso, mas deve trazer algum trauma psicológico, sei lá. E além do mais ela foi estrábica durante grande parte da vida dela. Um estrabismo convergente horroroso. Assim, sabe? Ela era uma menina feia. Hoje ela está mocinha bonita. Mocinha não, está velha também. É todo mundo velho aqui. Essa aqui é a família dos macróbios, todo mundo é velho aqui. Eu sou o mais velho, mas todo mundo é velho. Então ela fez uma cirurgia com o doutor, esqueci o nome dele, não podia esquecer. Ela fez uma cirurgia milagrosa. Numa cirurgia corrigiu o estrabismo dela. E aí, em sinal de gratidão, ela era muito complexada com aqueles óculos, ela rasgava os retratos, usava óculos também, sabe como é que é? Óculos grossos e tal, aquela coisa toda. Era muito complexada. Então, em sinal de gratidão pela cirurgia, eu e Antônio Tibúrcio Henriques, jornalista, Santa Luzia, muito meu amigo, o tal amigo meu do Orlando Silva. O Tibúrcio era de Santa Luzia. E ele toda dia de Santa Luzia, ele ia pra Santa Luzia a pé.
P/1 – A pé? (assustado)
R – A pé. E esse dia nós saímos do jornal meia-noite. Fechamos o jornal meia-noite e ele já tinha combinado comigo: “Você quer ir até Santa Luzia?”. “Eu tenho motivo pra ir, até. Em sinal de gratidão a Santa Luzia.” Que é a padroeira dos cegos, aquela coisa toda. E curou a minha filha, ela fez a cirurgia. “Então vamos.” Fui a pé para a Santa Luzia com o Tibúrcio. Nós saímos meia-noite do jornal sem beber nem água. O sacrifício era esse, não beber nada, nada, nada, nada, nada. Gastamos seis horas. De meia-noite chegamos lá seis horas da manhã. Eu entrei na igreja lá às seis horas da manhã, o Tibúrcio foi para casa dele lá, os parentes dele lá, e eu fui para igreja. A minha mulher já estava me esperando lá, ela sabia que eu estava indo. E eu cheguei na igreja e comecei a desfalecer de sede, de sede. Aí entramos num bar lá, cambaleando, meio tonto, meio tudo, tomei uma garrafa de guaraná, aí me refiz. Mas foi um sacrifício que eu fiz por causa da Sônia. A Sônia é muito inteligente, mas é muito fechada. E ela sofreu também depois um trauma, ela perdeu um filho. O menino morreu com um tumor canceroso no cérebro. Ali o retrato dele, pequenininho também. Tem um retrato grande dele aí.
P/1 – É professora?
R – Professora também. Mas é muito triste, porque eu acho ela muito triste, muito fechada. Sempre achei ela assim, muito triste.
P/1 – Seu Salomão, na sequência então vem a Sheila, outra menina?
R – A Sheila, coitada, nós estamos aqui, ela está sofrendo feito não sei o quê. Ela está no hospital. Ela foi operada ontem, uma cirurgia brava de coluna, tiveram que fazer um enxerto na coluna dela. A notícia que eu tive lá do hospital é que ela poderia estar recebendo visita, já está no quarto, mas está morrendo de dor e não estão deixando entrar ninguém. Está morrendo de dor, muita dor. Está recebendo transfusão de sangue. A Sheila é uma menina muito meiga, muito boazinha, muito corajosa. Ela levou a queda, ela fraturou, fratura exposta, teve que chamar o bombeiro para pegar ela. Ela morava naquele sobrado ali, aquela casa ali. Aquela casa era dela, depois ela vendeu a casa, dela e do marido. Ela não sabe explicar como ela caiu, ela caiu de uma altura assim, e a perna dela ficou dependurada. Dependurada a perna. Quase separado o pé. Aquela fratura horrorosa e ainda quebrou a espinha. Então ela curou da perna. E vamos botar
uma cama aqui pra ela, quando ela vier pra cá, vai recuperar aqui também. Então é uma menina muito meiga, muito corajosa. Eu não queria que ele fizesse essa cirurgia, não, mas ela estava ameaçada de ter paralisia com a vértebra quebrada, ela sentiu muita dor, então o médico achou que era melhor fazer a cirurgia, que é uma cirurgia pesada, difícil, oito horas de cirurgia, né, perde muito sangue, essa coisa toda.
P/1 – Sei. E, seu Salomão, então veio o Lô, como era o Lô quando criança?
R – O Lô é um outro casmurro, viu? Muito parecido com meu irmão Henrique. Meu irmão Henrique era acima de mim, muito parecido. Calado, muito calado, muito fechado, não sei como é que ele virou artista. Porque ele tem talento mesmo, ele gosta de música, é doido com música, né? Sofreu uma influência muito grande dos Beatles, essa coisa toda. Mas o Lô tinha umas coisas muito engraçadas, teimoso, ele é calado assim e teimoso. Pequenininho, na mesa, nessa ponta aí, ele tinha o quê? Tinha uns quatro, cinco anos. Nós mudamos para cá quando o Lô nasceu. Dias depois que ele nasceu, eu tinha acabado de construir a casa. E eu, naquele tempo, tomava um aperitivozinho, né, eu gostava muito de um rum, tomava um tanto assim, no almoço. Eu nunca tive hábito de beber, não, mas de vez em quando bebia. Botei lá pra eu tomar um tanto assim, ele pegou e virou, de uma vez só. (risos) Os olhos dele até lacrimejaram. E eu: “Menino, você tá doido?”. Bebeu. Da outra vez ele pegou um parafuso, não sei porque o parafuso estava lá em cima da mesa, ele pegou o parafuso, botou na boca e engoliu. E o guri ainda falou pra mim: “Engoliu”. Um parafuso desse tamanho, sem exagero. Fiquei apavorado, né, mas aí no outro dia saiu nas fezes. Deu sorte de sair. Um parafuso enorme. Teimosia, né, porque eu acudi a tempo: “Menino, me dá isso aqui”. Nada. O Lô, quase matei ele outra vez, num acidente doméstico aqui. Gravidez de Maria era sempre complicada, tinha que tomar muita injeção, aquelas injeções grandes, e eu fazia de enfermeiro. Enfermeiro geral. Um dia os meninos foram atacados de suspeita de... tinha um cachorro aqui, o cachorro endoidou, então todo mundo teve que tomar o soro.
P/1 – Anti-rábica.
R – Anti-rábica. E eu é que fiz. Quando eu falei com o médico lá no posto de saúde que era muito menino, muita gente: “Ah, o senhor leva, tem uma pessoa pra fazer?”. Eu falei: “Eu faço”. Eu disse: “Eu mesmo faço”. Uma caixa assim, ó, de injeção. Eu mesmo fiz. Quinze dias, quinze ampolas mais ou menos. Eu fui numa fila e...
E eu também tomei, né? Também, porque o cachorro mordeu minha mão. Cachorrinho. Então eu fazia as injeções, e tal, né? E um dia eu estava lá. Maria estava com o Lô no colo, Lô era pequenininho, era de colo ainda, devia ter o quê? Uns dois anos, três anos, estava começando a andar. Estava no colo, lá no quartinho que tinha lá, um quartinho de despejo que tinha lá, onde se passava roupa, né? E eu fazendo injeção nela. Acabei de fazer injeção nela, e eu fervi a seringa, naquele tempo era seringa, tinha que ferver, né? Chegou a conhecer isso?
P/1 – Ã-hã.
R – Eu fui virar a água, a seringa, e tal, mas aí desconfiei que não...
Acabou o fogo. Eu falei: “Vou ferver mais um pouco”. E virei assim o álcool na cubazinha, né? Quando eu virei, tinha uma chamazinha e eu não vi. “Bmmmm.” Mesmo que um lança-chama, no rosto do Lô. O Lô estava sentado no colo da mãe dele, e a mãe dele desse tamanho, que era um menino nascendo e outro, um atrás do outro, né? Ela desse tamanho assim e com o outro no colo, um dentro da barriga e o outro no colo, o Lô no colo. Então ele ficou em chamas, o Lô ficou em chamas, uma tocha-humana, né? A Maria, naquele instinto, mesmo, ela pegou um cobertor que estava lá assim e jogou igual um toureiro assim, jogou o cobertor igual um pescador. Jogou assim e o cobertor caiu em cima dele. Quando ele passou por mim, eu abracei ele, com chama saindo de todo lado, abracei, até me queimou o braço aqui. Abracei ele e apagou o fogo. Mas aí ele estava todo queimado, o rosto, sobrancelha, tudo queimado. Eu era muito prevenido contra esses acidentes assim, né? Eu tinha aquele unguento picrato de butesin, não sei o quê. Eu tinha um tubo cheio aqui em casa. Espalhei pelo rosto dele todo, e tal e aí levei ele para o pronto-socorro. Cheguei lá no pronto-socorro, eles falaram: “O que tinha que fazer o senhor já fez. É isso mesmo”. Aí amarram a mãozinha dele, ele teve que dormir com a mão amarrada, não pode tirar. Botaram uns panos lá, umas gazes e tal. Mas ele quase morreu. É porque não chegou a pegar fogo nele. No momento que ele começou a pegar fogo, aquela tocha-humana, ela jogou o cobertor assim e caiu em cima dele assim por inteiro, e quando ele passou por mim, que a tendência é sair correndo, né, sai correndo. Já li isso no jornal, teve um acidente lá uma vez, explodiu um bujão de gasolina e saiu um companheiro nosso lá, saiu correndo igual a uma tocha-humana. Eles pegaram ele tarde demais, ele morreu. Que não pode deixar correr, a pessoa quer sair correndo. E ele saiu correndo, pequenininho mesmo, saiu correndo. Abracei ele aqui assim.
P/1 – Que susto, seu Salomão.
R – Nossa Senhora. Então o Lô é isso... Muito fechado. Um episódio assim... e tudo teimosia. O parafuso, dava tempo dele tirar o parafuso e ele engoliu, o negócio que ele bebeu também, eu falei: “Não bebe não, que é isso?!”. Ele: “Glu, glu”. Bebeu. Teimosinho pra burro, viu?
P/1 – Então agora é o Yé.
R – Bom, o que caracterizou o Yé... Ele foi um menino assim muito doente, como eu fui também, né? O Yé teve até paralisia infantil. Passou muito tempo fazendo massagem, fazendo hidroterapia, fazendo fisioterapia com a mãe dele. Massagem nas pernas, ela fazia massagem uma meia hora, duas horas por dia de massagem ela fazia nas perninhas dele. Tinha umas perninhas fininhas. Hoje tá aí, um mocetão, um rapagão. O Yé era muito doente, teve muita doença. Quando ele era pequenininho tinha uma empregada aqui em casa que não regulava muito, foi dar a ele a mamadeira, não esfriou a mamadeira, não esfriou o mingau, o mingau desceu, ele meteu as unhas assim, arranhou, de ferir, a dor que ele estava sentindo com o negócio fervendo descendo. Ele era assim um menino muito doentinho, muito sujeito a pequenos acidentes, essas coisas assim, sabe?
P/1 – E o temperamento dele, como era?
R – Bom, feito um... mas uma docilidade. E hoje, admito que haja pessoa tão bondosa quanto o Yé, tão serviçal, tão prestimosa, não serviçal, tão prestimosa como ele. Mas, mais do que ele, eu não conheço; O Yé, se você falar com ele: “Ô Yé, não te conheço direito, mas eu estou precisando, você me leva agora a Sete Lagoas que eu estou com um problema lá sério e tal”. Ele fala: “Pois não”. Ele pega o carro e vai e leva. É desse jeito. É assim uma pessoa que não nega fogo, não nega. Uma pessoa impressionante, ele ficou assim. Não sei se é porque ele... Porque aqui em casa, em matérias de religião também, aqui é uma espécie de democracia também. O Yé, por exemplo, é evangélico. A Solange é daimista, o Marcinho é daimista, eu sou ecumênico. (risos) Eu sou ecumênico, eu sou mineirão, né, eu estou em cima do muro. Eu não quero é encrenca com ninguém, sabe? Depois eu acho que Deus é um só, esse negócio de ficar brigando por quanto à forma de culto a Deus, isso é bobagem, Deus é um só. A religião monoteísta, e é cristã? Então é comigo mesmo, não quero saber o quê que é. Esse negócio de ficar brigando, armando outra inquisição aí pra acabar com quem não é cristão e não é católico, não, isso não. Não é espírita. E eu tenho formação espírita, kardecista. E não tem nada a ver, não tem nada a ver. Acho que não tem nada a ver uma coisa com a outra. A minha mulher, Maria, é supercatólica. E eu admiro muito, gosto demais que ela seja católica. Ela não está podendo ir à igreja agora, mas todo domingo vem uma senhora aqui. Quando ela pode ir, ela ainda faz um sacrifício. Vem a senhora aí trazer a comunhão pra ela. De maneira que é isso, o Yé é uma pessoa que... Músico também, né? Ele é músico também. E não está mexendo com música, está trabalhando na Câmara Municipal. Vende aí umas coisas, é vendedor também. O Yé é um vendedor tão bom que ele vende papel. Ele pode vender geladeira no Pólo Norte. Ele é danado pra vender, viu? Mas ele é uma pessoa... Tem uma porção de filho, tem dois filhos do primeiro casamento, e tem sete do segundo, um monte de filho. Mas ele trabalha feito um danado. Ele não arrepia carreira, não, viu, é corajoso.
P/1 – Então, seu Salomão, agora é a Solange.
R – A Solange, nós estamos falando aí, é a filha mais bonita que eu tive. A Solange quando era menina mocinha era uma beleza fora de série. Ela era muito bonita. Depois ela descuidou, e outra coisa, uma das vozes mais bonitas que eu já ouvi na minha vida. Ela canta, ela tem uma voz linda, mas agora parou.
P/1 – Gravou um disco?
R – Gravou um disco, mas parou. Parou mesmo com a música. É daimista, mexe com Daime, Santo Daime. Uma pessoa muito caridosa. Ela que calça meu sapato, calça minhas meias, me dá remédio toda hora. É capaz de ela entrar aqui e trazer um copo d’água com remédio, é assim, sem eu pedir nada. Ela tem tudo anotado, o que o pai e a mãe precisa. É desse jeito. E quem visse como ela era, ela era assim uma pessoa muito desleixada, não ligava pra nada, assim meio perdida, né? Aí encontrou esse negócio do Daime aí agora e virou outra pessoa. Santo Daime. Então como é que nós vamos brigar com ela por causa dessa ou daquela religião? Os evangélicos fizeram isso com o Yé. O Yé ia chegar aqui, daqui a pouco ele está pregando aí. E o Yé é espetacular, é bom mesmo. A Solange virou essa pessoa também. E não tem jeito. E pra pai e mãe, filho não tem defeito, né? Não tem mesmo.
P/1 – Então agora a gente fala da Sueli.
R – Sueli é muito engraçada. Sueli, o nascimento dela foi muito complicado, porque antes dela nascer nós perdemos um filho, a minha mulher, Maria deve ter falado sobre isso aí. Ela perdeu o filho e ficou com o menino morto algum tempo na barriga, tal. Depois conseguiu tirar o menino no hospital, o médico ainda me avisou: “Esse menino vai sair aos pedaços e tal”. Nada, o menino saiu inteiro. E era a cara do Lô,
igualzinho ao Lô. Mas morreu. Ela teve septicemia e pneumonia e o menino morreu. E o médico avisou: “Não vai ter mais filho. A senhora descansa”. Ele ia receitar, ia prescrever qualquer coisa pra evitar filho. “Mas não vou prescrever nada porque a senhora não tem condições mais de procriar.” Conversa afiada. Daí a pouquinho veio a Sueli, né? Em questão de um ano e pouco depois veio a Sueli. E a Sueli, pra confirmar o nascimento dela, a gravidez, a gestação dela foi preciso fazer vários exames, e todos os exames deram negativo, não estava grávida não. Aí eu tinha um amigo, que Deus o tenha, o Zé Tomás, amigo e compadre. Passou aqui em casa, nós conversamos sobre o estado da Maria. “Nós estamos aqui numa aflição danada, Maria está grávida, acho que não está. Tá, não tá, não tá. Os exames dão negativo, mas ela está com os sinais positivos, não sabe”. Então nós dissemos: “Não, esses laboratórios aí quando fazem esses exames”. O exame naquele tempo era reação de Galli-Mainini. Consistia em extrair a urina da mulher, pegar a urina da mulher e injetar num sapo. Sapo sadio, né? Se o sapo começasse a ejacular. Curioso, né?
P/1 – Olha.
R – É porque a mulher estava grávida. Mas um negócio curioso, né? Reação da Galli-Mainini. Aí eu falei: “Eles pegam um sapo velho aí, um sapo que não vale nada, esses exames de laboratório não são confiáveis, não. Deixa que eu faço isso”. Ele era laboratorista lá na faculdade de Medicina e sabia mais do que o catedrático, sabia muito. Muito inteligente, mas era uma sumidade. Ele disse: “Prepara aí, eu vou arranjar um sapo”. Ele mesmo pegou o sapo lá num brejo perto da
casa dele. Sapão grande, sadio. E eu levei a urina lá pra ele. Levei até na escola de Medicina, ele trabalhava lá. Ele falou: “Compadre, eu vou fazer a reação aqui, depois eu te aviso”. Eu estava no Correio e tal, daqui a pouco ele ligou pra mim: “Oh, compadre, não deu positivo não, está dando positivo há muito tempo. Você quer vim ver? Vem cá. Você pode sair aí?”. “Eu vou agora, posso.” Corri, peguei um táxi até o laboratório de Medicina e ele ainda estava lá, o sapo ainda estava soltando. “É mais do que positivo.” Foi assim que confirmou a gravidez da Sueli, da Maria. Em relação à Sueli. Então a Sueli é uma pessoa assim muito prestimosa também, ela é enfermeira também, é outra pessoa que cuida da mãe dela zelosamente. As duas filhas que estão dentro de casa, elas não têm vida própria, vivem por conta da mãe e por minha conta. Estão cuidando da gente o tempo todo, as duas, viu? A Sueli e a Solange. É professora também, é formada. Todas elas são formadas.
P/1 – Seu Salomão, e o Telo?
R – Ah, o Telo é uma pessoa muito engraçada, muito brincalhona, muito alegre. E um músico... Ó lá, ó o Grammy.
P/1 – Aquilo ali é um Grammy?
R – É o Gremmy que ele ganhou. Ganhou com Milton Nascimento com a música, como é que chama? “Tristesse”. O Telo é uma pessoa assim extraordinária também, muito bom, filho muito bom, muito. Eu não tenho filho assim, genioso, bravo, insubordinado, respondão, não tenho mesmo, são todos muito dóceis. E o Telo não foge à regra não, viu? E o Telo tem a mesma vocação pra música, né? É doido da música.
P/1 – Desde pequeno?
R – Desde pequeno. Desde pequeno. Você conhece aquela música “Milagre dos Peixes”, do Bituca? Quem canta naquela música, pequenininho, ainda é o Telo e o Nico, os dois. A única parte cantada é do Telo e o Nico, eles que cantam. O Bituca é doido por ele, ele agora está tocando com Bituca. Mas ele é um menino muito bom, menino que eu falo, está com quarenta e não sei quantos anos. Então é menino, pra mim é tudo menino.
P/1 – Para o pai é sempre menino, né?
R – Mas o Telo é uma pessoa assim muito boa, prestimoso, muito dócil, sabe?
P/1 – E aí então tem no fim da fila o caçula que é o Mauro.
R – O Mauro é o, coitado, Mauro é um bom menino também, mas é meio bobão. É meio bobão assim, ele por ser o caçula acho que foi muito mimado, né? Muito mimado, ele é. É difícil definir o Mauro, viu? Porque ele é uma pessoa boníssima, mas ele é um menino bom, mas bom, que de ouro. Bom também. Basta dizer que ele agora está com o cunhado dele lá dentro da casa dele. O cunhado dele está com leucemia e quem está olhando o cunhado dele é ele lá na casa dele. E ele é sempre muito bom, muito prestativo, muito bom, muito alegre também. É músico também, compositor também. Ele é compositor. O Nico, Nico é compositor. Telo também é compositor. O Yé é compositor, tudo músico. Tudo arranha, toca um violão, toca piano, toca um cavaquinho, essas coisas. Eles tocam os instrumentos.
P/1 – Eu queria pedir, já que o senhor fez umas trovas pra todo mundo da família. E eu queria deixar para o senhor ler pra gente gravar.
R – A, pois é, eu tenho essas trovas aqui.
P/1 – Eu vou falar uns pedaços para o senhor se lembrar.
R – É um relato poético, digamos assim, das circunstâncias do nascimento de cada filho meu. E há um prólogozinho aqui em que eu falo da minha mulher, né? Eu digo assim: “Minha esposa que Deus deu/ É a mesma que eu quis ter/ Sem que houvesse valor meu/ Para tanto merecer/ Foram muitos desenganos/ para quem tanto se amava/ Esperando cinco anos/ Por um filho que faltava”. E faltou mesmo, cinco anos de frustrações que ela era doida pra ter filho. E às vezes a gente discutia, falava: “Não, eu não vou ter mais filho meu, sei que não nasci pra isso”. E eu falava: “Deixa de ser boba, mulher, nós vamos ter no mínimo oito”. Sempre falei. “Você é doido, você é dono da verdade.” “Então, eu sou o dono da verdade, nós vamos ter no mínimo oito”. E não deu outra, felizmente deu isso. Mas aqui: “Certo dia, afinal/ Marilton veio à luz/ Alegria sem igual/ pela graça de Jesus”. Quando Marilton nasceu foi uma festa, né? Eu chorei, chorei acho que mais que o Marilton. “Começavam de mansinho/ Tantas bênçãos do bom pai/ Mas chegou bravo Marcinho/ Já sem fôlego, uai!/” Porque o negócio do cordão, né? Tem que explicar porque ele estava sem fôlego. “Já sem fôlego, uai!” né? “Sandra, mais do que matreira/ veio de cabeça em pé/ A fitar mãe e parteira/ E a dizer: ‘Como é que é?’ ” Foi mesmo, o ar dela era de quem estava perguntando: “Qual é que é?”. “Sônia já veio magoada/ Respirou, até chorou/ Ela estava engastalhada/ Finalmente se livrou.” Custou a nascer também. “Sheila.” Essa que está no hospital. “Sheila, certa do caminho/ Não pensou em complicar/ E sugando um dedinho/ Já treinava pra mamar.” Ela nasceu chupando o dedinho. “Bem de acordo com seu nome.” É o filho da paz, né, Salomão quer dizer filho da paz. “Salomão não se apressou/ E chegou morto de fome/ Quando o dia despontou.” O Lô foi um negócio muito engraçado, né, no dia do nascimento dele, ele nasceu às seis horas da manhã mais ou menos, e na madrugada desse dia, quando eu fui chamar a parteira, eu sofri um acidente, arrebentei a cara, o carro arrebentou um poste. Eu cheguei em casa com dificuldade, diplomaticamente pra não assustar a Maria, né? E a polícia na porta, querendo me levar para o pronto-socorro. E eu sem querer ir. Foi um drama. Mas no fim deu tudo certo, o menino nasceu. Depois vem aqui: “Yé teve um lance mau/ Mas enfim soube vencer/ Teve que subir degrau/ Bem na hora de nascer.” Aconteceu o seguinte: O Yé nasceu treze dias mais ou menos depois da morte de meu pai. E no enterro do meu pai, o enterro saiu da casa do meu irmão, o Armezinho. Ele morava na Rua Brito Melo e tinha uma escadaria na porta, assim. A Maria escorregou e caiu. Caiu de bunda, caiu sentada no degrau, né? Com isso, o menino já estava perto de nascer, o menino desceu. Se a cabeça estava aqui pra nascer, baixou e forçou um pouco o osso da bacia, de tal maneira que quando o menino começou a nascer, tinha que passar num ressalto do osso da bacia, que baixou, né? A musculatura relaxou com a queda. Então a parteira falou: “Ele tem que subir um degrau aqui pra nascer, tá difícil”. E finalmente ela conseguiu meter o dedo e puxar ele e tirou ele, então eu botei aqui: “Yé teve um lance mau/ Mas enfim soube vencer/ Teve que subir degrau/ Bem na hora de nascer.” “A Solange, quem diria/ Chegou calma e valente/ Revelou sabedoria/ Ao mostrar-se paciente.” A Solange não deu trabalho nenhum, nasceu aquela meninona, mais de cinco quilos. Cinco quilos, aquela meninona bonita, né? E nasceu, não deu problema nenhum. “Sueli negaceava.” Sueli é a tal, né? “Tá grávida, não tá.” Sueli negaceava evitando aparecer/ Quando menos se esperava/ Resolveu ela nascer.” Porque também pra nascer foi complicado. Nasce, não nasce, nasce, não nasce, nasce, não nasce, de repente ela nasceu. (tosse) Ó o Telo. “Telo, muito desligado/ Respirou antes da hora/ Ficou dias internado/ Até ser mandado embora.” Ele aspirou o líquido amniótico pelo nariz e teve pneumonia por aspiração. Então teve que ficar internado, eles puxando o líquido de dentro do pulmãozinho dele, né? Até que ele melhorou, então mandaram ele pra casa. Respirou antes da hora. “Vir de bunda é má nota/ Mas é também sinal de sorte/ Pois o Nico e a Maricota/ Escaparam bem da morte.” O Nico, o nascimento dele foi uma tragédia. Tragédia grega. Ele veio de face, ele veio de bunda, pesando mais de cinco quilos. O médico só descobriu que era um menino na hora do parto. O que ele tomava por dois meninos, duas cabeças eram as nádegas do menino que estavam fora de lugar. E naquele tempo não se fazia radiografia de mulher grávida, né? E ela com a pressão baixa, e já tinha sido induzido o parto. A pressão da Maria estava sete, oito por cinco. E não havia como fazer cesariana. Então, o que aconteceu? Teve que nascer mesmo naturalmente e ele veio arrebentando tudo, né? De nádega. Arrebentou tudo. O útero, o colo do útero da Maria virou uma renda, toda dependurada, tudo estraçalhado. Lacerou totalmente o útero dela, arrebentou tudo. Então ele nasceu e ela quase morreu porque ela tomou muito sangue, teve que fazer muita transfusão de sangue, teve que fazer tamponamento, o diabo a quatro pra poder parar a hemorragia. Ela quase morreu e ele também. Custou a nascer, né? De bunda, como é que pode. Então foi assim. Agora tem umas trovas aqui dedicada ao Bituca: “Nesta árvore pousou/ Vindo lá do sul de Minas/ Negra ave que baixou/ Quase em todas as esquinas/ Em família tão maluca/ O seu número é doze/ É a palavra do Bituca/ Contestá-la, ninguém ouse/ Graças demos ao Senhor/ Natureza generosa/ Que nos deu com tanto amor/ Essa árvore frondosa.” Então está aí explicado. Cada um tem lancezinho. E isso aí eu fui testemunha ocular, eu presenciei tudo, né?
P/1 – E, seu Salomão, me conta, como é que era essa logística de cuidar de uma casa com tanta gente?
R – Aí é o seguinte: tem que fazer mutirão. Quem pode trabalhar, tem que trabalhar. Eu aos sábados, por exemplo, que eu tinha mais folga, era o dia da limpeza. Eu que dava banho nos meninos, todos, punha eles na fila e... As meninas já estavam menininhas, de calcinha. Então eu ensaboava eles todos e dava banho. Encerava a casa, ajudava a mulher na cozinha. Sem falar que eu era enfermeiro de todos aqui, né? Quando eu tinha folga, levava todos pra escola, ficava muito difícil. Às vezes eu levava pra escola. Mas não é fácil, não. Fazia um mutirão, a gente ajudava da melhor maneira possível. Agora, uma dificuldade pra criar tudo, difícil. Mesmo trabalhando no Jornal, no Correio, essa coisa toda, o salário não dava, né? E eu não queria que faltasse nada em casa. Então eu sempre fui doador de sangue, sangue universal, doava sangue pra todo mundo. E a partir de uma certa época, lá no Hospital de São Lucas eles começaram a me pagar. Não sei se foi algum convênio que fizeram com o banco de sangue e tal, começaram a me pagar. E me chamavam lá, doação de sangue, qualquer coisa, pediam, eu doava sangue. Sempre doei sangue de graça e tal. E começaram a me pagar pelo sangue que eles requisitavam, né? Também, me chamavam a qualquer hora do dia e da noite e eu ia. E naquele tempo o que se usava era direto, né, aparelho Jubé, o aparelho Jubé é uma bomba aspirante premente que ficava entre o braço do paciente e o braço do doador. E o médico que ia manejando aquilo. Levantava o êmbolo, levantava a bomba, né, sei lá, o pistão, né, puxava aquilo. Vai devagarinho, né, porque dava muito choque, paciente costumava ter muito choque com isso. Então eu doava assim feito um danado porque eu doava não só pra quem me pedia, mas também para o banco de sangue... E eu nunca falava. “Você está esgotado, Salomão.” E eu: “Não tô, não”. Nada, tinha mês que eu doava mais de dois litros de sangue. Ainda, pra completar tinha uma hemorragia gástrica, quase morri. Passei um mal danado. Mas por quê? Porque isso foi antes de eu entrar para o Jornal. Quando eu entrei para o Jornal, o salário do Jornal correspondia mais ou menos ao que eu ganhava com doação de sangue. Então parei de doar, parei de doar, não, parei de receber dinheiro da doação. Passei a doar sangue só pra quem me pedisse. Mas pra banco de sangue, que era pago, não ia mais não.
P/1 – Quando o senhor entra no Jornal, qual era o nome do Jornal?
R – É o mesmo nome, entrei no Diário da Tarde, depois passei para o Estado de Minas. Entrei em 1949. Em 1949 entrei no Diário da Tarde. Depois, não sei, acho que foi em 1952, por aí assim, eu passei ao Estado de Minas, eu pedi transferência para o Estado de Minas. Eu fui editor de esportes do Diário da Tarde, fui editor de esporte também do Estado de Minas, fui editor de
Esporte também no Estado de Minas, e no fim eu era editorialista, só fazia editoriais. Aí eu pedi pra sair, negociei lá, e tal. Mas não briguei com ninguém, não. Vi que não dava mais pra continuar lá no Jornal, não havia.
P/1 – O senhor chegou a trabalhar quantos anos, então, no Jornal?
R – Olha, no Estado de Minas eu trabalhei de 1928, quase trinta anos. Eu trabalhei até 1977, princípio de 78. Em 1978 eu saí, de 1949 a 1978. Depois fiquei dois anos praticamente inativo. Eu fiquei em São Paulo. Eu passei na rua do Estádio, depois fui pra Guarapari, depois fui pra São Paulo, quando voltei, eu trabalhei mais quatro ou cinco anos no Jornal de Minas. Nem pagavam nada não, fui secretário de redação lá no Estado de Minas, jornalzinho, só pra não ficar à toa. E atender ao convite do meu amigo Adival Coelho de Araújo, conhece o Adival? O Adival está velhinho também coitado, trabalha até hoje em jornal, não em jornal, mas em jornal da faculdade. Ele é advogado e foi secretário da faculdade de Direito, escola de Direito. Então trabalhei com Adival, ele era o chefe de redação, me pediu ajuda, eu falei: “Não, eu vou te ajudar”. Trabalhei uns tempos lá e depois larguei lá. Larguei no dia, engraçado, o último artigo que eu escrevi lá foi o editorial sobre a morte do Tancredo. Até botei um título assim: “O céu não podia esperar”, porque teve um filme.
P/1 – “O Céu Pode Esperar”, né?
R – “O Céu Pode Esperar”, né? O Céu não pôde esperar”, eu coloquei esse título. A última coisa que eu escrevi, em 1987, né?
P/1 – O senhor deve ter um mar de histórias dessa época do jornalismo, o senhor contar algumas pra gente?
R – Ah, tem umas coisas engraçadas, eu vou contar as coisas engraçadas.
P/1 – Isso.
R – Por exemplo: antigamente, não sei se hoje fazem isso, a gente tinha o futebol do pessoal de redação, só dos amigos, um time. E nosso time de jornalistas foi jogar em Santa Luzia, por que era a terra do Tibúrcio, prefeito amigo, e tal, então nós fomos lá em Santa Luzia jogar contra o juvenil, com um time lá do Santa Cruz, veterano lá do Santa Cruz. E, tinha um revisor chamado Ribamar, Zé Ribamar. O Ribamar era ponta-esquerda. Então, nós estamos, o jogo estava aceso. É o seguinte, chegamos lá, tinha um lauto almoço, todo mundo com fome, todo mundo preferiu comer antes de jogar, então muita gente começou a se sentir mal do estômago, né, comer e jogar futebol, né? E o Ribamar começou a passar mal dentro do campo, e pegou uma bola, escapou pela esquerda, e quando ele ia fazer o gol, sabe o que aconteceu? Vomitou na bola. (risos) E não fez o gol. Vomitou na bola. Teve um outro, aí foi o oposto, foi lá também em Santa Luzia. Nós fomos jogar lá um futebol, e, como foi? Esse aqui também foi o Ribamar? Não sei quem foi. Não sei se foi ele mesmo, foi um companheiro nosso, talvez tenha sido o próprio Ribamar, não me lembro, não. Eu estava jogando, não me lembro mesmo quem foi, só me lembro da piada que foi muito engraçada. Só que nesse dia, o prefeito falou: “Gente, vamos fazer o seguinte, tem muito almoço aí e tal, mas vamos deixar pra depois do jogo. Depois nós vamos fazer nosso banquete aqui, vamos comer”. E todo mundo com fome. Todo mundo com fome, fomos jogar futebol com fome. Então, bola pra lá, bola pra cá, dali a pouco, foi quem? Foi o Faísca, não lembro se foi o Faísca ou se foi o Oscar Nonato, tem um pouco de molecagem nisso, sabe? Ele caiu. Caiu lá assim. Todo mundo: “Epa, o Oscar machucou!”. “Chama o massagista!” Não tinha massagista, o massagista ali do Santa Cruz, não sei o quê, o bicho estava assim, quase desmaiando, né? Aí o massagista gritou: “Aê, traz o éter!”. Aí ele abriu os olhos e falou: “Não traz o éter, não, traz um pastel”. (risos) “Não traz o éter, não, traz um pastel.”
P/1 – Essa é boa.
R – Tem umas coisas assim, engraçadas.
P/1 – O senhor gostava de jogar em que posição?
R – Ah, eu era Armandinho, né, meio de campo, ali, fazendo uns golzinhos, mas só jogava ali. Eu fui até goleiro, né? Ah, um dia teve um negócio muito engraçado. Isso aconteceu comigo no antigo campo do Atlético. Antigamente os jornalistas que torciam para o América e para o Cruzeiro eram a coligação. Coligação América e Cruzeiro. A gente contra os atleticanos, né, os atleticanos eram a maioria. Então nós fomos jogar lá contra os atleticanos. Aí então, tá, tinha anos e anos que eu não botava um pé numa bola, né? Aí peguei uma bola lá e dei um drible, né? Esse Édson, 19, né, atleticano mesmo, né? A primeira bola que eu peguei, eu joguei o corpo pra cá e o 19 caiu sentado. (risos) Eu joguei o corpo pra cá, saí pra cá, o 19 caiu sentado. O Andreas do Cruzeiro quase mijou de rir. Ele achava engraçado, eu pançudinho, gordinho e driblando. Dali eu peguei a bola e fui driblando, driblando, driblando, driblando, driblando. Caí pra esquerda, eu gostava muito de cair pra esquerda, e controlando a bola com o pé direito, né? E fui pela esquerda, e fui, cortava um, cortava o outro, fui cortando, cortei o time todo deles, dos atleticanos. Quando cheguei dentro do gol, cortei o goleiro, o goleiro caiu nos pés, eu desviei do goleiro, aí a bola ficou assim, me deu aquela bambeza nas pernas. Eu não tinha mais perna. Não senti dor, nem cansaço, nem nada, bambeza. Perdi o jogo das pernas, então fui ajoelhando assim, o pessoal morreu de rir, né? Não fiz o gol.
P/1 – Não fez o gol?
R – Não fiz, não. E os meninos invadiram o campo, meus filhos, né? “Pai, o senhor está sentindo alguma coisa?” “Não, é só moleza nas pernas.” Não tive perna. Uma coisa muito engraçada. Uma vez nós, isso já foi mais recente, fui na posse da diretoria do sindicato, na primeira eleição do Virgílio de Castro Veado. E eu era da diretoria, muito chegado a esse grupo do sindicato. Eu era sindicalista mesmo. Fui tesoureiro, fui coisa lá. Depois fui presidente do sindicato, era sindicalista. Então, na posse do Virgílio, uma solenidade muito bonita na assembleia legislativa, [depois] da solenidade, todo mundo resolveu baixar no Montanhês. (risos) Não estava fazendo nada, estava diretoria toda, eu fui também. Já casado e tudo, mas vamos lá, tudo farra, né? Tomar uma cerveja lá no Montanhês, ver o pessoal dançar e tal, né? Era solteiro e tal e coisa, estava com disposição, vai dançar, né? Então o Fagundes Murta, você conhece o Fagundes Murta? Eu não sei se ele já aposentou, ele já deve ter aposentado. Fagundes Murta estava novo no jornal, José Fagundes Murta. O Fagundes Murta começou a olhar muito pra uma moça, estava havendo uma festa lá, né? Tinha umas bailarinas muito bonitas dançando lá, e tal, né? E a gente estava ignorando a natureza da festa, né? Aí, estamos lá dançando e tal. E aí o Fagundes olhou pra moça e falou: “Ah, ela está me olhando, sabe? Eu vou dançar com ela, o que vocês acham?”. Aí nós encorajamos: “Vai lá, vai lá, Murta, vai dançar com a moça. A mulher está te olhando, dando uma sopa, está querendo dançar com você, vai lá”. Então ele pegou e foi. Aí dançando e tal e coisa e conversando com ela. De repente ele assustou, parou de dançar. Olhou ela, cumprimentou ela, deixou ela no meio do salão e foi embora. “O que houve, Fagundes?” “Que nada, sô, aquilo é homem e é meu primo.” (risos)
P/1 – (risos)
R – Era uma festa de gay que estava rolando. (risos) “É homem e é meu primo.” (risos) Por isso é que o cara estava encarando ele. “Aquilo é homem e é meu primo.” Coisa muito engraçada, né?
P/1 – (risos) Festa gay (risos)
R – Ai, ai. (risos) E a diretoria toda lá, mal sabendo, né, porque quem que ia em festa de gay? É porque todo mundo já tinha tomado umas e outras, então vamos lá no Montanhês, né? Muita gente nem conhecia, o Montanhês, o Murta nem conhecia o Montanhês. Eu já conhecia do meu tempo de solteiro e tudo, né? Então nós fomos lá. “Vamos lá para o Montanhês, não tem nada demais.” Tomamos uma cerveja, batemos um papo e tal, vamos embora. Mas aconteceu essa, morremos de rir. José Murta, né? No jornal tinha muita coisa engraçada.
P/1 – É, tem um mar de histórias do jornal, né? Mas eu queria agora dar um pulo no tempo. Vamos falar um pouquinho da música agora. A gente podia falar um pouco do surgimento do Clube da Esquina, que surge aqui na sua família, na sua casa. E essa coisa começa então, lá no Edifício Levy?
R – Não, não. Começa antes disso. Antes do Edifício Levy, o pessoal já mexia, já tocava violão aqui, antes do Edifício Levy, o pessoal já tocava violão, cantava e tal e coisa. Um pouco antes, né,
já era um ponto de reunião da rapaziada, dos meninos, dos adolescentes aqui do bairro ali nessa esquina. Paraisópolis com Divinópolis. Mas ainda não tinha essa denominação de Clube da Esquina, não. Negócio de Clube da Esquina começou quando nós voltamos do Edifício Levy e que ficamos conhecendo o Milton Nascimento. O Bituca morava numa pensão lá num dos andares. Nós morávamos no décimo sétimo e último andar do edifício, e o Bituca morava numa pensão lá e tal. E eles se irmanaram, ele e os meus filhos ficaram como irmãos, né? Principalmente o Marcinho e o Lô. O Lô era muito pequeno, mas o Marcinho e o Marilton eram os que mais lidavam com o Bituca musicalmente, né? E o Bituca passou a frequentar nossa casa, e às vezes dormia lá, e tinha uns episódios às vezes engraçados e tal.
P/1 – Por exemplo.
R – Por exemplo, Maria até já contou isso, ele bebia, de vez em quando tomava umas pingas, voltava bêbado. Um dia estava lá escorando o edifício, Maria chegou. Maria dava aula, eu fora de casa trabalhando no Jornal, né, e Maria também fora de casa, que ela estava lecionando à noite. Ela chegou, encontrou ele na porta do edifício segurando o edifício lá, na rua, né? Então ela ajudou a segurar o edifício e tal e ele falou: “Tá caindo, Maricota, tá caindo o edifício”. Aí ela aguentou mesmo, nossa, segurou, segurou: “Acho que firmou agora, vamos pra dentro que acho que agora o edifício está firme”. Então essas coisas assim, né? De vez em quando a gente tinha que dar um banho nele pra ele melhorar, né, das cachaçadas. Mas não era só ele que bebia, não, os outros também bebiam. O Marilton, o Marilton tinha um tal de Gemini 7 que era um conjunto muito bom, um conjunto de dança, e Marilton era o crooner. Ele muitas vezes dividia o cachê dele com o, o ganhando dele, com o Milton, né? Tocaram juntos lá no Evolusamba e outros conjuntos musicais lá do Edifício Maletta. Era um edifício que tinha uma movimentação muito grande de músicas, barzinhos, essa coisa, né? Mas aí, quando nós voltamos pra cá, Maria tinha a escolinha
e acabou com a escolinha. A gente tinha mudado para o Edifício Levy pra dar lugar à escolinha, né? Maria cismou de fazer a escolinha e tal, o sonho dela era ter uma escola própria. Mas aí nós voltamos aqui pra Santa Tereza e aquele movimento aí na esquina aumentou, né, de músicos, da influência do Bituca, do Bituca e do próprio Marilton lá no Levy. O movimento aqui aumentou também de músicos, tocando violão, aquela coisa toda. E já muito tempo antes de se falar em Clube da Esquina, aquilo era um chiste familiar, esse negócio de Clube da Esquina era uma brincadeira familiar, às vezes Maria ficava nervosa: “Cadê o Lô, Lô sumiu, e o Marcinho?”. Eu falava: “Não Maria, estão ali na esquina”. Aquilo lá era um clube. “Ah, já sei, esse maldito Clube da Esquina.” Foi Maria que arranjou essa expressão, ela dizia assim: “O maldito Clube da Esquina. Os meninos não saem de lá, não sei o quê”. Então eles ficavam tocando. Até que um dia, nesse piano aqui, o Bituca estava aqui em casa, e o Lô foi mostrar a ele uma musiquinha que ele tinha feito aí na esquina, né, no violão, o chamado “Clube da Esquina Número 1”, o Bituca se encantou,
burilou a música, e ajudou, melhorou a música e tal e coisa, o Marcinho também estava aqui entusiasmado. Marcinho completou a música, começaram a tocar e a cantar a música, solfejar, e aí o Marcinho: “Péra aí, nós vamos botar uma letra nisso aí”. E com a mão esquerda num pedaço de papel ele começou a escrever um poema que é aquele mesmo poema que está lá na esquina. E escreveu aquilo às pressas, houve um detalhe até, a luz apagou, acabou a energia elétrica, então tiveram que acender uma vela e alguém segurou a vela e o Marcinho acabou de escrever a música. Era Maria segurando a vela, Maricota segurando a vela, e o Marcinho escreveu. Então foi assim que surgiu o negócio do Clube da Esquina. Aí na hora mesmo eles botaram o nome “Clube da Esquina”. Foi assim que surgiu essa brincadeira. Era uma brincadeira, um chiste, uma brincadeira familiar.
P/1 – Seu Salomão, o senhor está com a sua memória musical tão afiada, o senhor não podia cantar um pedacinho do Clube da Esquina?
R – Eu não sei. Sinceramente, eu não sei, um negócio assim: “Noite chegou outra vez/ Os homens de novo na rua estão/ Todos se sentem mortais/ Dividem à noite a lua com a solidão/ Nessa esquina a gente cantava.” (cantando) Não sei como é que é, não.
P/1 – É isso mesmo.
R – É isso mesmo, né? É mais ou menos isso, eu não sei a letra, esqueci a letra. Toda.
P/1 – Das músicas deles, quais o senhor se lembra?
R – Hein?
P/1 – Das músicas aí dos seus filhos, quais o senhor se lembra mais assim?
R – O que eu gosto mais, eu gosto muito do Clube da Esquina, mas eu não canto. “O Trem Azul”, uma música assim que tem uma letra até pequena. “O Trem Azul”, “O Girassol”, são as músicas mais bonitas deles. O Lô tem umas músicas muito bonitas nesse novo disco, tem umas músicas muito bonitas. “Isso quer dizer amor” também, né?
P/1 – Â-hã, bonita né?
R – Bonita a música, e do Trem. Mas eu perdi muito contato com música. A idade vai chegando, a gente vai perdendo o rebolado, o jeito, né? Mas eu gostava, gostava muito das músicas. Você sabe, eu vou te revelar uma faceta: eu fiz uma música pra Maricota, em homenagem à nossa vida. É uma musiquinha pequenininha com um poemetozinho em homenagem a ela, no dia do aniversário dela eu fiz. É assim, deixa eu ver se eu lembro, “Uma estrela brilhou/ No escuro céu/ De minha vida/ Era um claro sinal/ De nosso amor/ Minha querida/ Luz que ilumina/ Nossa lida/ Nossa trilha/ Luz que ameniza/ Qualquer dor/ Qualquer ferida/ Luz que se ampliou/ E se espalhou/ Pelo tempo afora/ Novas gerações/ Mil emoções/ Eterna aurora/ Uma estrela brilhou.” (cantando) Essa musiquinha eu fiz pra ela.
P/1 – Que beleza! Há quanto tempo?
R – Ah, tem muito tempo. Tem muitos anos que eu fiz essa música. Não, não tem muito tempo, não, tem uns quatro ou cinco anos que eu fiz. Acho que foi quando ela fez oitenta anos que eu fiz essa música. Acho que foi, eu não tenho certeza, não.
P/1 – E ela gostou?
R – Ela gostou demais. E os meninos gostam, tocam isso no piano, cantam. O Telo é que gosta mais, né? Outro dia nós fomos lá pra Guarapari, eu tenho uma casinha lá em Guarapari, e o Telo costuma levar o tecladinho dele lá. Diz que é o hino de lá de Guarapari, essa música. Todo mundo cantando: “Uma estrela brilhou/ No escuro céu/ De minha vida/ É um claro sinal/ De nosso amor/ Minha querida/ Luz que ilumina/ Nossa lida/ Nossa trilha/ Luz que ameniza/ Qualquer dor/ Qualquer ferida/ Luz que se ampliou/ E se espalhou/ Pelo tempo afora/ Novas gerações/ Mil emoções/ Eterna aurora”. É bonitinha.
P/1 – É bonita.
R – O poeminha é bonitinho. A música é uma musiquinha simples. Mas eu fiz essa musiquinha pra ela.
P/1 – Ô seu Salomão, vamos voltar ali, o senhor estava contando que eles fizeram a música do Clube da Esquina, aí o senhor ouviu, o que o senhor achou?
R – Eles fizeram a música. Eu achei uma maravilha, fiquei encantado com a música, fiquei encantado. Eu sempre fui um fã de carteirinha dos meninos aqui, do Bituca, do... O Bituca uma vez sentou aqui nesse piano e começou, ele ainda não tinha a fama que ele tem hoje, e começou. Porque é assim, as músicas vão amadurecendo, né? E começou a tocar uma sequência que ele tem, muito bonita, que ele depois incorporou a uma música dele que eu nem sei qual é. É um negócio assim: “Tan tan, tan tan, tan tan, tan tan tan tan. Tan tan, tan tan, tan tan tan tan. Tan tan tan tan, tan tan tan tan, tan tan tan tan. Tan tan, tan tan, tan tan, tan tan, tan tan, tan tan, tan tan, tan tan, tan tan, tan tan”. (cantando) Você conhece isso, né? Então essa música, o Bituca fez aqui. Quando ele acabou de tocar aquilo ali, não foi a primeira vez, ele já devia estar fazendo essa coisa, né? Eu falei: “Oh, Bituca, isso aí é clássico, você está abrindo uma clareira de erudição na música popular brasileira. Isso é bonito demais”. Ele falou: “Você acha?”. Eu falei: “Ah, se acho. Acho sim, acho lindo isso. Isso é música... Isso é clássico. Você está abrindo uma clareira de erudição na música popular brasileira”. Então o Bituca sempre estava aqui, volta e meia ele estava aqui tocando, brincando com os meninos, rindo. Porque o Bituca é muito alegre, ele é um folgazão, alegre e gozador, brincalhão.
P/1 – Gozador?
R – Aaahh! Brincalhão. Ele brincava com a Sueli, o apelido dela é Dodoti. Mandava ela cantar aquela música: “A índia”. “Ra-ra-ra-ra-ra-ra-ra-ra-ra-ra, ra-ra-ra-ra-ra-ra-ra-ra-ra-ra”. (cantarolando) Então ele mandava, e ia subindo o tom, e no final ela se esgoelava e não saía mais nada, né? E ele: “Tcha, thca, tcha”. Morria de rir. Ele fazia de maldade, ele ia subindo o tom.
P/1 – E, seu Salomão, o Marcinho contou que fizeram uma audição aqui quando o disco do Clube da Esquina ficou pronto, fez uma audição aqui cheia de músicos, veio todo mundo ouvir o resultado do trabalho, o senhor se lembra disso?
R – Eu me lembro vagamente disso, sei que houve isso, talvez eu até não estivesse presente, né? Mas eu me lembro que realmente já houve isso. Houve essa inauguração da música, né? Essa primeira audição.
P/1 – E como é que foi esse impacto? Eles começaram a tocar, fazer sucesso nacionalmente, como é que o senhor sentiu isso? O senhor que viu isso tudo nascer.
R – Olha, eu sempre fui muito desconfiado com esse negócio de música. Eu acho que é uma carreira muito bonita, a pessoa tem que seguir a sua vocação, a pessoa tem que ser fiel às suas origens e aos seus ideais. Eu acho que a pessoa tem que ser fiel às suas origens e aos seus ideais. Então eu entendia assim, já que eles gostam de música, e estão fazendo sucesso, um relativo sucesso, tá bom. Mas eu sempre tive muito presente comigo o seguinte: o público brasileiro, em termos gerais, ainda não está muito preparado pra boa música, não, ele é mais chegado a essas músicas modernas que tem aí, a pessoa começa a gritar, falar, diz que é música. Não tem nada a ver. Agora, há exceções, né, quando as músicas são realmente fora de série, muito boas da MPB, você gosta, o público gosta, né? Músicas de Caetano, Gil, esse pessoal todo assim, Roberto Carlos. Roberto Carlos é um Martinho da Vila mais romântico, né? As músicas dele são sempre parecidas umas com as outras. Martinho da Vila é a mesma coisa, são todas parecidas, e ele é especialista em samba, né? Martinho acho o máximo, um colosso, como acho o Roberto também.
P/1 – E, seu Salomão, muitos músicos começaram a frequentar a sua casa, o senhor pode contar umas histórias aí desses tempos?
R – Ah, sim, porque aconteceu o seguinte, nas gravações, por exemplo, não podia faltar nunca um Toninho Horta. Teve um festival, antes desse negócio do Clube da Esquina, foi até depois de surgir a música “Clube da Esquina”, teve um festival de música aqui, organizado por uma empresa jornalística de televisão e rádio aí, __ era Força Nova de Comunicação, não sei. E eles fizeram muito escarcéu com aquilo, muita propaganda e veio muita gente do Rio, de São Paulo cantar aqui, participar desse concurso, desse festival. E foi um negócio assim muito interessante. Marilton inclusive, naquele tempo Marilton cantava, ele cantava mais do que tocava, ele era crooner, né? E o Marilton tirou primeiro lugar como melhor intérprete, cantando exatamente “O Clube da Esquina”. Quem canta melhor pra mim “O Clube da Esquina” é o Marilton, “Clube da Esquina 1”. Não sei se ainda canta, mas cantando “O Clube da Esquina”, ele tirou primeiro lugar. Cantou também “Como vai minha aldeia” de Tavinho Moura. Então, com esse negócio, o pessoal começou a fazer, essa coisa de Clube da Esquina começou a engrossar, sabe como é que é? Muitos já tocavam aqui na esquina, já vinham aqui pra esquina, Toninho Horta, Bituca mesmo tocou aí, brincou aí na esquina, andou aí pela esquina tocando sentado na calçada. E aí o pessoal começou a ir chegando, é que um gambá cheira outro. O pessoal ligado à música, o Wagner, né, pra falar do Wagner. Quando era o auge do Clube da Esquina, não sei se foi antes ou se foi... Aparece um tal de Ronaldo Bastos, que é um tremendo poeta, é um cara espetacular. E ele também é um dos pioneiros do Clube da Esquina, o Ronaldo Bastos. E ele é carioca, né? Depois essa coisa de Clube da Esquina foi se alastrando, né? Mesmo quem não era propriamente da origem do Clube já se integrou. Porque o Clube não pretende ser um clube fechado, é uma coisa que surgiu assim espontaneamente, e espontaneamente foi desenvolvendo. Por extensão do sentido do Clube da Esquina, é uma esquina de qualquer lugar, de qualquer lugar do mundo, né, na verdade é isso. Não pretende ser um clube fechado, não é nada disso. Tanto que o Lô agora, de uns tempos pra cá, ele começou a se ligar mais. Ele estabeleceu uma parceria muito boa, uma ligação muito boa com esses meninos do Skank, o Samuel Rosa. Tem que ser assim, música tem que ser intercâmbio mesmo, né? Pra aprimorar, pra melhorar cada vez mais a música, né?
P/1 – E, seu Salomão, teve um disco que o senhor participou aí ativamente que foi o disco dos Borges.
R – Ah, o disco dos Borges, eu assisti alguma coisa, a gravação lá. Compareci lá ao estúdio e tal. E tinha uma música, uma música do meu pai, do sapo, que o pessoal resolveu cantar aquilo, botar aquilo no disco e nós todos cantamos o sapo. “Eu vivo triste como o sapo na lagoa...” (cantando) Uma música jocosa, uma brincadeira. E eu participei lá, eu cantei, ajudei a cantar essa música.
P/1 – E foi a primeira que vez que o senhor entrou num estúdio pra cantar?
R – Ah, foi, a primeira vez. Mas eu cantei lá em conjunto com o pessoal, né? Foi a primeira vez.
P/1 – Como é que foi?
R – Eu já estava lá mesmo, o pessoal falou: “Vamos cantar”. “Então vamos cantar.” Cantei lá com o pessoal todo, os meninos todos. Elis Regina também acabou participando lá da gravação. Porque ela estava gravando no estúdio ao lado, então ela chegou e falou: “Que confusão é essa aqui?”. Falaram: “É uma família aqui”. Aí ela já viu o Marcinho, já viu o Lô, “Mas vocês que estão aqui!” E logo já estabeleceu. Ela cantou “O Vento de Maio”. Não, cantou não, ela cantou a música do Marcinho e do Marilton chamada “No Cais”, uma música que o Marilton fez em homenagem ao Bituca. E quem canta é Elis Regina. Ela cantou essa música. Mas foi uma época muito boa, né? E ela cantou com Maricota. Gostava da Maricota. Ela depois esteve aqui em Belo Horizonte, um pouco antes dela morrer, para fazer show no Palácio das Artes. Nós fomos lá ver o show, estivemos no camarim com ela, ela chorou, ela estava muito nervosa, muito triste que a mãe dela estava doente, tinha feito uma cirurgia, acho que o negócio não estava dando certo. E eu fiquei com tanta pena da Elis, nessa ocasião, eu achei ela tão fragilzinha, né? Pouco tempo depois ela morreu. Era uma menina muito boa, Elis Regina, viu?
P/1 – E, seu Salomão, vendo os meninos começarem a tocar, essa coisa toda, o senhor achava que eles iam chegar tão longe?
R – Não. Não achava, não. Eu sempre achei as músicas muito bonitas, achava as músicas deles muito bonitas. “O Vento de Maio” é uma música linda, né, é do Telo. O Telo tem cada música bonita. Você conhece essa música “Tristesse”?
P/1 – Sim.
R – Você precisa ver a parte que o Telo mais trabalhou foi a harmonia, né? A harmonia é uma beleza, a música é de uma beleza sem par. A harmonia e a música. Aí o Bituca acompanhou a harmonia e meteu a melodia e a letra, né? Mas é bonito, os meninos fazem músicas muito bonitas. O Telo tem uma música chamada “Ainda” que é uma beleza de música. Não sei porque ele não canta ela, não toca. Tem “Ainda”, tem “Vento de Maio”. “Vento de Maio” é a melhor música dele, e “Tristesse”. “Tristesse” ganhou esse prêmio aí.
P/1 – Como é que foi a notícia aí de receber esse prêmio?
R – Eu não sei exatamente como é que foi a notícia, não, acho que foi o próprio Telo que deu a notícia aqui. Ele estava trabalhando com o Bituca, estava tocando lá com o Bituca, tocando piano lá. Acho que o próprio Telo trouxe a notícia de que a música tinha ganhado. Aí nós ficamos muito orgulhosos, muito felizes, né? Porque o Telo faz músicas assim, ele senta nesse piano assim, daí a pouco começa a sair uma coisa bonita. Você pergunta: “Que música é essa?”. Ele responde: “Eu não sei, essa eu estou fazendo aqui agora”. Assim. Então, faz cada música, senta aqui e começa a fazer música. A música dele sai espontaneamente, né? Ele até brinca com isso, porque tem uma música aí que ele não terminou, uma música no piano aqui. E o Orlando Pacheco foi resolver botar uma letra. Você conhece o Orlando Pacheco? Ele falou: “Ô Orlando, você está muito possessivo”. Porque o Orlando começou a cantar: “Minha, somente minha”. (cantando) (risos) A Música que ele fez. É assim, eu fico muito feliz porque eles são felizes com isso, né? Eles podem não estar fazendo muito sucesso, mas eles são felizes, eles gostam disso, eles adoram isso. O negócio deles é música, música, música. Eu me assustei com isso dentro de casa porque eu sempre gostei muito de música mas eu sou uma negação pra música, né? E de repente eu vi todo mundo cantando, tocando aqui, eu fiquei bobo de ver. “Aí gente, sei que agora esse pessoal não quer saber de outra coisa a não ser fazer música.” E são todos, todos eles, com exceção da Solange, da Sheila, da Sônia e da Sandra que adoram música, são boas ouvintes e tal, mas não tocam nada também. Mas as outras, e Dodoti também. Os outros são todos encantados por música, gostam demais de música. Eu não posso dizer nada porque a minha mocidade, a minha adolescência foi ao som “Ro-ro-ro-ro”. Quando soldado, eu adorava, eu não era músico, não, mas eu adorava as músicas da Orquestra Sinfônica do Primeiro Batalhão. Todo sábado, não sei se era todo sábado ou se era no último sábado do mês, sei lá. Mas era todo sábado, sim. A Orquestra Sinfônica do Primeiro Batalhão, ao qual eu pertencia, quando tocava o Dico, né, o Sebastião Viana. O Sebastião Viana não era maestro nessa época, não, era menino novo ainda. Cantava muito bem e tocava muito bem. Havia audições da Orquestra Sinfônica transmitidas para o mundo inteiro pela Rádio Inconfidência. Só clássicos, coisas lindas. E eu ficava lá apreciando. Sempre gostei demais. Engraçado, eu costumava brincar, até com o Salvador, meu primo, que quando a gente era menino, eu achava que ele tinha mais vocação pra música do que eu. E ele virou maestro mas eu não mexi com música, a bem da verdade é que eu não tive tempo pra mexer com música, não tive tempo, não.
P/1 – Seu Salomão, nós estamos chegando ao fim dessa primeira rodada de entrevistas, espero que a gente tenha outras aí pra frente.
R – Perfeito.
P/1 – O senhor é um bom contador de histórias, tem muita história ainda pra contar.
R – Eu ando muito cansado, sabe, a memória não está tão boa assim, não, já esteve melhor. Mas sempre a gente lembra de alguma coisinha.
P/1 – E eu queria terminar a entrevista pedindo para o senhor fazer um, como é que o senhor faria um balanço dos seus 88 anos?
R – É um resumo. Eu tenho algumas coisas a dizer sobre isso. Primeiro: eu me lembro de um conceito de um amigo meu, já falecido que dizia pra mim assim: “Salomão, a gente só aprende a viver quando está perto de morrer”. E minha mãe também dizia assim: “Viver é fácil, saber viver é que é difícil”. Agora, das minhas experiências de vida nesses oitenta e oito anos, o grande equívoco da minha vida foi a Polícia Militar. Foi a minha falsa vocação para o militarismo, né, influência da época, da época e da família também. A época foi belicosa, época de guerras, de revoluções, de tudo, isso me influenciou muito. E foi aí que eu percebi que foi um grande equívoco. Eu jamais pensei em dar um tiro em alguém. (risos) Como é que eu posso ser um guerreiro, um soldado? Jamais pensei em dar um tiro em alguém. Quer dizer, começa por aí a minha falta de vocação. No militarismo é guerreiro, tem que ser guerreiro ou não é militar. Então isso talvez tenha me atrapalhado. Não que eu não tivesse levado, eu até banquei realmente, em certas ocasiões, eu me lembro que uma vez, eu mandava serviço de quadro, fazia prontidão, de vez em quando a gente entrava de prontidão. Eu trabalhava mais na administração, digamos assim, a parte de escrituração, a parte mais intelectual, né, eu trabalhava mais. Serviço de guarda também fazia. Mas não nas épocas assim excepcionais, todo mundo ia pra dança, ia fazer serviço de guarda e tudo. E tinha as prontidões. Uma noite eu estava de prontidão no quartel e aí requisitaram a tropa pra policiar uma greve de padeiros, os padeiros estavam em greve em Belo Horizonte. E os padeiros estavam indóceis, já vi que tinham jogado um soldado dentro do Rio Arrudas, aquela coisa toda, né? Então uma coisa curiosa, todo mundo falava assim: “Ditadura de Vargas, não sei o quê.” E eu nunca saia à rua pra fazer policiamento, ou de campo de futebol,
ou de greve com o fuzil carregado, nem bala de festim, sem bala nenhuma. Aquilo era só a força da autoridade, não a autoridade da força. Isso ficou comprovado nessa noite que eu estava de plantão, de prontidão, então me levaram com dois soldados, por sinal, dois companheiros meus de futebol, do time do batalhão, e dois tamboristas. Tamborista corneteiro é o bicho mais safado que tem dentro do quartel, né? É um bicho malandro, não quer saber de nada, só quer saber de tocar tambor e corneta, né? Dois tamboristas e corneteiros, eram tamboristas e corneteiros. O Moisés era goleiro do nosso time, Moisés não sei de quê e o Raimundo Nonato, que era zagueiro. Os dois e eu cabo, né, eles soldados. Fui guarnecer uma padaria ali na Rua Paraíba, quase esquina com, ah, não sei, uns três quarteirões depois da Avenida Afonso Pena, rua Paraíba ali assim. Conhece a Rua Paraíba, né?
P/1 – Sim.
R – Uns três quarteirões. Então tinha uma padaria na esquina, Padaria Hispano-brasileira. De madrugada um frio danado, eu vesti meu capote e tal, cinturão, cartucheira, tudo vazio. Fuzil e tal. Aí os caras passaram e me chamaram de Chola, meu apelido de futebol era Chola, um jogador de siderúrgica, um argentino, meu jogo era parecido com o dele, então ele me chamava de Chola. “Oh Chola, nós vamos dormir.” “Vocês vão dormir o que gente? Nós estamos de prontidão aqui, nós estamos guarnecendo a padaria. “Vocês querem que
os padeiros chegam aqui, quebram tudo e nós estamos dormindo. Não vamos dormir, não. Deixa de ser malandro.” “Não, nós vamos dormir. Se você quiser, você que vigie.” Olha a indisciplina, indisciplina nada, uma avacalhação, né? (risos) “E então, seus filha da puta.” Xinguei mesmo. “Seus bandidos, seus vagabundos, vocês podem dormir que eu vou vigiar. Não durmo, não, quem tem inimigo não dorme.” E eles foram dormir. Encostaram numa parede que é a parede do forno da padaria, do lado de fora, encostaram, enrolaram os capotes e dormiram. E eu fui pra esquina da rua. A padaria ficava na esquina, fiquei em pé ali com o meu fuzil, o mosquetão. Dali a pouco eu ouvi aquele clamor, aquele ruído, aquela confusão assim. Eram os padeiros, uma multidão de padeiros brotando lá da Avenida Afonso Pena e subindo a Rua Paraíba. Eu falei: “E agora sim. E eu, o que eu vou fazer agora? O que eu vou fazer sozinho com esse fuzil aqui?”. Eu falei: “Não tem como…”. Parei na esquina e quando eles foram se aproximando, no meio da rua, eu já manobrei o fuzil, como se fosse atirar, manobrei o fuzil e já gritei: “Passe do outro lado. Não quero ninguém no passeio, não, todo mundo no meio da rua”. Já num tom gritado, berrado, né, a gente aprende essas coisas também. Aí eles passaram resmungando, ensaiaram uma vaia, mas passaram. Eles vinham direto pra padaria, né? E eu na esquina lá com o fuzil embalado e apontando. Embalado coisa nenhuma, não tinha nem cartucho de festim. E eu ali fazendo fita. Aí, um padeiro que me servia leite na Padaria Santa Efigênia, a padaria está lá até hoje, esquina de Álvares Maciel com a Avenida Brasil. O Oromar me servia leite todo dia, ele era padeiro também mas atendia no balcão algumas vezes. Eu tomava muito leite, eu tomava um litro, dois litros de leite toda noite, lá, em frente ao quartel ali. E era muito amigo da gente. Aí ele falou: “Esse aí é amigo da gente, esse aí é liga.” Ainda gritou: “Aê Salomão, tá bancando o valente”. (risos) E eu respondi: “Aê resmungão, não vão mexer com esse pessoal aqui, não. Vão embora, vão procurar outro lugar”. E ele mesmo encaminhou o pessoal. Eu passei o maior aperto da minha vida, com um fuzilzinho vazio e manobrando o fuzil pra assustar os outros. Mas o sujeito tinha medo, né, como é que ia adivinhar que não tinha bala, né? Só nós que sabíamos disso. Então em plena ditadura de Getúlio Vargas com guerra, não sei o quê, nunca saí com um tiro, um tiro de fuzil, uma bala no cartucho, um cartucho de guerra como a gente chama. Teve muito folclore nessa coisa de repressão, de ditadura de Getúlio. Getúlio na minha opinião foi o maior estadista que o Brasil já teve, o maior, não, o único estadista que o Brasil teve, o único. Aliás, um dos quatro únicos estadistas que o Brasil já teve. Teve primeiro o José Bonifácio de Andrade, na minha opinião, e tem gente muito boa que compartilha da minha opinião.
P/1 – José Bonifácio…
R – José Bonifácio de Andrade e Silva, patriarca da independência. O patriarca da independência foi José Bonifácio, patriarca da independência. Depois tinha o Marechal Floriano Peixoto, patriota também. O imperador Dom Pedro II e Getúlio Vargas, mais ninguém, mais ninguém. Esses quatro se preocuparam realmente com o Brasil e com o povo brasileiro. Eles se preocuparam. O Marechal Floriano, teve uma revolta da Marinha no governo dele, isso é história, então o ministro pleno e potenciário da Inglaterra, porque a Inglaterra é que exercia influência. Naquele tempo a Inglaterra exercia uma influência muito grande no mundo inteiro. O Império, o fabuloso império britânico.
P/1 – Ã-hã.
R – E tinha muitos interesses no Brasil, com a Leopoldina Railway, tinha muito interesse inglês o Brasil. E pediu uma audiência ao Floriano e foi lá conversar com o Floriano. “Ô Presidente, eu vim aqui em nome do governo, de sua majestade, do meu país...”. Mas falando assim grosso, né? “...saber como o governo de Vossa Excelência receberia tropas inglesas que eventualmente viessem ao Brasil para garantir os interesses britânicos no Brasil?” Ele falou: “A bala, senhor ministro, está encerrada a audiência”. (risos)
P/1 – (risos)
R – “Como receberiam?” Ele falou: “A bala, senhor ministro, está encerrada a audiência”.
P/1 – Então, pra gente encerrar a nossa audiência, eu queria só perguntar para o senhor, o que o senhor acha de estar sendo criado o Museu do Clube da Esquina.
R – Eu acho uma ideia muito interessante, muito oportuna. Pelo menos será assim uma manifestação de que o povo, porque essa ideia é encorajada também por boa parcela do povo, muita gente está sabendo disso e apoiando. Porque o povo quer saber de uma organização, uma coisa que lembre a cultura musical. Em Minas Gerais tem uma cultura musical muito boa, só que não é muito apregoada, né? Muitos dos melhores, dos maiores músicos do Brasil estiveram aqui. Estiveram e ainda estão aqui em Minas Gerais, muitos deles. Tem muitos músicos por aí fabulosos. Então é preciso que surja assim uma realidade, uma organização como um museu desses pra chamar mais atenção para o aspecto da cultura musical de Minas Gerais e Belo Horizonte. Acho muito bom isso.
P/1 – Seu Salomão, eu queria agradecer a sua entrevista, muito obrigado.Recolher