Entrevista de Rafael Muniz Stein
Entrevistado por Lucas Torigoe e Teresa de Carvalho
São Paulo, 15 de abril de 2023
Projeto Conte Sua História - Casa do Cuidar
Entrevista número PCSH_HV1379
Transcrita por Teresa de Carvalho Magalhães
Revisada por Grazielle Pellicel
P/1 - Lucas Torigoe
P/2 - Teresa de Carvalho
(00:27) P/1 - Vamos lá então. Obrigado por você estar aqui, pela viagem que você fez até chegar aqui hoje, sábado de manhã. Eu queria começar com uma pergunta bem difícil, que é: qual é o seu nome completo, onde você nasceu, que dia que foi, por favor.
R - Meu nome completo, eu me chamo Rafael Muniz Stein, nasci no dia 28 de agosto de 1977, em Limeira, no estado de São Paulo, fica no interior do estado de São Paulo.
(00:56) P/1 - E qual é o nome da tua mãe, Rafael?
R - Eunice Aparecida Muniz Barbosa Stein, mas a gente chama, todo mundo chamava de Nice, né?
(01:07) P/1 - E você sabe da família dela, da onde que eles vieram, o que eles faziam?
R - A descendência da família, o sobrenome é português, né? Eu não sei, não tenho muita informação sobre em que momento isso aconteceu, mas com uma mistura de povos indígenas aqui, mamelucos, tinha... Se misturou aqui. Mas eu não tenho muita informação assim de... A partir da minha avó, histórias da família, não tenho muita coisa.
(01:39) P/1 - Mas você conheceu seus avós?
R - Conheci, conheci. Conheci meus avós. Conheci a minha avó por parte de mãe, né? O meu avô era falecido, ele faleceu quando a minha mãe tinha doze anos. Ele trabalhava no que hoje é a Companhia Elétrica de São Paulo, né, e num dos serviços ele sofreu um choque e aí faleceu, ela tinha doze anos. Então, eu não cheguei a conhecer ele. A família, a minha mãe fala que eu lembro muito ele assim, eu sou... Meus pais tiveram quatro filhos, né, então eu sou o único... e meu pai tem tendência alemã. Eu sou o único moreno assim, sabe, que puxa um pouco, da minha família. Então meus...
Continuar leituraEntrevista de Rafael Muniz Stein
Entrevistado por Lucas Torigoe e Teresa de Carvalho
São Paulo, 15 de abril de 2023
Projeto Conte Sua História - Casa do Cuidar
Entrevista número PCSH_HV1379
Transcrita por Teresa de Carvalho Magalhães
Revisada por Grazielle Pellicel
P/1 - Lucas Torigoe
P/2 - Teresa de Carvalho
(00:27) P/1 - Vamos lá então. Obrigado por você estar aqui, pela viagem que você fez até chegar aqui hoje, sábado de manhã. Eu queria começar com uma pergunta bem difícil, que é: qual é o seu nome completo, onde você nasceu, que dia que foi, por favor.
R - Meu nome completo, eu me chamo Rafael Muniz Stein, nasci no dia 28 de agosto de 1977, em Limeira, no estado de São Paulo, fica no interior do estado de São Paulo.
(00:56) P/1 - E qual é o nome da tua mãe, Rafael?
R - Eunice Aparecida Muniz Barbosa Stein, mas a gente chama, todo mundo chamava de Nice, né?
(01:07) P/1 - E você sabe da família dela, da onde que eles vieram, o que eles faziam?
R - A descendência da família, o sobrenome é português, né? Eu não sei, não tenho muita informação sobre em que momento isso aconteceu, mas com uma mistura de povos indígenas aqui, mamelucos, tinha... Se misturou aqui. Mas eu não tenho muita informação assim de... A partir da minha avó, histórias da família, não tenho muita coisa.
(01:39) P/1 - Mas você conheceu seus avós?
R - Conheci, conheci. Conheci meus avós. Conheci a minha avó por parte de mãe, né? O meu avô era falecido, ele faleceu quando a minha mãe tinha doze anos. Ele trabalhava no que hoje é a Companhia Elétrica de São Paulo, né, e num dos serviços ele sofreu um choque e aí faleceu, ela tinha doze anos. Então, eu não cheguei a conhecer ele. A família, a minha mãe fala que eu lembro muito ele assim, eu sou... Meus pais tiveram quatro filhos, né, então eu sou o único... e meu pai tem tendência alemã. Eu sou o único moreno assim, sabe, que puxa um pouco, da minha família. Então meus tios falam, minhas tias falam que eu acabo lembrando um pouco ele assim.
(02:31) P/1 - E a sua avó, você conheceu por bastante tempo, então? Ela está viva ainda?
R - Não, minha avó por parte de mãe, minhas avós... Não tenho avós vivos, né? Minha avó, por parte de mãe, faleceu há dois anos. A gente conviveu muito quando, assim, ali em Limeira, depois meus pais foram os únicos, parte da família, eles, meu tio, Beto, que mudaram de cidade, de Limeira. Então a gente convivia em férias, né, se encontrava, assim, parte da minha mãe principalmente, muito em datas comemorativas, sociais, assim, da família, né? Eu tive mais contato com os avós por parte do meu pai, de convivência, de avô, assim, sabe? Aquelas de passar férias na casa do avô e tal. Mas, enfim, convivi com a minha vó, mas eu tenho uma ligação, entendo que eu tenho uma ligação maior, tive uma ligação maior, um afeto maior com meus avós paternos.
(03:30) P/1 - E a família da sua mãe é da região de Limeira mesmo?
R - Sim, todos são, nasceram lá.
(03:38) P/1 - E vamos falar do seu pai então agora: qual é o nome dele?
R - José Antônio Stein.
(03:43) P/1 - José Antônio Stein. E a família dele é de ascendência alemã?
R – Alemã, é. Meu tataravô veio da Alemanha no período de guerra, né? E foi pra região onde é Blumenau, onde se fundou Blumenau, né? A informação que eu tenho de histórias é que ele participou da construção da cidade como operário, alguma coisa assim. Tinha informações dele especificamente, e da família, num museu em Blumenau que foi inundado, quando teve aquela inundação grande que deu origem à festa da Oktoberfest, né, pra arrecadar. Então se perdeu muitos documentos daquela época. Depois uma parte, essa... Ele veio pra região ali perto de Limeira, tem Cosmópolis, ali tem uma colônia alemã. E aí uma parte da família veio pra ali, tanto que o meu avô nasceu ali, depois morando em Limeira, aí ficaram tudo por ali. E aí tem uma parte da família que tem, que tá ali nas colônias, que tem toda a ‘árvore’, que tem mais informações, então eu tenho mais documentado isso, né? E aí teve uma época que eu fui atrás pra tentar tirar cidadania alemã, mas aí também descobri que não era possível, na época da guerra, lá teve uma lei que quem nascesse - mesmo filho de alemão - fora da Alemanha, não podia se naturalizar, né, enfim, consequências da guerra lá da... E aí tive mais informações da família assim. Então é uma inércia. Do lado do meu pai eu consigo enxergar mais características da cultura alemã, do jeito do alemão de lidar com as coisas, né? Eles foram tudo pra Limeira, meu pai nasceu lá, enfim, meus tios; e um dos meus tios voltou pra Blumenau, foi morar lá e hoje mora lá, tem empresa lá, tudo. Então a gente tem um contato e convive com eles assim.
(05:52) P/1 - E essa família da sua parte alemã, essas pessoas faziam o quê? No que elas trabalhavam?
R - Olha, meu avô era sítio, né? Fazia de tudo um pouco no sítio, trabalhava meio rural assim. Depois eu entendo que quando ele veio pra cidade, eu lembro dele se aposentar como borracheiro, mas eu me recordo de, ao estar com ele, ele contar as histórias dele, dos irmãos, de montar em boi, sabe? Juntar todo mundo e contar umas histórias de brigas, enfim, que alemão é tudo bravo, né? Mas me lembro muito disso assim, mas eu não tenho muita informação dos antecedentes, né, dos pais deles, é uma coisa que nunca se fala na família, assim, muito das histórias, sabe?
(06:54) P/1 - Hum. Nunca se falou muito?
R - Não. Estou refletindo agora que você está me perguntando, não sei se é uma característica já, né, dessa cultura de não se falar, a gente, de não ter muita conversa. Enfim, eu acho que já vem essas características hoje, assim, predominantemente masculinas. Daquele... Machistas, tal, acho que talvez venha, não tenha muita conversa, né? Mas eu lembro do meu avô com muito carinho. Engraçado, por mais que ele fosse alemão, o vovô era muito... Meu vô, minha vó, assim, eu me lembro com muito carinho mesmo da época que a gente viveu, eu morei junto com eles durante seis meses, lembro de coisas assim, sabe, da minha vó, dele, meu avô trazendo frutas do sítio, da gente sair escondido, eu e ele, pra comer, tomar sorvete. Enfim, meu avô já estava com uma idade avançada, com os exames todos alterados, minha avó não deixava ele comer algumas coisas e a gente saía…
(08:09) P/1 - Então por isso que foi escondido?
R - É, por isso. (risos) Mas eu tô citando essas coisas que tão vindo à cabeça porque eu lembro de muito, com muito carinho assim. Embora não tinha essa conversa, mas talvez... Mas os meus avós eu tinha uma convivência muito de avô mesmo, sabe, daquela... Era bom.
(08:27) P/1 - E me conta uma coisa: você sabe como é que seus pais se conheceram?
R - Não, não tenho detalhes disso. Eles [se] conheceram em Limeira, onde os dois nasceram, mas não tenho informações assim. A gente nunca parou pra conversar, cara.
(08:48) P/1 - É.
R - Que coisa, né?
(08:49) P/1 - Eles faziam o que nessa época?
R - Meu pai, minha mãe… Enfim, meu pai era professor, fez faculdade de química em São Carlos, virou professor, minha mãe também é de pedagogia, mas meu pai... Minha mãe foi prestar concurso pro banco, meu pai foi junto, passou, depois ela foi trabalhar também na Caixa. Então eles, meu pai era professor, depois virou bancário, depois minha mãe trabalhava também no banco, mas aí meu pai, com a opção de fazer carreira no banco, de ter que mudar também, né? E logo no começo, a gente ainda morava em Limeira e eu tive um problema de saúde assim, que precisou de um certo cuidado, uma broncopneumonia, alguma coisa assim. E aí eu tenho um irmão mais velho e tinha eu, aí minha mãe parou de trabalhar, né? Eu entendo que muito em função de como eu tava e tudo. E aí, logo depois, a gente começa as mudanças, e aí minha mãe ficou responsável, assim como todas as mulheres, né, pelo cuidado da casa, dos filhos. Ela chegou depois a dar aula também, mas pouco tempo.
(10:17) P/1 - Quando você nasceu, tinham quantos irmãos já?
R - Tinha o Felipe. Um ano e um mês mais velho do que eu.
(10:24) P/1 - Entendi. E aí depois quem veio?
R - Veio o Guilherme e depois o Gustavo, o mais novo. Mais de dez anos de diferença. O Gustavo é o mais novo.
(10:36) P/1 - Quatro homens na casa?
R - Quatro homens. Então você imagina uma família que vive a excelência alemã, né, com algumas características bastante assim, que hoje eu consigo identificar características, e aí quatro homens, né? Minha mãe passou, minha mãe segurou a... Ela que cuidou de todo mundo, né? Ela que... Então, é uma família predominante, até por causa da presença maior de homens também... Eu me lembro quando... Vou fazer um salto no tempo assim, mas eu me lembro de quando minha filha nasceu, a Maria, eu saí do corredor com ela e vi meu pai no final do corredor. Aí eu falei: “Cara, como que eu vou criar uma menina? Eu nunca tive referência”. Embora tinha referência na minha mãe e tudo. Claro, mas a cultura masculina prevaleceu, né? O machismo todo. Eu me lembro de ter ficado com bastante medo assim. E aí, pensando nisso, né? Você falou quatro homens: meu pai, tudo, era uma criação bastante, como outras famílias da época, machista, sobre diversos aspectos.
(12:11) P/1 - Vamos chegar nesse ponto daqui a pouco, mas me fala um pouquinho: você nasceu em Limeira então, e quais são as primeiras lembranças que você tem assim da sua vida? Você consegue puxar isso?
R - De Limeira, eu não me recordo muito, eu morei até um ano e meio lá. Então, assim, eu não consigo ter lembrança da casa, praticamente nada. Eu conheço o local hoje e tal, mas eu não me lembro muito de lá, eu tenho lembranças vagas quando eu penso do Rio de Janeiro, que foi a cidade seguinte que a gente foi morar. Daí eu lembro da escola, da aula de natação, de festa na escola, dia dos pais, sabe? Aí vem flashes assim. Eu acho que são as primeiras lembranças assim que eu tenho de pequeno, quando tento buscar isso, sabe? De Limeira, eu não consigo recordar. Depois a gente passava todas as férias em Limeira, aí eu tenho lembranças, mas mais velhos. Mas acho que a primeira lembrança pequena mesmo vem dessa infância na escola, eu lembro da aula, uma cena de natação do meu pai no dia dos pais numa competição assim que tinha que cortar laranja, quem descascava mais rápido. Daí, logo em seguida, eu lembro de episódios em Limeira nas festas de final de ano, Natal onde meu tio sempre se vestia de Papai Noel e a gente nunca... Daí vem, mas eu acho que as primeiras lembranças são essas, eu não consigo... Lembro quando pequeno do nascimento do Guilherme e de ele... Essas são as primeiras coisas que me vem na cabeça.
(13:59) P/1 – Agora me conta uma coisa, você falou que você viajou, vocês viajaram muito. Vocês mudaram bastante? Me conta um pouco porque que isso aconteceu.
R - O meu pai iniciou carreira no banco, trabalhou no Banco do Brasil e pra que ele pudesse fazer carreira, né, pra ele pleitear, crescer ali dentro da hierarquia do banco, ele precisava mudar. Na época não era tão rígida assim a questão de mudança no banco, ele poderia ficar lá em Limeira até, mas ele nunca chegaria a gerente, então isso exigiu que fosse mudando. E conforme ele subia de cargo, a mudança era mais rápida, porque quando ele virou gerente não podia ficar mais dois anos na mesma cidade. Então foi por isso, né, pela carreira do meu pai. Então, a minha mãe também mudou, abdicou da carreira dela em função disso. E aí a gente mudou bastante, bastante. Eu mudei com eles até os dezesseis anos, foi quando eu fui morar sozinho, mas de longe acompanhava as mudanças, né? Então essa constante mudança foi em função da carreira do meu pai.
(15:15) P/1 - E como é que era pra vocês se mudar toda hora? Várias cidades...
R – Era... Foi mais complexo quando você começa a chegar na adolescência, né? Quando você é criança, eu acho que você não tem dimensão, acho que talvez não criou os vínculos tão fortes ainda, né? Mas eu lembro de quando... De início da adolescência pra mim ser mais complexo essas mudanças, né? De ser ruim, já tinha amigos e aí mudar, e aí toda a cidade que a gente chegava tinha sempre conflito, né? Adolescente, você chega novo na escola e, pô, eu me lembro de quando a gente mudou pro litoral, pra Praia Grande, ali do lado de Santos. A gente morava em Capivari que é uma cidadezinha bem interior assim, bem interior mesmo, assim, e eu era bem caipira, vou usar, não é um termo, né, de forma pejorativa nenhuma, mas bem ingênuo. Mas, pô, cheguei na praia, o povo já estava consumindo tudo que você podia imaginar de droga, de tudo e tinha uma malícia que eu não tinha, assim. Aí cheguei na escola e os caras queriam me bater porque eu cheguei, só. E aí era complexo, enfim. Tinha bullying, que hoje, né, a gente fala sobre isso. Então, sempre tinha esses conflitos iniciais, tal, mas depois, enfim, a gente...
(16:57) P/1 - Vocês foram de... Passa pra mim esse itinerário.
R - Então, a gente começa em Limeira, de Limeira vai pro Rio de Janeiro, do Rio de Janeiro, meu pai ficou adido que emprestaram pra uma cidade do Sul, que agora eu não vou lembrar, depois Chapecó, do Rio a gente foi pra Capivari... Não, minto. Oh, está vendo? Tanta coisa. Do Rio a gente foi pra Miracatu, que é uma cidade do Vale do Ribeira, perto de Registro. Cara, você sai do Rio… Tudo bem que ____, mas vai pra Miracatu, cara, é um negócio… E aí de Miracatu, eu lembro que a gente foi pra, meu pai trabalhou em Registro, Iguape ali, depois de lá foi pra Capivari e de Capivari foi pra praia, daí eu tava, pô, adolescentes na praia era uma beleza, né? No começo foi difícil, mas depois... E de lá meu pai foi pra Minas. Ele morou em umas três cidades em Minas: Monte Belo, Bambuí, Três Corações. Nesse momento, quando ele vai pra Minas, aí eu vou morar em Alfenas. Fico lá por sete meses e aí meu pai segue mudando, mas aí eu já vou morar sozinho. E aí, enquanto eles mudaram, daí eles foram pra lá, depois ainda foram pra Serra Negra onde meu pai [se] aposentou. E eu de Alfenas vim pra Campinas e fiquei lá até o final do ano passado, quando eu me mudei pra Serra Negra.
(18:42) P/1 - Tem uma pergunta que a gente faz geralmente que é assim: como que era a sua casa de infância? Difícil fazer, né? Mas tem alguma que te marcou mais ou que você gostou, tem algum lugar dessas cidades ou rua, ou casa, dessas várias que você falou aqui?
R - Olha, eu me lembro assim, cara, você sabe que eu não tenho um vínculo assim com uma cidade, quando pequeno? Eu lembro os flashes agora, assim, quando eu tava em Capivari, que daí juntava os amigos da casa, era uma casa grande, então, eles montavam duas barracas na sala, sabe? Juntava oito, os quatro homens em casa, moleques, né, e aí juntava todo mundo. Era uma bagunça. E lembro dessa época ainda ter uma liberdade na rua, né? A gente... Que é diferente hoje com meus filhos, por exemplo, de poder sair, sabe? De pegar a bicicleta, saía, nem minha mãe ficava sabendo da gente no final do dia. De pegar, sei lá, fazia arte marcial, ir com todo mundo junto e jogar bola. Tinha uma liberdade assim. Então, aí talvez isso me remeta um pouco à infância. É uma liberdade que a gente tinha que hoje eu não consigo imaginar com as crianças, né? Então acho que talvez essa lembrança vem primeiro, depois quando a gente mudou pra praia, né, que daí era uma liberdade que era com contraste do que eu vi assim e que era muito bom. Então foi lá que comecei a jogar bola e aí fiz muitos amigos e ia treinar lá em Santos, depois voltava... E praia tem... É diferente assim, né, o clima. Então é onde que eu me lembro, a infância, tá com amigos, proximidade eu acho que é em Capivari, talvez, a primeira lembrança, e depois eu não tenho. Muito em função acho que, sabe, mudar eu não tinha criação de vínculo assim.
(20:45) P/1 - Não dava tempo, você acha?
R – É, acho que não. Quando eu puxo na memória, eu vou lembrar das coisas já em Capivari e já um pouco mais velho. Lá pela quinta série e por aí, que era a antiga quinta série.
(21:00) P/1 - Agora, como é que era a vivência na sua, nas suas casas, digamos assim, como é que era a rotina, você com seus irmãos, vocês se davam bem?
R - Sim. Nunca tivemos algo que... Cara, tinha as brigas de quatro homens juntos, né, de briga em função de coisas do cotidiano assim. Mas era uma convivência, a gente sempre tava muito junto assim, né, tudo. Então, depois, quando eu me mudei, aí eu me afastei um pouco deles assim. Eu ficava oito, nove meses sem ver ele. Então quando eu voltava, meu irmão que era pequenininho e, de repente, sabe, tava enorme. E aí eu acho que esse período tem um afastamento. Então, a gente vivia muito junto, fazia tudo muito junto. Tem uma diferença de idade, então tinha turmas diferentes, né? Meu irmão mais novo, o Guilherme, a turma dele vivia muito com a gente, porque daí tinha uns irmãos mais velhos, tinha toda aquela, né, questão da hierarquia ali dentro da molecada. Depois eu tive com o Gustavo, que é o meu irmão mais novo, eu acho que eu tenho uma ligação maior, assim, porque eu já tava mais velho, a gente tem uma diferença maior. Então, quando ele começou a ficar adolescente, que todos os conflitos, eu já tinha vivenciado muita coisa. Então, tinha um diálogo com ele muito próximo, né? Sobre bebidas, sobre qualquer assunto e aí estabeleci uma relação de amigo, de mais velho: “Não, olha, faz isso. Quer fazer? Vamos fazer juntos, vamos…”. Então eu lembro de ter uma relação mais próxima com ele. Depois, quando eu me mudei, aí a gente se via muito pouco, assim, pessoalmente, né? Demorou pra gente… hoje a gente tem uma convivência, porque tá todo mundo mais próximo assim. Então, acho que é isso, que eu lembro assim.
(20:09) P/1 - E como é que é o jeito do seu pai, o jeito da sua mãe nessa época?
R - Eu lembro do meu pai, eu lembro assim, tem muita pouca... Meu pai trabalhava muito, meu pai foi criado, ele sempre entendeu que ser pai era prover, né? E faz parte da geração dele, isso não tem nada... Então, meu pai sempre trabalhou muito e isso pra cuidar de quatro filhos, né? Então, imagino que pra ele também não era fácil. Quando eu tento voltar atrás e me colocar no lugar dele, né, de imaginar como ele se relacionava com sexo, dinheiro, amigos, etc., pra tentar entender o comportamento dele. Então isso criou um afastamento muito nosso de uma convivência, eu não tenho lembranças e conversas com meu pai, era sempre... Tem poucas lembranças de conversas mesmo, então era uma era uma relação que eu sentia carinho, sentia, do jeito dele, tudo, né? Mas a gente não tinha conversa. Basicamente, minha mãe era o que segurava tudo, né? Assim como 99% das mulheres da geração dela, né? De cuidado, de fazer tudo pelos filhos, de se anular muitas vezes por causa dos filhos, né? Então minha mãe viveu em função de criar a gente, de cuidar da casa. Então, essa relação de todas questões que eu me lembre de um cuidado maior ou de uma relação com espiritualidade, minha mãe que me apresentou do jeito dela, tudo. Eu acho que é com ela, né? Meu pai sempre teve esse afastamento, assim, muito em função [de que] meu pai chegava tarde. Eu lembro da gente ter um período muito complexo assim de diálogo. E não tinha conflito, não tinha briga, não tinha nada disso, era mais uma falta desse diálogo, né?
(25:38) P/1 - Como é que é essa questão da espiritualidade da sua mãe que você falou? Como é que ela apresentava isso pra você?
R - Minha mãe dentro da crença, enfim, a gente, ela nasce num berço católico, né, mas depois eu lembro muito pequeno ela já ter contato com o espiritismo e a gente ir no centro... Eu fui batizado tudo, mas, assim, nunca fui a igreja católica, tal, não, mas me lembro de ela ir no centro, me apresentar, levar; então, de participar da evangelização, das crianças, então, quando eu passo a me envolver mais ou passo a buscar mais a lembrança que me vem é da minha mãe, sabe? De ter trazido isso, ela quis batizar, não sei o que, ela falou, não. Mas depois eu tive liberdade pra seguir, né? Acabei e depois eu fui buscando outras crenças também, estudando mais, mas minha mãe me apresentou assim de forma muito natural, né? Era algo importante pra ela, eu não entendia muito, eu lembro em Capivari, não, tem que batizar por causa… tem que batizar, não. É crisma. Crisma que fala? Não sei. Primeira comunhão! Tem que fazer e eu achava aquilo, né? Não entendia nada, o que o cara falava não tinha lógica pra mim naquela época, mas eu não tinha nem maturidade ou não tinha nem o... Como que eu vou falar isso? Aceitava aquilo sem questionar, sabe? Era um negócio estranho assim. Não fazia sentido. Então ia lá, fazia. Pra mim era a mesma coisa, não acrescentava nada. Quando a gente passa a ir no centro, ali, já em Capivari, eu lembro disso, o que era dito ali me fazia mais sentido.
(27:29) P/1 - Por quê?
R – Cara, porque é a crença num... É algo que não é um Deus punitivo. Como que é isso: eu faço isso aqui, depois você vai pra um lugar ou vai pro outro. Eu tenho dois filhos, você, eu que sou pai dentro da minha realidade, você sempre dá uma outra chance pro seu filho dentro da... Você exerce esse papel de Deus, entre aspas, claro, na relação com seus filhos, né? E se eu tenho um amor que eu daria minha vida por eles e você sempre dá chance, como que eu vou acreditar num Deus que é essa crença, que é, pode ser de alguma forma punitivo? Mas se eu fizer isso, você vai pra esse lugar, você vai, não faz sentido. Então, num vou entrar em detalhes, mas o que era… mas e era incentivado dentro ali daquele contato inicial com a doutrina espírita de um questionamento, de eu poder questionar, de poder, não, tudo bem, você tava me dizendo, mas eu quero saber, e aí, né? Eu sou ignorante, se você sabe mais... Isso de poder, de ter essa liberdade e de uma aceitação com todas as outras crenças, em nenhum momento você ouvia o Chico Xavier, por exemplo, falar de qualquer mal de outra crença ou de qualquer gênero, enfim, não existia. Me fazia mais sentido. Dentro daquele começo ali que eu estava tentando entender o que me fazia mais sentido, né? E, enfim, me perdi agora, mas eu acho que era isso. Depois fui mudando, enfim, várias vezes.
(29:12) P/1 - É, eu queria, eu queria continuar um pouquinho só. mas vocês podem me interromper em qualquer momento, tá? Se quiser me perguntar também, fica à vontade. Um pouco mais sobre como foi a sua infância, em outros aspectos. Você falou um pouco do seu pai e da sua mãe, né? Bem, antes de eu fazer essa pergunta, me fala uma coisa: sua mãe, então, conversava com vocês?
R - Sim.
(29:38) P/1 - Como é que era? Esse dia a dia com ela, então.
R – Cara, era um dia-a-dia de assim... Não tem nada de extraordinário, cuidado, são rotinas de conversas, essa característica muito acho que da geração deles assim. Mas tudo da escola, de coisas, o que fazer, era muito mais uma conversa com minha mãe. Que quando eu começo a ficar adolescente. aí tem um... Que tinha diversos assuntos ali ou curiosidades que eu tinha, que não tinha essa abertura pra falar com eles assim. Não sentia isso, né? Tinha uma vergonha, enfim. Mas então essas conversas que eu falo com a minha mãe, que teve desse contato, é muito em função desse cuidado cotidiano assim de coisa ordinária da vida, que são as coisas simples. Desse cuidado com tudo assim, né, desde a preocupação com saúde, escola. Tudo, né?
(30:51) P/1 - E vocês brincavam muito, brincavam do que nessa época?
R - Cara, eu lembro de uma infância com muita brincadeira, era uma época que a gente ficava muito na rua, né? Então eu lembro de carrinho de rolimã, sabe? Lembro do meu pai fazendo pipa. Bolinha de gude, essas coisas assim. Na minha época tinha muito isso de rua, de brincar ao ar livre assim, né? A gente, era uma época em que não tinha internet, não tinha tecnologia, então a gente ficava solto, tinha uma liberdade que era boa, era gostoso assim, sabe, que hoje eu não sei, a gente tem talvez os saudosismos, né? A gente tenta talvez comparar hoje com as crianças, mas que hoje eu não sinto, assim, que existe. O problema dentro da minha realidade. Então, era uma, era livre de poder sair, de não tinha essa preocupação com segurança, me lembro de sair de bicicleta, não ter hora pra voltar, se tinha jogo de futebol, a gente ir sozinho ou ir pra escola do tamanho do meu filho, ir sozinho e ir andando e então assim... E dentro disso eu vivia muito solto.
(32:11) P/1 - Sempre juntos, vocês quatro?
R - Eu e meu irmão mais velho, porque a gente é mais próximo de idade. Eu lembro do Guilherme, depois, estava próximo, mas aí voltava pra casa e estava sempre junto. E aí quando juntava os amigos, aí naturalmente era uma convivência entre gerações ali né? Da turma mais velha com a turma mais nova... Ali em casa, ali entre a gente tinha esse, era um meio que ponto de encontro que era o Gustavo, mais novo, mas eram idades muito diferentes, eu e o Felipe mais velhos, depois o Guilherme com seis anos ali de diferença e o Gustavo com mais de dez. Então, tinha três gerações ali que se encontravam. Então, tinha uma convivência, tinha muita gente, sabe? Eu lembro de ter muito moleque em casa.
(33:00) P/1 - E vocês deram trabalho pra sua mãe e pro seu pai, ou não?
R - Cara, eu acho que não, minha mãe nunca... Não, acho que a gente era, de verdade, assim, perto do que eu via o outro pessoal, a gente era bem tranquilo assim, nunca teve questões muito graves, né? Bom, com bebida, drogas, sabe? Essas questões assim. Não vejo. Minha mãe sempre quando ela fala… Mas que mãe é suspeita, pra minha mãe, os quatro são, né? Não acha defeito, mas não, acho que a gente foi tranquilo, assim, dentro do que é saudável.
(33:47) P/1 - E você falou que vocês jogavam bola, que você jogou futebol. Vocês torciam pra algum time, assistiam?
R – Em casa, meu pai é são-paulino, então a gente naturalmente acabou torcendo pro São Paulo, só o meu irmão mais novo, o Gustavo, que nasceu em Santos com essa mudança… um nasceu no Rio, né? Eu e o Felipe nascemos em Limeira, o Guilherme nasceu no Rio e o Gustavo em Santos. E ele, né? Mais novo que o Francisco, meu filho, e uma vez: “Ah, mas eu nasci…”, “Você nasceu em Limeira. Tem a Inter de Limeira, você tem que torcer pra Inter de Limeira” e ele nasceu em Santos, ele tinha que... Daí o Santos, só que daí você vai olhar pro Santos, tem aquela história, daí a gente morando em Praia Grande, ele começa a criar essa consciência onde eu nasci, então tenho um time e tal e aí meu pai lembro dele levar o meu irmão... Ele estava no shopping lá em Santos e aí meu irmão, todo time do Santos foi lá fazer alguma coisa, não sei o que, sei lá, e aí estava o Edinho, filho do Pelé, eu lembro disso porque, enfim, era uma figura. E aí meu irmão… foi aí [que] meu pai levou ele na Vila Belmiro e aí ele conheceu o Aldair, conheceu, tinha vários jogadores conhecidos que tavam lá e eles pegaram meu irmão, que ele era novinho e levaram. Pronto, aí ele começou a torcer pro Santos, até hoje torce. Então lá em casa todo mundo é são-paulino, menos o Gustavo, que é santista. Eu comecei a jogar bola assim, mais velho, mas nunca fui bom assim, era mais [pra] diversão, dos amigos, tudo. Cheguei a treinar em clube ali, mas nunca levei muito a sério, não, não tinha talento pra isso, mas era divertido, né? Qualquer esporte é. Joguei basquete, né? Na adolescência, aí eu fui onde eu, eu acho que talvez jogava um pouco melhor, mas era muito mais por causa do convívio, né? De tá com os amigos, de ter aquele convívio social do que o esporte em si, ou de ter alguma aptidão pro esporte, sabe? Então eu me lembro muito disso. Em relação ao time, torcer, a gente sempre torceu assim, mas também se o São Paulo ganhou, não, perdeu, pra mim também não, sabe? Não sou aquele... Ninguém em casa é assim, a gente brinca um com o outro, um negócio santista, então sempre teve aqueles momentos de brincadeira assim. Meu pai leva um pouco mais a sério o ato de torcer assim, reclama um pouco mais do time, mas eu não.
(36:28) P/1 – Vocês assistiam muita TV nessa época ou ouvia rádio? O que vocês...
R - Cara, eu lembro...TV, não. Não. Não lembro de ficar na TV como hoje. Primeiro, porque a gente tinha uma liberdade de sair pra rua, então a rua parecia mais interessante na época. Quando... Rádio, pouco, mas lembro do meu pai e minha mãe comprando discos, enfim, e poucos, mas tem uma referência. Rádio, não muito. Assim, eu fui passar a ouvir rádio, muito, [quando] eu já [tava] morando na faculdade, já estudando. Mas TV, não, né? E depois, na época que a gente morava, bem pequenos ali, do Rio pra Miracatu, a gente fica muito pouco na TV assim, muito pouco e depois também na cidade não tinha mais nada pra fazer também, né? Eu lembro que a gente ficava esperando filme, saía do cinema, via seis meses depois na locadora, sabe? Aí eu lembro de assistir, de assistir alguma coisa, mas não ficava muito, não.
(37:45) P/1 - E como é que era você na escola, Rafael? Nas escolas.
R - Nas escolas?
(37:51) P/1 - Alguma te marcou mais ou… você gostava de alguma matéria?
R - Não, eu sempre fui, tive facilidade com exatas assim. Então eu sempre fui um bom aluno, nunca, não me lembro de tirar notas abaixo de sete, oito, sabe? Não é uma coisa que... A escola não era algo que me desafiava assim. Então, eu sempre fui um bom aluno, nunca fui do cara do fundão, bagunça, nada, era meio CDF, tímido, acho que também foi a personalidade, também contribuía assim. Então focava ali no estudo e entendia que isso sempre... Me dei bem ali no que esperavam de mim ali, né, de notas, etc. Nunca tive dificuldade.
(38:51) P/1 - Então você passou incólume assim pela escola, foi tranquilo pra você?
R - Pra mim foi. Não tenho... As mudanças eram ruins nesse sentido, né? A gente não criava muito vínculo com a escola, mudava e mudava o modelo de ensino, era outra coisa. Época de escola, quando eu passo a lembrar, é quando a gente mudou pra Praia Grande, que daí aquela convivência de escola maior, sabe? Eram escolas, eram maiores, ela tinha um sistema de ensino, tinha os times, né? Tinha… sabe, era uma escola maior, diferente das outras cidades, que eram tudo escolas pequenas...
(39:33) P/1 - Até Praia Grande, você fez algum amigo ou amiga que você carrega com você?
R – Não, não.
(39:41) P/1 - Então Praia Grande realmente é um marco?
R - Praia Grande é onde eu tenho amigos, assim. Um amigo específico que eu acho que foi ali na época... Eu mudei pra lá, foi uma mudança complexa pra mim, porque eu vinha de uma cidade muito interiorana e quando cheguei lá, cara, o pessoal tava numa outra, num outro lugar...
(40:04) P/1 - Você tinha o quê? Treze, quatorze anos?
R - É.
(40:07) P/1 - Tá.
R - E aí eram, eles estavam muito mais maduros do que eu, assim. Então, foi muito ruim pra mim, assim, nessas relações, até você encontrar sua turma, né? Então, eu lembro de ser bem complexo, de sofrer bullying também, bastante, né? Eu era... Você vai pra praia, praia é um lugar onde a questão da valorização dos corpos é mais evidente, né, tá todo mundo seminu a maior parte do tempo. Cara, imagina eu com um metro e noventa com quase vinte quilos a menos do que eu tenho hoje. Cara, era algo esquisito. (risos) Mas assim, então, pô, chegava lá, era você adolescente, tentando se encontrar ali. Foi complexo pra mim e não teve muita conversa, né? Porque em casa eu não tinha essas conversas ou esses... Então, meu, você tá solto ali, você se vira, meio que você vai achando a sua turma ali. Mas era algo que pra mim ali… hoje eu consigo refletir melhor, mas era natural, fazia parte do processo ali que tava acontecendo, né? Então ali eu fiz mais amigos, ali foi complexo, mas eu criei vínculos, né? Depois, logo depois, fui jogar basquete dentro da escola, o time de basquete era o time queridinho do diretor e no primeiro teste eu passei e aí você já ganha o status ali no convívio ali com a turma. Logo em seguida meu pai foi participar do Rotary Club que... E aí levou a gente pra participar do Interact, que é o grupo pra jovens, né? E aí era um grupo bastante ativo e fazia muito trabalho social, muito assim. Então, também me enturmei, participei muito, depois fui presidente do Interact da minha turma. Então, ali teve uma conversa. Quando estava assim adolescência, foi ali que eu fui apresentado pra tudo, né? Bebida, droga, tudo, de uma vez assim, né, sem ter preparo nenhum, nenhuma conversa anterior.
(42:30) P/1 - Namoro também, ou não?
R – Sim, sim. Foi o primeiro, foi a primeira namoradinha lá, tudo. Então, assim, foi ali que eu acho que eu tive a convivência, né, de escola, de adolescente.
(42:45) P/1 - Qual foi o nome da escola? Desculpa.
R - Foi um sistema... Não lembro a escola, não, mas o sistema era Positivo... Eu não sei se a escola existe ainda, mas eu lembro de ter esse sistema. Então lá tinha uma configuração, era uma cidade maior, a escola tinha uma estrutura maior, tinha de esporte, tinha tudo. Enfim, tinha uma estrutura que… as demais cidades eram bem interioranas, bem pacatas assim.
(43:15) P/1 - E quem que era a tua turma no fim das contas? Quem que você descobriu lá, quem que você virou amigo?
R - Cara, eu era o que transitava em todas depois. Eu sentia isso, assim, sempre fui o cara que falava com todo mundo. Era um jeito de tá bem, eu nunca fui de uma turma assim, nunca tive uma questão. Então, tinha parte de esporte e eu fazia, né, tinha um pessoal que embora não convivesse tanto, o pessoal que era uma outra turma mais pesada, vamos dizer assim, ou que tinha uma relação com drogas, etc., mas era a mesma turma que jogava futebol, que eu jogava e convivia. Então pra mim era normal estar ali, tinha uns na praia ali, o traficante estava ali, a gente conhecia. Cara, ou você conhece todo mundo ou você dança, né? Então, assim, se eu falasse, eu era da turma que eu tinha, eu tinha um bom desempenho escolar, então ia bem, mas praticava esporte, convivia com todo mundo. Agora que eu ficava mais ali no colegial com o pessoal que jogava basquete, que jogava futebol, que era mais saudável, mas tinha uma convivência com todo mundo assim.
(44:36) P/1 - Quem que é esse amigo que restou?
R - O de lá foi o Alessandro. O Alessandro lembra quando eu cheguei na escola [no] primeiro dia de escola. Cheguei lá, cara, começou o burburinho, burburinho não sei o que, né? Chegou caipira, sei lá, alguma coisa assim. E aí o cara, o pessoal combinando de me pegar fora da escola, cara, eu não tinha falado com ninguém, as boas vindas deles eram me bater na saída. E aí, sem saber, o Alessandro e o Nasmy, né? Depois, mas hoje eu tenho um contato maior com o Alessandro. Ele falou, não, não vai, não, ninguém vai fazer nada e me acompanharam até em casa, pra evitar que acontecesse alguma coisa. E aí foi no primeiro dia, daí eu acabei ficando muito amigo dele e a gente convivia muito lá. Então todas as descobertas e conversas era tudo muito com ele. A gente se fala muito pouco hoje por causa da vida, foi indo, mas é engraçado que quando a gente volta a falar, parece que tava na mesma época, sabe, na mesma intimidade. Muito interessante. Então, a minha lembrança de amigo, a minha primeira lembrança em personificação, do que é uma amizade, foi com ele.
(45:53) P/1 - E o que que te marcou que você viveu? O que te marcou mais em Praia Grande? Tem alguma história que você carrega com você?
R - De lá algumas, cara, dessa descoberta da vida assim, né? Porque eu, até então, era muito fechado, num mundinho muito isolado, não tinha uma vida social, nada, né? Então ali foi uma descoberta do que a vida e em meio na raça, assim, sabe? Então de contato com tudo que era novo ali e meio que aprendendo sozinho, né, com os amigos ali, fazer com aquilo tudo que era apresentado. Então, tudo que é em relação a namoro, drogas, bebida, tudo eu estava descobrindo ali. Então a lembrança assim é de viver mesmo, sabe? Está ali, está fazendo as coisas, né? Quando eu fui pro Interact a gente tinha um trabalho, eles tinham um trabalho social muito grande, então logo no começo... Cara, eu fui pra lá, de repente tava tendo contato com uma coisa que não fazia parte da minha vida, né? Acesso a qualquer coisa, que praia... Praia não é um lugar pra criar filho, cara, é um negócio assim legal você ir, mas... E aí, por exemplo, eu lembro que me marcou muito no Interact logo no começo assim, a gente visitava uma fazenda que é uma fazenda que foi criada por um ex-jogador do Santos que se envolveu com drogas, jogou na época do Clodoaldo, do, enfim, daqueles caras, né? Daquele time, e acabou com a carreira por causa de drogas, ele teve uma fazenda, perdeu por causa de, né? Tem uma história triste assim, mas depois ele criou... E aí a gente ia fazer churrasco com ele, sabe? Que era um jeito de, enfim, ia lá e aí, de repente, quando eu tava descobrindo tudo, tava o cara lá que tava falando, meu, se fizer isso aí isso aqui é isso que acontece, aquilo. Então, a convivência era muito natural, mas, assim, eu sabia a consequência. Tinha amigo que fazia, tal. Então, quando vem a lembrança dessa cidade, é de uma descoberta de tudo, né? Da primeira namorada, primeiro beijo, do primeiro porre, tudo primeiro foi lá, entendeu? O primeiro... Então, todas essas histórias que a gente dá risada hoje quando a gente lembra das coisas que fez foi lá. Então, quando eu lembro de lá, eu acho que eu lembro tudo de primeiras vezes, sabe, de descoberta.
(48:49) P/1 - você pode contar pra gente alguma primeira vez de alguma coisa que aconteceu?
R – Cara, vai, primeiro beijo foi no estacionamento do prédio que eu morava, uma menina que morava em São Paulo e eu lembro assim de uma vergonha de... Pra rolar esse primeiro beijo foi uma sina... Eu lembro disso, lembro do primeiro porre que eu tomei, nunca tinha bebido nada e aí fui pra casa do Nasmy com o Alessandro, fomos estudar química, física, estudamos meia hora, aí lembro... Cara, lembro da gente tomar, aí o Nasmy vir com uma garrafa de 51. Cara, e aí três moleque que não tinha bebido nada, tomou, sobrou isso da 51. Aí fomos pra praia jogar bola, louco, assim, lembro de, pô, daí ficou assim, a gente dá risada até hoje que eu lembro que eu estava apaixonadinho por, já era outra menina, já da escola, evidente que ela não olhava pra mim, né, e eu lembro de chorar lá na praia, eu bêbado falando... Daí no outro dia, os três, né, conversaram sobre isso, tudo bem. Então, eu lembro muito dessas histórias de moleque. Engraçado.
(50:12) P/1 - Vocês gostavam de ir pra onde na Praia Grande? Obviamente na praia, mas...
R - É, é. Mas eu morava na frente da praia. Então, assim, é uma praia extensa, né? Então, o campo na extensão dali na frente de casa era o único que tinha traves fixas, assim, uma trave do tamanho dum campo Society, um pouco maior assim. Então ali é meio ponto de encontro. Do lado do meu prédio tinha uma sorveteria que era conhecida, todo mundo ia ali. Saía da escola à tarde, jogava bola e depois a gente ficava, final de semana, saía do prédio, descia, caía na... Ficava o tempo todo na areia. Lembro do meu pai comprar, logo que a gente mudou assim, ele comprou prancha pra todo mundo assim, pros três, né? E daí eu tentar surfar e não dava, meu irmão, o mais velho, ainda conseguiu, mas eu não levava jeito, então, assim, cara, eu ficava ali o tempo todo na praia, não tinha muito o que fazer também, sabe? Quando eu comecei a jogar bola, ia mais pra Santos, mas não era uma época que, por exemplo, saía pra barzinhos, num tinha isso, não lembro de ir... Eu lembro de ter boate, algumas coisas em Santos, mas nunca ir. Eu lembro do meu primeiro show ser ali na praia, de ver o show das bandas que eu gostava, né? Cara, todos os finais de ano, em praia, a Prefeitura sempre organizava, né? Então, de assistir show do Paralamas, do Ultraje, enfim, todas aquelas bandas da época, de assistir ali aquela coisa, um show do cara que... Então, eu lembro desses passeios ali, dessa convivência ali.
(52:14) P/1 - E me diz uma coisa, aí você ficou o quê? Uns dois, três anos lá?
R – É, a gente ficou uns três anos. Dois, três anos, é.
(52:21) P/1 - E vocês tiveram que ir pra Minas?
R - Aí foi quando meu pai mudou pra Monte Belo, lá em Monte Belo, era uma cidadezinha muito pequena e não tinha colegial, pra você ter uma ideia, e aí eu fui pra Alfenas, então eu tinha, quando eu fiz dezesseis anos, eu fui pra Alfenas, três dias depois eu fiz dezesseis anos. E eu lembro assim: “Não tem Colegial, você vai estudar em Alfenas”, meu pai fazia matrícula, e de eu ir com ele, me levar de carro, me deixar na… Já ele tinha ido lá antes, tinha visto pensão: “Ó, você dorme aqui, você come num outro lugar aqui” e, tipo, eu fui com... E me deixar, pronto, sozinho. Mais uma vez, não teve conversa, nada: foi.
(53:07) P/1 - Mas só voltando... E como é que você se sentiu saindo de Praia Grande dessa vez?
R - Foi a primeira vez que eu chorei com a mudança, eu lembro desse momento assim, do meu pai falar que ia mudar e eu ir pro quarto e chorar. Porque, cara, adolescente, morava na praia: “Vou mudar pra Minas”. Cara, adoro Minas, onde eu tenho o pessoal... Mas, pra mim, na época, não era uma boa perspectiva, né? Mas quando eu fui, daí eu fui pra Alfenas, então... E Alfenas é uma cidade universitária, então tem um burburinho lá todo, mas, cara, eu tava saindo da praia, era caiçara, só andava de chinelo e bermuda, o cabelo tava parafinado, sabe? Era o caiçara da praia, se achava malandrinho, sabe? E aí você muda para um negócio, uma cultura que é, sabe? Tinha, cara, era foda. Foi... Mas eu fui pra Alfenas, aí Alfenas tinha cidade universitária e aí chega, eu chego em Alfenas, aí vou no primeiro dia pra escola, eu era o único paulista com sotaque, cara, eu fui de chinelo, bermuda e aí não podia entrar na escola porque eu estava de chinelo. E eu não tinha tênis porque não usava. E aí já, cara, daí eu cheguei na escola, era o assunto da escola, né? Então, toda aquela dificuldade que eu tive quando eu mudei pra Praia Grande no início, quando eu cheguei em Minas, era outro cenário ali, né? E Alfenas era um clima universitário. Embora eu tava no colegial, com essa cidade universitária, então, tinha muita festa, muito burburinho, muito jovem assim na cidade, né? Então, mas foi a época que eu mais estudei assim. Até por causa do isolamento que eu tinha, tinha os amigos ali da escola, tal, tinha a todos eu ia pra cidade onde meus pais moravam, mas eu ficava ali, então foi a época que eu chegava tarde. Cara, não tem o que fazer, é Alfenas. Mas voltava, saía de manhã, o que que eu vou fazer à tarde? Era só uma praça. Cara, era terrível. E aí foi a época que eu estudei muito, muito.
(55:37) P/1 - Tava no terceiro ano?
R - É. De decorar apostila de química, sabe? De saber de cara, não tinha o que fazer na escola, aí comecei a fazer cursinho à noite, porque, cara, o que eu vou fazer aqui? Aí a escola dava, podia frequentar a aula do cursinho. Então, eu estudei muito, assim, foi a época que eu mais estudei mesmo.
(55:59) P/1 - E como é que era morar sozinho pela primeira vez?
R - Cara, era meio natural. Assim, num sei se era muito... Não lembro de ter medo, receio, tudo. Era meio assustador assim, cara, de repente, agora… Eu estava com meus pais, querendo ou não tenho uma... E agora você faz, meio que se vira tudo sozinho, né, você vai é...
(00:56:28) P/1 – Era uma pensão?
R – É, numa pensão. A sorte que eu fiquei no quarto individual ainda, mas era ruim no ponto de vista de ficar muito sozinho, né? Porque você chega lá, todo mundo ali, que estudava em Alfenas, voltava pra [suas] cidades, então ninguém ficava lá. A gente não tinha… Fiz amizades lá, mas era, cara, não era um negócio que eu... Era ruim, de isolado. Assim, e era uma época que eu vou pra lá sem muitas conversas. Quando eu entro na adolescência, essas conversas não tinham em casa, né? Então, quando eu vou morar sozinho, eu não tive nenhuma conversa com meu pai, “Ó, você vai morar sozinho”, foi uma decisão que eles tomaram. “Você quer fazer isso? Não quer fazer isso? Quer morar em Alfenas? Quer fazer…”, [não teve] nada [disso]. “Então, meu, tô aqui sozinho, vambora”. Então, assim, e aí eu acho que isso influenciou muito na personalidade que eu tenho hoje, de ser, sabe, muito autossuficiente, de querer não depender muito das pessoas, tal.
(00:57:37) P/1 - E você, enquanto você tava estudando, já tinha alguma coisa que queria fazer, tava pensando em algum curso ou não?
R - Não. Cara, eu tinha dezesseis anos, não sabia nem o que eu queria da vida. Não sabia nem… de nada! Era muito imaturo. Eu escolhi a faculdade que eu ia fazer consultando o manual da faculdade: “Ah, vou prestar pra quê? Tá todo mundo falando em computador, vou fazer engenharia de computação”, foi isso. E por ser engenharia, né? Mas não foi uma decisão consciente, assim. Aí, de repente… eu nem pensava e, de repente, eu tava com dezesseis anos no terceiro colegial, porque eu tenho um ano mais cedo. Quando eu tava em Praia Grande, tinha prestado vestibular pra uma faculdade ali em Santos, tinha passado. Então assim, fui. Não foi uma escolha consciente assim. Então, engraçado que eu não tinha qualquer diálogo nesse processo, do que fazer. Claro que eu tinha aptidões, eu achava que poderia [ir] numa área de exatas, hoje eu tenho uma visão completamente diferente, mas não foi uma decisão consciente. É engraçado assim, que quando eu escolho, foi meramente lendo o manual: “Ó, tem isso, isso aqui. Aí eu vou fazer isso aqui, pronto”. Depois, eu vou pra faculdade com uma imagem: “Não, agora”... Primeiro, eu faço a inscrição em várias faculdades, aí no final de ano, com meus pais: “Ah, não, vou fazer mais um ano de cursinho - não sei porque que a gente chegou a essa conclusão - e aí depois presto”. Então não fui prestar federal, não fiz nada. Aí fui passar as férias em Limeira e tinha prestado, tinha [me] inscrito na PUC-Campinas. Aí minha prima foi pra fazer a prova na PUC, eu estava lá, falei: “Ah, vou com você”, daí fui e passei em sétimo lugar no curso. E aí nem fui ver resultado, minha tia que ligou: “A Vanessa passou, o Rafael passou também”. E aí fica [aquele]: “E aí, faz?”. Aí meio que assim, não teve escolha: “Você vai fazer”. E aí fui pra faculdade, falei: “Não, agora é sério, agora eu vou fazer faculdade, agora”... Com aquela imagem… Não sei da onde que eu tinha aquela imagem de faculdade, um negócio de responsabilidade. Cara, chegou na faculdade, né, república e tudo, aí vi que era muito, tinha muito mais festa do que… Mas eu tinha pouco tempo, a minha faculdade era integral [por] três anos seguidos, então não tinha...
(01:00:31) P/1 - Em Campinas ou Limeira?
R – Campinas. Mas foi a época que eu morei com a minha avó, que eu morei seis meses em Limeira, viajava todo dia pra Campinas. E aí começou a ficar cansativo… Assim, fiz alguns vínculos na faculdade, aí a gente foi, montou uma república na época. Mas [a faculdade], fui fazer sem convicção nenhuma do que queria fazer, assim, de verdade.
(01:00:58) P/1 - E foi engenharia da computação na PUC?
R – Sim. Mas, cara, fazer ou não, num fez diferença profissionalmente hoje, num faz, num… Tá bem, uma visão sistêmica, tudo, mas hoje eu não acredito muito mais nesse modelo de ensino assim, sabe? Sei lá.
(01:01:25) P/1 - E foram três anos lá?
R - Foi… Não, fiquei em Campinas, a faculdade tinha cinco anos, né? Enfim, estudei lá e depois já comecei a trabalhar lá e daí acabei ficando em Campinas o resto da minha vida. Enfim, até recentemente.
(01:01:45) P/1 - Então você não leva muita coisa dessa faculdade, é isso?
R - Não. Hoje, vamos fazer... Assim, tem profissões ainda que você vai precisar fazer. Eu acho que hoje o modelo de ensino vai te exigir muito mais pequenas formações, pequenas habilidades do que... Cara, você vai fazer engenharia: química um, dois, três, quatro, cinco. Você não usa pra nada. Física um, dois, três, quatro: usa pra nada. Cálculo um, dois… Cara, eu ponho no computador, eu estou fazendo computação, porra, ele calcula pra mim. Não faz sentido ocupar tanto tempo com o negócio que não é na relação humana. Faz muito mais sentido, por exemplo, desenvolver habilidades pra relações, né? Principalmente no meu curso, cara, tem uns gênios lá, não conseguiam conversar cinco minutos, sabe? É o cara que tá lá fazendo o mesmo trabalho braçal até hoje. Então, não sei, não levo, não acho, poderia ter sido um dinheiro investido em outra coisa. Mas eu não tinha nem a consciência de tomar qualquer decisão, vinha de uma educação que você tem que: “Qual é o papel que você tem que seguir? Você tem que fazer, estudar, não sei o que, formar, não sei o que, depois tem que…”, eu tava seguindo o script lá.
(01:03:17) P/1 - Mas você parou, você falou que parou em algum momento pra tentar ir para a Psicologia?
R - Eu cheguei. Então, olha, nem... Eu falei: “Cara, o que eu vou fazer e tal?”, cheguei a prestar, fazer uma primeira prova, depois não fui na segunda, porque imagine o que eu ia falar, né, de mudança, de sair, de… Cara, eu tava seguindo o script que me botaram pra fazer.
(01:03:39) P/1 - Mas isso foi um movimento também pra sair dali, não foi?
R - Foi, mas eu não tive coragem, eu acho, de bancar, entendeu? Eu dependia do meu pai financeiramente ainda, né, então como que eu vou falar: “Vou largar isso”?!
(01:03:55) P/1 - Mas por que psicologia naquela época?
R - Cara… Hoje eu entendo, né, mas na época eu só não queria o que eu tava fazendo, e aí eu acho que era um caminho natural pras coisas que eu gosto de fazer, né, que eu acho que estão muito mais ligadas a humanas do que exatas. Então, qual foi o meu processo de escolha? Eu ia muito bem em exatas, então naturalmente: “Ai, esse menino tem aptidão pra exatas”. E aí vamos: “O que tem de exatas?”. Mas hoje eu entendo que as coisas que eu gosto de fazer ou as coisas que eu me sinto bem tem muito mais a ver com humanas, né, com essas relações, com cuidado. É claro que o fato de [que] eu vim com uma... Ter uma formação, né, de exatas, me ajuda a olhar esses modelos de uma forma, eu tenho até uma tendência de colocar tudo em framework, começar a organizar tudo. Mas não faz sentido pra mim hoje, mais, assim, sabe?
(01:05:10) P/1 - E você, durante a faculdade, estagiou ou foi trabalhar?
R – Sim, logo quando foi possível, fui trabalhar. Daí fazia estágio, trabalhava das seis às dez da noite, entrava às quatro às vezes, dependia do horário da faculdade. E aí não parei mais, né? Fui, fiz estágio. Depois fui trabalhar, na época que era o boom de digital, então, cara, fazia muito freelancer, daí... E aí foi também um momento de poder ter um dinheiro e não depender mais do meu pai, né? Eu lembro, meu pai ainda me ajudava, mas aí já numa proporção menor assim, né? Essa independência era importante pra mim assim, sabe, não depender muito. Daí fui, enfim, fiz estágio, fiz alguns estágios, depois fui já empreender, né, fazendo freelancer...
(01:06:16) P/1 - Você trabalhava com o quê?
R – Eu, cara, vinha de uma formação de exatas, eu trabalhava muito com programação, né? Acho que o meu primeiro estágio foi numa empresa de internet, de suporte de internet, então fazia aqueles call center de suporte, de instalação, outras coisas. Depois, nessa mesma empresa abriu uma área de programação e eu comecei a programar, depois eu fui trabalhar na DPaschoal, que tinha aberto um portal automotivo, aí fui trabalhar também com programação. Então, eu sempre fui ligado com a questão de tecnologia e de programação. Depois, em algum momento, eu passei a atender agências de comunicação, programando para outras empresas, né? Então, eu lembro de pegar um trabalho grande para uma indústria farmacêutica, que era o site Intranet. Isso aqui, eu falei: “Meu, podia ficar quase um ano e meio”, na época não tinha custo nenhum, só que você trabalha... Daí eu saí do estágio, falei: “Por que eu vou ficar aqui se eu...”, e aí comecei a trabalhar pra agência de comunicação, e aí migrei. E aí, em um dos trabalhos, o cara que era o responsável de web, que na verdade vinha de comunicação, mas não entendia, não tinha, né, know-how técnico, saiu e aí eu fiquei, né, acabei ficando. E aí dentro de uma agência, atendendo dentro de um universo de comunicação, de agência, comunicação, marketing, mas com a área da tecnologia. Daí, aí eu já via aquele boom, cada agência criando o seu núcleo de digital e tal. Eu falei: “Meu, eu vou abrir uma empresa e vou atender todas. Eu vou ficar aqui, aí eu tenho uma limitação. Eu quero fazer outras coisas”. E foi meio que assim, né? Fui desenhando para abrir a agência que eu tive e atender outras. Então, teve… Aí quando eu abro, eu passei a atender as outras. Durante dois anos fiquei fazendo esse trabalho pra outra, sem aparecer, porque a gente era eu e mais o meu sócio, eram pequenos, né, e era o jeito da gente chegar em projetos interessantes. Então, logo depois, a gente tava fazendo documentação pro Bradesco, por exemplo, sabe? Pra um banco, pra, sei lá, um supermercado, um Carrefour, ou atendendo clientes que nunca iam me contratar, só que contratava a agência que vendia trinta vezes mais caro o meu trabalho. E aí passou, daí era legal, a gente tava atendendo marcas legais. A gente, na ingenuidade ali, tava funcionando e aí foi crescendo. Só que como a gente foi crescendo e aí, em algum momento, daí a gente passou a atuar de forma, a atender essas agências, mas já de forma independente, né? Então foi nesse momento que eu migro profissionalmente pra área de comunicação.
(01:09:17) P/1 – Em mais ou menos o quê? Em dois mil e pouco, é isso?
R - 2005?! Pode ser. Acho que 2005, 2006, por aí mais ou menos. Eu já atuava, mas a minha empresa mesmo eu abri em 2009 pra 2010.
(01:09:35) P/1 - E nesse período, você acha [que] mudou muito?
R - Como personalidade, você fala? Que período você fala, indo pra, ali já na faculdade você tá falando?
(01:09:50) P/1 - É, até essa trajetória toda que você me contou.
R – Não, ali não sei se tem tanta mudança naquele processo, acho que: “Eu venho até a faculdade, agora eu começo a trabalhar, etc.”, eu vinha seguindo um modelo de masculinidade, um modelo de muito em função do que a sociedade ou minha família esperava de mim assim, né, com muitos comportamentos que se enquadravam dentro de um modelo que a sociedade entende do que é ser homem na sociedade. Então não vejo muita mudança quando você fala assim, não vejo. Fui seguindo. Claro que fui mudando dentro daquele contexto, as minhas relações foram mudando, a forma, né? Mas eu não vejo nenhuma mudança brusca assim. Enfim, tive relacionamentos, mas sempre dentro de um modelo assim, meio que um... A gente vai seguindo a vida meio que um zumbi, sabe? Você vai fazendo, cara. “Escolha a faculdade”, “Por quê?”, “Porque você escolheu”. Aí eu falei: “Eu vou morar”, porque, sem questionar, né? “Ah, você vai”... lá atrás, né, voltando: “Você vai…”, “Por que eu vou fazer?”, “Porque todo mundo…”, você vai seguindo. Então, assim, eu não vejo nada de anormal assim acontecendo ou nenhuma mudança. E as mudanças que talvez inconscientemente eu quis fazer, eu não tive coragem de fazer ou de mudar de área ou de, sabe, não tive coragem. Então não vejo muita coisa acontecendo, num consigo identificar as mudanças que hoje identificam que aconteceram. E, assim, a forma como eu enxergo a vida [atualmente] foi num outro momento, mais pra frente.
(01:11:53) P/1 - E vamos falar um pouquinho disso então: você foi pra área de comunicação e isso, em seguida, trabalhando na mesma agência?
R - Não, eu já trabalhando na agência, mas depois eu abri e fui de forma individual, abri a minha empresa e aí que segui trabalhando, né? Eu, na época, trabalhava numa agência, saí e abri a minha. Nessa época, eu morava junto com a minha namorada da época. Eu não encarava assim, mas era um casamento, né? Você vai morar junto, enfim, tinha... Foi nessa época que eu abri também a empresa, sem muita perspectiva. Abri: “Vamos”. A coisa foi dando certo, mas a empresa funcionava no quarto do lado assim, né? Eu dormia num quarto e a empresa funcionava no quarto do lado. E... Desculpa, eu perdi o raciocínio... Você perguntou...
(01:12:57) P/1 – Que você migrou para a comunicação...
R – Isso, já trabalhava, migrei, daí abri uma agência que atendia basicamente o mercado de comunicação, marketing dentro de agências de comunicação. Eram os nossos clientes, né? Era o único jeito da gente chegar em clientes, senão a gente ficava só em pequenos negócios que não rentabilizavam tanto, né? Então, e aí passei, migrei totalmente, né? Fiquei nessa área, então passei a ter que ter outras habilidades que não eram só técnicas, né? E a empresa depois cresceu, a gente chegou a ter quinze pessoas junto. Era um trabalho maior de gestão de pessoas e era o que eu gostava, muito mais, de lidar com gente, sabe, do que ficar no computador vendo negócios… Era legal! Se eu fazia um negócio pro... Pô, morava em Campinas, um dos projetos que a gente fez, a gente fez pro Guarani, que é um time da cidade e tal, que já não tava no seu auge assim, mas, cara, a gente conviveu direto com os jogadores, entrava, saía, assistia os jogos. Era legal que o negócio tava acontecendo, mas, cara, não tinha prazer nenhum no que eu fazia, não tinha muito sentido. Se eu for ver, aí eu faço o negócio, entrego: o que isso agrega? Naquela época, eu nem tinha consciência disso. Mas aí a empresa… Eu fui… Cara, eu acho que foi a época que eu já estava: “Putz, você sente uma transição meio pro adulto agora”, sabe? Morava junto, estava abrindo a minha empresa, parece que era um outro universo já, né? E ali, dali em diante, eu já tava na área de comunicação e permaneci lá até desde então, né? E aí só foi mudando conforme o mercado de comunicação foi mudando, né? Mas ali eu fiquei nessa área já.
(01:14:53) P/1 - Que é o que você trabalha hoje, então? É a mesma empresa?
R - Não, eu tive essa empresa por doze anos. Depois, em algum momento - se a gente vai tocar nesse processo -, eu decidi sair. Saí da sociedade. E foi bom assim, foi, a gente, foi divertido assim. A gente conseguiu bastante, tudo que eu conquistei assim, né, minha família, tudo, foi através desse trabalho assim. Então foi a época que era prazeroso, quando a gente começa a crescer e começa a ter as pessoas, né, esse cuidado assim com… Tinha um pessoal muito bacana que trabalhava com a gente assim e era um pessoal novo, a gente era novo e era mais novo que a gente ainda, então entrava no estágio. E aí eu sempre tive uma preocupação com quem entrava, então, só pra você ter uma ideia, a gente só contratou a primeira pessoa quando eu tinha no caixa um ano de salário guardado, eu sabia que eu ia conseguir pagar ele, porque ele tinha família. A gente não tinha ainda, ela era casado, nem conhecia a Mi ainda. Falei: “Cara, como que a gente vai chamar um cara aqui que tem filho? E se a gente não consegue pagar esse cara?”. Então, ali, quando a gente começa a ter mais gente, acho que [começa] uma preocupação com as pessoas, sabe? E que é o que eu... Essa relação é muito... Tem nada a ver com o trabalho assim. Então eu lembro de a gente ter um ambiente dentro da agência, a gente era, assim, a empresa que era conhecida por ser um lugar saudável pra trabalhar. Então enquanto as outras agências varavam a noite, não sei o que, lá, cara… Eu vim de exatas, cara: se você não consegue entregar no prazo, é porque você está gerenciando errado. E, cara, tudo... Eu já vim de uma cultura de ter gerente de projetos e não sei o que, que a comunicação não tinha. Era um atendimento, geralmente atendimento de agência de comunicação - eu não sei como está hoje, assim -, mas, cara, sempre era uma mulher bonita que fazia o contato com os clientes. Geralmente ela não tinha conhecimento, porque ela é colocada ali por outros atributos. Quando eu tinha… Então, assim, o sistema de gerenciamento de agências da época - agora mudou muito, mas na época era muito tóxico, só ganhava dinheiro quem estava lá em cima, o pessoal que estava aqui embaixo ficava, se ferrava de trabalhar muito... Não tinha lógica, cara, não tinha lógica. Você fazer um negócio, chegar seis horas e os meninos não vai embora pra casa. Então tinha uma cultura de cuidado assim e não era consciente, sabe? Era meio que era o que tinha que fazer. Então, o ambiente era muito gostoso, quando a gente tava, né, quando a gente cresceu. E aí entrava na sala, tinha dez pessoas ali, tá todo mundo ali. Era, eu lembro muito desse desses momentos, a gente entregava num nível muito bom, modéstia à parte, e todo mundo se sentia participando, assim, eu lembro quando... Coisa e valores assim, né? Eu lembro, por exemplo, tratando com o cliente, era eu e o meu pessoal, só atendia diretamente, né? Então isso tinha uma diferença. Eu vim de exatas, tecnologia, quando eu ia atender como o diretor, não sei o que, eu entendia de tecnologia, então não tinha, o negócio rendia mais, eu acho. E aí tinha certas coisas que eram importantes pra nós. Então, por exemplo, eu lembro da gente atendendo um cliente que era legal e tal, aí um dia eu fui pra São Paulo atender outra coisa e aí ficou a estagiária pra pegar, era uma reunião de briefing de, cara, simples e fazia parte do processo, sempre tinha uma pessoa mais júnior que ia fazendo tudo sempre com alguém do lado e sabia que a gente era uma agência pequena, as pessoas iam ficar ali, seis, sete, oito, sei lá, um ano e depois, cara, eu tinha um sonho de querer... E aí eu lembro, por exemplo, dessa cliente, vir uma madame lá da... E descascar a menina, sei lá porquê... Cheguei na agência, aí me ligaram de São Paulo, viram [que] aconteceu isso aqui e tal, não sei o quê. Cheguei na agência, na frente de todo mundo, falei: “Eu liguei pra mulher. Ó, não, a gente não atende mais você. Não interessa o que aconteceu, não sei o quê. Acabou, fechou”. Então, eu lembro dessas coisas do dia a dia assim né? Ou de poder dar oportunidade pra um menino que, pro João, por exemplo, que tinha uma deficiência, que não conseguia entrar no mercado e era um cara, um menino excelente. E ele poder entrar, não porque ele tinha isso, mas porque ele era bom, cara. Ele entrar e ele crescer lá e chegar uma hora ele aprender tudo e a gente falar assim: “Ó - eu junto com meu sócio -, o que você quer fazer agora? Que agora você já fez tudo”, “Ah, eu quero aprender a programar”, “Então, tá bom. Então metade do tempo você vai ficar aqui, metade do tempo você vai programar” e ele aprender - muito mais velho do que meu sócio na época - e tal. E hoje ele está numa empresa de tecnologia. Então todas as pessoas que trabalharam comigo, nessa época, hoje estão muito melhores assim. E aí quando a gente conta assim é engraçado, as meninas falaram: “Esse foi meu primeiro chefe”. Primeiro que eu sinto que eu tô ficando velho, mas é muito prazeroso isso, é isso que a gente leva, lembra o carinho, o estágio que fez. Então, assim, dessa época de empresa, a gente tá falando não sei porquê acabei entrando, eu acho que talvez aí começa já um processo de: “Tá, a gente faz isso, mas, pô, isso aqui é mecânico, é chato”, aí eu começar a ter mais gente e aí essas relaçõesm eu entender que não tinha outro jeito de fazer isso, né? Ou se eu trabalhava comigo, de saber, por exemplo, que a uma das meninas que gostava do Rio, morava longe e aí no aniversário dela a gente comprou um monte de coisa do Rio e não sei o quê. De fazer meio que uma casa ali pra todo mundo, sabe? Talvez aí comece a ter uma mudança de… Aí, nisso, por causa do trabalho, ter que me relacionar mais e aí começar a refletir sobre um monte de coisa. Daí eu conheço a minha esposa, aí vou ter filhos, daí eu acho que começa um outro processo. Eu acabei talvez pulando uma parte. (risos)
(01:21:47) P/1 - Tem uma coisa meio que um amadurecimento, talvez?
R - É. Né? De sim, eu já tenho empresa, começo a crescer, me sentir adulto, né? Sooa até meio infantil falar isso, mas era uma transição, porque eu era muito moleque, cara, muito novo, entrei na faculdade muito novo, consegui trabalhar muito novo. Daí me senti um pouco mais maduro assim, responsável, sabe? Ter os meninos lá, trabalhar com a gente, a gente é responsável por eles. Não era só pagar, a gente era responsável por ajudar eles a chegarem onde eles queriam. Eles não iam ficar, sonhar o meu sonho: “Mas como que eu ajudo eles a fazer o que eles querem fazer?”. Então, mas isso eu falo, hoje eu consigo identificar, mas lá na época era meio que intuitivo né? A gente ia fazendo e aí foi criando um clima que era muito... Eu acho que foi ali, foi moldando o que as outras coisas que depois eu viria fazer ou, enfim, o que eu queria fazer, né? Até que chegou um ponto que eu vou indo, eu vou intensificando mais essa mudança, querendo ir, meu sócio ainda permanece numa questão tecnológica e tudo bem, mas aí os [meus] objetivos de vida vão mudando. Isso foi um dos motivos também, depois, de sair da sociedade também. Mas por questões de você vai amadurecendo, vai mudando, você vai mudando de valores. Enfim, foi naturalmente.
(01:23:21) P/1 - Vamos falar então da sua esposa. Como é que você conheceu ela? Você contou um pouquinho pra gente, mas conta pra...
R - Então, eu mudo pra aquele prédio onde funcionou a empresa durante um tempo, né? Então mudo com a minha ex-namorada, que a decisão de mudar, a gente já tava num relacionamento há quatro anos, três anos, num sei. E aí meio que assim, acho, vimos o apartamento pra alugar: “Puta, que legal, fica mais barato pra mim, fica mais barato pra você”. Então, já começa errado, né? A decisão, embora a gente vivia num relacionamento, de morar junto foi baseada… E aí mudo pra esse prédio. Eu lembro, eu tava fazendo curso em São Paulo, ela fez a mudança toda, quando eu cheguei à noite em casa, na nova casa, falei: “Puta, fiz cagada, né?”. Enfim, vou contextualizando. Aí fui morar com ela, a gente ficou ali seis meses ali e aí é evidente que não deu certo, a gente acabou se separando, tal, foi ruim. Todo rompimento é ruim, mas pra ela foi acho que pior, eu acho que eu também poderia ter feito a coisa de uma forma mais tranquila assim, sabe? Honesta, talvez. Enfim, aí a gente [se] separou, continuei no apartamento, falei: “Já tô aqui”, já tava, a empresa já tava caminhando, então eu conseguia bancar, sabe? As coisas já tavam e aí a empresa continuou lá, o meu sócio ia todo dia pra lá, tal. E a Micaela morava nesse prédio, a gente se via assim muito raramente, porque eu também nunca desci na área social, não era comigo, chegava, né, mas estava... Fiquei, me separei, aí cruzava com ela, cruzava com ela, começou a me chamar atenção, tal, e aí eu via ela ia descer muito na piscina. Daí eu comecei marcar o horário que ela ia, os horários, comecei ver, perguntar ao porteiro. Comecei meio que mapear. E aí comecei a descer. Antes. Descia, aí ficava lá, encontrava, cumprimentava, fui meio que assim, fui cercando os horários, tá? Mas não sabia o nome, assim, não sabia nada. Ela tinha um sobrinho, que era o filho da irmã, que eu achava que era filho, porque mais ficava com ela, porque minha cunhada nunca cuidou da criança direito. Então não sabia se era filho dela, enfim, sei lá, a gente foi que... Fui descobrindo. A gente começou a se encontrar. Aí um belo dia eu desço e costumava levar livro, nessa época eu estava começando a ler mais tudo, eu estava lendo um livro, “O Caçador de Pipas”, que era um livro que tinha recentemente lançado, estava na lista dos mais lidos e tal, e lendo por causa, acho que, talvez desse burburinho do livro. Ela, em algum momento, passou e comentou do livro. E aí eu usei aquilo pra meio que começar a conversa, daí me apresentei. Aí aquela conversa foi assim: você tentando encaixar a conversa ali. E aí não sei o que que eu falei: “Não, eu te empresto”. Ela falou que queria ler, eu falei: “Não, eu te empresto, estou terminando” e eu estava na metade do livro ainda, um pouco mais da metade e eu falei. Tá, daí eu fui, a gente ficou ali conversando sobre as coisas e tal, daí eu já, né, fui entendendo quem era quem, como que funcionava as coisas ali. E aí eu fui, voltei pro apartamento e falei: “E agora, né? Como que eu vou… só vou ver no outro final de semana”. Porque no dia a dia eu falei: “Eu vou deixar o livro na portaria, vou falar que terminei de ler”, aí deixei na portaria com um bilhetinho falando que tinha terminado de ler. A gente tinha conversado sobre a empresa, eu lembro, a gente tinha feito, a empresa tinha um primeiro ano, a gente tinha feito uma ação no final do ano, uma parte do dinheiro era doado, ela foi pra… A gente usava tudo por coisas recicladas na época, então tinha uma empresa com os meninos, umas crianças faziam cartão reciclado, então a gente tinha uma ação que ganhava a sementinha e tal. A gente tinha comentado, não sei porquê. Eu lembro de deixar o livro, o bilhetinho e esse cartãozinho que a gente tinha feito no Natal. Foi, dei o livro, vi que ela pegou, lembro de saber os horários, ela sabia o horário que ela saiu com o cachorro, olhar pela janela, sei lá, ela já pegou o livro: “Então agora pegou o livro, vamos esperar o próximo passo”. Em algum momento, a gente se fala e no outro final de semana, benção, ela desce com o livro, pra entregar o livro e, nesse momento, quando eu começo a conversar com ela, eu conheço o restante do prédio ali, né, e aí passo a circular no... Tinha coisas de criança ali, começo a ficar ali porque eu tava interessado nela. Bom, ela volta com o livro e aí a gente começa a conversar, né? Começa ali: “Vamos ver”. Aí eu lembro exatamente da gente estar num desses finais de semana, três finais de semanas ali e tal, teve encontro das crianças, eu desço. Não tinha filho, não tinha nada, cara, desci ali… aí eu lembro da gente esse final de semana - aquele assunto, né -: “Ah, que filme tá passando”, sabe? E eu lembro do filme, nossa. Ela falou: “Esse é interessante”. E eu falei: “Não, então…”, aí convidei ela pra ir ao cinema e ela aceitou. Era um filme… nossa, agora deu branco, mas era um filme com a atriz, a Kate Winslet, aquela que fez o Titanic, mas era um outro filme. Se eu lembrar, eu falo. Daí fomos ao cinema naquele final de semana e foi a primeira vez que a gente se beijou, no cinema, no filme. E aí, volta pra casa, a gente mora no mesmo prédio, né? Eu falei: “Cara, convido ela pra subir no apartamento. Quero, sei lá…”, cara, fiquei muito saber o que fazer, tal. Aí convidei, ela num quis, tal, num sei o que, subiu lá pro apartamento - ela morava com a mãe, com a irmã. Eu falei: “E agora?”. Porque agora mudou a dinâmica, né? Eu vou encontrar no elevador, sei lá, tá com a mãe, putz, o negócio foi meio assim. E ela, assim, cara, eu, muito simples… Cara, assim, a minha vida ali, eu não tinha carro, não tinha… Assim, era muito… E ela, a primeira vez que ela... Minha esposa é muito bonita, mas ela, a primeira vez que você olhava pra ela, era uma patricinha, sabe? Toda não sei o que, o cabelão, sabe, toda… E eu fico, na hora… Cara, é coisa de exatas, né? Aí pronto, falei: “Ela toda assim, fresca”, sabe, quando você começa? “Ela com a minha família não vai dar certo”, sabe? Cara, aquelas coisas que a gente faz da vida, que a gente fica se preocupando com lá na frente e aí não vive, né? Mas era o modelo, tal. Mas, cara, a gente tava ali, saindo, tal, eu tava interessado, muito interessado nela. Eu lembro que a gente saiu no final de semana, no outro final de semana era carnaval e eu ia pra pro Sul. Eu falei... Só que eu tava, eu já tinha comprado passagem de avião, já tinha, mas, cara, eu já não tava com a cabeça no Carnaval, entendeu? Eu já queria ficar com ela. Falei: “Cara, e agora? Eu vou pro Sul, primeira vez que eu vou pro Sul, com meus irmãos, Carnaval”. Eu queria ir porque eu queria ver o meu irmão, mas eu não estava interessado em bagunça. Cara, já não estava, aquela semana eu já não queria. Falei: “Eu vou voltar lá, ela já vai achar que eu vou estar na festa. E como que eu faço?”. E ela estava aqui, ela ia sair com os amigos, cara, já estava com ciúme. É um negócio... Aí fui, ela me levou no aeroporto e eu lembro de ficar no SMS o tempo todo, pra ela saber que eu estava… (risos) Meio que assim - não falei isso, eu não admiti, mas assim: “Ó, estou aqui, estou em casa”. Dar um jeito de ela ver que eu não estava saindo, sabe? Porque eu não queria mesmo. Assim, sair com meus irmãos, a gente foi ali na... Mas já estava com a cabeça nela assim. E aí volto. Aí lembro que eu fui viajar na semana, fui tomar café na casa dela, com a mãe dela lá, tudo, e ela tava preocupada... Bom, eu volto… A gente saiu [pela] primeira vez em 11 de fevereiro e logo a semana seguinte era carnaval, eu volto e a gente começa a, tava ali se vendo todo dia. E aí, logo depois, eu contei pros meus pais, minha família sobre ela, tudo, e a gente tava vivendo, tava namorando, né? Assim, tava junto, se via todo dia, saía todo final de semana, eu conheci a família, meus pais sabiam, então, pra mim, assim, cara, a gente tá namorando, só esqueci de comunicar ela. (risos) Mas foi algo muito natural. Eu vim de um relacionamento que foi complexo, teve um término ruim, né? Então, com ela, eu já tava numa fase assim, meu, sabe, de... Eu nunca fui de bagunça, de ficar… Mas assim, era diferente com ela.
(01:33:15) P/1 - Vocês tinham quantos anos, quando você conheceu ela?
R - Eu já tinha mais de 35. 34? Tinha 34. Ela era quatro anos mais nova que eu. Eu lembro que ela... Não, mentira. Eu estava com 33. E aí, bom, seguindo: eu vi que tinha um incômodo nela, mas pra mim, cara, estamos normal. Chegou um tempo, tinha um, algo estava estranho e tal, mas seguia, ela não falava e seguíamos. Aí chegou o dia dos namorados e, cara, eu me toquei da data na semana, falei: “E agora?”. Compro… Sabe? Cara, idiota mesmo, sabe? E aí lembro de [que] chegou no dia, eu comprei uma caixa de bombom que ela gostava e aí falei pra ela ir em casa… Cara, tudo errado. Aí chamei e tal, dei, daí ela falou: “Mas o que isso significa?”, “Não, é um presente, nada”. Cara, não… Continuamos. Não sei nem como que ela continuou comigo depois, porque foi tão constrangedor, né, e o simples fato de eu não fazer o pedido, que era importante pra ela. Mas estava muito além do que era fazer um pedido, né? Era falar que eu gostava dela, admitir que eu já não conseguia viver sem ela. Era muito mais isso de que eu, como homem, não falava ou... Mas hoje... Mas naquela época, qual era o problema, cara? Tinha problema nenhum, sabe? Vai lá… Mas disso ainda, eu acho que aí eu começo a reconhecer, hoje, muito característica da forma como eu fui criado, de não ter conversas, de não falar, de guardar, de não demonstrar, porque falar que gostava dela, cara, que tava rendido ali, era um sinal de fraqueza. Hoje eu sei que num é, sabe? Mas, assim, pra mim hoje, analisando, era. Então eu lembro assim de eu ir no dia, dar a caixa de bombom: “Ah, o que isso significa?”, “Não, não significa nada”. Puta, sei que foi uma merda assim. E aí, bom, a gente seguiu e tal, passou junho, que era o dia dos namorados. Em agosto, após o meu aniversário, meus pais vinham, tal. Só que a gente tinha conversas já sobre filho, sabe? Era um negócio assim, aquelas brincadeiras, né, [de] você escolhe esse nome, eu escolho esse nome e tal. Aí eu lembro, a gente tá em casa… Cara, já passou, sobrevivi aquele episódio, isso daí depois virou brincadeira entre nós. Mas, assim, passou o mês, a gente tava em casa, ‘veio o filme’, não sei o que, conversando, aí eu comentei de algo. Não de casamento, mas algo dessa vivência juntos ali. Aí ela falou assim… A gente tava deitado, ela falou: “É, mas antes de casar, tem que namorar”. Daí eu falei: “Putz”. E aí foi a deixa pra... Daí eu brinquei com ela: “Você quer que eu ajoelhe aqui?”. Aí a gente brincou ali e tal, pedi ela em namoro. É uma coisa que na hora, naquela hora eu não entendia a dimensão daquilo, porque a gente… Era importante pra ela eu falar, né, um pedido, que hoje talvez nem sei como é hoje mais, mas, assim, tinha um significado pra ela. A gente já namorava, ela já era a pessoa que eu queria pra minha vida, mas o amor, às vezes, você precisa falar dele, né? Mais do que fazer, tem coisas que tem que ser ditas, por mais simples que seja. Então, falar “eu te amo”, que é algo que por muitas vezes eu não falei, né, pros meus pais, meus irmãos, enfim, pras pessoas que conviviam… Imagina eu falar “eu te amo” para um amigo?! Era inadmissível. Mas, assim, ali era um confronto, porque ela começa a me trazer um incômodo, no sentido de que: “Cara, eu preciso mudar pra estar com ela”. Esse Rafael não dá conta disso. Porque ela tinha outros valores que eram importantes pra ela e que eu tinha dificuldade de chegar, né? E aí, enfim, a gente começou a namorar. Depois, eu lembro que ela foi pra casa dela, ela até acordou a mãe pra falar que a gente tava namorando. Cara, e pra mim a gente já tava. Mas depois eu fui entender a dimensão daquilo, né?
(01:38:30) P/1 - O que você falou pra ela? Desculpa.
R - Do quê?
(01:38:33) P/1 – Você lembra do que você falou pra ela?
R - Do dia que eu pedi em namoro?
(01:38:37) P/1 - Uhum.
R - Fiz a pergunta clássica: “Você vai querer namorar comigo?”. E aí, engraçado como mudou no dia seguinte, parece que estava tudo… Tem coisas que precisam ser ditas, né? A gente fica… E aí era muito de uma personalidade, de jeito de eu encarar a vida. Eu era muito duro, rígido, cara, todo [com] horário. E ela, pô, estava sempre atrasava, sempre noutro ritmo. Então, ela ia e, cara, numa leveza, sabe? A gente vai sair oito horas, sabe, por que... Então ela foi trazer uma leveza que eu nunca tive na vida, assim, é um jeito... E ela tinha um jeito que ela é insuportável de só ver o bem nas pessoas, [pra] tudo. Às vezes eu chegava: “Não sei o que, aconteceu isso no trabalho”. Ela sempre falava: “Não, mas olha, você já pensou assim?”, ela sempre dava um outro olhar. Muito do que eu entendia do que eu era como homem, como não sei o que, foi depois sendo muito moldado pelo olhar que ela tinha. A gente depende muito sobre o que os outros acham da gente pra gente, né… Então eu, a relação com ela foi muito isso assim, de ela me ajudar a [me] moldar, de certa forma. De tirar essa casca, de ir tirando, com bastante sacrifício, porque eu acho que eu não era uma pessoa... Eu era muito duro e ela foi quebrando isso assim, foi quebrando e tal, né? Desse simples, cara, ridículo, essa coisa da caixa de bombom, tal, mas do dia a dia, da leveza, de ter mais tranquilidade. Então eu acho que foi um processo. Não foi assim de cara, não, ela sofreu, acho que assim, pra tudo isso, né? Enfim, daí ali a gente tava namorando, tal, passamos a conviver. Depois ela mudou do prédio, a gente já se via sempre, né? E aí vai passando, e é engraçado assim que eu a gente já falava de… como se a gente, né, vamos ficar pro resto da vida juntos assim. Falava de filhos, né? Brincadeiras: “Ah, qual o nome?”, sabe essas coisas de casal? Mas que não era só brincadeira. Eu falei: “Não, é isso mesmo. A gente tá”... e aí, quando eu me toquei, assim, eu já tava namorando há mais de dois anos, eu falei: “Cara, eu não imagino minha vida mais sem ela”. (choro) Aí: “Bom, agora vou fazer direito. Não pedi em namoro, mas vou pedir em casamento direito”, e aí comecei a planejar como que [ia] fazer. Foi tudo muito simples, mas eu quis seguir o protocolo. E aí fui, comprei uma aliança. Não comprei só um anel pra dar pra ela, comprei uma aliança que eu usasse também, era importante, pra mim, ter algo, dizer: “Olha, agora eu sou noivo”, né? Daí comprei… um mês antes. Fiz de tudo pra descobrir o… cara, foi um processo todo. Aí eu lembro de [que] no dia, eu já tava morando, tinha mudado de apartamento, ela me ajudou a montar o apartamento, tudo. Enfim, já era dela ali, né? Eu dei a chave, enfim, fui dando sinais de que era nosso. E aí eu lembro de [que] no dia, a gente tava na empresa, estava crescendo e estava indo tudo bem e tal, aí ele falou: “Olha, vai vim um cliente e a gente vai precisar sair, jantar”, e aí um negócio chato pra caramba, cada um vai com a esposa, o meu sócio, que é o Bel... “Então, na sexta-feira, você passa em casa e, pô, se arruma, que a gente vai jantar e tal”. Cara, no dia que eu falei isso, aí, cara, uma ansiedade até o dia que, né, de falar com ela. E ela não desconfiava de nada assim, nada. E aí eu fui, e o pai dela era vivo, mas eu não tinha, ela não tinha relação com o pai direto assim. Enfim, é uma outra história. Os pais [se] separaram, então tinha um afastamento, eu não conhecia [ele]. Fui conhecer o pai depois. Daí fui, liguei pra mãe dela, falei: “Ó, quero falar com você”, fui na casa da mãe e pedi ela em casamento pra mãe primeiro. Tinha uma formalidade que eu precisava, [de] falar: “Olha, eu vou pedir a Micaela em casamento e eu quero a sua permissão. É importante pra mim, que eu quero fazer isso”. Bora, né? Mas era uma questão de respeito, de, enfim. E aí ok. E aí chegou na sexta-feira, ela foi em casa… e aí lembra do livro, do Caçador de Pipas? Eu imprimi um cartão que era a capa do livro, só com a imagem e tal, coloquei a frase: “Por você eu faria isso mil vezes”, escrevi, né, deixei na porta e tal. E ela… chamei e aí escrevi, fiz um, escrevi um bilhete, dizendo: “Olha, hoje, se você abrir essa porta, até agora você caminhou sozinha aqui - alguma coisa assim -, só que se a partir do momento que você abrir essa porta, as coisas vão ser diferentes, a gente vai caminhar junto e tal”. Deixei esse bilhetinho e, enfim, chamei ela, chegou em casa e falei: “Ó, não tô me arrumei ainda, sobe porque eu num tô pronto”, né? E a casa já tava toda arrumada. Aí quando ela chegou em casa, abriu a porta, ela já entrou chorando e aí eu pedi ela em casamento. Aí fiz tudo como o protocolo manda. Aí, a partir daquele dia, a gente já começou… ela tinha o sonho de entrar de branco, sabe, aquela coisa. Então, a partir daquele dia, tudo passou em função disso, da gente combinar. E daí, naquele dia, eu fiz o pedido pra ela e falou: “Olha, eu quero que a gente [se] case daqui exatamente um ano, nessa data”, né? Então a gente… pra gente planejar. “Não quero ficar noivo aqui pra gente [só] ficar noivo, então é importante que a gente tenha isso e vamos começar a planejar”. E começamos assim, foi… e daí a gente já tava muito junto assim, né, era difícil imaginar qualquer coisa sem ela.
(01:46:06) P/1 - O que ela fazia, Rafael?
R - Era psicóloga. Fez mestrado ou especialização pra deficientes. Então, ela trabalhava na época com empresas fazendo inclusão de deficientes dentro da empresa, sabe, que virou lei, a empresa é obrigada, então ela, todo o programa, treinamento, enfim. E aí ela, enfim, a gente já conversava… enfim, era o tempo todo junto, né, tudo era junto. Então, eu lembro que foi uma fase muito gostosa. Era uma coisa muito importante pra ela. Eu nunca me imaginei ficar dando festa, essas coisas assim não é algo que me… sabe?
(01:46:58) P1 - Você não se importava muito com isso.
R - Não. Mas era pra ela, então, assim, vamos fazer. E aí não tinha ajuda nenhuma da família dela, nem da minha, né, financeiramente falando. Então eu trabalhei naquele ano todo pra pagar uma festa de casamento. E aí ia em tudo quanto é lugar que ela fazia… a programação do final de semana virou isso, né? Ia visitar não sei o que, ia fazer isso. A gente aproveitava e viajava, era bom. E aí a gente, eu lembro dela, né, começar a ver as coisas, eu falei: “Ó, eu só quero a fotografia, eu quero dar maior atenção, e à música; que eu acho assim, o resto que você decidir, tá tudo certo. Eu vou em tudo, a gente vê junto, mas é como você quiser”. E aí foi indo assim. Daí a gente, enfim, foi todo um período muito gostoso de proximidade, o envolvimento da família com tudo isso e tal. Então, o apartamento já era dela, né? Tanto que antes de casar, a gente chegou a mudar pro outro apartamento, ela que escolheu, então já tava… e, assim, com ela, a minha vontade de ser pai é desde quando a gente começa a conversar, né? E o que eu lembro, assim, dela primeiro, antes, né, de haver uma educação, eu não queria ter menina, porque menino… aquela coisa de homem: “Eu tenho menino”. Mas com ela, desde o início assim, eu falei: “Vou ser pai de menina”, era impressionante a sensação que eu tinha disso. Eu lembro da gente brincar com isso. Falei: “Meu, nossa primeira filha é menina, não tem… lembra como a gente escolheu o nome”... assim, da Maria, eu tinha… eu fale: “Ó, se for homem eu gostaria que fosse Francisco por causa do Chico, por causa do Francisco de Assis…”. E ela gostava de outros nomes: Lavínia, Vitória. E aí eu lembro que a gente já tava… nem noivo era ainda, mas eu lembro dela... eu, em casa, pensava um nome, falava: “Não, podia ser Maria Clara. Eu, se fosse o nome de menina, eu vou…”, falava pra mim. Juro, ela me ligou cinco minutos depois, falou: “Olha, eu tô aqui dirigindo, eu pensei num nome”, a gente tava conversando sobre isso. Ela falou: Maria Clara. Então as coisas que eu num… eu falei: “Cara, é nossa filha”. Enfim, aí quando a gente já tava noivo, então casamos. E por mim… a gente falou: “Ó, casou, por mim eu já, a gente engravida. Ok?”, “Ok”.
(01:50:00) P/1 - Mas como é que foi o dia da festa de casamento?
R – Nossa, eu estava nervoso. Eu não achei que ia gostar, sabe, de vivenciar aquilo, né? E aí, enfim, nesse momento, ela entrou com meu pai, que o pai dela não foi no casamento. E meu pai tem quatro homens, ele nunca ia entrar na igreja, né, então foi muito emocionante ver isso, ver meu pai vivenciando isso, ver ela entrando. Ela tava linda demais! Enfim, tava do jeito que ela queria, as coisas que ela queria e tal. Mas eu lembro de ficar muito nervoso nesse momento, [de] eu ter aquele momento de falar pra todo mundo, enfim. Mas foi um dia muito especial, foi bonito. E aí logo a gente foi pra, viajamos, tudo. Ela engravidou meses, três meses depois, e foi algo que a gente queria muito, né? Eu, em especial. Ela engravidou e aquela euforia. Mas depois quando ela… a gente perdeu o primeiro filho, né? Quando a gente foi fazer aquele exame pra escutar o coraçãozinho, ele já tinha, não tava vivo já. E aí lembro desse, né? Enfim, a gente… pulei já pro… mas a gente tava seguindo a vida de casado, trabalhando, passeando. A gente saía todo final de semana, jantava. E aí quando ela engravidou, lembro de ter perdido, e aí eu lembro que a gente quando sai do exame, aquela… pra onde vai? Tinha que fazer aquela curetagem, um negócio… aí eu fui pra casa e fiquei, me manti firme ali. Quando cheguei em casa, ela deitou, eu fui no banheiro e chorei. Chorei tudo que tinha pra chorar ali e falei assim: “Ó, agora”... conversava com o que eu entendo como sagrado hoje, né, pra mim e falava: “Ó, eu vou chorar tudo agora, depois que eu sair ali, na frente dela, não”. E aí foi, ela fez a curetagem. Pra ela era muito complexo, que ela tinha fobia de agulha, enfim, cara, foi um terror tudo. E aí o... aí, a perda gestacional não é uma perda, é um luto não reconhecido, né? Então, assim: “Você vai ter outra, você é nova”, sabe aquela besteira que o povo fala? E aí a gente, ok, seguiu. Aí tem um processo de esperar seis meses, pra poder, talvez, ter outro filho, poder ter tentativa. A gente… a placenta grudou, então a gente tinha uma questão de que se a gravidez continuasse no primeiro, ela ia ter que tirar o útero. Então, aconteceu, é muito mais normal do que a gente acha, né? Eu lembro quando a gente começou a pensar: “Agora está tudo bem, podemos tentar de novo”, a gente pensou inclusive em fazer inseminação pra ter dois filhos de uma vez. Pra tentar, porque a gente, enfim, naquela cabeça, a gente junto, começando uma vida... Aí acabou não fazendo, ela engravidou assim: na hora que a gente decidiu, ela engravidou em seguida e aí foi muito emocionante todo… a gente aguardou, esperou pra contar pra todo mundo no terceiro mês, aí esperamos, tudo. E pra mim: “É uma menina, não precisa nem fazer exame. Vamos…”, já comecei a comprar todas as coisas, né, pensando na Maria Clara. E já tinha nome, já tinha tudo. E aí vivenciamos, foi um período muito gostoso. É igual mulher quando vai ter filho e quer arrumar o ninho, né, daí a gente arrumou a casa, o quartinho, fizemos tudo do jeito que a gente… o exagero, né? O primeiro filho é assim, você vai [com] tudo. Mas foi muito emocionante o processo, lembro com muito carinho e medo, né? Eu tinha muito medo assim, queria muito ser pai, mas tinha medo mesmo...
(01:54:58) P/1 - De acontecer de novo?
R - Não, não, só de acontecer. Mas, cara, você é responsável por alguém, sabe? Porque assim, ó, tem uma coisa assim, [se] você parar pra pensar: “Você trocaria a vida pelo seu pai?”, você vai pensar. Pro seu irmão? Você vai pensar. Talvez você troque. Pela sua esposa? Você troca. Mas pelo filho, bicho, você morre ali. Era engraçado assim, você precisa morrer pra viver, tá bom, vambora. E aí, cara, é algo que eu... E assim, essa coisa que o amor nasce, nasceu, você vê, ama. Isso aí é tudo mentira, isso aí. Pra mulher, ela tava grávida, é um negócio, cara, surreal. A gente como homem, enquanto a gente demora séculos pra poder talvez criar aquele vínculo e muitos homens não criam, a mulher está ali, ela não tem muita… é um negócio... Então o homem, eu acho que é um processo e eu fui vivenciando tudo isso. Mas quando eu vi a Maria no dia em que ela foi nascer, a primeira coisa que eu lembro é de entrar no parto fotografando não sei o que, quando eu vi aquele bebê roxinho assim, cara, que o primeiro sentimento é medo, medo, medo. Assim, falei: “Cara, como que eu vou fazer com essa menina? Nunca brinquei de boneca, não sei de nada”. Então eu fiquei com medo sim, só que não era uma coisa que eu externava, né? Não vou e aí eu lembrei, eu acho que eu contei esse episódio de ver meu pai e aí vem toda referência que eu, né, de masculina que eu tinha. Aí você se rever como, começa a se rever como homem, né? Como que eu, cara, por muitas vezes ocupei um papel, eu não quero que a minha filha cruze com o Rafael de tantos tempos atrás. Então você, o nascimento do filho é um dos gatilhos pro homem talvez mudar esse script, que como eu comentei, vinha seguindo a vida inteira. E às vezes não acontece, mas a paternidade é um dos gatilhos assim, né? Então, foi nessa época que eu passei a questionar, tipo, o que que eu, o meu trabalho: “O que eu faço? O que ele tem dentro desse sentido?”. Ok, eu gero riqueza, gero isso, tenho um ambiente legal, mas, tipo, o que ele acrescenta pro mundo? Acrescenta nada. Sim, tudo bem, gera, a gente pode ir atrás, você gera uma cadeia, ajuda, mas, assim, do ponto de vista humano, né? Aí eu passo a me questionar, tipo, como homem, como muito em função de eu ter agora uma menina, eu acho que o nascimento do filho é marcante assim, mas pra mim foi muito importante que fosse a Maria primeiro. Mas, enfim, a Maria nasce, a primeira neta... Cara, é muito lindo tudo isso. Eu ainda... Mas eu, como homem, tava ali próximo, tudo, mas pra mulher é um negócio surreal, né, cara? O puerpério, que eu nem sabia que existia, nem sabia o que era isso. Enfim, todas as mudanças pra ela, corpo, tudo, né? Então é uma avalanche ali e eu sem entender muito ali qual que era o meu, onde eu me encaixava ali e tal. E a gente foi construindo, foi indo. Ainda muito sobre… eu acho que ali tem uma mudança já, já tem uma de questionamento sobre a vida, etc. e muito do que eu queria ser pra minha filha, né? Ali. E aí seguimos. E aí a rotina acompanha o crescimento da Maria, o primeiro dia de coisas que eu… Ver minha filha no primeiro dia na reunião da escola, eu chorei. O único idiota, assim, né, mas eu estou emocionado, afinal... Cara, mas me permitir emocionar com coisas simples, né? Que era um amor que eu, cara, não conseguia nem dimensionar, lidar assim, né? E aí muita admiração pela minha esposa assim, mas eu não verbalizava, né? Isso era outro... E ainda segue, mas e a gente, como a Maria é linda e tal...
(01:59:45) P/1 - Ela nasceu em que dia?
R - Ela nasceu dia 11 de janeiro de 2012. E aí a Maria crescendo, indo na escola. Cara, a vida seguia. Eu passei a me questionar muito sobre diversas coisas, aí esse processo eu acho que instalou o processo de mudança, por causa dela. Aí foi quando eu falei: “Cara, eu preciso parar. - eu trabalhava muito - Vou fazer o Caminho de Santiago. Eu preciso de um período sabático pra ver o que eu vou fazer da vida”, aí sair com uma criança, deixar a mulher, cara, ficar trinta dias fora, ela… não dava. “Então vou fazer um outro caminho aqui, que é o Caminho do Sol”, aí fiz o preparativo e me envolvi nesse momento mesmo, né? Nesse período que eu tava me questionando sobre a vida, o que eu ia fazer e tal, muito em função do nascimento da Maria, a Micaela engravidou e eu queria muito o segundo filho. Ela engravidou e pra mim eu já tinha certeza, é o Francisco que vem e tal, só que diferente da Maria, da primeira vez... Eu queria muito que ela ficasse grávida, estamos super feliz, tal, mas passou uma semana, dez dias, eu fiz as contas, falei: “Meu, não vou conseguir pagar a escola desse moleque”. E aí foi tudo aquilo, como eu fui criado, o que é ser homem, o que é prover, não sei o que, gravei numa tona assim que era foi muito foda, porque daí eu me enfiei no trabalho, queria trabalhar não sei o que, fiquei ausente de casa, cara, me enfiei. Aí o trabalho, pô, já não me satisfazia, sabe? Não queria fazer mais aquilo, não fazia sentido, aí começa os conflitos, né, com o sócio... Nada crítico assim, mas começa a ter conflito, né, de como conduzir. E, cara, tava muito ruim assim. Aí o meu relacionamento… aí que você imagina, meu, meu filho nasce e no dia do nascimento do meu filho, diferente da Maria, eu não estava lá. Eu estava lá fisicamente, mas a minha cabeça não estava. Era impressionante a minha desconexão com eles assim. Veja, eu não deixei de amar, não deixei de querer, só que, cara, a minha cabeça tava… porque pra cuidar daquele núcleo, eu tinha que prover, eu tinha que trabalhar, eu tinha que... E, cara, como que eu vou fazer isso? Também teve alguma complicação, igual na Maria, precisou antecipar e tudo. O Francisco nasceu um mês antes quase da data [e] um mês antes eu ia no show dos Rolling Stones, ele nasceu no dia dos shows dos Rolling Stones, 24 de fevereiro. Eu lembro de... A gente tava tendo esses conflitos, mas não era, não é conflito, né, tava estranho as coisas. Eu lembro de falar do show, vamos no show, dá pra ir. [Ela] falou: “Não, vai você só”. E era um show da minha vida, assim, sabe? Eu queria, é o único show que eu queria ver, assim, tal: “Não, tudo bem, você vai”. Eu ia com meu sócio, com a família, tal, um ambiente bem familiar, assim, né? Bom, e aí começa a ter algumas questões: o líquido amniótico começa a antecipar e aí veio a notícia que o Francisco ia nascer no dia e tal. E aí foi, né? O Francisco nasceu no dia do show dos Rolling Stones, quando o Rolling Stones tocou a última música, penúltima música antes de quando volta [pro bis], o Francisco nasceu e aí não fui no show, dei o ingresso prum amigo, o amigo foi e falei: “Traz alguma coisa do show”, e trouxe uma camisetinha pro Francisco e tal. E aí o Francisco nasceu e aí parece que deu um sopro de vida assim porque uma criança sempre, né? Que ela, só que eu acho que bem pra mim, cara, ficou muito pesado, duas crianças, né? Outro puerpério, a Maria independente, mas tinha muita demanda, o Francisco, e aí eu pude voltar pro trabalho, assim, de uma forma violenta. E aí eu, a gente teve um período de desconexão assim. Eu entendo que a gente ficou um pouco distante assim, sabe? Sabe quando você está do lado da pessoa e você fala: “Meu, tem alguma…”, né? E aí eu lembro da gente, eu ainda tentando entender como resolver, tava preocupado, já tava planejando a minha saída da empresa, então minha cabeça tava numa... E aí um amigo me ligou pedindo uma ajuda de alguma coisa, era um amigo que eu fiz durante um trabalho num centro espírita onde eu fazia trabalho voluntário e tal, mas me afastei quando tive filhos. Aí ele me ligou assim, e eu não falava com ninguém, né? Do que tava acontecendo, eu não tinha abertura com ninguém, não tinha amigo que eu pudesse conversar e tal. Ele me ligou e falou: “Meu, e aí, como você tá?”. Na hora que ele perguntou “como você tá?”, eu falei: “Cara, tá foda”. Eu falei que tava, não sabia o que ia fazer da vida, falei como tava a minha relação, eu estava preocupado, o trabalho… não sei o que eu falei, um monte de coisa e tal. Daí ele falou: “Meu, eu vou te levar num lugar e pra você... Faz tempo que você não vai no Centro, eu estou indo pra um passe, conversa com alguém e tal, vamos lá, tal, não sei o quê”, e aí parei a conversa. A gente ia na sexta-feira, aí conversei com ela, falei: “Ó, o Raul ligou, me falou assim, eu vou com ele e eu tô precisando, tal”. A gente já tava conversando e ela sabia que essa parte era importante pra mim, né? Eu tinha me afastado desse pilar espiritual da minha vida assim e aí fui no centro de umbanda e nunca tinha ido também, e aí fui e o guia lá, o pai tava com ela, ele olhou pra cá, a gente conversou e falou: “Meu, tá ruim lá na tua casa”. Eu falei: “Tá”. Ele comentou algumas coisas e falou assim: “Olha você precisa cuidar da sua saia - que era a Mi -, você precisa cuidar dela”, conversou assim e tal, me deu um livro pra ler. Eu tô contando essa história porque é o importante do que segue à frente. Eu fui pra casa, Micaela tava na sala me esperando, ansiosa pra saber o que o cara tinha falado, né, eu cheguei e falei pra ela que ele tinha falado que era pra cuidar da minha saia, né, que era ela, tal. E aí, foi o momento que eu falei: “Porra, eu tô sendo idiota, né? Eu não sei como fazer, eu quero tá aqui, eu quero ficar aqui, eu quero cuidar, mas eu tô preocupado com isso, eu tô com medo de não conseguir pagar as contas, eu tô com…”, e aí foi a primeira vez que talvez abertamente assim, admiti pra ela que, pô, tava morrendo de medo, mas que queria, que a gente precisava… que eu queria tá ali com eles, né? Enfim, pedir desculpas. Ali foi importante, a gente meio que: “Ok, vamos lá, então me ajuda, porque eu não sei fazer isso aqui”. Então ali a nossa relação foi ok. No outro dia já sabe, já tirou aquele peso e a gente vai caminhando, a gente aparando aresta, faz isso. Comecei a compartilhar as coisas do trabalho: “Eu quero fazer essa mudança”, e ela fazia, me olhava de outro jeito. Pô, chegava no meu sócio… converso com ele hoje, mas assim, a gente tava ali decidindo o que fazer. E essa conversa foi importante nesses dias, porque quatro meses depois veio o diagnóstico. Era final de ano, bem próximo do Natal e a gente tava conversando sobre as crianças e, enfim, tava vendo o que ia fazer, aquele [negócio] de: a gente vai pra casa da mãe, num sei o que e tal. Ela vai tomar banho e aí sente um caroço no seio esquerdo. E aí ela me chama, a gente conversa, tal, ela me mostra e aí: “Não, amamentando”... Francisco tinha dez meses: “Isso aqui deve ser da amamentação”, ela tava com o seio grande por causa disso. Mas aí… “Não, deve ser isso”. Só que depois de três dias, ela começou a sentir dor no local e ficou visível, o caroço ficou roxo, pra fora e tal. Então eu contei aquela história anterior porque ali foi importante. Quando aconteceu isso, a gente tava meio que tudo se arrumando ali, né? E aí veio o diagnóstico, começa com os exames. Final de ano, entre o Natal e Ano Novo, médicos, meu, você não consegue médico, enfim, várias ginecologistas [que], pô, falam mais besteira do que, né? Porque não é especialidade, então acaba falando o que não deve. Daí logo na semana depois do ano novo… eu lembro da gente passar junto o Ano Novo, em casa, que a gente fez uma foto e ali tá, cara, vamos… naquela meio: “Não vamos pensar nisso”. E aí a gente vai fazer uma biópsia”, minha esposa tinha fobia de agulha. E não era só fobia… era fobia mesmo, pavor. Ela me batia, me arranhava, desmaiava, gritava, era nesse nível pra cima. Eu acompanhei ela em exame de sangue, no namoro, então era... Então, só pra vocês terem uma ideia: no nascimento da Maria… você imagina, tinha pavor de agulha, imagina a anestesia. Precisou de sete pessoas pra segurar ela. A médica não acreditou. Aí no nascimento do Francisco, a médica mandou eu entrar junto com o anestesista. Pra você ter uma ideia. E um anestesista desistiu. Então era nesse nível o pavor. Então você vai fazer uma biópsia? Você já viu a agulha de biópsia? É um cano. Faz um barulho e a gente teve que sedar ela pra fazer e foi, né? Aí depois fez o exame, eu lembro de fazer o exame, a médica olhar e aí ela perguntar: “E aí?”, pra doutora Sandra, que foi muito importante nesse processo. Aí a doutora Sandra falou: “Só por um milagre [que] não é alguma coisa”, bem na lata assim, né? Aí eu segurei a onda ali, a gente terminando, saí lá fora, chorei também, liguei pra quem tinha que ligar, já esperando o resultado, né? Aí foi a biópsia, no dia… depois do dia onze… foi antes do dia onze, do aniversário da Maria, quatro dias antes. Era uma sexta-feira e a gente foi pra consulta pra pegar o resultado e aí veio a confirmação do negócio, né? Ela perguntou pro médico se tinha um tumor, o que tinha, né? Médico responde: “Nós temos um tumor, temos um tumor sim”, e aí era um tumor. A gente não tinha dimensão, mas era um tumor chamado triplo negativo, o tumor mais agressivo que tem. Quando você pesquisa no doutor, no Google é um… a maioria tem sobrevida de cinco anos. Ali a gente não sabia nada, né? A gente tá falando, a doutora Sandra foi importante, porque: “Tá, vai dar merda, pra onde que a gente vai?”. Não conhecia médico, não tinha nada. Ela saiu… a gente falou: “Ó, tem o médico do plano, mas a gente quer saber quem é o melhor”. Eu falei pra ela: “Eu quero”... falei: “Converso com ela”. Daí ela, do médico do plano, eu lembro dela, ela falava: “Olha, eu vou ser antiética, mas não vai nele”. Você vai… Vai? Não vai? E aí ela saiu, voltou com a consulta marcada com o doutor César Cabelo, que depois a gente veio a conhecer, tudo, é um dos melhores cirurgiões de mama do Brasil. Assim, se não é o melhor, está entre os três. Aí ela veio: “Olha, tá marcada a consulta na sexta-feira, tal”. Então, ela não precisava fazer aquilo, sabe? É aquela coisa, ela viu o desespero: vai que isso [ajuda], né? A gente foi e eu lembro de entrar na sala do doutor César, aí vê que tinha foto da família, tinha foto de santinhos assim, então ficaram família… aquilo, né? Aí ele confirma o diagnóstico e a minha esposa desaba, e eu seguro ali, tal. Ela levanta e fala: “Tá. E aí, qual é o próximo passo agora? Vamos”, né? E ele começa a falar do protocolo, indicar a médica que vai acompanhar, tudo, e eu segurando ali, processando o que ele tinha falado. “Tem um tumor, ela tem câncer”, e a primeira coisa que vem na minha cabeça é: eu vou criar meus filhos sozinho. E aí eu falei: “Cara, vou fazer isso”, né?
(02:13:44) P/1 - O que eles falaram? Eles deram já algum período pra vocês?
R - Não, eu perguntei. Período de vida?
(02:13:51) P/1 - Sim.
R - Eles não falam, né? Mas eu, de exatas, bicho… eu cheguei, foi a primeira pergunta que me veio na cabeça. Aquela coisa pragmática: “Beleza, eu preciso saber qual é o escopo que eu tenho, porque eu preciso ter esse cenário, quero saber”, inconsciente, né? Mas, assim, ela começou a falar, falar, falar, falar isso, falar em protocolo, perguntou sobre o nome “Stein”, porque tem um tipo de câncer de quem veio… judeus têm uma história sobre isso... “Não, tal. Vocês querem ter mais filhos? Senão tem que congelar”. Eu falei: “Meu, calma, eu nem sei”. Aí fui indo, tal. Aí quando ela terminou de fazer as outras perguntas, eu falei, aí eu comecei: “Quanto tempo...”, e aí não consegui terminar, chorei na frente dela. Bom, aí a gente conversou, tal, e aí não terminei minha pergunta, ela fingiu que não escutou e a gente prosseguiu a conversa. O Francisco estava amamentando e precisava parar a amamentação dele. Imediatamente, no mesmo dia. Aí a gente foi, saiu da consulta… e é assim, depois que você recebe o diagnóstico, né, é como, parece que o tempo dá uma... Então eu lembro exatamente da gente sair de mão dada, eu ouvi o barulho do salto dela bater no chão, eu senti o cheiro dela, a visão assim, ela falando sobre não ser do grupo de risco, ser jovem... Minha esposa não tinha nenhum vício, não bebia, nada, nada, era bailarina, sabe, e tinha sido diagnosticada com câncer. E eu ainda: “Cara”… mas é impressionante como a relação com o tempo muda, eu olhava pra ela e já era outra mulher. É como assim, existe uma... A gente morre no diagnóstico. E eu já não reconhecia ela, mas, né? E não me reconhecia. Meu, veja: tudo que eu aprendi na vida não me preparava pra aquilo, não me preparava pra vivenciar aquilo. Aquele momento a gente tava, né? Tudo voltando a uma certa normalidade, a gente tava planejando, a gente ia fazer dez anos de casado e eu, dez anos, e aí eu tava planejando: “Eu quero casar em Las Vegas de novo com você, com Elvis tocando aquele lá, quero aquela”, sabe? Aquela figura clássica de Las Vegas. “A gente vai, deixa as crianças e vamos dar um jeito”, era a primeira vez que, então, assim, eu tava planejando a felicidade lá na frente. A gente vive assim, né, sempre lá na frente, sempre preocupado com o futuro ou com algo e tal e não vive ali. Então é impressionante como essa relação com o tempo muda completamente. A gente vai pra casa, vai comprar a mamadeira do Francisco, eu lembro de a gente comprar uma madeira com dinossauro, a gente volta pra casa, a gente precisava falar com eles e, cara... E aí ela falou… Aí tem, lembro exatamente quando a gente entra na casa, ela vai direto pra Maria, ajoelha e conta que a mamãe tá com uns bichinhos, tal, que a mamãe vai fazer um tratamento, o cabelo da mamãe vai cair. E a Maria rindo, pergunta: “Mamãe vai ficar careca?”. E, cara, com uma leveza assim, sabe, de não ter a dimensão do que ia acontecer. E aí a Maria deixa mais leve. Aí vamos pro Francisco. Eu lembro da conversa dele, ele deitado na cama, ela ali, sentado, né? Ela ali: “Filho, a gente combinou de passar isso aqui junto. Eu preciso que você tome leite na mamadeira, compramos lá, é de dinossauros, não sei o que e tal…”. E, cara, ele nunca tinha mamado. E aí ele deu aquela, não sei o que… de repente ele mamou uma mamadeira inteira, duas mamadeiras. E as crianças deixam mais leve tudo aquilo, né? Aí aquele silêncio em casa. Daí vai gente, vai, sobe, cara, porra, no momento que você num tá afim, entendeu? Eu entendo que as pessoas querem estar próximas, cara, mas geralmente as pessoas não sabem como se portar nessa hora, sabe, e só pioram as coisas. Então, mas eu compreendo a necessidade, assim, mas é que, cara… e ali eu meio que anestesiado, tal, as crianças vão dormir, ela deita. Aí eu não dormi aquela noite, fiquei ali tentando imaginar como que ia ser no outro dia. E aí é uma sensação assim meio que se eu vou dormir, no outro dia vai tá tudo bem, né? E aí tocou o alarme, eu já tava acordado e sábado geralmente era o dia que eu ia fazer as coisas da casa, sabe? Era o dia que a gente saia pra ver as coisas. Daí todo mundo da família já tava sabendo, a gente já tinha contado, eu fui, lembro de sair pra fazer compra, farmácia, um monte de coisa e aí, cara, eu fiquei dando volta com o carro, porque eu não tinha coragem de voltar pra casa, porque, cara, o que que eu ia falar pra minha esposa? Ela tinha sido diagnosticada com câncer e eu tava com medo de ficar sem, né? Já me imaginando sozinho, sem ela, com dois filhos. Cara, era a paixão da minha vida, o amor da minha vida e o que eu vou fazer? Vou falar o quê? Pô, eu não posso sofrer na frente dela, não posso chorar na frente dela, não posso fazer nada ué, ela que tá com câncer, o que eu... Eu não tenho direito disso. Então eu lembro de ficar enrolando no supermercado, vendo preço de todas as coisas, vendo tudo, uma alguma coisa que… e daí eu lembro de... Fui dar uma volta no shopping que tem... Aí a minha família foi pra minha casa, eu não queria encontrar ninguém, cara, porque eu ia encontrar e ia desabar, entendeu? Então eu falei: “Não, não dá”, não queria, não queria falar com meu irmão, meu irmão foi pra casa, que minha cunhada… eu falei: “Meu”... E eu lembro daí, passei na frente do shopping, fiquei dando volta lá na área de serviço e tinha uma barbearia clássica, daquelas que virou moda, aí entrei. E minha esposa, no dia anterior, ela tinha feito, a única pergunta que ela fez pra mim, a primeira, foi assim: “Meu cabelo vai cair?”. Minha esposa tinha um cabelo muito bonito, cara, gastava uma fortuna naquele negócio de cabeleireiro, produto. Foi a primeira pergunta que ela fez. Aí eu entrei nessa barbearia e falei: “Ó, quero cortar zero”, cortei a zero. E aí voltei pra casa. (choro) Aí voltei pra casa: cara, vou ficar até o fim, né? E aí de procurar ela… não falar, mas aí a gente se abraçou, ela perguntou o que eu tinha feito, não falei nada. Era um jeito [de dizer que] não importa o cabelo, não importa nada, cara, vamos juntos, né? Não tinha escolha pra mim, não tinha outra opção. Eu não sabia o que ia fazer, não sabia como fazer, mas é o tipo de coisa que a vida… na minha interpretação, não tem escolha. Começou a semana, e aí, enfim, lembra que eu falei que a paternidade é um dos momentos que o homem, pra mudança, mas não foi suficiente pra mim. E o diagnóstico me fez questionar que homem eu era, porque me faltava repertório emocional pra lidar com tudo aquilo, me faltava repertório pra lidar com ela, com todos os medos dela, acolher. Eu passei a trabalhar menos pra poder ficar em casa, então passei a acordar mais cedo pra fazer o café dela, pra ela poder dormir até mais tarde. Eu chegava mais cedo pra dar banho nas crianças. Eu não tinha, não dava banho nos meus filhos. E aí eu passei a ficar mais em casa, né? Exame, ela tinha fobia de agulha, tinha que ir em todos. Todos. Enfim, a gente começa a vivenciar o processo ali de um tratamento de quimioterapia, tem vários vieses aqui, vários ângulos que a gente pode olhar tudo isso. E num primeiro momento, de eu me manter ali mais forte na minha interpretação possível ali e sempre vamos indo. A minha esposa, durante todo o tratamento… é claro que ela passou por um processo muito pessoal dela, mas ela chegou num nível de, do que ela entendia como a vida, que era algo surreal, assim. Ela rapidamente incorporou a questão da presença, de você viver o momento, de você viver aquilo que é hoje, né? Amanhã a gente não sabe o que vai acontecer. Então, hoje tem quimioterapia, né, fazia todos os cuidados, se maquiava, se arrumava, a gente ia fazer, e aí tinha todos os efeitos colaterais. E a gente ia um dia de cada vez, né? Com uma lucidez muito grande assim, que hoje eu consegui chegar, mas naquele momento eu estava um caos ali e ela que era o centro de manter aquilo um nível assim, principalmente pra família, que estava fora. Depois, no momento ruim, era comigo e fazia parte, eu acho, do meu papel ali de segurar a onda na hora que o negócio tava ruim, né? Ou na hora que ela tava com muita dor ou na hora que ela tava puta da vida com tudo que tava acontecendo. Enfim, a gente segue o tratamento. O tumor é muito agressivo, então se opta por fazer a operação depois da quimioterapia, com a esperança que a quimioterapia diminuísse o tumor e a gente retirasse, que fosse menos incisivo possível. E aí você passa a viver uma realidade que eu, como homem, estar numa posição de cuidado, de cuidar; uma coisa que eu nunca tinha feito na vida. Uma coisa é você exercer uma paternidade de ajudar ali, mas cuidar… e cuidar, cara, é nas coisas mais simples, né? De dar banho, de cuidar, de ver comida, de ver coisa... Porque você vai lá, alimentação tem todo um planejamento, tem todo um negócio. São todas questões que nós homens não enxergamos, essa carga mental que normalmente fica pra mulher é algo surreal assim, é um dos... E aí eu voltava no tempo e via minha esposa com dois filhos cuidando de uma casa, falei: “Meu, como eu não conseguia enxergar isso?”.
(02:26:34) P/1 - Você voltava a ver seus pais também?
R - Hein?
(02:26:36) P/1 - Você pensava nos seus pais também?
R - Sim. Quando eu passo a me rever como homem, eu falei: “Como eu sou como filho, como irmão?”. Enfim, você vai revendo tudo o que você... Vai revendo a vida, quais são… o que é importante pra mim hoje. E aí, enfim, passo a rever a minha relação com meu pai, né? Nesse momento, de todo esse processo, o que eu aprendi [sobre] ser homem não dava conta, cara. O que a gente aprende não dá conta de viver isso. Se a gente pegar estatística, 78% dos homens abandonam as mulheres quando tão num processo desse. A gente não dá conta. E aí eu fui, cara, me questionar: “Tá, eu quero”... eu já imaginando: “Eu vou ser pai… vou ficar sozinho. Como que eu vou ser pai? Mas antes de ser pai, eu sou homem. E o que é ser homem?”. Eu passei a buscar grupos de homens pra conversar, eu queria buscar qualquer homem que tivesse vivendo qualquer coisa parecida com a minha, porque se eu olhar pra sociedade, onde estão esses homens? Eu não achava. Não tinha. E aí você vai pros seus amigos… você já tentou com a rede de amigos sobre isso? Os caras não dão conta, os caras não conseguem. A família, você tem que lidar com o luto de todo mundo, então eu não tinha ninguém pra conversar. Eu queria alguém que tivesse vivendo o que eu tava vivendo, né? Então, eu lembro de começar a buscar isso, começar a ler muito. A questão da espiritualidade nesse momento foi muito importante. Lembra aquele contato que eu tive? Eu passei a ler, estudar, não sei o que, porque lembra que eu falei de religião, do culto, que não fazia sentido? Falei: “Tudo bem, ó - conversando -, primeiro você tem uma briga com Deus e cada um… Deus só muda de nome, né? Vamos…”. Aí eu falava assim: “Pô, por que com a gente? Por que com ela? Ela é uma ‘puta’ de uma pessoa… Tanta gente ruim”, aquele primeiro questionamento [de] você achar que o mundo gira em torno de você e na verdade… achar que é uma tragédia, né? “Ai, vai acontecer uma tragédia”. Cara, isso acontece todo dia com um monte de gente, a todo momento, né? Hoje de manhã tem um monte de gente sendo diagnosticada, tem um monte de gente morrendo por causa disso. Não é uma tragédia, você não é privilegiado, então vamos… e aí tem um momento de eu acreditar nessa… em um Deus que não é punitivo, que nós somos herdeiros de nós mesmos. Então, se eu fizer algo, não é uma troca, não é um negócio, mas se eu preciso… o que eu preciso melhorar? Então, se eu melhorar, se eu souber, Ele também vai me dar condições de viver isso. Não vai tirar isso, isso é que… eu sou herdeiro disso. Eu tenho que viver isso aqui, né? Mas eu acho que é a mesma coisa do nosso filho, eu não posso fazer por ele, mas desde que ele faça, eu posso ajudar. Então minha relação com a crença, com o que é sagrado mudou completamente e eu passo a estudar mais, passo... Ela fez um tratamento espiritual, ela passou... E aí eu passo a me questionar muito sobre isso. Então eu acho que quando você perguntou lá atrás sobre onde eu identifico mudança, é nesse período. Mas aí é muita coisa que vem, porque daí você começa a desconstruir, ‘tirar’ um monte de máscaras e coisas que você vai pondo. E aí, cara, uma hora você tem que se encontrar com você, e aí que é ‘fogo’, que aí você fala: “Eu sou esse aí mesmo. Eu tenho preconceito, eu tenho isso. Eu sou isso aí”. E não é esse mundo, que eu não quero esse mundo… conheço os valores que eu tenho e se reconhecer disso, e fazendo parte dessa sociedade que é isso: que é racista, que é machista, que não acolhe homens na situação que eu passei, que não exerce a paternidade mesmo. Enfim, é isso, você quer ser reconhecido fazendo parte disso, não um novo ser. Então você tá e aí você vai buscando. Aí a gente, dentro desse caldeirão de coisas acontecendo, o tratamento em paralelo, até que chega um momento que a médica me chama, em uma quimioterapia… já tinha tido o diagnóstico da metástase, quando é diagnosticada a metástase, não há mais uma cura física, né? Então você inicia um tratamento que deveria ser já iniciado logo após o diagnóstico, mas um tratamento de cuidados paliativos que engloba... De forma errada, a sociedade [acha]: “Quando não se tem nada pra fazer”, mas é justamente o contrário, os cuidados paliativos são como se fossem uma camada extra de conforto, onde traz o paciente pra que ele seja o centro do tratamento e ele detém autonomia e decida como ele quer fazer, e olhe pra esse paciente não com um número, mas como... Cara, existe uma família do lado, existe crenças, é diferente de você ter uma crença, uma relação com o seu indivíduo sagrado de uma forma, você vai encarar isso aí totalmente diferente, né? Eu tenho uma crença, eu vou olhar isso. Às vezes isso é importante pra mim conseguir conduzir o processo. Então, como que a gente olha isso? É como ser único, né, como uma, é um indivíduo único: então ele vai me dizer como eu vou tratar ele. Não são os médicos, não são esses caras. É ele que vai dizer o que é importante pra ele. Então, poderia falar horas só sobre isso. Mas, assim, ela tava nessa fase já. Aí que eu entro em contato com cuidados paliativos, a pesquisar e começo entender que muitas coisas que a gente estava fazendo já era considerada a questão do cuidado espiritual, a questão social, enfim. E aí a gente segue, metástase, e aí cada vez mais o tumor seguindo, né, progredindo, a gente tendo menos alternativas e tentando já dar o melhor conforto. E ela teve um período de tratamento onde ela teve uma qualidade de vida muito boa; ela veio piorar mesmo nos últimos quinze dias, de precisar de internação, tudo, né? Passamos por operação… a mastectomia é algo que, cara, é terrível. Você ir tirar o curativo com a sua esposa e ver, cara, é uma mutilação assim, é um negócio… E quando você… No momento… É esteticamente, né, corte... E pra ela, cara, como que tá sendo pra ela tudo aquilo, né? Enfim, passamos por todas essas etapas, mas antes de chegar nesse momento que eu converso com a médica, tem uma coisa que acontece antes, que é quando a gente se coloca nessa posição de cuidado. A gente ainda vai com uma arrogância que a gente ainda vai cuidar, né? Aquela coisa: “Eu estou cuidando dela”, mas a verdade é que assim: quando você cuida, você dá amor [e] você recebe amor também. Então é uma troca. Eu passo a cuidar dos meus filhos, meus filhos passam a me dar algo que eu não tinha recebido ainda. Então quando eu vou pra casa e minha esposa perguntou pra minha filha quem vai dar banho nela, ela me escolhe, depois de cinco anos, porque ela nunca tinha me escolhido, tinha algo acontecendo ali. Eu lembro da Micaela, desse dia chegar pra mim: “Você viu como tá a nossa relação hoje? Olha a relação que você tá criando com as crianças”. E ela dizia isso: “O câncer não trouxe só coisa ruim, trouxe um monte de coisas boas também. Olha a relação!”, porque, de fato, a minha relação com ela, os melhores anos foram os anos de tratamento, e de uma... E aí tem uma relação de homem e mulher que eu nem sabia que existia, que é um, não tem nada a ver com o que a gente idealiza em si, mas que a gente aprende, cara, é uma relação de cumplicidade, de cuidado, de um negócio que é um... Eu nem sabia que existia. E aí, eu me ver ali diante da minha esposa, que já não era mais aquela mulher que eu tinha conhecido e ver o corpo dela deteriorando assim... Mas eu ter uma, de ter um amor que é diferente. Eu tinha muito mais atração por ela, muito mais vontade de toque com ela. Na mastectomia, ela não deixava mais eu chegar perto dela, né? Durante o período. Ver ela nua, né? E aí, cara, tava com o dreno, tem uma fase inicial, depois tira o dreno. Cenas assim, sabe, de o dreno entupir, ir com a boca, puxar e vir sangue dela. E aí ela não deixava mais encostar nela, porque... E aí eu ficava assim: “Agora deixa ela”. Ela ia tomar, ela ia pro quarto se trocar, eu ia escondido: “Ah, esqueci alguma coisa”, entrava, ela virava. Aí eu ia, eu ia insistindo, ia fazendo. Toda vez que ela entrava no banho, eu ia, dava um jeito de fazer e ia, bem, fazendo, né? Mas ela me evitou muito assim durante um tempo, até que ela pôs a prótese, ainda era um enchimento, não era a reconstrução, vai crescendo, o seio fica todo torto assim. E aí até eu lembro de um dia ela, a gente chegar e eu forçando, sabe, encostar. Eu falei: “Não, vem cá, abraçar”... Eu lembro de sentir o peito dela no meio assim, sabe? E daí ir criando essa intimidade e entendendo, fazendo… depois o seio torto virou brincadeira, sabe? Mas eu tô querendo voltar esses exemplos para ver a que ponto chegou a relação assim, sabe, com ela. Aí eu voltei, mas, cara, durante esse período, a gente teve cirurgia espiritual, onde o câncer do cérebro sumiu. Tem vários milagres que acontecem, né? Quando eu falo assim que a gente, né, vai se moldando assim, talvez aconteça umas coisas que têm a ver com a crença, com o que eu falei de um ser, de Deus, acho que ser mais... Bom, aí chega... Vou voltar no ponto, acabei voltando, mas eu vou ir pro ponto onde a médica me chama, pra dizer que o câncer estava avançando, que a gente estava sem alternativa e a gente tinha que chamar ela pra... Daí eu virei pra ela e falei: “Tá bom. Beleza”. Ela tava... Eu falei… Ela falou assim... Aí a enfermeira entra na sala, dá a volta e fala: “Agora chegou a hora da Micaela escrever cartas pra Maria, porque a Maria vai ficar mocinha e a mãe não vai estar aqui”. Ali, depois de todo esse tempo, caiu minha ficha: a minha esposa vai morrer. E aí eu fiquei, né, processei a frase ali, falei: “Agora tá chegando”. Ela chega, fala isso, de escrever cartas pra Maria, e aí a gente, aí eu pergunto: “Tá, tudo bem. Eu quero que vocês me expliquem agora. Olha, eu quero saber quanto tempo ela tem”. A médica: “Não, não sei, não posso falar”. Eu falei: “Olha só, deixa eu explicar o seguinte: eu tenho dois filhos. Eu preciso resolver questões burocráticas”. Eu falei assim. Mais uma vez o homem é levado à questão do fazer. “Eu preciso saber”, “Não”. Eu falei assim: “Então vou te dar um exemplo, vamos fazer o seguinte, se continuar nesse cenário, a progressão continuar desse jeito, qual é esse tipo de… com essa taxa, tal, quanto tempo? Eu preciso saber”. Ela falou: “De quatro a seis meses”. Aí a gente… tomei o golpe, vamos ali, conversamos: “O que você quer fazer?”. Eu falei: “Não, vamos chamar ela. Ela que decide. Só que você não vai falar o tempo, você vai falar que o remédio não deu certo e é verdade, a gente vai continuar o outro e vamos seguir”. Aí chamou ela, contou, né? Saí da sala, contou e fomos pra casa. E aí eu fui pra casa, pra pedir pra ela escrever pra Maria e aí não tive coragem de pedir pra ela escrever, porque era falar pra ela que ela tava morrendo, como se ela não soubesse. E aí não tive coragem. E aí, eu lembrei de uma vez, quando a Maria nasceu, que eu tava, fiz o Caminho do Sol, eu tinha um projeto de escrever cartas pra Maria, eram onze cartas, onze dias que eu ficaria fora. Eu lembrei disso, cheguei pra Micaela e falei assim: “Olha, lembra aquele projeto que eu tinha? Então, eu quero escrever agora e quero que você me ajude a escrever”, foi o jeito que eu encontrei de pedir pra ela escrever. Aí ela: “Ok e tal”. E aí, comunicação, montei site com o mesmo nome, não sei o quê... E aí escrevi a primeira carta. Foi aí que, nesse momento, eu começo a escrever durante o tratamento da minha esposa. Aí eu escrevo uma primeira carta, que se chamava, que tem o título como: “Enquanto o sinal não bate”, que é uma carta que eu escrevi pra minha filha, esperando ela sair da escola, enquanto o sinal não batia e tal. É a primeira vez que eu falo publicamente e aí falo assim: “Olha, Maria, tal, estou aqui te esperando, você está ali… e eu estou aqui, estou com medo, eu não sei o que eu vou fazer da vida. Eu tô com medo, não sei o que eu vou fazer do trabalho”. Eu, enfim, é a primeira vez que eu falo, escrevo e torno público isso. Eu pego e publico isso. A Micaela revisa, que eu dava pra ela revisar, que era um jeito também de falar: “Olha, eu não falei, mas está aqui, ó”. Era o jeito de comunicar que eu estava com medo ali. E aí eu publico. E aí a escrita entra na minha vida dessa forma, né, de um… eu começo a escrever. Aí durante um período, eu passo a escrever, continuar escrevendo sobre o cotidiano ali. E a Micaela revisava os primeiros textos. Depois eu escrevi quando a gente precisou de ajuda pra fazer um exame nos Estados Unidos, eu não tinha dinheiro. Mais uma vez, eu não vou conseguir cuidar da minha família. Aí eu escrevo, “Experimente pedir ajuda”, que é um texto que fala sobre como, pra mim, era difícil pedir ajuda, só que você criava um movimento virtuoso ao fazer isso. Então, ao pedir ajuda, ao admitir que eu estava vulnerável, que eu não conseguia, eu primeiro ‘tiro’ a máscara e peço. Quando eu peço ajuda pra você, toda vez que você ajuda alguém, não é gostoso? Você não se sente bem? Então veja, eu te dou a oportunidade. Se eu falo sinceramente, peço ajuda de forma sincera, de você fazer algo que também te faz bem. E isso cria um movimento, uma relação sincera. Então, é uma troca: eu ganho, você também ganha. E é uma relação, enfim, de amor ali, da troca. E aí, escrevo isso, foi o último texto que ela revisou. Publico, isso começa a ter uma repercussão. Aí vem o declínio físico dela, ela é internada. E uma coisa antes, pra falar do meu pai: quando eu saio daquela reunião com a médica, com um prazo, eu me deparo com o fato que eu tenho que, cara, eu tenho que escolher onde a minha esposa vai ser enterrada. E aí eu falei: “Cara, não vou fazer isso, não consigo fazer”. Aí liguei pro meu pai e falei: “Pai, vai acontecer e eu não sei, não quero fazer, não quero saber. Vem com tudo pronto, por favor. Não quero lidar com isso, não quero. Não quero ter que ver quanto custa. Minha esposa tá viva ainda, eu num...”. E aí meu pai ajuda assim, esse sempre foi o jeito do meu pai dizer… (choro) Eu, bom, a gente… segue ela internada, e aí, cara, ela com uma lucidez impressionante, assim: “Olha, eu quero falar com essas pessoas, quero falar com essa pessoa” e eu não entendia o que tava acontecendo, minha esposa tava, né? Quando ela é internada, o câncer toma o pulmão e aí se torna um quadro irreversível. Aí eu lembro da conversa da médica e falar: “Olha, o quadro é esse. Como que você quer que aconteça?”. E ela falou assim: “Ó, eu não quero sentir dor, eu quero ir pra casa”. E aí eu falei: “Cara, como que eu vou fazer isso em casa? Com as crianças junto?”, “Eu quero ir pra casa”. Então vamos pra casa, alugo equipamento, vamos tentar fazer o que for, né? Daí ela precisa, já começa num processo de, né? No processo de morte mesmo. E aí a gente… ela passa mal em casa, precisa ser internada. Em casa não ia ter condições de... Então ela vai pra casa, ainda com outra máquina, etc. Daí ela começa o processo de querer falar com as pessoas, mas numa lucidez assim: “Olha, eu quero falar com”... Não era com os amigos, essas pessoas próximas, ela falou: “Esses aí vão vir aqui. Mas eu quero falar”… por exemplo, tem um amigo meu, o Mateus, que perdeu a mãe com a idade da Maria. E ela assim: “Meu, eu quero que o Mateus venha aqui, porque eu quero que ele fale pra você como ele se sentiu quando a mãe dele morreu. Eu preciso que você saiba, pra você poder lidar com a Maria”. Então, assim, de… sabe? Tentando ainda deixar todo mundo bem assim, né? As amigas delas iam lá achando que iam achar uma moribunda, chegavam lá, ela estava toda arrumada. Assim, sabe, na medida do possível, com sorriso. Era um estado assim de consciência da morte, que era surreal. E eu tentando lidar aqui com aquilo que estava acontecendo ali, trazendo, vindo assim. Eu falei: “Minha esposa, vai acontecer”, e eu ainda estava… você tenta se preparar, né? Eu lembro da gente, todo mundo visitando, aquela coisa tal e aí a gente não tinha tempo de falar, sabe, não tinha tempo pra conversar. Pô, aquilo me incomodando, esse povo aqui vindo e tudo bem, gente, eu entendo, mas assim, cara, eu preciso falar, né? E a gente em casa com duas crianças, tal. Aí eu lembro: “Cara, eu preciso trazer as crianças pra se despedirem dela. Eu não sei quando vai acontecer”, então eu tava criando umas rotinas pras crianças irem e tal. E aí o hospital foi super gentil, deixou visitá-la na UTI em horários, etc e tal. Eu lembro de um dia… e aí cara, ela chegou num nível de chamar três amigas e falar assim: “Olha, vocês vão ajudar o Rafael a arrumar alguma outra pessoa, porque eu conheço ele, ele não vai… E ajuda ele, porque ele…”, aí ela começou a escrever, escreveu um caderninho pras crianças, que foi fazendo... E nesse nível, assim, né? Ela pediu, ela me fez uma lista de quem ela queria falar. Aí ela queria falar com toda a equipe médica. Pô, o cara era o melhor cirurgião do Brasil, a outra não sei o quê. Cara, esses caras não tem... Só que a Micaela tem um, ela teve um impacto em todo mundo que estava em volta dela, porque ela conduziu a coisa de uma forma muito diferente assim, né, especial. Eu lembro que eu liguei pra doutora Suzana, que cuidou dela, falei: “Olha, Doutora Suzana, ela me pediu pra falar com todo mundo. Você consegue arquitetar?”. Daí não falei nada pra ela, porque eu tava tendo certeza que ninguém ia. Não sabia, não cria expectativa, tal. Eu lembro de ligar pra Doutora Suzana de manhã, à noite eu ia dormir com ela, quando eu chego no hospital, estava a equipe: o doutor, o cirurgião, a enfermeira que cuidou dela, todo mundo lá pra visitar ela. Ninguém tinha combinado horário, porque a doutora Suzana falou com cada um, todo mundo apareceu lá no mesmo horário, eu subi junto com a equipe médica que entrou. E aí tem foto dela com a equipe médica, você não fala que ela ia morrer daqui quatro dias assim. Com a máscara, que era uma máscara que jogava oxigênio pra ela, rindo, brincando. E aí foi quando eu disse, pedi licença, pedi… agradeci a equipe médica que cuidou dela, né? E disse assim: “Olha, vocês cuidaram dela e não do câncer, e tem uma diferença muito grande, muito grande de não cuidar da doença, de cuidar da pessoa”. Agradeci [por] tudo, me emocionei e tal. E aí [está] a importância dos cuidados paliativos, né? Não é, da visão mais humana, que deveria ser pra tudo, né? A gente acha que agora é uma exceção, mas assim, desse cuidado da médica, mesmo não acreditando na nossa crença, fazer de tudo pra ela sair do hospital, pra gente fazer uma cirurgia espiritual lá em Goiás. E fazer, ficar, não sei o que. Eu não acredito… Assim: “Não é minha crença, mas é importante pra você. Então nós vamos fazer”. Então assim, esse olhar. A gente sai, eu lembro de um depoimento do médico, ele veio e me chamou no canto, agradeceu por eu ter falado o que eu falei pra ele e tal. E ele falou assim… cara, o cara era o melhor cirurgião. Ele falou assim: “Rafael, eu preciso sair daqui e ser um melhor médico, por causa dela”. O cara já era o... Então, ela teve um impacto assim na minha vida, na vida de todo mundo que teve do lado dela, né? E aí a gente volta pra casa, dois dias depois, aí eu sugiro que a mãe dela durma com ela, porque a mãe não estava aceitando o que estava acontecendo e ela precisava entender a realidade, por mais duro que seja. Ela estava atrapalhando, enfim, estava criando... É compreensível, mas estava tornando o negócio pior pra Micaela. Então, comuniquei com a Micaela, falando: “Nós vamos fazer aqui… eu não vou dormir aqui por causa disso, a sua mãe precisa entender o que tá acontecendo, enfim”. E aí, então, quando me… e a gente sabia como ela não queria dor, quando eu fosse administrar a morfina naquele caso específico, estava chegando o momento, né? Então, no dia 24, na madrugada, me ligam do hospital pra dizer que iam administrar morfina, porque eu queria falar com ela antes dela dormir. Eu queria estar lá a hora que acontecesse, né? Então daí fui pro hospital, aí deu tempo de... Deu reação nela, teve coceira, então deu tempo d'eu chegar. Ela estava coçando, eu segurei a mão dela: “Eu estou aqui, deixa que eu coço pra você. Está tudo bem, agora eu estou aqui. Agora não vai mais doer, pode ficar tranquila” e ela dormiu, né? Daí ela já não tava conseguindo respirar, então, pro conforto, você vai sedando pra poder fazer, né? E aí eu fiquei ali. Tava a mãe, saiu, não conseguia ficar, tal. Fiquei ali. Daí eu lembro que eu saí de casa, liguei, minha mãe ligou pro meu pai… porque é aquela coisa, meu pai - eu comentei lá atrás - não fala, a gente nunca conversou, (choro) mas, por exemplo, ele falou assim, pra minha mãe: “Na hora que acontecer, eu quero estar do lado”, então tem jeitos de demonstrar amor. Então, às vezes, faltou muita conversa em algum momento, mas a gente tem que entender esses conflitos de gerações, enfim, tudo. E aí meu pai veio, nesse dia. Antes dele chegar, eu tava com ela lá, ela tava… já não tinha mais, né? Tava inconsciente. Tirei a aliança dela, coloquei no meu dedo; tirei a correntinha, que tinha os nossos filhos aqui, coloquei. E fiquei ali, né? Aí meu pai chegou, meu irmão chegou também, estavam no quarto, junto. A médica, a doutora Suzana, que não é a médica, ficou lá. Eu mandei mensagem, ela falou: “Posso ir aí?”, “Pode”. Ela não precisava, entendeu? Mas ela foi, tava lá, me explicou, né? Queria tá lá junto, presente. E aí fiquei ali com ela, até ela parar de respirar. Eram seis e 45. E aí, meu pai estava lá. Então... (choro) E aí, cara, é impressionante assim, porque você… ela parou de respirar, né? Cara, já num tava mais ali. Na minha crença, a matéria, o corpo é algo só desse plano aqui, então, e aí meio que anestesia, assim. Agora eu me emociono porque eu volto, tem a questão do meu pai, questão de tudo que aconteceu ali, mas eu fiquei anestesiado, né? Daí voltei pra casa. Meu pai ligou pra tia dela, que eles tinham combinado já, sem eu saber, pra cuidar da questão burocrática, que é desumano, né? Cara, tu acabou de perder a pessoa, ter que ficar vendo papel?! Ninguém pensa em resolver, tornar esse processo um pouco mais, né? E aí, enfim, vou pra casa, ligo pro meu irmão antes, ligo pra minha mãe, conto o que tinha acontecido e que a Maria precisava ir na escola, tinha um passeio na escola que ela tava querendo ir e tal. Daí o meu irmão falou: “Meu, deixa ela ir. Deixa ir, ela vai lidar com... Deixa ela ir e depois…”. Ela foi pro passeio, avisamos lá na escola, e aí fui pro, né? Fui pra casa pegar a roupa que ela tinha escolhido, as coisas que ela tinha escolhido. Ela que decidiu tudo. E aí meio que você vai indo, fazendo tudo. Separei a roupa que ela pediu, tudo, entreguei e fiquei esperando minha filha chegar da escola pra poder falar com ela. Minha filha atrasou esse dia, atrasou, atrasou, e o velório já estava começando e ela, minha filha chegar… meu irmão falou: “Meu, você vai levar ela pra lá?”, porque dentro dos pedidos da Micaela, era não [pra] ir, né? As crianças não, ela não queria que as crianças vissem ela. Aí eu falei assim: “Porque você não vai levar… Cara, vai lá, eu fico aqui e depois você conversa com ela”. E daí fui pro velório. Cara, é surreal e como é importante esse momento, esse ritual, né, você vivenciar isso. Foi muita gente, a pessoa abriu o outro lado. Enfim, foi tanta gente, tanta gente. O pessoal fala tanta besteira, gente, tanta besteira, as pessoas não sabem lidar com isso, de falar: “Você é novo”, e o corpo da minha esposa aqui do lado. “Você é novo, você vai achar alguém”, sabe? Como se fosse algo... E aí, enfim, ela… o pessoal que era, fez parte lá do negócio espiritual que eu falei, tava lá, junto, no dia, me acompanharam todos os dias anteriores. E aí foi muito bonito assim, a gente fez uma prece de oração de Santo Agostinho, né, que ela fala que a morte não é nada, só tô do outro lado. Ela queria que fosse distribuído isso, que não tivesse coroa, enfim. E aí voltamos pra casa pra falar com a minha filha, e aí que assim, conversando com a minha filha: “Então filha, lembra que a mamãe estava com dodói, esse bichinho e tal, não sei o que, a mãe falou que você pode ficar com isso dela”, algo sim. Eu tentando… “Como que eu falo?”. Aí não sei o que, ela virou pra mim: “A mamãe morreu?”. E aí eu falei: “Sim”. E aí minha filha deu um berro e a gente chorou junto, aí eu falei pra ela: “Você pode chorar, o papai também vai chorar e a gente vai combinar aqui que quando eu ficar triste, eu vou falar pra você. Se você ver o papai chorando é por causa disso, você pode chorar”, enfim, fiz meio que um combinado ali. E aí falei: “Você quer saber como eu escolhi seu nome?”, e aí contei a história que eu contei pra você lá no início, né? E ela: “Quero” e tal, e a gente contando e tal. E ela saiu de lá, porque as pessoas: “Ah, não vou falar disso pra criança, porque não…”. A criança entende, cara. Você tem que falar e tem que nomear: morreu. Claro, a mamãe virou uma ‘estrelinha’, a gente associou, tem toda uma relação hoje com isso. Ela sai do quarto, vai pra sala e fala pro Francisco: “Ó, Francisco, a mamãe morreu, mas o papai falou que você pode chorar, e quando você chorar...”, ela repetiu a mesma coisa que eu falei. E ali, cara, aí é outra vida na mesma vida, né? No dia seguinte, é você entender como que você vai fazer o que você tem que fazer. E aí, como me descobrir como pai, né? Como me sentir capaz de cuidar de duas crianças. Como eu me senti, eu não sabia cuidar. E aí todas as questões básicas do dia a dia, né? Vou… no dia seguinte: “Tá. O que eu vou fazer pro almoço?”. Cara… Aí fazer um monte de coisas e eles não comerem nada. E aí você, eu me emocionar, chorar, porque não vou conseguir alimentar meus filhos. E aí depois, à noite, escolher um prato com ela, escolher uma sopa de lentilhas dos sonhos e a gente junto, compra junto, fazer junto e aí descobrindo isso tudo, né? E aí, nesse processo, eu intensifiquei a busca por grupos de homens pra discutir o que era ser homem, grupos de homens enlutados: não tinha. Segui escrevendo, e aí cada vez mais... E aí entra… antes de falecer, a Micaela pediu pra que comprasse um livro pra ela chamado “A morte é um dia que vale a pena viver” da doutora Ana Cláudia, da Casa do Cuidar. Quando ela me mostra, no hospital, eu falei: “Pô, tu tá de brincadeira, né? “A morte é um dia…”, não vou ler isso aqui. Eu não sei nem do que se trata”. Comprei, porque ela pediu. O livro não chegou a tempo, ela tava já no processo. Eu lembro de ter mandado mensagem, falar: “Não levou…”, daí me explicaram, tal. Enfim, o livro chegou depois que ela faleceu, em casa, quinze dias depois, tal. Eu leio o livro… primeiro que abri, era um pacote pra ela, que eu nem lembrava, Aí abro e eu xinguei no primeiro momento.Falei: “Como é? Estou chegando em casa, aqui com esse livro, com esse título aqui falando pra mim que... Não sei onde que é bom”, ali, né, você não consegue enxergar nada ainda, você só vê dor. Li o livro à noite e nos dois dias seguintes, eu escrevi um texto chamado: “O que eu aprendi com a Micaela e não com o câncer”, que é inspirado no livro, né, trechos. E aquele livro... Esse texto ganhou uma certa repercussão, a doutora Ana viu, comentou. Era surreal. Tava um dia na padaria, ela mandou uma mensagem, eu falei: “Cara…”, porque aquele livro me salvou naquele dia. Então, com meus filhos, era a primeira vez que eu voltava pra casa. Depois, né? Sem ela. Então, enfim, eu tô contando isso pra dizer da minha ligação, né, e como… e aí eu segui nesses grupos, segui estudando luto, fui fazer curso, segui escrevendo. A escrita deu uma certa visibilidade para aquele assunto, as pessoas passaram a querer conversar sobre isso, e aí eu fui e comecei a ser chamado pra falar sobre. E aí, num dos cursos que eu fui fazer sobre a morte e o viver, eu conheci a Ana Michele. E, cara, eu falei… ela tava ali, eu falei: “Cara, eu leio um monte de coisa dela, minha esposa lia e tal”. E aí quando eu fui falar com ela, eu falei: “Eu leio os seus textos, não sei o quê”. Era um curso pra profissionais, eu era, eu e mais uma pessoa eram os únicos que não eram profissionais de saúde. E eu, conversando com ela, ela falou assim: “Você que escreve as Cartas pra Maria?”, que ela tinha lido, que a doutora Ana comentou e tal. E aí eu falei: “Sou”. Ela: “Já li tudo, não sei o que e tal, você precisa conhecer o Tom”, que foi o idealizador do Movimento Infinito, que a doutora Ana também... E aí ela me apresentou, mandou mensagem à noite, mandei mensagem pro Tom de manhã, de madrugada ele me respondeu e aí ele falou assim: “Ó, eu quero falar com você e tal”, me convidou pra fazer uma fala sobre finitude no Festival Infinito, que ocorre… E foi a primeira vez que eu fui falar publicamente. Sem muito entender porquê eu tô indo lá, né? Porque eu tava num processo de, era um momento, era um movimento em que eu precisava falar. Que falar é importante assim, né? Ter sua dor reconhecida, eu precisava que as pessoas me reconhecessem naquele momento, naquela posição. E aí eu fiz uma fala no final, ninguém conhecia nada [de mim], e eu acho que teve um impacto muito grande, eu acho que quem estava ali e tudo. E a partir dali, minha vida, assim, as pessoas começaram a me chamar pra falar em outros lugares, então eu fui falar sobre esses assuntos em faculdades de medicina, sobre cuidados paliativos na visão familiar, né? Fui convidado pra escrever, participar de livros que falavam sobre o luto... Nesse momento, eu já tava participando do grupo de homens lutados, depois eu virei voluntário, então passei a acolher outros homens, coisas que eu não tive, que eu entendia que era importante, que era importante pra mim. Então, eu passei a participar. Por causa da proximidade com a Ana Michele, quando ela criou a Casa Paliativa, eu tava lá na primeira reunião. Era importante, pra mim, fazer parte desse movimento. Eu vi o impacto que isso teve na nossa vida indiretamente, então é importante que isso aconteça pra outras pessoas também. Larguei a empresa que eu tinha, não tinha mais condição nenhuma de trabalhar no que eu tava fazendo. E aí fui... Que é uma jornada de aprender mesmo, como se as coisas... Como funcionar agora no mundo que tem outros valores, né? Exercer a paternidade solo assim como milhares de mulheres fazem. E é importante dizer assim... E aí lutar contra.... Porque assim, o homem faz qualquer coisa, ele é [considerado] um Deus, né? Super pai. Então, assim, a gente precisa… e a mãe que faz, não é. Então a gente precisa refletir porquê isso acontece. Então, eu ganho visibilidade, começo a ser convidado pra… cara, mês dos pais, querem fazer aquelas reportagens, sabe? Então, você tem que ir se posicionando, é importante falar, explicar, que o pessoal vê: “É fofinho, duas crianças, não sei o que…”, mas, cara, um ‘puta’ perrengue do cacete. É quatro e meia todo dia. É duro, é difícil. Tem toda a parte linda do aprendizado, mas o dia a dia é muito difícil. Então, enfim, eu passo a escrever, tenho escrito sobre esses temas, sobre a morte, sobre o luto, sobre paternidade, sobre masculinidade, né? Então, hoje, a minha vida em relação ao Rafael que era antes do diagnóstico, a vida hoje faz, tem muito mais sentido hoje. Tem muito mais sentido e eu queria muito que ela pudesse ver isso, né, porque eu gosto mais dessa versão de hoje. Veja, não é assim que hoje é uma nova pessoa - é um processo, vai ser até o final da vida, mas me entender nesse processo, agora, de movimento, de talvez quando chegar a minha vez da morte, eu tá ‘vivo’ um dia, sabe? Assim como ela também teve, né? De compreender isso e de cada vez… tá, como que eu… pra ser o pai que eu quero ser pra eles, eu tenho que mudar como homem. Não tem jeito. Então tem que discutir, entender que eu tenho valores que, cara, não cabem mais. E que eu nem tenho consciência de muitos. Mas, então, eu vivo e busco essas interlocuções, busco conversar com outros homens pra entender e pra ir aprendendo, sei lá, e tentando ver. Então, como que eu faço isso? Então, hoje eu faço parte de um grupo, do coletivo que fala desse assunto em empresas, fala desse assunto em comunidades, fala desse assunto em escolas, porque eu, como homem, agente de tudo isso que acontece e sendo responsável, como, eu dentro dessa nova realidade, eu participo e não... E veja, não é a mesma coisa, o erro, né, de quando eu falo: “Eu vou cuidar, eu vou cuidar, então eu estou numa posição superior”, não. Porque todas essas trocas, ou quando eu vou num grupo de homens, acolher outros homens, é uma troca muito grande. Eu aprendo mais. Isso reforça o caminho que eu escolhi. Quando eu vou num grupo ou vou fazer isso, isso reforça e me alimenta, pra eu continuar nesse processo. Porque quando eu vou pra sociedade ou pra família, não sei o que, todo mundo em volta está me dizendo indiretamente ou a sociedade [enquanto] estrutura pra que eu volte a viver de um jeito, do mesmo jeito que eu vivia antes: trabalhando, não sei o que, dar esses netos pra avó, arrumar alguém, uma mulher, para cuidar dos seus filhos. A sociedade toda hoje, de forma estrutural, não acolhe o homem nessa posição. Assim como não acolhe a mulher, enfim, em outras. Eu estou falando assim: a gente vive numa estrutura que não permite que um homem possa ser, ou que o homem… Como que é… Mas eu só vou falar da onde eu, né? Seja o que ele quer ser. Eu fui a vida inteira seguindo um script: fui prestar uma faculdade que eu não queria, nem sabia o que eu ia fazer, fui fazendo, fui cumprindo todas as regras. E quando que eu parei pra fazer o que eu quero? O que eu gostaria, da forma como eu queria, né? Então eu acho que estar nessas iniciativas, participar, é uma forma também de contribuir pra que isso aconteça, mas também de me retroalimentar. Eu escolhi esse caminho, ele é mais dolorido, ele é isso, eu tenho que abrir mão disso, não sei o que, mas eu vejo hoje a relação que eu tenho com os meus filhos, a relação que eu hoje eu tenho, mudou com meus pais, com amigos, como as coisas vêm no processo de mudança e de um desconforto o tempo todo. Mas é isso que eu acho que a vida exige da gente, sabe, de a gente ter coragem pra ser o que a gente quer ser. Então seguimos assim a vida, ela não é fácil, mas ela é mais... Segue bonita, segue bela, sabe? Hoje eu consigo enxergar o quanto de oportunidade que eu tenho de poder exercer esse caminho assim, né, de poder reafirmar essa escolha de pessoas, de conhecimento, de formas de ver o mundo. Eu nunca teria se não tivesse acontecido o que aconteceu. Então quando eu paro pra pensar na morte, a gente está falando de vida, de como a gente quer viver. E talvez os outros, as pessoas só passem a ver a vida ou olhar pra vida quando chega próximo da morte, ou quando tem um episódio desse. Já é natural, daí a gente começa a rever a vida e aí vem todos os arrependimentos, né? Tem até livros que falam sobre esses os maiores arrependimentos da morte, é tudo a mesma coisa. Se você pegar os cinco maiores arrependimentos, todos estão ligados com o que a gente entende do que é ser homem: não mostrar suas emoções, queria ter vivido mais com meus amigos, queria ter vivido mais com a minha família. Então, assim, dá pra fazer uma relação e talvez a gente tenha um caminho, uma jornada de mudança de uma sociedade toda, né? E eu, realmente, quero fazer parte disso assim, sabe, quero que meus filhos vejam isso acontecer, porque é isso que eu acho que eu posso deixar pra eles, sabe? Eles verem que mesmo com tudo, a gente segue. E tudo que tem acontecido é muito bonito assim. Tudo, né? Hoje a gente vai sair daqui, vai reencontrar com os meninos que a gente gravou, do Queer Eye, que as crianças são apaixonadas, e a gente tá aqui, tá passeando, estamos conversando. Reconhecer essa beleza que tem, sabe, nessas coisas, nessas oportunidades da gente se conhecer, da gente trocar. A gente comentou antes de, você falou: “Como que é ouvir isso?”, que é uma coisa que a gente passa a vida inteira. Eu lembro de ter, quando a gente recebe o diagnóstico, quando eu saio, vou na farmácia e tudo, eu olhava pras pessoas, falei: “Meu, ninguém sabe o que eu tô passando. A vida tá ‘comendo’ todo mundo, tá todo mundo aqui, a mulher tá mal-humorada aqui me atendendo, ela não sabe o que eu tô passando”. A gente passa a vida inteira sem se interessar pelo outro, né, sem se importar com o outro. Então, e sem se importar com a gente, porque a gente vai seguindo uma sequência. Então tudo que aconteceu pra mim foi uma oportunidade de recomeçar mesmo, tem sido assim todo dia.
(03:17:18) P/1 - Eu teria ainda muitas coisas pra te perguntar, mas a gente já está chegando em uma da tarde e eu tenho até preocupação com seus filhos... Eu posso fazer só uma última pergunta?
R – Pode.
(03:17:33) P/1 - É uma pergunta que a gente sempre faz e eu gostaria de saber também de você, que é: como é que foi… você já, eu vi que você já deu entrevista em vários lugares, né? Mas como é que foi contar um pouco da sua história hoje pra gente? A história da sua infância também, dos seus pais. Como é que foi hoje pra você?
R - Olha, eu já tenho o costume, não é em relação à exposição que aconteceu, mas em buscar essas interlocuções e da importância da gente ter pessoas pra ter interlocuções sobre qualquer assunto, né? Então, hoje, poder novamente revisitar, eu, invariavelmente, vou até a emoção e revivo os momentos. Muitas vezes que eu faço isso, vejo de um outro ponto de vista. Hoje, cada vez mais com mais aprendizado, eu passo a olhar alguns momentos de outra forma e aprendo de novo com isso. Então, eu acho que, assim como hoje, é algo que a gente poderia adotar pra vida assim, que a gente pudesse buscar sempre essa interlocução e troca. E principalmente com gente diferente, com... Assim como eu tenho interlocução pra escrita, assim como eu tenho com o terapeuta, assim como eu tenho interação com homens de paternidade, é muito importante isso, a gente vem num momento, talvez, que a gente não converse, né? Aqui tudo bem, é uma troca, é um formato, eu entendo, mas, assim, que a gente não fala, não troca de forma sincera, não escuta, né? Mais do que falar assim, de escutar. Porque falar… tem uma frase - esqueci [o nome] da autora -: “Falar é melhor que pomada cicatrizante”. Então, é uma forma de… cada vez que você fala, você vai, enfim, vai entendendo tudo que aconteceu. Eu acho que no meu caso hoje, já cicatrizou. Eu vejo que falar me leva a ver a cicatriz de novo e aí me leva pra dor que causou a cicatriz, mas... E aí me leva a falar assim: “Porque eu preciso fazer o que eu preciso fazer”, é a importância de criar esses movimentos, espaços de escuta, de interlocução. E aí eu acho que, especificamente, quanto é importante, talvez em um outro aspecto, é criar esses momentos de escuta, não só pra quem está aqui podendo falar e refletir sobre a própria vida, mas talvez a gente escutando outras histórias do que aconteceu, a gente possa, talvez, não aprender como um modelo, não é isso, mas a gente… aquilo me serve, aquilo não me serve, né? Eu, nesses momentos em que eu faço isso, de forma, ter uma exposição, de chegar a um homem, por exemplo, no final de uma fala, falar assim: “Olha, eu vou cuidar da minha família de forma diferente agora”. E aí talvez esse homem não precise passar pelo que eu passei, né? A gente, eu poderia ter feito isso. Sem a pretensão nenhuma de modelo, mas especificamente pra homens verem outros homens falando abertamente de alguns assuntos, é importante pra criar um espaço pra que se permita, porque esses homens também podem fazer. Então, talvez, a importância desse tipo de fala aqui, mais do que pra mim, que pude falar, que hoje eu já tenho que falar pra mim, é importante, porque conforme eu fui falando, eu fui fazendo outras reflexões, mas que a gente crie isso como memória pra um marco: “Olha, o homem também pode tá nessa posição, ele também pode cuidar. Vai errar, vai ter, mas pode chorar, pode fazer isso”. Então tem uma importância que vai além da nossa troca aqui, acho que cria algo que talvez a gente possa ver. E essa questão de representatividade, é muito fácil quando a gente olha pra questão racial, né, isso a gente já vem discutindo, a nossa sociedade vem discutindo, né? Mas, assim, essa questão da masculinidade, do homem numa posição diferente, quanto mais criar esses espaços, eu acho que a gente vai criando um movimento também de mudar. Então, a troca aqui, eu entendo que é maior do que é a nossa relação aqui, que a gente criou hoje aqui.
Recolher