Entrevista de Dalva Damiana de Freitas
Entrevistada por Jonas Samaúma e Jeferson Queiroz
Cachoeira, 05 de maio de 2023
Projeto Conte Sua História - Vida, Morte e Fé
Entrevista número PCSH_HV1382
Transcrita via Transkriptor
Revisada por Grazielle Pellicel
(00:18) P1 - Dona Dalva, obrigado por receber a gente aqui na sua casa, parar seu tempo, né, e compartilhar um pouco da sua história já nos seus 95 anos. Eu queria começar perguntando: como era aqui? O que… a primeira coisa que você lembra quando você nasceu? Como era a sua casa? Como era aqui onde você nasceu?
R - Minha casa, aqui?
(00:48) P1 - É.
R - Ó, nasci nessa rua, nessa casa. Aqui, antigamente, aquele nome, primeiro, da rua, através da igrejinha, era a Rua do (removido para proteção), mas com o movimento, porque vai se evoluindo, todo ano vai mudando de status, né? Aí mudou o nome pra Rua (removido para proteção). Esta casa aqui, Rua (removido para proteção), uma casa da esquina, onde nasceu Dalva Damiana de Freitas. Foi aqui. Eu.
(01:30) P1 - E você nasceu com parteira?
R - Hein?
(01:31) P1 - Nasceu com parteira?
R - Não, sozinha.
(01:35) P1 - Sozinha.
R - Com parceira? Outra irmã?
(01:37) P1 - Não, parteira. Você foi… foi hospital ou foi tirada?
R - Fui tirada. Aqui em casa mesmo. Nasci em casa.
(01:43) P1 - Ah, nasceu em casa.
R - Foi em casa. Não participei da casa, na casa santa, não. Foi aqui, a casa da coragem. (risos) Aí então, no dia 27 de setembro, dia de São Cosme e São Damião, onde minha avó fazia um famoso caruru, que minha vó teve a barriga de gêmeos, né? [Ela se] chamava Resistência Ribeiro da Costa. E eu nasci aqui.
A minha vó teve uma barriga de dois. No outro ano, barriga de três filhos. Minha minha vó teve uma barriga… a última barriga foi [de] quatro. Quer dizer, os quatro, mas nascidos assim… morrendo. Já nascia morto, né?
(02:25) P1 - Quadrigêmeos.
R - Quatro, foi. Já nascia morto, porque sozinha ela tinha em casa a...
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Entrevistada por Jonas Samaúma e Jeferson Queiroz
Cachoeira, 05 de maio de 2023
Projeto Conte Sua História - Vida, Morte e Fé
Entrevista número PCSH_HV1382
Transcrita via Transkriptor
Revisada por Grazielle Pellicel
(00:18) P1 - Dona Dalva, obrigado por receber a gente aqui na sua casa, parar seu tempo, né, e compartilhar um pouco da sua história já nos seus 95 anos. Eu queria começar perguntando: como era aqui? O que… a primeira coisa que você lembra quando você nasceu? Como era a sua casa? Como era aqui onde você nasceu?
R - Minha casa, aqui?
(00:48) P1 - É.
R - Ó, nasci nessa rua, nessa casa. Aqui, antigamente, aquele nome, primeiro, da rua, através da igrejinha, era a Rua do (removido para proteção), mas com o movimento, porque vai se evoluindo, todo ano vai mudando de status, né? Aí mudou o nome pra Rua (removido para proteção). Esta casa aqui, Rua (removido para proteção), uma casa da esquina, onde nasceu Dalva Damiana de Freitas. Foi aqui. Eu.
(01:30) P1 - E você nasceu com parteira?
R - Hein?
(01:31) P1 - Nasceu com parteira?
R - Não, sozinha.
(01:35) P1 - Sozinha.
R - Com parceira? Outra irmã?
(01:37) P1 - Não, parteira. Você foi… foi hospital ou foi tirada?
R - Fui tirada. Aqui em casa mesmo. Nasci em casa.
(01:43) P1 - Ah, nasceu em casa.
R - Foi em casa. Não participei da casa, na casa santa, não. Foi aqui, a casa da coragem. (risos) Aí então, no dia 27 de setembro, dia de São Cosme e São Damião, onde minha avó fazia um famoso caruru, que minha vó teve a barriga de gêmeos, né? [Ela se] chamava Resistência Ribeiro da Costa. E eu nasci aqui.
A minha vó teve uma barriga de dois. No outro ano, barriga de três filhos. Minha minha vó teve uma barriga… a última barriga foi [de] quatro. Quer dizer, os quatro, mas nascidos assim… morrendo. Já nascia morto, né?
(02:25) P1 - Quadrigêmeos.
R - Quatro, foi. Já nascia morto, porque sozinha ela tinha em casa a barriga de três, a barriga de quatro, a barriga de dois. Aí então ela dizia assim: “Era Cosme e Damião, [os gêmeos]”, aí a barriga dela… [os trigêmeos eram] Cosme e Damião, Doum. Aí, [os quadrigêmeos eram] Cosme, Damião, Doum e Alabá. (risos) Vovó que dizia, né?
Aí então, por sinal, eu fui a primeira neta, que nasci em dia de São Cosme, em 27 setembro, sete horas da noite E tudo faz parte do sete, né? 1927. 27 de setembro. Sete horas da noite. Faço parte de três ‘setes’: sete, quatorze e 21. Aí então me sinto aqui, criada aqui em casa com meus avós [por] parte de mãe e tive oito irmãos - falecidos, né? Já faleceram. Só tem agora, só o restante agora: duas mulheres. Três comigo, que eu sou a primeira.
Então eu me acho com a contagem [dos ‘sete’] e felicidade. Eu sou feliz, meu Deus, agradecendo a voz, as horas, os minutos, a minha tempestade, que eu estou aqui, adorando. Agradecendo a voz por ter… meu Cosmo e Damião me protegeu. Eu nasci, estou aqui até hoje e espero que Deus me ajude, que todos os meus projetos, da minha vida, é a casa do meu Senhor, porque eu comprei, eu levei dez anos numa, [pra ter a] casa paga, pra fortalecer a minha vida.
E hoje, atualmente, eu tenho espaço ali ao lado do nosso cinema. E Cachoeira (BA). Então, o meu espaço está dependendo de que levante a construção pra ter o meu legado, que eu deixo, que eu tenho esperança que eu vou deixar o meu legado muito bonito, muito maravilhoso, porque é minha vida, é minha história. Eu sou continuante de grupos… eu fiz o samba… o primeiro samba que eu fiz, foi o samba de roda, através do meu trabalho [de] operária, eu fui operária da Suerdieck.
(05:19) P1 - Eu ia te perguntar… você está contando do samba e da sua vó, que que você lembra assim da sua avó na sua infância? Como é que… o que você aprendeu com ela? Como era a sua relação com sua avó?
R - Olhe, a minha avó, a mãe do meu pai, o paterno, ela fazia sarapatel. Ela era negociante pra Feira de Santana (BA). Negociava pra vender vários tipos de peixe, garoupa, tudo aquela antiguidade que ela fazia. Fazia maniçoba, fazia sarapatel, fazia pé de moleque, cozinhava milho, botava na porta pra vender. Ela era uma negociante forte. Ela era uma negra forte e era, minha vó era nagô.
Agora, era nagô porque ela falava tudo embolado. Meu nome, ela me chamava… meu nome é Dalva, ela me chamava Sidavi. Os filhos dela, ela chamava… era Merentina, ela chamava Merintino. O meu pai era chamado Antônio, ela chamava [ele de] Antone. Era tudo misturado, né? Aí, então, eu era quem (amava e atingia?) a voz dela, que consagrava. O nome dela é Vicença Ribeiro da Costa, conhecida por Vicencia Xodó, a mãe do meu pai, que falava essas coisas.
(06:53) P1 - E foi ela que te ensinou o samba?
R - Ela não gostava e ela não sambava. Ela fazia a reza de São Cosme e botava eu pra tomar conta, sambar, cantar samba de São Cosme, essas coisas toda, porque eu era pequena, era garota, mas era… já nasci crescendo nas minhas atividades, alegre, cantando samba. Eu cantava tudo. Ninguém me ensinava, não, eu já cantava.
(07:27) P1 - Você lembra como foi que você conheceu o samba? Foi na sua casa, foi na rua? Quem que…
R - O samba, eu conheci o samba pelo seguinte: a minha vó, eu fui criada com a outra avó, a mãe da minha mãe, na ladeira da Cadeia e ela era lavadeira, ela lavava roupa, então saía pra fazer as entregas da roupa e eu ficava com ela. Aí eu ‘entendi’ de fazer um Terno de Reis: todo mundo [se] vestiu de papel crepom, papel de seda, pras minhas colegas, pra gente sair pra Ladeira da Cadeia através dessa, desse ‘coiso’, mas não foi avante não, o terninho, né? Todo mundo gostou, os músicos todos foram à vontade, tocaram. Foi músico a grané, de toda parte. Foi tudo misturado, mas a gente… mas eu fiz. Chegando na porta da casa dos, da ‘coisa’, entrou todo mundo. Mas aquilo não foi avante, não foi avante porque o pessoal não sabia. Parei, fiquei.
Aí eu voltando, fazendo o meu sambinha… que eu gostava de fazer meus samba dentro de casa com minhas bonecas: botava as minhas bonecas assim, no chão, aquela roda de boneca, pra fazer samba, tudo vestidinha de papel crepom. Então não tinha com quem brincar. Eu não tinha brinquedos, não, gente, nem de louça, nem de celulose. Minhas bonecas ‘bipando’, com aqueles pescoços tortos, mal feitas. Eu fazia até de cabelo de milho, um pauzinho aqui e botava as bonecas. Eu fazia enterro das bonecas, fazia aniversário das bonecas. Eu fazia tudo com minhas bonecas.
E ela era ‘brava’, [minha avó, e] não tinha com quem brincar. Quando chegava uma colega, assim, ficava na porta, sentada, porque a ‘antiguidade’, naquele tempo, era um pouco pérrucha, né? A gente não tinha liberdade. Aí minhas colegas ficavam assim na porta, brincava, às convidava pra ir pro ‘anjo’ da boneca, pro aniversário da boneca, pra festa da boneca. Eu fazia tudo por amor, e aprendi com a minha avó.
Aí, através disso, mamãe, com a ‘geração’ dos meus irmãos, vem pra casa e eu vim tomar conta dos meus irmãos. Minha mãe fazia charuto, aqui, pra vender, pra ajudar o café e papai era sapateiro, mas trabalhou no corpo da guarda, em Feira de Santana, mas ele era sapateiro. E minha mãe fazia aquele charutinho, ‘chupado’ na banca. Aí eu achava que a minha mãe… eu queria trabalhar pra ajudar a criar meus irmãos, né? “Eu tenho fé em Deus que eu vou trabalhar pra ajudar meus irmão, pra dia de sábado eu comprar, entrar com um paiol de comida aqui dentro de casa com tudo”, porque naquele tempo o pessoal não podia comer na hora, né, [era comida] pra fazer. E todo mundo foi criado, graças a Deus.
Aí quando eu aprendi tudo isso, eu fui trabalhar na… trabalhei na [Fábrica de Charutos] Danemman. Por conta de treze anos, não fiquei porque não podia ficar… na idade…
(10:59) P1 - Você foi direto trabalhar lá?
R - Na Danemman, em São Félix (BA).
(11:01) P1 - Ou você começou a fazer charuto em casa?
R - Foi, me ensinaram. Foi. Eu fazia charuto de… esse do talo da mamona. (risos) Fazia aquelas coisa pra enrolar. Mas já estava ansiosa pra aprender o charuto. Fazia com a ‘coisa’ da mamona, com o talo da mamona. Mas Deus ajudou. Mamãe arranjou, eu fui trabalhar na Danemman, na comunidade… impedida. Não podia, porque estava muito nova. Aí acharam que eu não podia ficar. Mesmo assim, eu chorei tanto, chorei tanto, [que] deixaram eu ficar. Mas foi no, quando teve a questão dos alemães, fechou tudo, veio todo mundo embora, eu também vim, mais mamãe. Fiquei em casa.
(11:52) P1 - Como foi? Eles fecharam a fábrica?
R - Os alemães tiveram a briga lá. E naquele tempo os alemães tinham, moravam… era muito feito de… só tinha alemão, a fábrica Danemman: Adolfo Jonas, Adolfo ‘não sei o que’, casado. Aquele pessoal todo, aqueles prédios tudo ali na frente da ‘coisa’ de São Félix, tudo era os alemães. A fábrica Danemman… hoje onde é o INSS, era a fábrica Danemman. O outro lado também pertencia à Danemman. A Danemman era a maior firma que tinha em São Félix. E o Costa Pena é na saída da ponte.
Aí, minha mãe, eu pedi, minha mãe pediu ao Servésio, o pessoal que antes andava… doida pra trabalhar, pra ajudar mamãe. Mamãe não tinha, papai também, sapateiro, minha mãe charuteira. É uma vida muito ‘privada’, né? Aí eu fui trabalhar.
(12:51) P1 - A senhora estava contando como foi que começou a trabalhar, você falou que precisou… Como é que foi isso? Você tinha quantos anos?
R - Olhe, eu estava construindo [minha vida com] meus treze anos, porque eu sempre fui desenvolvida, né? Aí, então, mamãe… meu pai não queria que eu fosse trabalhar em fábrica, meu pai queria que eu estudasse pra ser professora. Eu dizia: “Eu? Ser professora? Eu não tenho os livros”, porque, na verdade, naquele tempo era carta de ABC, a cartilha, o livro Erasmo Braga. Era esses livros. Os pais eram motivados na pobreza, né? Só trabalhava pra sustentar a família. E o marido que também era operário, sapateiro, mamãe operária, tinha que trabalhar pra ajudar eles. E a gente… eu ficava com pena. Quando eu via todo mundo passando pra feira com suas compras e a gente olhava assim, eu disse: “Eu vou trabalhar. Eu vou trabalhar, que é pra também [em] dia de sábado eu comprar aipim, batata, inhame, tudo, carne pra trazer pra dentro de casa. Pra gente, pra papai e mamãe”. Porque, naquele tempo, o pessoal comprava comida na hora: “Compra ali cem gramas de carne, compra ali pra fazer…”, fazia uma fritada, uma coisa pra todo mundo comer. Hoje em dia, está se achando tudo. Hoje em dia, tem tudo e acha tudo. Pois é. Aí eu fui trabalhar. Graças a Deus, o gerente Servésio dizia - ele chamava Servérsio -, ele disse que eu não podia trabalhar, a idade era muito nova. Mas eu chorei tanto ao meu mestre Francisquinho: “Deixa a menina trabalhar, eu tenho ansiedade de trabalhar”. Por de trás, se armou: minha mãe começou, aumentou minha idade e eu fiquei trabalhando.
(14:50) P1 - Aumentou pra quanto tempo?
R - Acho que botou pra quinze.
(14:52) P1 - Pra quinze. E você lembra como foi seu primeiro dia de trabalho?
R - Eu me lembro [que] no dia que eu entrei na fábrica, a minha mãe, as minhas companheiras… foi na Fábrica Danemman. As minhas companheiras, de minha mãe, me ajudava, ensinava como era que fazia o material, pra botar, pra juntar as perninhas de (torcida?), pra botar, pra enrolar, pra poder botar na banca. E, em pouco [tempo], o interesse era tanto de aprender, que eu aprendi a fazer. Aí eu sei dizer, aí, pra poder experimentar, pra ver se me ‘botava fora’ ou se eu ficava, ou não. Onde fui fazer um charuto chamado Sete. Número sete. Esse é o número sete, ele era pequenininho, assim. Bonitinho. Tinha um bojozinho ao pé, pequenininho, e vinha, fazia o bico. Aí minha mãe ensinou na hora, as colegas dela me ensinaram. Aí quando eu fiz o meu, eu fiz, aí quando levou pra ‘coisa’, os mestres ignoraram, dizendo que não tinha sido eu. E tinha sido eu mesma, o meu, que eu fiz. Aí eu passei.
Aí continuei a trabalhar. Mas coincidiu que teve o desmantelo do negócio lá da fábrica Danemman, dos alemães, que teve ‘agonia’ dos alemães. Aí deixou a fábrica, eu não pude continuar. Mas já estava fazendo um charuto número sete. Cheguei a fazer o número treze. Cheguei a fazer um que tinha… a gente fazia de, em cima, a capa, a gente torcia, fazia um periquitozinho. Essas coisas todas eu fiz. Mas fechando a fábrica, eu vim pra casa.
(16:48) P1 - Era difícil fazer charuto?
R - Não. A boa vontade, só de aprender, a pessoa faz, porque tudo a gente tem que aprender.
[Pausa]
(17:48) P1 - E eu ia lhe perguntar, o que que a senhora fez com o seu primeiro salário, que você recebeu do charuto?
R - Ah, olharam, um olhou pra outra, mostrou: “Foi ela mesmo?”, “Foi”. Aí, separação. Aí mandou fazer outro, separado, eu fiz. Foi idêntico. Aí pronto. Eu fiquei, deixou eu ficar. Eu fiquei, aí eu fiquei contente, que eu fui trabalhar pra ajudar a mamãe. Agora, não dava ‘tarefa’, meu charuto servia de espelho. Meu trabalho estava servindo de espelho, porque eu fazia com aquela coisa, [com] o interesse de trabalhar pra ganhar o trocado. Aí eu fazia, servia de espelho. Aí, de maneiras, coincidiu, cheguei a fazer o chamado treze. Cheguei [a fazer] o chamado, um charuto todo inteiro, que fazia o periquitozinho, quando fazia um periquitozinho. Ele tinha um número. Tinha o número dele. Agora, eu não estou lembrada do número. E, com isso, eu continuei.
Aí, por ‘atentação’, a fábrica fecha. Os alemães…
[Pausa]
(19:57) P2 - [Queria perguntar] a senhora [sobre a] Danemman. Demorou muito pra senhora entrar nas suas _____ ou a senhora fez outros trabalhos?
R - Fechou a Danemman, aí eu vim pra casa. Vim pra cá, fiquei aqui em casa tomando conta dos meus irmãos, mas sempre pedindo a Deus que aparecesse uma coisa, pra me chamar. Aí foi quando existiu a (Lei Talvez?). A (Lei Talvez?), não me conseguiram, eu ficar, porque… é por causa da idade. Elas não achavam que minha idade era… aí eu vim pra casa, não conseguia ‘aleitá-lo’. Nesse tempo, a mestre, chamada Dona Celina, era a mestra do ‘coisa’ e eu não dava produção também. E ali estava a produção de cigarrilhas e eu não dava produção, porque a perfeição era tão grande, que eu queria meu trabalho aperfeiçoado. Eu não dava… aí vim pra casa, fiquei dentro de casa. Deus ajudou, apareceu a [Fábrica de Charutos] Suerdieck… aí trabalhando. Aí uma colega, vizinha, trabalhava lá, aí eles estavam procurando pessoas pra trabalhar, porque as mulheres botaram a ordem delas, não fazer o duplo, porque os alemães, uns suíços vieram pra Suerdieck pra ensinar como é fazer o charuto duplo, onde elas não queriam fazer, não sabiam fazer, achavam que era, assim, bitolada, essas coisas, não faziam. Aí a vizinha me chamou: “Ô Dalva”. Eu digo: “Ué”. “Na Suerdieck está entrando gente, você quer ir?”. Eu disse que se quisesse me dar o lugar, eu ia. Eu já estou doida pra trabalhar, Tuninha”, ela [se chamava] Tuninha. A Tuninha, a Neguinha, o pessoal: “Olha, você… chegaram às onze e meia, então a gente, doze e meia a gente volta pra Suerdieck e você vai com a gente”. Ó, não tenho vergonha de falar, eu disse: “Meu Deus, não tenho roupa pra vestir”, aí tirei o vestido, lavei, lavei, lavei, enxuguei na toalha, botei na toalha, sacudi. Não comi não. Aí me mandei pra Suerdieck. Já tinha a (perdição da vida?), já tinha a primeira filha. Aí eu disse: “Meu Deus”. Aí eu fui trabalhar. Quando eu cheguei lá, tinha um suíço lá ensinando… o nome dele, eu não lembro o nome dele, não. Aí ensinou. Agora, me lembro bem quem tomava conta: era (Seu Estrela?). E tinha outros mais, que era pra ver a perfeição. Então, esse charuto, tinha charuto duplo um, duplo dois, duplo três e duplo quatro. De um charuto, fazia dois. De um charuto, fazia três. E da outra forma, maior, fazia quatro. E eu passei no teste. Fiz, capeei tudo. Porque o charuto, primeiro, era uma porcelana com água, outra porcelana com a goma e o pincel pra gente passar numa tábua ali - era um vidro, depois passou a ser zinco -, pra gente passar ali, abrir a folha do fumo arapiraca, pingando água. A gente abria ela ali em cima do tablado ou do vidro, ou ou da ‘coisa’. Abria todo, todo, todo, quando acabava, passava grude, pincelar, pra depois vim cortando a faca, cortando, cortando, cortando, pra gente pegar um, tirar aqui da forma pra ir enrolando, enrolando, enrolando, enrolando, enrolando, enrolando, enrolando. O bicho encharcado de água. Quando a gente acabava, a ‘bicha’ gastava… tudo mole. Aí o mestre vinha, pegava, levava, tinha um tablado lá que era pra enxugar, botava lá e tudo enxugava, ficava tudo normal, tudo bom. Aí eu trabalhei, eu fiz essa produção…
(24:32) P1 - A senhora chegava a fumar esse charuto?
R - Não, não fumava. (Tomava bêbada?), ficava ‘bêbada’. O furtum do fumo, ficava ‘bêbada’. (A vida mal passada e trabalhei no Arapiraca?). Arapiraca é um fumo forte, acaba com a saúde da gente. Mas… é um fumo grande, aquelas coisas que a gente abria e trabalhava. Graças a Deus, eu fui trabalhando, trabalhando, trabalhando. Pessoal começou também a trabalhar, as outras continuaram. Aí quando veio pra (fichar?), aí na hora de (fichar?), elas davam produção grande. Foram fichadas. Aí o gerente, seu Valdo, disse: “Ela é vagarosa, mas o trabalho dela é perfeição, é o espelho”. Aí me ‘fechei’. Depois fui pra Cruz das Almas, onde tinha lá estabelecimento, também, de operária, eu fui fazer as ‘coisas’ lá do Arapiraca, num lugar que tinha os fumos todo coberto. É um ‘bebo’, viu? ‘Tomei’ um ‘bebo’ danado. Tive dois dias de cama. Aí eu fui fazer esse trabalho lá, vim pra casa e continuei a minha vida. Depois que passei a fazer charuto à mão, eu fiz tudo que fosse.
[Pausa]
(26:48) P2 - E o samba, o samba [na] Suerdieck, quando é que surge aí o samba?
R - Quando eu comecei a fazer? Foi na Suerdieck. Foi através do convite, porque na minha vida, eu cantava muito, gostava de tirar minhas versidades de letra, essas coisas. Enquanto as outras estavam trabalhando, eu só estava fazendo letra. Passava uma pessoa na rua, passava uma coisa, eu pegava as palavras, de uma por uma, pra fazer música. Ninguém sabia. Eu fazia. Aí a Suerdieck teve um convite para participar da festa, primeira festa, Santa Cecília. Aí mandaram [o convite], porque eu gostava de pular a ‘lavagem’, né? Quando saíram da fábrica, vi a ‘lavagem’, eu ‘caía’ dentro. Aí tem um convite pra Santa Cecília. Aí mandaram falar pra Seu Valdo, que era o gerente da fábrica, aí ele disse: “Aí tem uma pessoa que faz” e aí mandou me chamar. Aí o mestre Simone me chamou: “O chefe tá chamando”, “Ai meu Deus! Ai meu Deus! O que foi que eu fiz?” Fiquei quieta, sem querer ir. Aí tornou a chamar: “O gerente tá chamando, Dalva”, “Meu Deus, eu não fiz nada. Não fiz nada. Ó meu Deus!”. Aí tornou a chamar, aí eu… “Olha. o chefe está lhe chamando”. Aí ele falou assim: “Ó, olhe pra trás”. Quando eu olhei, ele. Aí eu fui atender: “Ó eu Seu Valdo”. Ele disse: “Lhe chamei pra lhe fazer, pra lhe dar um convite, um recado também, que vieram aqui lhe pedir”. Eu digo: “Eu não fiz nada não Seu Valdo, eu não fiz nada não, senhor. Eu não fiz nada, não, senhor, eu não fiz nada, não, nada de errado”. Ele disse: “Não é isso”. Chegou o Seu Vicente, o pai do Doutor Ranulfo, que ele também trabalhava lá, disse: “Aquele samba que você canta, as suas músicas que você canta, então, vem o convite agora da festa de Santa Cecília, pra você participar, que é a noite da fábrica, e a fábrica não tem outra pessoa pra fazer a não ser você. Quem vai fazer é você”. Aí eu fiz. Fiz o samba. Aí comecei tudo de novo: ‘desastrei’! Aí eu fiz o samba. Foi no dia que a questão que o gerente, Seu…
[Pausa]
(30:40) P1 - Que aí ele te chamou e te chamou pra uma festa, né?
R - Aí ele me chamou, né? “Olha, tem um convite, que é hoje à noite, da fábrica, que vai ter a noite da fábrica. Eu disse: “Ó, meu Deus, a noite da fábrica. Como é, Seu Valdo? Eu não tenho nada. Eu não…”, “Pra você participar com o samba”. Eu disse: “Ó, Seu Valdo, nós não temos roupa, nós não temos nada. Eu não posso participar”. Ele disse: “Mas hoje é a noite da fábrica”. Aí, imediato, mas vai não é… aí disse assim: “Mas não é propriamente hoje, vai ser por quinta-feira”. Aí eu disse: “Ai, meu Deus, o que é que eu faço? Ninguém, o povo não emprestava roupa, não”. Aí eu disse: “A gente não tem roupa”, eu só tinha uma roupa só, que era da minha avó, que eu tomava emprestada. Aí eu cheguei assim: “A gente não tem como”, aí peguei a cantar samba nas (suas dicas?), que eu já cantava. Abraçou as mulheres, todas abraçaram. A gerência ouviu, aí mandou um recado pra mim, que eu fosse nos outros locais, dos outros armazém, convidar todas as colegas dos outros armazém também para que participassem da noite. Aí vai eu. Vai eu: “Meu Deus, eu não tenho roupa pra sair, nada. Ó, meu Jesus Cristo”. Aí quando cheguei lá na outra ‘coisa’, eu convidei as colegas: alvoroçou tudo! Aí as colegas sapateavam, as colegas mexiam, falavam. Fazia sucesso, né? Aí eu estou na atividade, fazendo uns negócios, vim pra casa. Aí, nesse dia, a fábrica estava… todo mundo se preparou, eu arranjei roupa emprestada. Teve uma que disse assim: “Eu não vou emprestar minha roupa a você, uma mulher catingosa, fedorenta. Emprestar roupa a povo de fábrica? Não tenho, não”, não emprestou. Aí eu fiquei, eu senti, né? Aí as mulheres pegavam os lençóis, emendavam um no outro, fazia, franzia, fazia saia, porque não tinha, ninguém queria emprestar. Aí teve eu… teve uma colega, que ela é da (Boa Morte?), ela tinha me convidado. Ela sabia que eu fazia, gostava do negócio, me convidou. Aí ela me mandou assim: “Vai lá em casa”. Eu fui na casa dela, ela me emprestou tudo, do ouro a tudo, pra eu fazer o Terno. Eu fiz. Aí eu saí, todo mundo gostou. Aí quando, na hora, graças a Deus, foi ativado, Seu Valdo, o gerente, chegou o dono da casa, seu Geraldo Maia, que a fábrica estava em discussão a respeito da mudança do duplo, de outras coisas, que as mulheres não queriam fazer. Só quem estava fazendo o duplo eram as novatas. Aí, eu: “Meu Deus, ó, meu Jesus. Não vai mais ter Terno, graças a Deus. Graças a Deus!”. Aí eu fui, graças a Deus, Seu Valdo me chamou, mas saí: “Que hora é?”. Eu disse: “Eu vou sair”. Ele disse: “Olhe, três horas pra quatro horas, vocês já estão liberadas pra fazer a função de vocês” - O que é que depende pra… o gerente ou Vada… ele [se] chamava Valdo, né? - “O que é que depende pra elas fazer a festa delas?”. Aí Seu Valdo dá a hora, o horário pra eu sair. Eu disse: “Não, Vaga. Manda comprar cachaça, uns ‘negócios’ pra dar a elas pra elas fazerem, porque a fábrica é à noite. Aí, graças a Deus, eu fiz o samba, todo mundo sambou, os músicos da Minelva todos foram, tudo tocar, muita baiana, muita gente. Aí a gente saiu a rua. Essa foi a noite do Suerdieck. Por aí começou a conquistar o povo e o povo, aí vinha o povo chamando, aí a Festa D’Ajuda também mandou chamar… que o primeiro foi Santa Cecília, mandou chamar, vai a gente participando de tudo. E de tudo estou participando até hoje.
(35:07) P1 - E foi quando esse samba?
R - Hein?
(35:08) P1 - Foi mais ou menos [em] que ano?
R - Como é?
(35:11) P1 - Foi que ano isso, mais ou menos?
R - Menino, a verdade [é que] a gente não gravava.
(35:16) P1 - Mais ou menos…
R - O sofrimento era… esse samba já tem, vai fazer… é da idade da Bahiatursa, aqui em Cachoeira. Já ele, já tinha o samba. Já tinha o samba. Quando a Bahiatursa chegou e convidou também, aí: “Vai, meu Deus”. Vai eu, vai pra tudo quanto era canto, tinha ônibus, tinha tudo. Aí eu dizia assim: “Meu Jesus Cristo”. Aí eu tirava um samba: (cantando) “Baianinha iaiá, baianinha iaiá sou eu. Quem vem lá é baianinha iaiá. Baianinha sou eu. Quem vem lá é baianinha iaiá”. Aí: (cantando) “Me deixa! Me deixa! Me deixa eu vadiar por Nossa Senhora, me deixa! Me deixa! Eu vou vadiar por Nossa Senhora. Ai, me deixa! Me deixa eu vadiar por Nossa Senhora. Me deixa!” Estava cantando meu samba, minhas versidades. Tudo que vinha na cabeça, eu cantava. Aí eu cantei: “É hora! É hora! É hora, chegou a hora! É hora! É hora do pau comer! É hora! Valei me Nossa Senhora! É hora! É hora! É hora! É hora, meu bem, é hora! É hora…”. Eu cantava, tudo que vinha, eu jogava, né? Mas era o samba que a gente cantava dentro de casa, com a minha vó, quando estava lavando roupa, essas coisas, eu ficava com ela e essas versidades, esses sambinhas, ela cantava e eu pegava, né? Não tinha na hora, pra cantar. E, graças a Deus, foi uma coisa que eu conquistei: primeiro, o Samba da Cachoeira; é o samba de roda Suerdieck. Eu botei na rua, com toda adversidade, com todas minhas colegas, porque foi gente! Os músicos da Minerva, todos participaram. Senhor, meu colega, Reizinho; tinha a Valdete, que é da Suerdieck; até os mestres nos acompanhavam. O gerente nos deu a casa pra gente dar os ensaios, a gerência deu o lado pra gente receber com o dono da casa, aí ele disse, aí disse que o dono da casa olhava e falava assim: “Vada!”... estava em questão com a junta governativa. Não sabe? Com a junta governativa de ______. Disse assim: “Vada! É bonito. É bonito. Quer que elas comam, quer que elas bebam?”. Aí seu Valdo disse: “Já está com horário [com o] irmão dela, pra ela saírem”. De maneira _____: “Compra cachaça, ó. Uma cachacinha, uma coisa”. Ele disse: “Não, elas não bebem não”. De maneiras, que eu nunca consegui deixar meu povo beber. Pode beber escondido. Pode beber na casa delas. Pode beber em outros lugares, mas no meu grupo não. E até hoje é não, não bebe.
(38:18) P1 - E de lá, assim, pra cá, qual foi as coisas mais importantes que você viveu com o samba? Com esses… com o seu samba? Mais marcante assim.
R - O que mais me marcou foi o reconhecimento na Bahiatursa, que veio de longe, convocou o samba através daquele pessoal todo, que veio no tempo de que estavam lá uma, essa Bahiatursa, que eles vieram, convidaram a gente quando a Bahiatursa veio em Cachoeira, foi quem levantou. Tem cinquenta anos que a Bahiatursa foi quem levantou essa festa em Cachoeira, aqui, as ‘coisas’, a Bahiatursa, que eles vieram me chamar, foram em casa me chamar. Eu não tinha sossego, eu era pra tudo. Pra todo canto, pra eu dizer quem tocava, quem sambava. São Félix tinha um velho chamado Neném, ele era cego, morava ali no Dendê, eu convidei ele, aí ele disse… teve a reza de São João e fez a reza através... quem convocou a reza foi eu. Esse que faz o… me esqueci o nome do negócio do reggae, ele também trabalhou pra confeitar as bandeiras. Foi a gente que fez as bandeiras. Tudo vinha pra aqui pra casa, eles também ajudaram [a] fazer as bandeiras. Foi quando fez aquele palco ali, que hoje em dia eles mudaram, mas era um palco de tablado, depois foi que veio fazer de cimento. Todo mundo começou por ali, mas, através de mim: o convite era eu. A reza do São João, que tinha, eu convidei Julieta - chamava Julieta [ou] Juliana, trabalhava com a gente -, todas as colegas pra participar. Mas depois de pronto, tudo, tudo, tudo, tudo, tudo, é que vai aparecendo as conquistas, todo mundo [fica] querendo se aparecer, querendo ser dono do trabalho da gente. Porque, na hora, ninguém teve pensamento de fazer nada, eu conquistei tudo junto… eu não dormia. Esses homem me pegava, me levava aqui pra eu procurar quem eram os homens que cantavam, quem eram os homem que ajudavam, onde participava. Tudo eu saía apontando. Eu saía ‘caguetando’, ia levar nas casa. Era. Eu disse: “Meu Deus”. Quando eu chegava em casa de madrugada, os meninos: “Ô mãe, onde a senhora estava?”, “É, o meu filho, cala a boca, não fala nada não. Daqui a pouco o pessoal vai pensar que eu sou puxa-saco, eu não sou puxa-saco não”. Mas eu estava fazendo o samba através da… comecei na Suerdieck. E por aí eu comecei a fazer minhas atividades, meus Ternos de Reis, que eu já vinha fazendo desde meninazinha, ativar. Parei, comecei a ativar a minha continuação e fazer o Terno de Reis. O Terno do acarajé em homenagem às baianas do acarajé e suas mulheres, que trabalham com o suor do rosto ali. Aí eu disse: “Vou fazer”, fiz em homenagem às mulheres do acarajé. Fiz uma homenagem pro…
(41:42) P1 - Como nasceu esse Terno do Acarajé, assim? Você olhou pra elas, falou…
R - Eu achava bonito o trabalho delas: elas tudo sentada, mexendo. Porque minha tia aqui também fazia, né? Minha tia fazia. Mas a minha tia fazia o acarajé, não era propriamente na… passado na máquina, não. Na máquina pra moer, nada, não. Era em uma pedra. Tinha uma pedra pra botar os carocinhos do acarajé, do feijão fradinho. Era descascado o feijão, grão por grão; todo, tirava a cor. Hoje em dia o pessoal já compra, é até mais facilitado: já bota as vasilhas dentro com água, os ‘coisas’, já vem dos carros… já compra o ‘coisa’, as bandinhas, descascam. Já descascava, botava dentro e vão fazer. Mas, naquele tempo, era descascado grão por grão, o caroço de feijão. Ouviu? ‘Botado’ na pedra pra, ó, ralar na pedra. Já tinha pedra pra ralar. A pimenta era seca, pra passar na máquina, pra torrar, pra ela ‘escafuchar’ ou se não na pedra, uma moela, pra depois botar o azeite pra rechear, com a cebola roxa pra rechear, fazer o molho do acarajé. E o acarajé também tinha cebola roxa também, ó, pra fazer tudo. A minha tia fazia. Aí eu fazia um… achava bonito. Aí eu dizia assim… ah, eu vi uma vez cantando assim: (cantando) “Dez horas da noite, na rua deserta, a preta mercando o acarajé. Na sua gamela tem molho cheiroso, pimenta da costa e o abará”. Aí dava: (cantando) “Dez horas da noite, na rua deserta, a preta mercando parece o ____. Meu acarajé…”. É as pretas mercando o acarajé. (cantando) “E o abará”. Aí eu achava bonito. Aí eu dizia assim: “Vou fazer em homenagem [a] essas mulheres que trabalham. Essa mulher precisa ser homenageada”. Essas mulheres é a mulher que ‘aguenta’ família. E todas elas, hoje em dia, todo mundo faz acarajé. E minha vó cantava assim, ela cantava assim: (cantando) Tenho uma namorada, ela é uma Preta Fina. Na porta do mercado, todos chamam Preta Minha. Banana, laranja, maçã, cambucaia. Eu tenho de graça, que a preta me dá, porque as mulheres todas se viravam pra sobreviver. (cantando) O que ela mais gosta, o que ela mais quer é uma saia, uma bata e um pano da costa. Eu disse: “Eu vou fazer”. Tudo, eu gravava tudo isso. E tudo isso eu fiz porque eu vi a minha vó… as músicas, eu pegava as coisas por música, eu botava na cabeça, e o Terno do Acarajé também eu fiz, através, em homenagem às mulheres do acarajé, porque são as mulheres sofridas, as mulheres que aguentam uma barra, mulheres que trabalham, tem uma casa, são mulheres próprias. A mulher tem, hoje em dia, fábrica de acarajé, todo mundo sobrevive. Foi uma cultura que veio pra dar sobrevivência e a coragem, não é não? É uma sobrevivência e coragem, fazer acarajé. A pessoa faz na… como aqui, essas colegas que vivem aí, vendendo, todo mundo participou do meu Terno. Fui eu que fiz o Terno ao Acarajé. Eu tenho orgulho de dizer assim: eu fiz. Não sou gratificada pelo meu conhecimento, mas sou conhecida pelo meu conhecimento. Eu sou conhecida pelo meu conhecimento, porque gratificação é uma coisa e conhecimento é outro. Hoje em dia, todo mundo faz acarajé, você vê até pessoas que nunca fizeram. Hoje em dia tem acarajé de toda forma, mas o próprio trabalho do acarajé, não soltou, só quem faz mesmo… ali na porta do Seu Domingos tem uma, na porta do (Bade?) Hernande tem outra, em toda parte da Cachoeira tem. É uma coisa boa. É o primeiro… faz o acarajé grande. É o primeiro: ‘coisa’ que bota no prato de Iansã, é o acarajé. É a primeira coisa que bota no, pertence à Iansã. O acarajé pertence à Iansã. Pertence. Aquele acarajé bonito, aquele camarão bonito e ‘bota’ ali nos pés dela. E o abará também. Pra gente botar pro Obaluê, não vai ‘bota’... ‘bota’ ele normal. E o abará, tudo isso são as comidas africanas: o abará, o acarajé, aberém, (abirim?). Tudo isso. Agora eu não faço aberém nem (abirim?), porque aberém é a mesma massa do abará. E o (abirim?), a minha vó fazia tudo isso, mas não foi por isso que a gente aprendeu. Eu só aprendi mesmo o acarajé.
(47:52) P1 - A senhora faz acarajé também?
R - Eu não faço mais não. Meu povo faz, mas eu não faço, não. Eu não gosto de trabalhar. Eu que dizia a elas, né? Pra descascar caroço, agora não são todas que estão fazendo isso, porque já compram feijão quebrado, ali, uns feijão todo… elas catam, limpam, ‘botam’ dentro d'água pra ele inchar; pra quando ele inchar, ‘nego’ passar na máquina. Trabalha menos. Mas o trabalho maior, elas não fazem: pegar o milho, o feijão, botar de molho, pra descascar caroço por caroço, pra botar na pedra, pra, ó.
(48:32) P1 - A senhora já fez acarajé assim?
R - Minha tia fazia.
(48:35) P1 - Sua tia que fazia.
R - Minha tia fazia, botava na pedra, que fica aquela massa, mesmo, boa, né? Também tem o camarão pisado. Tem tudo. O acarajé é uma profissão atualizada muito boa. A pessoa que se prevalece a fazer o acarajé, vai ganhar dinheiro, tem trabalho.
(49:01) P1 - E aproveitar que a senhora contou do acarajé - de Iansã, né -, qual que é a sua vivência, assim, com o Candomblé? Você tem muita história com isso?
R - Olhe, história do candomblé, tem sim. A minha tia era de Iansã, a outra era de Oiá, a outra era de Obá. Mas elas faziam, elas homenageavam, mas elas não me diziam. A minha avó era uma ‘nega’ africana. A minha avó chamava Vicência, era negra africana. Minha avó ‘teve’ três barrigas, uma de gêmeos… uma de dois, uma de três, uma de quatro. É, era. Cosme e Damião. A de três é Cosme, Damião e Doum. A de quatro: Cosme, Damião, Doum e Alabar. [A] vovó Vicência. Hoje ela não está mais neste mundo, mas ela tinha essas coisas. De maneiras que eu nasci no dia de São Cosme. Eu, Dalva. Eu nasci em dia de São Cosme. E todo ano a minha vó… a minha avó não sabia fazer essas festas não. Ela não sambava não. Era negra africana, mesmo. Ó, tem uns livros aí que tem até ela.
(50:18) P1 - Depois a gente vê. A gente fotografa.
R - É. Tem um livrozinho que estão fazendo, que vocês… que tem uma uma baiana azul, uma crioula: é ela. Ela, vovó, participava de tudo. E os filhos dela, de minha vó, tudo era músico. Era músico. A minha avó não falava assim como a gente está conversando, não, só falava tudo numa língua estrambilhada, né? Chamava… meu nome é Dalva, né, ela me chamava Sidave: “Ó, Sidave!”, “_____, vovó”. Almerentino, o filho dela, [era] chamado Merentino. Meu pai [se] chamava Antônio… Doum, o nome [de] Doum era Ilda, mas só chamava mesmo de Doum. Só chamava Doum de: “Ó, Doum!”, porque era Doum mesmo, do calendário dela, né? Mas o nome de Doum era Ilda. Vovó chamava Doum. ______ Chamava tudo ‘atravessada’. Ela sentava na porta aqui, nessa casa aí, passando aí na outra, com aquilo tudo: sarapatel, maniçoba, pé de moleque. De tudo, vovó vendia. Vovó vendia [de] tudo. E a gente dá graças a Deus porque roubava também um bocado. (risos)
(51:42) P1 - E ela era da Boa Morte também?
R - Vovó era irmã da boa morte. Ela… não tem foto aqui dela, não. Ela era da Boa Morte, era das irmãs antigas, primeiras, que alicerça ________. Era das antigas, era as antigas. Essa igreja daí, era onde dava a sessão da Boa Morte. Era aí que tinha a eleição pra dar, pra mudar de cargo. Era aí nessa igreja. Hoje em dia está tudo mudado, fechado, acabado. Era aí que dava aquelas mulheronas, era aquelas negras atrevidas, negras decentes, negras tiradas, bonita, ______, rica, ‘nega’ que era valente. Era elas. Elas eram nagô e respeitavam uns ao outros, faziam todos os tipos de doce, faziam tudo na vida. Elas sobreviviam… a sobrevivência delas negociar. A minha avó negociava pra Feira de Santana. Ela, dia de segunda-feira, de manhã, já viajava com todo tipo de peixe. Naquele tempo, que existia garoupa, minha avó vendia garoupa. Pedia garoupa, a vovó. Vendia garoupa. Ela negociava no tempo que tinha… era motriz? Não. Era caixa de fósforo, era o de São Félix, era o Bananeira, era aqui, na estação daqui. No tempo que existia o trem, era seis horas da manhã que saía, no trem que existia… agora me esqueci o nome. Tinha um (Triste?), tinha um outro… esqueci o nome. Vovó viajava, era ela ______ todos negociavam. As mulheres de Cachoeira eram negociantes das coisas…
[Pausa]
(53:52) P1 - Então você ia na Boa Morte, né, desde criança.
R - Era. Eu, na boa morte, ia desde criança, que a minha avó era irmã da Boa Morte. Aí, mamãe é quem costurava as roupas dela e quem passava ferro era eu. Eu passava ferro. Uma passada e… (risos) E quando, de noite, ia, tinha a procissão, elas saiam na na rua tirando o ‘coisa’ com dinheiro, pra dar a Boa Morte, né? Ou um balainho coberto com o lenço ou a bolsa, também antiga. No tempo, tinha uma coisa que elas usavam na bolsa, que ficava aberta e (acreditada?). E tinha a missa, também elas tinham, missa na igreja da matriz era uma grande festa, aquelas mulheres tudo bem ornamentada, mas o povo não dava aquele valor, não. Hoje em dia acabou a Morte, o pessoal, todo mundo aqui, hoje em dia, acompanha, é aquele festão, mas naquele tempo não dá não, porque era festa de negro. O pessoal… não dava. Ela dizia sempre, não davam apoio, não. Se por acaso pedisse uma roupa emprestada, ninguém queria emprestar não, porque [diziam que] as ‘negas’ [eram] fedorentas, catingosas. E o povo botava mil defeitos, mas eram as negras independentes que tinham ouro, umas ‘negas’ que sabia… não sabiam falar, eram ‘cativeiras’. Os ‘criadores’ dela eram donos de… como é que se diz? De terra, né? Foram ‘criadas’ com patrões, ficavam trabalhando nas cozinhas deles, trabalhando ali pra eles. Era umas ‘negas’ que não sabiam ‘gozar’ a vida, só tinham o direito… botava pra ____ até dos patrões. É, eles passaram até [como] dono delas, porque elas não tinham liberdade. Eu digo, porque minha avó dizia assim: “Eu nunca…”. “Vovó, vamos pro cinema?”, “Que nome é esse, menina? Que nome é esse? Cinema, nunca vi falar nesse nome”. A minha avó era uma negociante. Quando teve a… pra Feira Santana, pra vestir, pra vender garoupa, né? Quando apareceu, logo, garoupa pra vender lá, aí vovó comprou. Ela negociava e a vovó comprou os os outros peixes onde tinha garoupa. Apareceu a garoupa pra vender, aí a vovó comprou. Aí _____ ela ser mãe de Quaresma. É pessoal dos cocos, né? Camarão, esse negócio. Aí vovó esqueceu dos cocos. Vai vovó pra o ‘coisa’ do telefone, pra agência do telefone, pra telefonar pra aqui, pra Cachoeira. Eu acho que vocês já verificaram a mulher com telefone, meu ‘nego’. Aí, pra telefonar pra aqui, pra Cachoeira, que era pro meu tio Merentino… que ela morava passando essa casa, na outra. Aí quando vovó telefonou de lá pra gente, levou a mercadoria toda ali dentro do mercado, que ela tinha aqui o ponto certo da mercadoria. Norberto, a turma toda. Todo mundo esperando: “Cadê Vicência?”. Outro: “Cadê Vicência?”, porque ____________. ___________. Aí os colegas todos já estavam [lá], o pessoal, os clientes dela chegavam, os… “Cadê Sinha Vicência? Cadê Vicência?”, “Não está aqui, não. Saiu até agora”. Ficou todo mundo preocupado. Meu pai trabalhava no corpo da guarda, em Feira de Santana, aí meu pai procurou, não viu. Meu pai: “Cadê minha mãe? Mamãe foi pra onde? Deixou tudo aí, ______ ficou tomando conta”. Aí quando ele disse assim, que não: “Eu vou na agência”, aquela do telefone. Chegou lá, tava a minha avó sentada como aparelho na mão, a moça pediu: “Mas Dona Vicência, me dê minha amiga, que o rapaz… a senhora diz o que é, que o rapaz vai telefonar pra senhora”, “Não preciso! Eu sei ‘lefonar’. Eu sei tudo, eu conheço tudo. Eu sei ‘lefonar’” - Quis dizer telefonar. - “Eu sei tudo, eu faço tudo, eu não quero que ninguém faça nada pra mim, não, que ninguém sabe fazer nada. Vocês estão aí comendo dinheiro do governo, não sei o que, vovó ter sucesso. Aí quando chegou meu tio: “Minha mãe, que que a senhora está fazendo aí?”, vovó fez horrores com ele. E bateu nele. “Ó, minha mãe…”, “Ô, meu filho, tô ‘lefonando’ pra Cachoeira”, “Telefonando o que, minha mãe?”, “Pra mandar quinhentos ‘cote’”, coco, né? Ela disse que eram quinhentos ‘coques’, pagou (explicado?), que aqui na Feira está uma (comidilha?) de coco danada. “Como foi que a senhora estava falando?”, “Espera aí meu filho, olhe lá. Telefone, meu ‘nego’. Telefone, meu ‘nego’. Meu filho Merentino, mãe de quinhentos ‘coques’, que aqui na Feira está uma (comidilha?) de coco danado”. Pessoal tomou isso por apelido. “E eu não vou hoje descer não porque eu estou com o pé inchado de estar aqui. Ó, meu pé, pra matar”, ela mostrando o pé. Aí tomaram isso por apelido e vovó ficou naquela coisa, perdeu o dia, não vendeu os peixes, não foi os ‘coques’ que ela pediu no telefone. Quando ela chegou em casa às seis horas da tarde, meu pai e minha mãe: “Vamos lá pegar o trem, pra ir embora”. Quando chegou ali, meu tio foi falar: “Mãe, como foi que a senhora disse?”, aí vovó fez sucesso. “Por causa de vocês que eu preciso de ganhar o maior dinheiro do mundo! Que eu tava lá eu ganhar quinhentos ‘coques’”, “Como foi minha mãe, que a senhora fez?”, “Eu ‘lefonei’ pra você comprar quinhentos ‘coques’ e você não mandou, portanto, não me venha, não, que eu estou aqui ‘danada’. Eu lhe cubro pau”, queria (risos) bater. Mas era porque ela não sabia ler. Um negócio de telefone... Eu não sei certas horas quanto mais vovó. Pegou o telefone errado e telefone na mão.
(1:00:32) P1 - (risos) O que a vó falou?
R - Pra ela, tinha feito sucesso. Ainda cochilou. “Dona Vicência, me deixa…”, “Não preciso, meu filho. Eu não sou ignorante, não”, que ela não era ignorante, ela sabia o que estava fazendo. De maneiras que a vida, naquele tempo, existia toda a passagem, a pessoa não sabia ler direito, existia ignorância, existia a pessoa ficar ‘manjado’, né, ‘apelidado’, sofrido, porque queria a sobrevivência. Ia depender de si próprio. A minha vó era negociante, mas ela queria (risos) se defender de pobre. Aí, seu Norberto, colega dela, falou: “Mas Vicência, você…”, ela ‘cobrou’ o cacete no colega, porque o colega disse… “Você não sabe outro, você não sabe nada. Você queria saber da minha vida, por isso que eu…” e vovó ficou nessa vida. Morreu aí, nessa casa, passando, na outra e quem tomou conta dela foi eu. Eu não sabia de nada e eu era quem passava... Ela foi irmã da Boa Morte, fez todos os (cargos?) com as outras.
(01:01:48) P1 - Ela fez todos os (cachos?).
R - Com as outras colegas. Mas vovó, ela não sabia ler, não sabia ler. Meu pai falava… meu pai, meu pai, minha mãe… “Não fala não, corno, filho de puta”, (risos) ela chamava ele de corno, filho de puta. Vovó. E a vida dela, os negócio eram ‘entendidos’, mas ela não sabia falar nisso, não entendia nada da vida, era criada na casa de patrões. E vindo de patrões pra… teve aquele tempo, o povo fazia de ter dos empregados, eram os negros, os negros dos patrões. E hoje em dia, graças a Deus, todo mundo está na liberdade, todo mundo tem o direito de aprender e falar o que quer, o que pode, né, de chegar até onde pode ir. Porque naquele tempo, não, era cativeiro.
(01:02:47) P1 - Sua avó pegou esse tempo?
R - Hein?
(01:02:49) P1 - Sua vó.
R - Minha vó era. A minha vó morreu, já estou com 95 anos. Minha vó, naquele tempo, quando minha vó foi embora, foi com a mesma idade. A minha vó perguntou assim: “Quantos anos…”, ela fazia aniversário em dia de São José. “Dona Vicência, quantos anos [a senhora] faz hoje?”, “Eu faço…”. Ficava assim: “Eu faço dezoito anos”, “Mas minha mãe, minha mãe, pelo amor de Deus. É o que, minha mãe?”, “Eu faço dezoito anos, meu filho, e não posso negar a ninguém! Não estou escondendo minha idade, não. E você, Merentino, tem quantos? E eu tenho quantos anos? Você tem quarenta”, quer dizer, o filho tinha quarenta, ela tinha dezoito. Naquele tempo, não existia [registro de nascimento], né? A minha avó [tinha] dezoito anos e meu tio, que era o filho dela, tinha quarenta. Quer dizer que naquele tempo, não sabia ler, não sabia ler mesmo, não. Hoje em dia, graças a Deus, a atualidade está tão boa, só não aprende mesmo quem não quer. Não é? Porque pai e mãe dão o auxílio que os filhos merecem.
(01:04:15) P1 - Você sabe da história de como sua avó se libertou? Que ela passou…
R - A minha vó, [quem] sempre criou ela foram os padrinhos. Eu não sei dizer [se] os padrinhos dela que libertaram, quem tomou ela pra criar, mas ela vivia no cativeiro. Vovó não saía, vovó não conhecia a feira, não conhecia a procissão, não tinha nada. Era tudo ali. Tudo ali, comendo no coxo. De maneira que quando ela passou a [ter a] liberdade dela, que criou o olho pra rua, a liberdade dela, que foram gerando a família dela, que foi modificando a vida. Aí é onde eu digo assim, certas horas assim: eu estou com essa idade, 95 anos… eu digo sempre aos meus filhos: eu tenho, tive liberdade, mas não fui feliz, porque meu pai queria que eu me formasse, que eu estudasse pra ser professora, mas eu, porque tinha ansiedade de trabalhar pra ajudar a criar meus irmão, eu não fiz, não. Eu só estudei o primeiro livro [da] minha cartilha, o ABC, o bê-á-bá, essas coisas. A cartilhazinha é I, O, U, toma lá dá cá. (risos)
(01:05:39) P1 - A senhora trabalhou em alguma coisa além do charuto?
R - Eu trabalhei, botei barraca na fila do porto pra vender. Eu fazia minhas besteirinha aqui na porta, pra vender aqui: caruru, bobó, pra vender aqui, mungunzá pra vender, pra criar meus filhos. Comprar um amendoim, pra vender, pra criar meus filhos. Tudo isso eu fiz, eu fiz. Aí eu digo assim, certas horas… fazia fofuca; tomava o milho, pisava, fazia fofuca, cessava, botava dentro das coisinhas pra vender. Tudo isso, eu fiz. Aí eu digo assim pra meus filhos: vocês passaram a vida cruel, mas eu fui uma mãe muito boa, que eu manti a minha privacidade pra criar vocês. E, graças a Deus, eu me sinto feliz, porque estão todos crescidos hoje. Já conheço meus netos, bisnetos, tataranetos, ‘escancha-netos’. Acho que eu vou ter os ‘escancha-netos’ também. Quando isso daí começar…
(01:06:47) P1 - A senhora poderia contar pra gente assim, aproveitar… a gente sabe um pouco, mas pra quem não sabe: o que é a Irmandade da Boa Morte? Qual é a história e qual é a sua história dentro da Irmandade da Boa Morte?
R - A Irmandade da Boa Morte, eu não lhe digo a você que eu tenho o ‘território’ dela toda, porque eu acompanhava a minha vó. A minha avó era irmã da Boa Morte. A vovó foi irmã de ‘bolsa’. Percorreu o mundo, né? - Agora que eu me lembrei de uma coisa, depois eu digo. A minha avó, depois, entrou na Boa Morte criando as coisas do que elas gostavam. Aí, então, a Boa Morte é uma irmandade pras irmãs. As irmãs já são falecidas, já foram embora. Participando dessa igreja que tem em Salvador, a Igreja dos Pretos (Igreja Nossa Senhora do Rosário dos Pretos), [que] faz parte da irmandade. Elas que não sabem aproveitar as coisas, elas só acreditam agora nisso. Mas a irmandade, a dos Pretos, eles vinham, todo ano eles frequentavam a Festa da Boa Morte. Todos, ‘nego’ mesmo. Fazia a gosto a ‘coisa’. E a Irmandade da Boa Morte era uma coisa, que é uma reunião de todas as irmãs, as mulheres pobres, as mulheres solteiras - não eram casadas, tudo solteira -, tudo ‘cativeiras’, tudo, e foram criando a religião delas. Sofridas, foram sofridas. Vovó dizia que foi muito sofrida, mas ela não dizia qual era o tipo do sofrimento, não é, dela, mas foi escrava. Apanhou muito pra chegar o momento delas conhecerem o que era religião, pra ela sair, pra ter a liberdade, pra conhecer a religião. É muita coisa, viu, gente? Porque, primeiro, elas sofrem muito. E a Irmandade da Boa Morte é uma religião muito boa. Pra quem chega, melhor é a coisa, mas pra quem está, tem o respeito, a consagração, as reuniões, os dias de reza, tem o respeito às irmãs, respeitar uma a outra. É uma sociedade. Que a irmã da boa morte, naquele tempo, ela não tinha liberdade do físico delas, não. Elas tinham marido, elas podiam ter marido, mas durante aquele mês, daquela festa, ninguém podia; dizer assim: não vou olhar pra vida particular delas, não. Não podia, porque não tinha, era uma irmandade consagrada ao respeito. E tinha um problema, tinha um dilema delas que ninguém, eu não sei nem escrever. Dona Estelita - já foi embora -, ela um pouco insistiu… eu não queria entrar, não, na irmandade, não. Eu não queria. não. eu queria acompanhar pra comer, mas participar, em nada, eu não queria, não. Mas, graças a Deus, a irmandade é muito respeitada. Hoje em dia, que está, a irmandade está reconhecida mundialmente, todo mundo aplaude, pessoas que vêm de fora. Porque, antigamente, a Irmandade da Boa Morte, quando tinha, no dia que tinha a Missa da Boa Morte, era na Igreja da Matriz. Ouviu? Nem todo mundo ia. Não ia não. A Lira ou a Minerva compartilhavam aquela festa de pobre e negro. Elas eram… era alugada casa, cada ano era uma casa. Pagava um aluguel de casa. Não era, não tinha casa própria, não. Depois de Antônio Carlos Magalhães e esse outro que andava com Antônio Carlos Magalhães… já me esqueci o nome dele. O velho. Foram eles que vieram a conseguir essa casa que tem hoje em dia. Foi através de… meu Deus, esqueci o nome dele. Foi na gestão de Antônio Carlos Magalhães que eles fizeram essa casa aí. Essa casa aí. Essa casa, essa igreja que tem, a igreja que tem tudo, aquele casarão. Foi através dele.
(11:11:28) P1 - Antes era onde?
R - Hein?
(1:11:29) P1 - Antes, fazia a festa…
R - Assim, esse ano era aqui numa casa, no outro ano era em outra casa. Era assim. Cada… correndo casa. Não tinha lugar, não tinha apoio, não. A missa era na Igreja da Matriz. Hoje, atualmente, elas têm a igrejinha delas lá, tem o lugar onde conserva lá Nossa Senhora, fica a Nossa Senhora. Cada ano era em um lugar, sambava no meio da rua. Assim, ó. Naquela casinha que eles alugavam, alugavam uma casa por tantos dias. Quando acabasse de completar aquele dia, ‘nego’ entregava a casa dos outros. Todo mundo queria lugar, não. Nem todo mundo ia, dizia aquela festa de beberrão: “Aquela festa de de catingoso”. Pessoal botava muito defeito. Hoje, atualmente, quem é que não quer entrar na Irmandade da Boa Morte? Eu que já completei meus cargos, eu gosto muito, acredito, tenho o maior respeito, porque é uma irmandade que, hoje em dia, é consagrada mundialmente pra quem sabe. E, hoje em dia, é um ganha pão pra muita gente. Todo mundo quer participar da Boa Morte. Eles querem participar da boa morte, porque a Boa Morte é uma festa que, hoje em dia, vem gente de fora, tem conhecimento. O povo de fora vem. Mas o povo da terra, tá dando liberdade agora. Quem dá liberdade a fé da Boa Morte é o povo de fora, o povo que vem. É mesmo.
(01:13:06) P2 - A gente só aceitava pessoas negras, né? Acho que está mudando agora.
R - É, tá mudando. A pessoa era negra, negra. Só aceitava a negra na irmandade. Mas, hoje em dia, tem qualidade, estão botando. Estão botando, mas não é propositalmente, com respeito à irmandade, [é] pra reconhecer, pra conquistar o que a irmandade conquistou. Ouviu? O reconhecimento, porque o povo de fora dá muita crença à nossa Irmandade da Boa Morte, valoriz, mas tem gente da irmandade que está mais por influência disso. E de coisa… porque você vê, na Festa da Boa Morte existia muito ouro. Hoje, atualmente, tem ouro de toda diversidade, mas naquele tempo era ouro mesmo. Elas trabalhavam um ano pra gastar… a fé da Boa Morte, elas trabalhavam o ano todo. Quer dizer, se a separando trocado, guardando pra fazer a festa. A festa é esmolada, [a] da Boa Morte era esmolada. Hoje em dia, não. A mulher comprava boi, as mulheres criavam porco, fazia tudo. Eu mesma, o ano que eu fui Irmã da Boa Morte, eu tive tudo. Eu ganhei um boi.
(01:14:43) P1 - Como foi que você ganhou um boi?
R - Nossa Senhora ficou aqui em casa, porque, no período, a gente tem por obrigação dela ficar em casa durante… por acaso eu recebo o cargo hoje, ela só vai daqui a um ano. Aí Nossa senhora estava aqui em casa. Essa casa estava toda arrumadinha, tudo, porque não estava como está agora. Mas estava tudo arrumadinho, direitinho. Nada faltou. As minhas filhas, todas, me ajudavam. E eu estou aqui… lá no quarto, de tarde, eu ajeitei o quarto, forrei o quarto, arrumei tudo direitinho, a banquinha, botava ali com Nossa Senhora, com o nichozinho dela, com ela ali. Ouviu? Acendi a luz nela. Pessoal, toda quarta-feira a gente rezava o ofício dela, que é de obrigação, porque se a pessoa não está levando casa a sério não… era de obrigação rezar o ofício, fazer as coisas de… como hoje, dia de hoje, no dia do ofício, no dia de quarta-feira, a gente fazia um arrozinho pra oferecer às colegas, ali, pra tomar. Não gosto que façam ignorância. Eu que dê ao povo o que o povo me dá, o amor e o reconhecimento, o carinho. Se o povo me procura nesse dia e qualquer hora com a questão, é porque ‘quer dizer’. Aí tem gente que fala: “Você já comeu!”, “Não comeu nada. Pode dar que o Caruru quem gastou foi eu. Eu fiz pra dar, não fiz pra levar não”. Aí em cima tem umas panelonas assim, as panelas eram tudo grandes: era feijoada… eu fazia, fazia tudo. A Minerva ia tocar, daqui a pouco saía um; outro ia tocar… era um reboliço, né? Tinha missa, me ofereciam missa, me ofereciam tudo. Agora, eu ficava sem saber que eu estava usando, porque eu queria que todo mundo comesse. Agora, só não tinha bebida. Bebida, eu não dou, não. Bebida termina a festa da gente, tem briga. O quê?! Não quero brigar, não. Não, não. Eu nunca bebi na minha vida. Eu gosto muito é de refrigerante, quando boto no copo ainda deixo sair as _____ todo, ______ de todo. Fica aquela garapa, aí eu bebo. Aí, então, eu digo assim… esse ano eu queria fazer meu caruru. A Casa do Samba está lá, não consegui. Eu queria fazer na Casa do Samba, disse: “Aqui em casa não vai dar”. Eu tenho meus camaradas, eu quero que todo mundo venha, todo mundo coma. Quem gasta sou eu, ninguém me dá.
[Pausa]
(01:17:45) P1 - A senhora tava contando dos cargos que você teve na Boa Morte, da sua festa. Você podia contar da sua festa?
R - Eu tive o cargo na Boa Morte. Aí vem um pessoal de Feira de Santana, Salvador. Aí, aqui em casa, uma chamada Rosângela também. Conheceu a Rosângela? Na Praça 25. Ela era… pessoal, todo mundo ficava aqui em casa comigo, o irmão. Era Santo da Paixão, todo mundo passava dia comigo, ficava aqui em casa. Aí Rosângela…
[Pausa]
R - O irmão dela me ofereceu a imagem de São Roque…
[Pausa]
R - Aí eu como é tudo, _____ feijão. Eu mandei as meninas comprarem siri pra eu comer. Depois, assim: “Hoje não vou comer siri, não”. Mas eu digo: “Mas pode cozinhar que eu como”.
(01:18:49) P1 - Quando você era mais nova, tinha muita garrafada? O pessoal que fazia garrafada?
R - Se eu sei fazer?
(01:18:54) P3 - Tinha. Tinha, mas é garrafada desse pessoal quando está doente. Aqui, hoje, a medicina é outra. É isso que você quer saber?
(01:19:02) P1 - É
(01:19:05) P3 - Acho que mamãe não sabe fazer, não.
R - Eu, não. Eu já perdi tudo.
(01:19:07) P3 - Fora o que sabia.
R - Minha mãe que fazia.
(01:19:10) P1 - Era. A gente ficava doente, não tinha médico.
R - É. Mas aqui, a garrafada, como mamãe tinha menino, corta as folhinhas, botava dentro da bebida…
(01:19:19) P3 - É geladinha.
R - Geladinha.
[Pausa]
(01:19:27) P2 - O nome da sua mãe é Flora?
R - Hein?
(01:19:28) P2 - O nome da sua mãe era Flora?
R - Minha mãe? O nome dela? Maria São Pedro.
(01:19:33) P2 - E a sua avó?
R - Minha vó, Vicencia Ribeiro. Vicencia Ribeiro da Costa, a mãe do meu pai. E a mãe da minha mãe chamava Maria Teresa.
(01:19:44) P1 - A senhora lembra de alguma vez de ter ficado doente e ter se curado com a garrafada?
R - Olhe, minha mãe que fazia, minha vó que fazia. Eu mesmo não sei ‘contar’ nada. Porque, eu vou dizer a verdade, eu nunca liguei pra nada disso. Eu não era boa de tomar garrafada, quanto mais fazer. Elas faziam.
[Pausa]
R - A minha mãe, o meu pessoal fazia, mas eu não fazia não, eu não.
(01:20:27) P1 - Deixa eu te perguntar uma coisa: desse tempo todo de Boa Morte, qual que foi a maior dificuldade que vocês passaram? Teve algum momento que teve um desafio?
R - Olha, a dificuldade passada [era] a falta de união, por… de conhecimento das pessoas, porque a gente se tornava amiga, mas depois, por qualquer besteira, se desuniram, porque sempre, nem o que privilegiava as que chegavam, era o que eles faziam, botaram muita gente nova, entendeu? E as antigas ficaram chateadas porque as novas não iam obedecer as antigas. Não tinha aquele conchavo, aquele respeito. Por quê? A gente que está na boa morte antiga, todos nós temos o respeito às irmãs, era uma união…
[Pausa]
R - Setenta e dois anos no couro. E eu, 95.
(01:21:47) P1 - Pois então, já se encaminhando, né… você quer contar mais alguma coisa que foi importante pra você dessa festa?
R - Olhe, a minha festa. Uma mania é essa: eu fazia… a Festa da Boa Morte?
(01:21:59) P1 - É.
R - Eu fui escrivã, tesoureira, procuradora e procuradora geral. Então, os meus deveres eu cumpri. Onde tinha a… tem uma ajuda que o governo dá, eu não via a cara. Tem ajuda que eles têm de todas as maneiras. Ouviu? A população também bota na bolsa da gente, essas coisas. A verdade [é que] a gente tem que agradecer a Deus, às coisas que o pessoal faz por amor. Mas eu me sentia feliz. Eu já vinha me preparando pra minha festa. Criei pouco. Eu recebi um bolo de um pessoal que veio de fora, quiseram lá, viram como era. Eu comprava as velas… até hoje ainda tenho velas ali. Ó, dessas grandes de 21 dias. Eu tenho até hoje. Eu só comprava as caixas. Eu comprava as caixas. Dizia assim: “No dia de mamãe, ninguém vê mais, pra nada”. No dia de mamãe, sai pra comprar vela, incenso… eu comprava o incenso de Feira de Santana, em quantidade, de maneiras que quando eu fiz a Festa da Boa morte, ano passado, atrasado, tudo, ainda tinha incenso lá guardado, porque era em quantidade que eu comprava, né? Se por acaso você desse qualquer coisa: ia pra irmandade, eu não trazia pra minha casa. Aí que quando chegou o dia da Festa da Boa Morte, foi padre, foi tudo. Eu fiz café da manhã. Durante o período da Boa Morte, é um gasto, viu? O café da manhã, o almoço, ao decorrer da festa, aqueles dias todos, que tá complementando, a gente tem que dar. À noite também. Porque eu gosto muito de comer e gosto de dar. Ouviu? E tá tomando… agora, bebida. da minha parte. nunca existiu, porque eu nunca dei. Eu nunca bebi, não vou dar. Pra esculhambar a festa?! Pra ter briga?! Num instante. É ou não é? O mau pensamento acaba a história da gente, a alegria da gente. Aí então que, graças a Deus, uma festa muito bonita, muita gente de fora que veio, que eu não esperava, filarmônicas oferecidas, a Lira ofereceu, a Minerva ofereceu, a União, todos ofereceram filarmônica pra minha festa. Foi uma festa muito agradecida, porque eu achei. Agora eu não sei o porquê achei tudo, porque não sei se a pessoa que eu sou. Eu não sou de explorar, nem tampouco de precipitar nenhuma pessoa, gosto de tratar todo mundo como… gente se trata como gente! Animal é animal. Porque eu tenho meu animal, eu vou acabar [com] meu cachorro, apedrejar meu gato? Não, eu vou dar o que comer a ele. E meus convidados, todos que me procuraram, eu atendia. Eu não fazia… quando eu via, o pessoal dizia assim: “Ah, já comeu?”. Que é isso? O que a gente tem é pra dar, aí se sinta alegre. Esse ano a gente, o outro ano a gente não sabe se tem pra dar. De maneiras que, graças a Deus, eu fiz minha festa completa de tudo. E quando elas agora… eu digo: “Olha, diga”, “Quem foi que lhe deu aquele boi?”, “O curral”, (risos) “Por que o curral?”, “Que vocês vem me perguntar uma coisa que me deram, eu gratifiquei a quem me deu”, porque peço a Deus a quem me deu que prospere com a vida e a saúde, que livre dos mal, dos maus pressentimento. Mas eu não pedi, ele me deu. Eu ia ‘escavacar’ porque está me dando, porque me deu? Essas coisas, não. Eu fiz bolo, eu fiz um bolo [de]... um, dois, três… dos andares, da minha compenetração de festa, fiz os andares de maneiras que foi partido, todo mundo comeu. Não como manteiga, não como nada disso. Eu não comi nada, mas eu fiquei contente. Os bolos tudo grande, muita comida. Criei peru, criei tudo. Foi pra o povo comer, não foi pra levar pra minha casa, nem nada. Agora, mais um dia dá certo, o pessoal dá. Meio dia, aquele povo só, que está naquele momento; de noite, não dá nada. Eu fico muito chateada com os problemas, eu gosto de ver, eu gosto de minha Festa de São Cosme, que é caruru, todo mundo come, cabô, cabô. Aí elas dizem assim: “Dá ou tem cabeça de gente?”. O pessoal todo vem… gente, eu não maltrato ninguém. “Ah, você já comeu! Você já comeu!”. Quem dá de comer, é pra comer. Quem me dá de comer, também come. Dê. Bote o de comer. Eu comprei foi pra dar! Teve um ano que eu botei oito mil quiabos, uma saca de camarão, que o pessoal vinha: “Dona Dalva”. Eu digo: “Hein?”, “Quanto que é de camarão? Eu quero tanto de camarão”. Eu comprei camarão. Até outro dia ainda tinha camarão aqui em casa. Eu peguei, dei. Em perfeito estado. “Dona Dalva, a senhora comprou isso?”, “Já, eu já tenho”. Eu comprei… a gente gasta sacas de farinha. Agora, bebida não. Comida, carne, a carne de boi, carne de porco, carne de sertão (carne de sol). Teve um cidadão que me deu, mandou, eu fui pagar ele, né, sou freguês da ‘coisa’ dele. “Cadê, já comprou a carne de sertão?”. Eu disse: “Vou comprar uma (caixação?) pra fazer o feijão povo de lá de dentro de casa. porque vocês sabem que eu tenho que comprar, né?”. Aí ele pegou, foi cortar a carne, chegou a cortar: “Aqui, ó. Tome aqui, é pra sua festa”. Eu fiquei sem saber o que é que eu fazia. Eu fiquei “Meu Deus! Meu Deus!”. Mandei chamar Valmir. Conhece o Valmir? Da Boa Morte?
(01:28:24) P1 - Uhum.
R - Valmir, eu mandei chamar ele aqui: “Valmir!”. Aí quando ele vê: “Ô veia, o que é?”, “Pessoal aqui veio me trazer tudo. É pra você ir lá na ‘coisa’ aqui, comigo”. Chuva como Deus mandava, a casa fechada lá. Aí quando cheguei na porta, aí o Valmir telefonou pra Celina, a que toma conta da igreja - que ela tem até uma casa ali, junto do Bangu. Aí eu fui pra lá, aí levou… foi chuva, como Deus mandava. O boi… eu só não tive os mocotós. O fato, eu disse: “O mocotó do boi pode ficar pra vocês. O fato, pode vocês botarem aí pra anunciar. Tem nada, não”. Muita comida, teve; muita galinha, teve. Eu recebi sacas de [carne de] galinha, que veio aqui do lugar que ‘bota’ galinha. A minha filha, com o povo, com um freguês que ela tem, ela comprou uma saca de carne de galinha de não sei quantos, de galinha. Outro, Nabor também, ali também, eu vou encomendar. Tudo é encomendado. Não fiquei devendo a ninguém. Eu dizia assim: “Eu não vou pagar hoje não, viu?”. Quando eu recebi meu dinheiro, aí ele disse assim… as meninas disseram: “Ó, ninguém vê o dinheiro dela”. “Mainha, a senhora nunca mais recebeu o dinheiro do seu INPS (INSS)?”. Eu digo: “Eu nunca vi, minha filha! Eu acho que eu perdi. Eu fui saindo com o dinheiro, eu não me lembro… aaah, eu perdi! Agora que eu me lembrei, minha filha. Eu estava com o meu dinheiro todo tocado pra comprar [as coisas pra] minha festa”. Guardei mesmo. Entrava nas minhas caixas e botei uma caixa, eu tirei dez mil de caixa. Pagando, pagando, pagando, pagando. Quando a moça veio me dar, eu digo: “Esse dinheiro todo?”, “Foi. Você pagou a caixa”. Eu tomei foi acho que dois ou três litros, sei lá. As ‘minas’ falavam e reclamavam. Eu, pra mim, não estava me dando nada. Fiz o traje da mesa, as toalhas de mesa, de prato, eu comprei todas, a toalha de mesa, de botar na mesa, também, bem grande. Ninguém saiu. Só quem fala mal é aqueles que não gostam de dar de comer a ninguém. Faz festa quem sabe fazer festa. Não é festa… a festa não é bebida, a festa é tratar todo mundo bem, com habilidade, com respeito. Todo mundo sentado na mesa, comer… aqui tem um pessoal que quando foi meio dia, foi até comer: “Ah, não vai dar de comer, não”. Eu disse: “Ó, gente, eu vou me levantar daqui, porque não sou eu só que faço parte na mesa. A minha parte toda - toda, toda -, que fui a presidente da festa, fui eu. ‘Nenhuma’ me deu um centavo de nada, que é de obrigação [de] elas todas colaborarem. Nenhuma colaborou comigo. Eu quando elas fazem, eu colaboro. Esse ano eu estou aguardando a colaboração: não vou dar, não vou dar, não; eu vou comprar luz pra Nossa Senhora. Já tem algumas velas ali, grandes assim. Eu vou comprar ‘coisa’ e vou mandar levar, entendeu? Mas não vou dar a elas, porque elas devem saber que dar dedada emprestada, é emprestado. A gente tem que colaborar com… “A irmandade, nós somos irmãs aqui. Você colabora comigo, colaboro com você. Cada um dá uma coisa, né?”. Não dava nada! Não dava nada. E ainda vinha [com]: “Tudo bem, tudo bem”. “Tudo bom?”, “Tudo bom”, “Que [é] que vai dar hoje?”, “Nada!”. Graças a Deus, eu estou… ganhei tudo, eu ganho tudo. E até hoje me mandam perguntar… o pessoal de Salvador já mandou me dizer… eu mandei botar Mãe Dora… conhece? Botei Mãe Dora em São Paulo, elas falaram. Eu disse: “Não mandei por esperteza, não, eu mandei porque ela pediu”. Faz parte, com nossa cor. Tem Mãe Mara… você conhece Mãe Mara? Eu botei pela sensibilidade dela. Ela é mulher de grande respeito, ela é esforçada. Mara é esforçada, ela é estudada e ela entende, é compreensível e é mulher de respeito. Eu voltei, porque tinha uma lá que estava procurando ‘chacoalhar’, que era _____ governante, disse: “Eu vou matar ela na cabeça, eu vou botar uma pessoa”... dormia: “Nossa Senhora, eu vou dormir. Quando acordar… agora vai me dar insônia. Quer que eu vá lá na loteria? Que eu vou tirar, porque eu vou botar uma pessoa aqui na Boa Morte porque é merecida”. Quando de madrugada eu estava sonhando com Mãe Mara, eu digo: “Ó, meu Deus, Mãe Mara”...
[Pausa]
R - Aí ela chegou e disse: “Essa irmã de Jean”. Aí ela disse pra outra: “Poxa vida! Dona Dalva é perrucha mesmo! Ela não contorna”. É porque essa criatura não vai muito, mas eu botei. Mas eu botei porque eu quis. Me dou bem, sou feliz, me contempla, me considera. Tem uma outra também, é uma escurinha, da minha cor, ela trabalha aqui na casa… esqueci o nome. Por quê? Porque eu dei pra esquecer o nome. Ela também é da Boa Morte, é bem escurinha. E pediu, que ela, que a mãe dela era da Boa Morte e antes de morrer pediu a ela: “Fale com Dona Dalva pra lhe botar o senhor na Boa Morte”, ela veio e me falou. Eu botei mesmo! Eu não tenho combinação com ninguém! Esse ano vou botar mais outra! Eu estou aqui preparando… eu vou brigar…. ontem, de noite, eu disse assim: “Eu vou brigar na Boa Morte”. Nunca briguei, mas vou brigar. Aí eu disse assim: “Vou botar Vinha”. Conhece Vinha? A irmã de um que tava com (alto?). Ele chama… - Ó, Dia! Vem cá! - ela esteve aqui essa semana, ela teve na Boa Morte, participou. - Como é o nome do irmão de Vinha?
R2 - Irmão de quem?
R - Vinha não era filha… o pai dela era chamado como? Irmão de Vinha, (adjunto?) de Roque Pinto.
R2 - Seu Silva.
R - Hein?
R2 - Silva.
R - Silvinha.
R2 - Silvinha. Ele era Silva também.
R - Silva, é. O pai dela? Zeca Preto!
R2 - Zeca Preto.
R - Zeca Preto, é. E teu irmão? E os irmãos… nessa casa, aqui na outra. Como é o nome dele?
R2 - O Zeca Preto é…
R - Era pai.
R2 - Era irmão de Terezinha.
R - É. Esse ano eu vou botar ela.
R2 - Ele é pai da minha prima, do ___________.
R - Eu vou botar ela esse ano e já mandei chamar ela, disse assim: “Olhe, vou lhe botar na Boa Morte”.
(01:35:53) P1 - Como é que faz pra alguém entrar na Boa Morte? Como é que é? A pessoa é assim…
R - Eu vou dar o nome dela. Vou ‘arretar’ tudo lá e botar lá ela. Porque ela já participou da Boa Morte. Aí, então, umas colegas que tem lá, através de qualquer besteira, querendo governar, botou ela fora. Mas ela era filha de Glória, uma irmã da Boa Morte, falecida. Aí, então, na hora, fizeram uma ‘agonia’ lá, botaram o nome dela no meio. Ela não se meteu em nada, coitada. Aí foi expulsa… botaram ela fora. Na hora, na reunião, eu fiquei na minha, quieta. É, porque… “Ela não vai entrar mais na…”. Eu só fiz assim: “(sinal de joinha) Hum”. Quando foi agora, eu disse: “Esse ano, na Boa Morte, já completei meu cargo. já botei o que eu queria, botei Mara, botei uma outra também que mora em Muritiba, também é escura. Me esqueci… é porque eu estou com o nome dela na boca… mas ela é Mãe de Santo, ela trabalha aqui em Cachoeira, muito com o Seu Roque, que tem o ‘negócio’ do, uma casa lá de… ali na rua da… é, na rua da… Seu Roque é um que [tem um] negócio de tirar retrato, essas coisas. Que ele tem a casa, entendeu? Seu Roque também, tomaram a casa dele, queriam botar ele na estação.
(01:37:35) P1 - E Dona Dalva…
(01:37:35) P2 - ______
R - Ela trabalha com ele. É. É uma da nossa cor.
(01:37:43) P1 - Ia te perguntar…
R - Eu já botei essa, já botei outra. Já vou botar outra.
(01:37:48) P1 - É isso aí!
R - Vou botar ela na cabeça. “Ah, por quê? Ah, mas tem que falar com Fulano”. Eu digo: “Não, Nossa Senhora da Boa Morte não tem isso. Vocês não são fundadoras. As fundadoras já foram antigas, já foram embora. Então deixaram a gente pra preservar o conhecimento. Não é vocês que… o conhecimento de vocês agora, é isso! (sinal de dinheiro) Que de fora vem, que agora vocês estão pegando”. O povo de fora, os antigos de fora, que mandam dinheiro, estão viajando, agora mesmo foram pra Portugal, pra não sei aonde. Estão viajando! Eu não sabia não mandou me dizer, não, eu estou sabendo pelo ‘ar’. Estou quieta, não vou dizer nada, mas depois eu vou. A finada Mariá era gente boa. Era uma amigona! Era minha irmã de fé. Quando ela vinha dormir aqui em casa, ficava comigo. Chegava aqui, nós conversávamos, conversava comigo, eu conversava com ela. _________________ (risos) Ela era forte! Deus chamou ela pra eternidade em nome, disseram a mim. Eu não sabia. Quando eu estava aqui, digo: “Ayá, eu vou lá ver uma hora dessa, que eu nunca mais vi, eu quero ver ela, que eu quero conversar com ela”, “É mesmo?”. Eu disse: “É”, “É mesmo?”. Eu disse: “É, sim”. Eu converso muito com ela, eu gosto muito dela. Ali é minha irmã de fé. Ela disse: “Ela está no mundo da eternidade”, foi mesmo que me dá um golpe de facada. E doeu, né? Mas menina dela vinha aqui, ela costurava pra mim, eu costurava pra ela. Quando ela queria qualquer coisa, ela vinha a mim, me pedia. “Qual é a comida lá hoje?”, eu dizia: “Isso e isso”, “Vou comer lá hoje”. “Vou comer lá hoje, eu vou dormir lá em sua casa”. Tinha uma de Maragogi que também chamava Tonha do Fato, elas abusaram a bichinha, a bichinha ficou sem… “Vá dormir lá em casa!”, dormia aqui. Não tem isso, não! Mas agora tá muito mudada. Tem lá irmã agora de um que chama… seu pai de santo em Muritiba. [Não é] a casa da minha menina, não. Poxa, que a irmã dele é polícia, ela é polícia, está envolvida agora na Boa Morte. Aí eu disse: “A boa morte não precisa [ser] secreta. Tem polícia na boa morte”. Ela chama… - Ô, Dia!
(01:40:26) P1 - Não precisa do nome.
R - Hein?
(01:40:28) P1 - Acho que nem precisa do nome da pessoa, porque aí as vezes depois a pessoa vê e tal.
R - Quê??? Eu falo ______. Elas vieram aqui, me trazendo ‘coisa’ aqui, dali do batente pra rua. Não mandei entrar, porque ela (aqui lá?). Ela tem os olhos ‘gateados’, ela é irmã de uma chamada Fofinha, é irmã de Jean, Pai de Santo. Ela está na boa morte agora. Ela, o marido dela é o filho do finado Robustiano. Está mandando e desmandando. Aí, então, a irmandade não é isso, a irmandade tem que preservar a nossa qualidade, nosso jeito, nossa entidade e tem que preservar filhos e netos, bisnetos das irmãs. Não é isso mesmo? Não, não está botando [gente nova], mas eu boto. Eu boto, eu boto! E esse ano já vai entrar… essa menina aqui, ela tinha voltado por fora, pra não entrar e eu vou botar no dia da eleição, vou dizer assim. Todo mundo vai se apresentar e eu fico na minha, calada. Quando a minha, vai ser a última. Até aqui, eu vou apresentar a minha com retrato, com documento, com tudo. É, documento dela, identidade, tudo e tudo. “Vou apresentar seus documentos”. Tem que a gente apresentar os documentos, de só entrar de palavra, não. Aí bota, elas estão botando de palavra, por amizade, por… como é? Por negócio de coincidência, de amizade, camaradagem. Estão botando a fila. Eu digo: “Não, vou botar é pelo conhecimento, pelo que a pessoa é. Em respeito à família das pessoas, que as pessoas fazem parte. Não é por dinheiro não”. Não é o dinheiro não. Dinheiro não prevalece nada. Dinheiro é tostão; quando a gente perde, não acha mais; quando a gente morre, não leva. Aí então a gente tem que preservar o conhecimento, a nossa qualidade, o nosso respeito. Bota lá, por fora. Eu vou botar ela, já mandei chamar. ______ eu vou lhe levar de novo. Dessa vez a briga é comigo. “Eu vou lhe levar, porque eu tenho direito de levar e já fiz todos os meus cargos, eu sou neta e bisneta da boa morte e vou levar mesmo e vou deixar você lá. Agora, você não vai conversar nada. Não [faça] ofensas, nem de bicho, nem nada, né? Não compartilhe, cuide do seu dever”. Pronto. Pra mim está tudo bom.
(01:43:16) P1 - Dona Dalva, posso te perguntar uma coisinha?
R - Pode.
(01:43:21) P1 - Queria te perguntar como foi essa história que falaram que você foi a primeira doutora honoris causa aqui de Cachoeira. Que ano que foi essa história?
R - Eu recebi esse cargo agradecendo a Deus e ao conhecimento que me deu. Porque, na verdade, eu não sabia que eu tinha, que eu estava promovida a receber esse maravilhoso cargo, né? Eu estava aqui quando o pessoal vieram me visitar e disse: “Meu Deus, quem é esse povo? Pessoal que vem aqui, eu não sei quem é”. Eu ficava assim: “Meu Deus! Meu Deus! A casa não tem nada, casa de pobre não tem nada. Jesus Cristo!” e eu ficava toda “estou levando”, né? Aí depois, um dia, de tarde, aí vem aqueles cidadãos bonitos, escuro, tudo, aí digo: “Meu Deus, o que é? Eu não faço parte de nada, não”. Digo: “Ai meu Jesus, ainda é pior, eu não conheço [essas] pessoas, nenhuma, eu não vou lá”, eu fico uma vergonha. “Não é nada, não”. Vieram todos aqui, promoveram a me dar o privilégio, _____ esse direito a doutora por honoris causa. Porque, na verdade, eu disse a eles, falando com essa senhora: “Eu não tenho saber, meu estudo foi muito pouco”. Eu criei meus irmãos, minha mãe humilde, meu pai também, mas pela capacidade nessas alturas, pelo meu procedimento, pelo meu modo de ser. Porque toda vida foi isso mesmo, né? Eu recebi esse cargo… não, esse maravilhoso cargo, porque, quando eu estava aqui, as minhas filhas já estavam sabendo, eu não sabia de nada, aí disse assim, pra gente ir pra Cruz das Almas, eu disse: “Eu não vou lá, não perdi nada lá. Que que eu vou fazer lá em Cruz das Almas? Ah, ______ em Cruz das Almas, tem anos que eu fui lá pra ‘coisa’, negócio da Suerdieck, que foi na ‘coisa’ do fumo, e ‘agora’, eu fiquei (bêbada?), quase me acabo de vomitar e agora eu vou pra lá? Não vou, não”. Passando; é venha, é vem: quando eu estou aqui, aí vem o carro. Eu digo: “Ó, meu Deus!”. Já tinha tudo pronto e eu não sabia. As minhas filhas me deram tudo. Eu não sabia, eu fui. Chegou lá, eu fiquei lá no hotel, achamos com o povo. Eu digo: “Meu Deus, que [é] que eu vou apresentar?”. O mundo já estava convidado e eu não sabia; o pessoal da prefeitura, e eu não sabia de nada. Eu disse: “Meu Jesus Cristo, eu vou falar o que é. Eu vou dizer o que é”. Quando foi na hora, o Valmir, foi todo mundo, disse assim: “Meu Jesus, que negócio é esse? Que fofoca. Isso é uma fofoca. Tem alguma coisa contra mim aí. Eu não peguei nada de ninguém”, eu não pego nada de ninguém. Vai a história. quando foi na hora, eu recebi da minha filha: “Aqui mãe, seu vestido?”, “Eu lhe pedi roupa? Eu estou pedindo roupa?”. Ela: “Não, a senhora vai viajar com a gente agora”. Essa daí (aponta para a filha) não veio, não. As outras vieram, veio todo mundo. E eu digo assim: “É gente, poxa, meu Deus, que que eu tenho pra gastar? Eu não tenho nada pra gastar, não tenho nada. É, mas [se] vocês quiserem, eu vou”. Quando nada, eu passei, que eu vou. E fui bem recebida, graças a Deus. Fui muito bem abraçada, me deram aquilo que eu merecia. Foi um prazer e uma honra pra mim e pra Cachoeira: a primeira doutora honoris causa da Cachoeira sou eu! Ninguém teve essa capacidade, nem essa petulância. Eu tive! Eu disse: “Então, na verdade, eu conquistei uma coisa que tinha ser eu mesmo, porque eu compartilho com tudo na Cachoeira. Com tudo na Cachoeira, eu compartilho. Tudo! Nada, nunca enriqueci com nada, ninguém não me dava nada, nem nada, eu fazia meus São Cosme, fazia minhas redes de Santo Antônio, fazia meus Ternos de Rei, meus Ternos de Acarajé, minhas funções todas. Pulava… nunca andei desacreditada em bebedeira, porque eu nunca bebi na minha vida. E minha vida foi essa, minha vida foi assim, seguir o título, o maior título da Cachoeira, que eu disse a ela: “Vocês foram no ginásio, professoras de altos anéis”... até anel recebi! Até anel eu tenho! Anel tá guardado, eu pego ele, olho, olho, adoro guardar. Eu vou… quando esse ano, recebi da (Flica?), dez anos. Em seguida também, diz que [tenho] dez anos de (Flica?). Eu digo: “Eu sabia lá de nada”. Quando me levam pra ‘coisa’, quando chegou lá, recebi o troféu. Eu digo: “Meu Deus! Minha Nossa Senhora!”. Eu sei… aí eu disse ainda: “Quando eu morrer, eu quero tudo: Terno de Reis, Terno de Acarajé, Esperança da Paz, eu quero (Liberou?). Eu quero tudo, tudo! E quero bem, [muita] gente, quero gente, gente! Eu quero tudo, tudo, tudo!”. Já que eu recebi essas coisas todas maravilhosas, porque dentro da Cachoeira, eu me encontro a mulher mais feliz nas conquistas! Com pouco estudo que eu tive, eu não tive estudo direito. Meus filhos aprenderam, formaram, eu ‘aproveitei’ todos eles, só não se aproveitou aqueles que já foram embora, pra eternidade, que não teve como, mas meus netos, que por aí… tinha até um aí, que eu já recebo também. Tem esse daí também. Esse daí é… ó, não tem não. Esse daí é o meu ‘coisa’. Ele me chama Bisa, ele me botou o nome de Bisa. Ele faz: “Bisa!”. Eu digo: “Hein?”, “Já tomou café?”, ”Não”. “Bisa, já comeu?”, eu digo: “Não”. “Bisa, tomou banho?”, digo: “Eu não, que não vou tomar banho esses dias não!”, “Quando é que vai tomar, Bisa?”. Eu digo _____, (risos) ele dá risada. Esse é o neto, é o pai dele. Já me conta.
(01:50:25) P1 - E esse Terno de Reis, acho que você não comentou, né? Fez quando? Você fazia quando esse Rei d'Água?
R - Quantos anos?
(01:50:33) P1 - Não, como foi que surgiu o Rei d’Água.
R - Olha, o Terno de Reis, eu fiz porque, assim, tudo na vida se faz. Eu fazia um Terno de Reis lá dentro da Cadeia [Pública], na casa da minha avó, [com] todo mundo vestido de papel crepom, papel de seda. A (saitinha?), né, as blusinhas e as lanternazinhas, as coisas assim. Mas é que eu fazia lá com minha… depois com as minhas camaradas Ceci, Dulce e Gara, todas as minhas colegas e os meninos também. “Então eu vou fazer esse ano”. Quer dizer, tem anos que eu projetei o Terno de Reis, já tem anos o Terno de Reis também. Aí eu disse: “Eu vou fazer um Terno de Reis”. Aí eu comprei, fui na loja, comprei o pano pra fazer as bandeiras. “Fazendo as coisas e guardando, porque é… você. A senhora está comprando é fiado agora, né?”. Eu digo: “É, mas não é pra vocês pagar, não, quem paga sou eu, minhas dívidas, que ninguém paga”. Aí eu botava no chão, ajeitava tudo, comprei uma coisa, fiz as bandeiras, fazendo as coisas e guardando, enrolando e guardando, enrolando e guardando. Eu disse assim: “_____________ Esperança da Paz, porque, na vida, a gente quer fazer uma coisa, tem esperança de fazer _____ e o nome do Terno vai ser Esperança da Paz. Porque o nome do Terno de Reis era As Baianinhas - naquele tempo, pequenininha, quando eu estava pequena - então vai ser Esperança da Paz”. Aí eu fiz o Terno de Reis saindo daqui, botando… eu disse: “Eu vou botar esse assim”. Aí eu pensei: “Eu vou botar os três reis, porque o nome do Terno… porque se é Terno tem ter o “de Reis”. Eu botei… aí eu fui na Igreja de (Araque?), olhei lá, eu vi os nomes dos Ternos de Reis, né, que eu me esqueço também o nome. Aqueles nomes, assim, eu [coloquei no] papel: PÁ, PÁ, PÁ, PÁ. Escrevi o nome deles três: “Ah, sim, tá certo”. Fiquei quieta. Fiz o Terno de Reis, mandei o finado Nadinho, que era vizinho nosso aqui, ele fez a coroa dos Terno de Reis, ele fez tudo, eu comprei o pano fiado em Seu Nicolau, que ele tinha loja, eu fiz os mantos dele, eu disse: “Eu vou arranjar três animais. Eu quero um burro… eu quero um cavalo branco, um cavalo castanho e um cavalo”... aí eu digo… eu disse: “É três cavalos que eu quero”. Aí eu vesti tudo, eu mesma botava no chão, ajeitei tudo, fiz tudo, aqueles manto botava aqui no ‘coisa’ (pescoço) do cavalo, botei o couro, botei tudo direitinho e fiz. Aí eu disse: “Dona Menininha, eu, quando saí em Terno de Reis, que a senhora me botava, eu ‘cantei’ presépio: Seu Julião, Mané Gomes”. Aí eu ‘cantei’ o presépio, as músicas era isso, isso e isso: “Eu vou cantar minhas músicas, essa é a mesma, Vai ser essa mesmo, eu vou cantar é assim”. Viemos cantar um reis para deixar mais uma lembrança. Nós saímos outra vez só para divertir as crianças. Não faça pouco da turma, isto são coisas do nosso Brasil. Não dê risada da garotada, que o rei é infantil. Eu botando, né? Como é que eu ia fazer? Pelas cantigas, tirando as cantigas: “É essa mesmo, vou botar essa”, eu mesma escrevendo logo. Eu mesma fazendo as músicas e escrevendo logo, que é pra poder depois ver, qualificar, pra ver se estava certo. Aí… as estrelas lá no céu, todas cobertas com o manto. Acordar é flor e não durma, que as esperanças não dormem tanto. Saia, venha ver, venha ver, apreciar a Esperança da Paz que vieram cumprimentar. Aí depois cantei: Salva Estrela, salve a luz, salve o sol do claro dia. Salve o menino Deus, nascido do filho da Virgem Maria, papel de novo. Tudo que eu pensava, eu relatava, ia logo escrevendo pra não perder o tom. (risos)
(01:55:07) P1 - Assim, pra gente fechar mesmo agora…
R - Hein?
(01:55:10) P1 - O seu samba, assim, de xodó, tem algum samba que você fez que nasceu, tem uma história legal do nascimento dele?
R - O nascimento… tinha muita coisa, mas a gente também esquece. Eu cantava muito quando era pequena: Doutor Zé Menino, mas tem a palavra, a palavra divina, a palavra sagrada. É a ‘coisa’ que eu cantava. Eu cantava muito, né? Mas voltando… já me esqueci, me esqueço das coisas. Aí eu fiz e tudo deu certo e os meninos conquistaram o meu Terno de Rei. Não falei do Terno de Rei? E eu fiz o (terriê?), todo mundo gostou. Vesti os homens tudo vestido de reis, botei tudo vestido de rei. Doutor Nelsinho, ele, Valmir, ele, Gilmar, teve um ano que foi Gutemberg, mas Gutemberg, São Félix, teve um ano que ele fez uma operação e disse que não podia sair, aí eu fiquei parada: “Meu Deus, quem vai ser o rei? Ó, meu Deus!”, _______ cheio de branco. Aí eu botei Nelsinho pra… na hora, quando ele vinha saltando, eu disse: “Eu quero lhe ver”. Aí ele disse: “O que é?”. Eu digo: “Me procure lá em casa, vai lá em casa buscar”. Ele veio aqui: “Já sei o que é. Vai ter (tendência?)?”. Eu disse: “Vai”. Ele disse: “Eu vou sair no seu Terno”. Eu disse: “Eu estou lhe esperando mesmo. Pode ir”. Foi eu que vesti, aluguei os três animais, paguei, [um] rapaz… naquele tempo, consegui tudo, os animais tudo como eu queria e fiz. E os meninos que tomavam conta dos animais, também, com os arreios deles e tudo arrumadinho, direitinho. A orquestra foi Professor Ganso; e ele está operado agora, mas ele me contempla, já mandou me dizer. Aí eu disse: “Eu fiz e deu certo, todo mundo gostou”. O primeiro Terno de Reis de Cachoeira, fui eu. Ninguém fez. Agora, se aparecer outro, não tem problema, [que] eu gosto. Eu estou aqui pra ajudar. Mas… hein? Mas se aparecer outro, não tem problema, estou aqui pra ajudar. A Cachoeira precisa progredir e não de diminuir. A gente tem que fazer as coisas, porque é pra ajudar a juventude dessa turma, de cinco anos em diante, a crescer com aquela antiguidade na cabeça pra seguir o ramo da gente, porque pai e mãe não podem viver chorando, nem preocupados, né, meu filho? Não pode viver chorando, não. Pai e mãe não podem viver preocupados, não. Não merece! Dá bastante o amor, de criar o filho, e a dor que passa, mas sofrimento de ver os filhos sofrer, a gente não tem coração [pra aguentar isso]. Então eu espero que Deus me dê o poder, que eu ainda queria fazer outras coisas mais, mas não sei ainda se dá tempo. Não dá tempo.
(01:58:20) P1 - Que [é] que a senhora achou de contar essa história hoje?
R - Hein?
(01:58:23) P1 - Que [é] que a senhora achou de contar sua história hoje?
R - Minha história?
(01:58:27) P1 - É. Gostou?
R - Pra mim, eu agradeço a Deus ao reconhecimento, a vocês que estão aqui, que me deram esse prazer, me deram um presente maravilhoso, que eu estou estabelecida e [sinto] satisfação. Por inocência minha, eu não sabia de nada. Que vocês pra mim podem ser meus filhos, eu agradeço de coração, que Deus abençoe todos vocês e que seja gratificado por Deus e pelo reconhecimento, porque… (som alto)
(01:59:19) P2 - São Jorge.
R - Hum?
(01:59:20) P2 - São Jorge chegando.
R - Não sei mais. Eu falei.
(01:59:26) P1 - Está ótimo! Quer fechar com um samba?
R - Foi na rua que passou isso?
(01:59:32) P1 - Bomba. Bombinha de São João.
R - Ah, é? Porque a gente aqui anda amedrontado agora com as ‘costas’ do acontecimento. Aí, então, eu me sinto feliz em estar aqui com vocês, mas, que Deus abençoe todos vocês.
(01:59:50) P2 - Amém.
R - E tudo que vocês programarem, seja vitória pra vocês, felicidade. Porque o reconhecimento de vocês é prevalecido, a história de vocês também é gratificada por Deus. Eu estou aqui a qualquer momento. Qualquer hora, tenho, assim, saudade da minha vida. Eu digo: “Toda hora a criar meus filhos”. Eu não tinha vontade de morrer. (risos) Eu não tenho vontade. Diga assim a eles: “Eu não tenho vontade, mas quando eu for me embora, tudo que eu apresentei na minha vida, vocês vote, convide, vá, me dê o prazer de eu ficar assistindo, mesmo eu sei que eu não ouço mais, nem vejo mais, mas eu vou ficar ali do lado. Quando acabar de vocês [se] apresentarem, eu bato palma pra todo mundo e agradeço e vou-me embora”. Mas eu sou feliz, porque é difícil ir ver uma pessoa com a sabedoria de estudo, que eu não tive, ser tão reconhecida. Eu não tive estudo suficiente pra passar, pra ter uma mãe charuteira, trabalhar pra criar meus irmãos. Fui criada com a minha avó, minha avó era lavadeira no Rio do (Catingue?), eu ia pra escola da Dona (Aussolina?) Pereira da Luz, que ela é minha professora. Quando eu vinha do colégio, ia levar a farofa dela, que era uma lata, assim, de manteiga, dessa de meio quilo, botava ali pra (berrar?) no Rio do (Catingue?), lá ela botava na bacia, molhava, nós duas comíamos e vendíamos ali mesmo. Nunca dei pra nada ruim. Eu nunca dei pra nada ruim, fui privilegiada por Deus pelo reconhecimento, pela criação que eu tive e sou feliz na minha vida, em que vocês me traz um dilema de maravilha, me dá o meu status de capacidade e a vida é continuada. A vida é continuada. Porque tive a honra de ser comadre da minha mãe, madrinha do meu irmão e da honra de prestigiar a minha Irmandade da Boa Morte, tudo, a todas as minhas atividades que eu tive. Meu pai nunca me deu um beliscão, minha mãe me dava uns ‘bolinhos’ porque, na hora, eu merecia, né? Solta com as minhas camaradas, deixava de varrer a casa, deixava de lavar um prato, deixava de fazer qualquer coisa, deixava a comida queimar, o feijão queimar: “Ô! O feijão tá queimando! Dalva, não sei o quê!”. Não é aqui não, mentira; eu estava brincando solta com minhas camaradas. Mas a minha mãe era minha comadre, ter (batido?) meu irmão. E aqui, nessa rua, nasci, nascida e criada aqui nessa rua, até hoje estou aqui. Eu nasci em 1927, em 27 de setembro, [às] sete horas da noite. Tem que agradecer, né? Conheci a ‘cara’ da necessidade? Conheci sim. Conheci. Ser pobre não é tristeza, é humildade, é o mundo, o mundo traz aquele passado e depois a gente se torna coroado. Eu sou coroada. Sou coroada porque, todo mundo, não tem o que dizer [de mim], pessoa nenhuma. Esses artistas que vocês estão vendo ali, todos vieram me ver aqui em casa. Vinham aqui, eu não sabia. Beth Carvalho, todo mundo ali, a de Santo Amaro, a outra, todos eles. Já cantei com a maioria deles tudo. Já cantei com Beth, com muitos deles ali, eu já cantei. Qual é a voz que eu tinha? Mas eu canto, (remédio?), né? Vou lá, dou minha jogada e dá certo. Hoje em dia, graças a Deus, a minha casa, quando chega a Festa d’Ajuda aqui, essa casa se enche de gente: “Abra a porta aí. Diga a Dona Dalva que abra a porta, que eu vou entrar lá”. Eu digo: “Meu Deus, o que foi?”, aí quando abre a porta, entra todo mundo pra ir tomar, comer acarajé, comer abará. O que eu tiver, boto na mesa, faço a mesa lá, largo lá. Já o menino vem de manhã cedo, domingo de manhã, as duas panelas de acarajé, tudo quentinha, feito pra trazer: “Depois eu pago! Não se preocupe, não, que eu pago”. Mentira, já estava pago, os acarajés. Eu fazia tudo por felicidade. hoje eu estou aqui na casa de minha mãe, as minhas coisas da minha sede, tudo aqui é equipada. Tem uma… eu tenho a casa do meu samba, que foi comprado com o suor da minha vida e o outro lá, foi dado, foi _____ que deu, mas que iam tomar… teve alguém que queria tomar. Teve alguém que desejou tomar, mas não pôde tomar, não tinha condições de tomar. Eu sou a mulher que mais tem título na Cachoeira, que mais tenho conhecimento na Cachoeira. Porque se eu fosse errada, ninguém ‘ensinava’ a minha casa. Quando diz assim: “Onde mora a Dona Dalva? Aqui? Eu já não quero ______”, “Ó, meu Deus”. Seja o pior que ____, seja o pior, não tem distância, eu me dou com todo mundo. Os que estiverem ‘naufragados’, me defendem. É, me defendem. “Qual que _____ houve, Dona Dalva?”, “Sei lá! Eu não conheço quem é, não sei quem é. Não sei de nada. Teve nada comigo”. Tem uns que vem ali: “Dona Dalva, meu amor”. Eu digo: “Ô, meu filho, tudo bom?”, “Tudo bom. Deixa eu entrar aí pra ir no seu sanitário”. Eu digo: “Ô, meu filho”, aí eu tenho medo. Aí eu digo: “Ô, meu filho, tá entupido”. Eu tenho que dizer isso, por quê? Eu não conheço quem é. “Mas o que [é] que você quer?”, “Eu queria tomar um café”, “Eu vou buscar”, pego lá dentro a chaleira do café, trago: “Toma aí seu café, sua bolacha, coma o que tiver”. Quem tiver de comer doce ou não tiver, mas eu não posso deixar ele lá dentro, porque eu tenho medo. Teve uma vez, tem um pessoal que veio aqui, quando chegou lá dentro: “Eu queria ir no banheiro”, “Pode ir”. Um casal, né? Aí quando… [não sei] quem foi, entrou no banheiro e ela ficou conversando comigo, aí é um negócio que faz assim: TUCO e sai de dentro. Como é? Não é pistola, não. Uma faca que ela apertou assim, saiu de dentro do canivete. Ela botou aqui (barriga) assim. Ela disse: “Ou dá o que tem agora ou você morre”. Eu disse: “Eu não tenho nada”. Ela disse: “Você tem aí no bolso”. Eu tinha recebido um dinheiro, estava com avental, aí ela: “Me dê o dinheiro”. Então, quando eu cheguei…
(02:07:55) P1 - Cuidado, viu, Dona Dalva.
R - _____, meu filho.
(02:07:57) P1 - Deus abençoe.
R - Amém.
(02:07:58) P1 - Quer fazer um samba pra terminar?
R - Hein?
(02:08:01) P1 - Quer fazer um samba pra terminar?
R - Samba? Faço.
(02:08:08) P1 - É, escolhe um que tem uma história legal.
R - Graças a Deus… (som de fora) Que isso aí?
(02:08:19) P1 - Última cena. Deixa passar.
R - Graças a Deus que as coisas melhorou, as festas de cachoeira, todas elas levantou. Foi chegado o patrimônio, consertando os bangalô, me traga de volta o trem, me traga de volta o vapor. Nossa cachoeira é bela, é joia, é diamante, só falta voltar agora a Festa dos Navegantes. Graças a Deus que as coisas melhorou, que as festas de Cachoeira, todas elas levantou. Aí trago o nome dos navegantes, trago o nome… nossa cachoeira é bela, é joia, é diamante, as Festas dos Navegantes, eu trago o nome de todos eles.
(02:09:18) P1 - Você fala que é patrimônio, você foi uma pessoa que foi responsável também pelo samba de roda ser patrimônio, né?
R - Sou. Eu sou patrimônio. O samba de roda é patrimônio.
(02:09:30) P1 - Você ajudou nisso, né?
R - Me deram tudo isso pelo conhecimento, pelos meus trabalhos, porque eu mesma, atualmente, eu não presto atenção… eu não pensava na vida, de ser, que todos os meus trabalho fossem bastante reconhecidos, porque eu fazia por gratidão à minha consciência, à minha vontade, porque eu sempre gostei de de fazer essas coisas, né? Eu sempre gostei de fazer as músicas, ‘controlar’ as letras e amar as músicas. Eu fazia as letras e quando acabava, ‘controlava’ e botava as músicas. Ninguém mandava eu fazer nada, não.
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