Memória Oral do Idoso
Depoimento de Olympia Gomes Soutello
Entrevistado por ______
São Paulo, 10 de outubro de 1992
Realização Museu da Pessoa
Fita nº 10
Transcrito por: Fernanda Regina
R – Eu nasci minha mãe tinha... Deixa eu fazer a conta direito, eu já tanto fiz a conta... Ela era de 68, eu nasci em 8. Só que ela era de 12 de novembro e eu sou de 13 de abril. (Navios?) fora a maquina de calcular vocês não sabem mais fazer conta.
P - 39.
R – Então, completou-se 39. E com 15 meses depois teve dois.
P/1 – A senhora teve irmãos gêmeos?
R- Tenho. Estão os dois com 83 anos. O de Ribeirão Preto, Manoel Carlos, que ela viu a fotografia, tem cinco filhos e nove netos só. É arquiteto formado pelo Mackenzie.
P - A senhora nasceu onde?
R – Amparo, no Largo da Matriz. Você viu a casa onde eu nasci.
P/1 – A senhora depois foi para a Europa.
R – Não, primeiro meu pai morreu.
P/1 – Certo.
R – Dia 12... não, dia 9 de novembro de 1911. E em junho nós fomos para a Europa. Todo mundo pergunta por quê.
P/1 – Por que?
R – Por que? Porque era fácil ir para a Europa. O nosso câmbio equivalia a libra. Falava grosso por lá, a gente ia passear.
P/1 – Vocês foram então só pra passear, fazer turismo, conhecer.
R – Fomos lá pois meu irmão estudava Medicina na Bélgica. Ele veio, casou-se porque ele já estava noivo, e aí nos levaram pra Europa, mamãe, minha irmã e nós três, os três pinguins. Nós fomos num navio alemão. E o gostoso daquela viagem que não se faz mais. O navio quando cruzava, telegrafava, dava o nome, tudo, então era aquele alvoroço abordo, isso eu me lembro, o pessoal não acredita, mas não é invenção não. Todo mundo ia pro deck, hasteava a bandeira do país, do navio e da companhia. O outro a mesma coisa. E a banda de bordo, cada um tocava seu hino nacional para cumprimentar o vizinho. Depois seguia caminho. Uma coisa que eu fiquei muito assustada foi (em Dacar?), tanto na ida como na...
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Depoimento de Olympia Gomes Soutello
Entrevistado por ______
São Paulo, 10 de outubro de 1992
Realização Museu da Pessoa
Fita nº 10
Transcrito por: Fernanda Regina
R – Eu nasci minha mãe tinha... Deixa eu fazer a conta direito, eu já tanto fiz a conta... Ela era de 68, eu nasci em 8. Só que ela era de 12 de novembro e eu sou de 13 de abril. (Navios?) fora a maquina de calcular vocês não sabem mais fazer conta.
P - 39.
R – Então, completou-se 39. E com 15 meses depois teve dois.
P/1 – A senhora teve irmãos gêmeos?
R- Tenho. Estão os dois com 83 anos. O de Ribeirão Preto, Manoel Carlos, que ela viu a fotografia, tem cinco filhos e nove netos só. É arquiteto formado pelo Mackenzie.
P - A senhora nasceu onde?
R – Amparo, no Largo da Matriz. Você viu a casa onde eu nasci.
P/1 – A senhora depois foi para a Europa.
R – Não, primeiro meu pai morreu.
P/1 – Certo.
R – Dia 12... não, dia 9 de novembro de 1911. E em junho nós fomos para a Europa. Todo mundo pergunta por quê.
P/1 – Por que?
R – Por que? Porque era fácil ir para a Europa. O nosso câmbio equivalia a libra. Falava grosso por lá, a gente ia passear.
P/1 – Vocês foram então só pra passear, fazer turismo, conhecer.
R – Fomos lá pois meu irmão estudava Medicina na Bélgica. Ele veio, casou-se porque ele já estava noivo, e aí nos levaram pra Europa, mamãe, minha irmã e nós três, os três pinguins. Nós fomos num navio alemão. E o gostoso daquela viagem que não se faz mais. O navio quando cruzava, telegrafava, dava o nome, tudo, então era aquele alvoroço abordo, isso eu me lembro, o pessoal não acredita, mas não é invenção não. Todo mundo ia pro deck, hasteava a bandeira do país, do navio e da companhia. O outro a mesma coisa. E a banda de bordo, cada um tocava seu hino nacional para cumprimentar o vizinho. Depois seguia caminho. Uma coisa que eu fiquei muito assustada foi (em Dacar?), tanto na ida como na volta, mas na volta eu já era moça, não me espantei. Pessoal costumava jogar uma moeda no mar e os pretos pulavam, do deck do navio mergulhavam para pegar a moeda. Depois proibiram porque muita gente jogava do outro lado pra eles passarem por baixo e conforme a calada do navio, muitos morriam porque a quilha do navio corta. Foi proibido. Mas quando eu voltei de lá eles ainda tinham a folia de jogar moedinha. Dacar é bonito, uma cidade muito bonita.
P/1 – A senhora foi o primeiro pra que país da Europa?
R – Pra Bélgica, pra Bruxelas.
P/1 – Certo.
R – Ficamos em casa de meu irmão e depois de lá, quando melhorou o tempo, nós fomos para praia, uma praia linda, linda... Uma espécie do Guarujá, só que é mais extensa, porque não é fechada assim como Guarujá. Mas, tinha sim, o passeio era acima da praia. Era uma praia alegre. Todo sábado ou domingo tinha curso, tinha competição e tudo... Eu era pequena, mas a gente se regalava de ver a folia dos outros, pescava... lá a maré subia muito, depois recuava e ficava aquelas poças de água do mar e a gente então tinha a redinha para pescar camarão naquelas poças d'água, era cada camarão deste tamanho (risos). Eu não conhecia o nosso camarão rosa. No Rio de Janeiro, quando nós ficamos paradas lá para depois vim para São Paulo, porque o nosso navio não tocava (minha irmã e eu que viemos na frente, mamãe veio depois). Então, eu lá na galeria... Como é que chamava, uma galeria que tinha lá no Rio, não sei se ainda existe, mas era o ponto. Era como antigamente a Praça do Patriarca aqui. Que eu vi um restaurante com cada camaraozão mesmo (risos), que bicho é esse?
P/1 – Como é que vocês faziam o camarão lá na...?
R – Ah, nós gostávamos numa pensão de freiras portuguesas, que elas foram expulsas de Portugal com a Proclamação da República, e então elas abriram uma pensão lá. As mesmas que tinham o Colégio das Freiras lá em Amparo.
P/1 – Que ordem eram?
R – Dominicanos. E aí a gente levava essas, coitadas das freiras, fazer meia dúzia de camarãozinho, assim e dar aquele pratinho para gente (risos). Mas hoje eu aprecio o camarão, (não acho graça?). Esse negócio de frutos do mar, eu não sou não... Peixe, peixe de couro é o que eu mais gosto. Durante... Não, depois da guerra, aqui andava vendendo carne de baleia. Eu comi. É gostosa, mas é como carne de vaca. Um filézão, você também comeu?
P/1 – Não.
R – É gostosa. Esses pratos brasileiros torcem muito o nariz, é muito enjoado para comer. É arroz, feijão, bife e batata frita. Não come salada, não come verdura.
P/1 – E a senhora comia tudo isso na sua casa?
R – Muito.
P/1 – Como que era o cardápio?
R – O cardápio lá em casa de manhã era café com leite, pão, manteiga, mel, queijo. Depois ia pra escola. Botava, (nós éramos?) e agora era hora do colégio. Mas ela faz?
P/1 – E esse colégio era de onde?
R – É um colégio de freiras francesas lá na Suíça. Essa ordem não tem aqui no Brasil, tem no Canadá, tem pelo mundo todo. É da apresentação de Maria, a festa é dia 21 de novembro. E as freiras eram meus amores, um dia eu mostro pra você, eu tenho uma medalhinha com retratinho dela, essa freira com 7 meses levou um tombo e ficou paralítica lá numa aldeia na França. E como ela não andava, [enviava as fotos como amor?]. Ela sabia ler, como era mais instruída que a criançada da aldeia, isso é 1700 elevado para trás, então, ela ensinava os amiguinhos a ler, contar. E a mãe, a gente era camponês, a mãe quando ia levar a bóia pro pessoal, levava a menina e deixava na igreja. Eu estou para escrever lá, para a Ilha da Madeira, porque depois elas abriram casa lá, não sei se elas estão no continente, porque tinham duas moças da família Dornelas e Vasconcelos, que com ela se extinguia aquele ramo, o irmão dela morreu com 14 anos e ficaram as duas. Uma entrou pro convento, a mamãe queria que ela ficasse, que a Maria da Graça ficasse conosco, era companheira, regulava com minha irmã mais velha, era companhia, mas ela pegou e resolveu ir pro convento, mas não deve ter durado muito não. Era um amor de criatura, era Leontina Maria da Graça.
P/1 – Isso lá na Suíça?
R – Nos conhecemos na Suíça e elas foram para Portugal, foi a primeira freira que entrou em território português, depois da Proclamação da República, pela fronteira espanhola, de hábito. Todo mundo dizia “Você tira o hábito, vá à paisana porque você vai ser desacatada”, dizem que lá na alfândega só faltavam carregar. Quando (andou ele carregava?). Dizem que o pessoal dizia “A Maria da Graça que contou, a monja”. [... a freira] (risos). Mas lá o português ainda fala português (risos). Eu sei que, depois, as quintas elas tinham a quinta do Amparo, lá no Funchal. Elas doaram para essa congregação, fundaram orfanato, depois seguiu à tarde, colégio, tudo isso. Não sei se ela tem no continente. Mas a fundadora, a mãe dela, levava, deixava na igreja, na volta pegava menina e carregava para casa. No fim do ano, Natal, ela ganhou um casaco novo e um chapéu. Bom, a mãe levou na igreja, e quando foi buscar ela já vinha meio caminho arrastando as perninhas. Em cima, [perguntou] “cadê seu agasalho?”, ai ela “dei pra Nossa Senhora”.
P/1 – (risos)
R – Era a coisa mais linda que ela tinha, trepou no altar [e pôs]. Imagina uma Nossa Senhora das Dores. De casaco e de chapéu.
P/1 – A senhora era (...)
R – Não. Era Nossa Senhora da Piedade, não Nossa Senhora das Dores. Mas feita empalhada. Eu não sei porque, eu vi no livro dela, eu vou escrever lá para o Funchal e vou pedir no Consulado Português se eles me dão o endereço, eu sei que é no Funchal a quinta do Amparo. Eu tenho uma Nossa Senhora bonita que ela deu para minha irmã. Mas, acontece que, entre parênteses, eu fui no INPS lá em Pinheiros para pedir transferência para eles pagarem o INPS no outro no outro Itaú, e, naquela fila bonitinha, tinha um senhor português, mas pelo falar dele eu disse “o senhor não é da Madeira?”. “Sou sim, senhora”, porque eles falam cantado. Disse “por acaso o senhor conhece a quinta do Amparo lá no Funchal?”. “A minha tia é freira lá”.
P/1 – Olha, que legal.
R – Mas, me chamaram e eu não pude acabar de conversar com ele. Eu pedi a ele, [disse] “o senhor não tem o endereço?”, “minha mãe deve ter”. Mas depois ele sumiu, eu fiquei sem corresponder. Porque eu queria escrever para lá e pedir, porque como elas tem um monte de freiras portuguesas, elas devem ter a tradução da bíblia da Madre superiora.
P/1 – Dona Olímpia, e depois? Quando a senhora chegou no Brasil?
R – Ah, depois desilusão. Fiquei morando em casa, meu irmão na Rua Itacolomi, nº 13 pertinho da praça Buenos Aires. Acontece que o bonde passava na outra esquina, mas eu não podia ir à cidade sozinha. Eu acho que no outro eu contei, que com nove anos eu saí de Lozan, mudei de trem em motor, ai empacou. Eu ainda vou achar fotografia daquele hotel.
P/1 – E a senhora foi sozinha?
R – Fui sozinha. Mamãe disse “eu não vou levar”, porque era “encarapichada” com minha irmã, mas ai eu fiquei com febre. Queria porque queria [Alice?], mas eu não falava pra não desgostar mamãe. Aí ela percebeu a história disse, “você quer ir, vai, mas você arruma sua mala, despacha e vai, porque eu não vou levar”. Eu já tinha ido lá bater uma fotografia que eu não achei, essa daqui que eu queria mostrar para você. É um lugar belíssimo. Tem 1km de passeio nesse hotel, e lá tem para todas as bolsas, um comerciário que ganha salário mínimo pode passar as férias dele lá, paga uma mixaria. Pagava. Só que as acomodações eram mais simples e o refeitório também, porque quatro... Não, cinco estrelas a gente tinha, um garçom pra servir o prato, um pra tirar, um pra servir a água. Essas pantomimas. Mas era divertido, o hotel era belíssimo. Era um terraço toda a parte da frente do hotel. Tem dias que eles chamam “Mar de Brumas”, a serração subir subia que você não via planície, dava a sensação de que você pulando a grade ia pisar num algodão. A coisa mais linda desse mundo, eu ainda quero ver se consigo, eu vou no oficial pedir umas fotografias de lá. Meu irmão ganhou, não foi ele que ganhou, foi um amigo da Suíça, uma folhinha Suíça tirada de avião de todos os altos picos da Suíça. Mas é de arrepiar, como é que eles puxaram o teleférico de um pico para outro? Aí eu não lembro, no meu tempo não tinha (risos).
P/1 – Dona Olímpia, quando a senhora voltou para São Paulo, para o Brasil, o que foi que a senhora veio fazer hoje? Porque a senhora voltou?
R – Eu vim porque me trouxeram. Minha irmã inventou de vir antes, mamãe ficou lá ainda, vendeu a casa, ficou com meus irmãos que estavam acabando o ano de engenharia e depois mamãe veio em junho. Eu cheguei aqui dia 17 de dezembro, dia de Santa Olímpia, uma desilusão.
P/1 – Por que uma desilusão?
R – Porque aqui não se vive. Se vegeta. É sim. Não podia sair sozinha, o bonde na esquina, e eu não podia bater perna. Gostoso é quando a gente ia para cidade, descia no Patriarca, e aí eu ia com a com minha cunhada, a irmã que morava com ela, que é mãe de uma outra cunhada minha, a irmã da minha.... Como que é a história?
P/1 – A filha?
R – Essa minha ultima cunhada, que é casada com um dos gêmeos, é a sobrinha da minha cunhada mais velha. E a irmã mais velha da minha cunhada, era casada com meu tio, irmão da mamãe. Bagunça, não é? (risos). Mas eu não podia ir à cidade pular meu estribo do boi, se eu falasse ainda era _____, ainda peguei de Anápolis iluminado a gás. Ainda tinha que sair com a madame (risos), e eu louca pra bater perna. Quando mamãe chegou e comprou casa na Rua Venezuela, a rua larga era pouca (risos). Eu ia no ____, podia ir na casa da minha da irmã, depois ia no _____ tomar chá.
P/1 – Hm... Mas era costume as moças fazerem isso?
R – Não.
P/1 – E a senhora ia com quem?
R – Sozinha?
P/1 – Sozinha?
R – Eu e Deus. Bom companheiro.
P/1 – (risos)
R – Esse não nego.
P/1 – Naquela época as moças não faziam isso?
R – Não... Pessoal de “Society”? Agora, tinha algumas que eram, mas iam de carro. Não andavam de bonde.
P/1 – E não era comum as mulheres andarem de bonde?
R – Não, não. Só a plebe (risos). Mas eu estava pertinho da Rua Maria Antônia. Da aquela esticada, desce a Consolação e está na Praça Ramos.
P/1 – Dona Olimpia, e aquela oração que a senhora estava contando pra gente?
R – Qual?
P/1 – Aquela que a gente perdeu (risos).
R – Agora sei qual é (risos).
P/1 – O que a gente faz?
R – Essa é justamente... A mãe da Ilma, dessa menina, aquela turma é como irmã pra mim. É “São Tomás de Vilanova, que fostes Bispo e Arcebispo. Pelas chagas de Cristo passa aqui enquanto o que eu perdi.” E olha que é tiro e queda. Ele responde na hora, tem ligação direta.
P/1 – E que mais que a senhora conhece?
R – Hum?
P/1 – A senhora conhece outras?
P/2 – Outra reza, adoração.
R – Em francês, diz (alguma coisa em francês) (risos).
P e P2 – (risos).
R – Isso é molequeira de colégio (risos). Tem uma porção dessas.
P/1 – É? Que outras?
R – Essa São Tomás de Vilanova é novidade pra mim.
P/1 – Como foi que a senhora aprendeu?
R – Com essa minha amiga.
P/1 – Ah, é verdade.
R – E um dia eu perdi a tarraxinha do meu brinco.
P/1 – Aqui já no Brasil.
R – Sim, não faz muito tempo não. Essas duas famílias, porque a vó dessas moças, você pergunta ao seu vô se ele lembra Sebastião Gama, que era dono do Bonmache, tinha a Anealica, Souza Rocha, que era cunhada do Franco da Rocha, daquele médico. Era tia dos meus irmãos mais velhos, era irmã mais nova. A mãe dos meus irmãos mais velhos era mais velha das irmãs, tinha (umbanda?), a manda da manda da terra (risos) e a mais nova era dona Maria Souza Rocha, ela era casada com... não, ela era cunhada do Doutor Souza Rocha lá do Franco da Rocha. Era uma velhinha gozada, alegre que só vendo. Eu lembro bem dela, era deste tamanho. Aquela moda, não sai de casa, bom garfo. Então, mandaram fazer, eu não cheguei a conhecer o carro, mandaram fazer uma Renault, chegou a conhecer os carros funerários do (Robervale?)? Procure isso, isso que vocês precisam pesquisar.
P/1 – Mas conta como que era para a gente.
R – É um bruto carrão aberto, mas foi preciso fazer a porta para ela poder entrar. Foi especial, carroceria especial. Mas ela era uma graça, criatura fantástica. Anealica. Lá em Amparo, eu sei disso, mas não é do meu tempo, eles pregavam peças, pessoal da roda, pregavam peças uns nos outros, mamãe pintava a gente, se [?] de porcelana, desenhava muito bem. Ela polia a Camélia branca, tinha um de pé lindo lá em casa, ela colhia direitinho, cortava o cabinho, mas Camélia com cabe triste, né, curtinho, e ela colocava na tinta.
P/1 – Ah, pra tinta.
R – E era costume mandar de presente uma bandeja de flor. Então, ela cortava o cabinho que estava pintado e mandava. Todo mundo intrigado, onde que tinha? Todo mundo queria muda da Camélia.
P/1 – Mas em que ocasião era costume mandar essa bandeja de flores?
R – Qualquer. Inventava de fazer ou então aniversário, qualquer pretexto.
P/1 – Certo.
R – E os brinquedos de entrudo então? Mamãe contava.
P/1 – Conta um pouquinho para a gente como era.
R – Isso que mamãe contava. Lá em casa, aquela que eu mostrei pra vocês na fotografia, bem no centro. Então, no carnaval vovó fazia de parafina laranjinha e limão. E enchia com água perfumada. O pessoal que passava na rua “ploft”.
P/1 – Jogava a laranjinha.
R – Tomava banho (risos). Tinha também o costume de jogar água, esguichar água. A nossa casa era pequenininha como você, viu. A varanda só tinha 20 metros.
P/1 – (risos).
R – Ficava todas na janela, as madames todas ali, e sabe quem abastecia o aguaceiro? Meu pai.
P/1 – (risos)
R – Mamãe era foliona, adorava piquenique. E tinha um amigo, nossa senhora, aquela criatura era uma santa. Ficou viúva, a dona Malvina Pastana e um bando de filho. Numa crise de café. Mas ela continuou. Era uma criatura fantástica, visitava todos os colegas, ajudava em tudo. Ela criou um menino que mandaram chamar o médico. E foi o moleque lá da fazenda, levou o cavalo, mas foi montado. O médico não quis montar naquele cavalo porque não levaram um especialmente para ele. Mas era pertinho a chácara, chamava chácara. A moça morreu e dona Malvina levou o menino para casa dela, criou, era filhote dela. Ele era meio atrasadinho. Sabia ler, escrever, falava direitinho, mas tinha um problema. Mas ele tinha uma paixão pela dona Malvina.
P/1 – Dona Malvina é com quem a sua mãe fazia esculturas?
R – Nós íamos fazer... Não, eles iam fazer. Eu não fui, não peguei os piqueniques. Minha irmã que pegou.
P/1 – Ah, isso que a gente queria.
R – Mamãe tinha um terreno à beira do rio Camanducaia. E tinha uma canoa, uma turma, meu irmão mais velho, meu tio, iam de canoa até chegar lá na chácara da dona Malvina e o resto tinha de ficar (risos). Iam fazer piquenique, a coisa que eu mais detesto, não sou de piquenique.
P/1 – E hoje em dia a senhora gosta de fazer o que?
R – Farrear.
P/1 – E o que é farrear? (risos)
R – Passear.
P/1 – A senhora frequenta cinema, teatro?
R – Faz tempo que eu não vou ao cinema. Pra ver essas porcarias de fitas que tem aí? E na televisão eu vou desligar, porque é só pornô.
P/1 – Então o que a senhora faz?
R – No rádio, por exemplo, quando vem essas “charangadas” de música caipira, que não tem nada de caipira, porque hoje eu estava contando pra você que eu passei uma manhã ótima ciscando lá em casa, fazendo meu almoço, colocando a roupa na máquina, tudo isso com meu radinho ligado.
P/1 – Ouvindo o que?
R – A Jovem Pan. Quando não tem esportes no sábado de manhã, ela toca música brasileira. E hoje tocou Pixinguinha, que é uma loucura, vocês já ouviram é? Aquilo é uma delícia.
P/1 – O que a senhora gostava de ouvir antes no rádio?
R – O que der. Eu gosto da Jovem Pan porque da a hora... [interrompeu]
P/1 – Não, antigamente.
R – Antigamente eu não tinha rádio. Não faz muito tempo que eu tenho, ganhei do marido uma amiga, um galena que eu me arrependi de dar. Dei pra companhia do câncer é daqueles pequeninhos assim, a caixinha, pastilhinha assim, a galeninha aqui. E ele me deu os dois fones, quer dizer, quatro podiam escutar (risos). Uma vez, meu irmão estava gripado, ficou preso e tinha aqueles estrados de arame, aquilo que era cama gostosa, mas pra mim não serve, cama mole. Ele ficou naquela...
P/1 – É bom pra coluna?
R – Não sei, não gosto. A minha cama era do meu avô, tem três tábuas de 30cm e o colchão tem só um metro de largura. Ele ligou no estrado da cama e ficou escutando o rádio no tempo da educadora Paulista. Era ali no Paraíso.
P/1 – Como que era?
R – Hum?
P/1 – Como que era?
R – A rádio Educadora Paulista.
P/1 – Mas como eram os programas nessa rádio?
R – Ah, de manhã tinha aula de ginástica. Depois tinha... Eu não sei porque eu não tinha rádio. Depois que eu ganhei esse um aí. Mas me arrependo de ter dado, porque era um “bijuzinho”. E a galena tem um som... é o som mais puro que tem no rádio. Tem um amigo nosso, da família Padua Sales. Ele era Padua Sales pela mãe, e Sampaio, gente de Campinas. Rafael Sampaio tinha casa comissária em Santos. Pois o Osvaldo, tinha terras em Apiaí, me convidou para ir. Mas quando ele disse que ia de trem, depois de carro, depois de canoa, depois a cavalo eu disse “Não, muito obrigada, fico em São Paulo”, eu nunca andei a cavalo. Mas ele tinha jazida de cristal de rocha, prata, um pouco de ouro e chumbo.
P/1 – Dona Olímpia, e aquela associação?
R – Que associação?
P/1 – Que a senhora...
R – A linha do _____ (risos).
P/1 – É.
R – Ah, esse vale a pena. Tinha uma amiga minha que a irmã dela se aposentou da Anderson Cleiton, ela era secretária de um dos chefões lá, e a mãe teve derrame. O pai dessa moça tinha casa na rua de São Bento, vendia vitrola, rádio, todas as coisas daqueles tempos, mas eu não os conhecia. Ela então ficou cuidando da mãe, o pai já tinha morrido, e a irmã dela mais nova era associada de uma oficina de Santa Rita. Que era oficina de Santa Madalena, que era da dona Edna Correia Deus Valente, lá da Bahia, uma senhora fantástica. Ela tanto fez que conseguiu fazer a cidade dos velhinhos, quem doou... Vocês nunca viram na televisão a irmã Maria Lígia pedir em chá? Uma pernabucaninha danada para fazer discurso. Opa que a mulherzinha falava bem.
P/1 – E ela que era...
R – Ela era garfinho de ouro do almoço com as estrelas na Tupi. E eu sei que dona Edna conseguiu, pediu a família, como é que chama, agora me escapou... são industriais, nordantes doaram pedaço da chácara deles lá em Itaquera. Agora tá feio porque fizemos um conjunto da...
P/1 – Cohab.
R – Da Cohab. Mas era uma beleza, me fazia lembrar os campos lá na Suíça, que só tinha... só casinha daqui, dali. Agora tem o metrô até Itaquera e tem um ônibus que passa circular, que deixa a gente na porta. Lá na cidade dos velhinhos, faz 4 ou 5 anos que inaugurou o pavilhão de geriatria, o primeiro na América do Sul. A irmã Maria Luiza fez um senhor discurso, uma beleza. Mas, voltando. A liga do bate-papo, a dona Edna ganhava... Naquele tempo as fábricas davam muito retalho, as casas de comércio também, tudo, agora não, agora a gente tem que comprar Retalho para fazer os trabalhos... Então tinha pedaço de cambraia de algodão, de linho, de tudo, mas fazer o que? Não dá para fazer lençol nada disso, a Lizinha levava pra Edite e a Edith começou a bordar. Vocês vão ganhar uma lembrancinha lá da Liga do Bate-papo, o nosso bazar este ano deu 7 milhões numa tarde.
P/1 – E que dia a senhora vai na Liga do Bate-papo?
R – Segunda feira. Um dia na casa da Edith, outro dia na casa da Flora Teixeira, uma das companheiras. As duas que são as chefonas, ninguém manda em ninguém. Cada um faz o que sabe fazer. E tem outra. É proibido discutir religião, doença e política.
P/1 – (risos).
R – A Edith encrespa direto. É um amor de criatura. Ela está com 83 anos, mas tem uma energia que Deus me livre ter um fôlego daqueles.
P/1 – Dona Olímpia, o que a senhora acha que se transformou na sua vida?
R – O que?
P/1 – O que a senhora acha que mais se transformou ao longo da sua vida?
R – Transformou o que? Eu nunca tentei ser afogada. Nunca quebrei a cabeça. E depois de moça, estou vivendo. Até quando Deus quiser.
P/1 – A senhora tem algum sonho, dona Olímpia?
R – Não agora já se apagou o sonho. Já, já.
P/1 – Porque a senhora já realizou?
R – Bom, me realizaram, me vacinaram.
P/1 – (risos)
R – Com 45 dias, eu era para nascer em Portugal, mas meu irmão ficou doente e papai adiou a viagem. Mamãe acabou a dieta, embarcamos. Eu tinha ainda... outro dia, faz tempo, eu rasguei o meu diploma. Era o nome de uma flor do mar. Tudo escrito... escrevinhado em alemão. Me arrependo agora de ter rasgado isso. E fomos lá, para Santa Trilha, que são as fotografias que você viu. Depois voltamos para cá, nasceram, os manecos, papai morreu, aí fomos viajar.
P/1 – E porque os sonhos da senhora se acabaram?
R – Ah, porque agora eu estou com 84 e meio, o que eu vou fazer? Se tivesse... bom, eu estou comprando arsênico. Se eu tirar, vocês vão me ver. Vai ser muito legal.
P/1 – (risos)
R – A minha irmã sim tinha uma sorte louca. Nós estávamos em San Rafaelo, uma beleza de lugar, à beira do Mediterrâneo entre Toulon e Cara, uma baía que é uma verdadeira piscina, lindo, lindo. Lá tem muita terra vermelha e a vegetação chega até o mar. E esse lugar tem um bairro que tem residências, vivendas de um mundo de figurões célebres. Tem o Gallieni, o Marechal de France, tem uma porção de artistas da Comedy France e esses amigos moravam na casa de um artista da Comedy France. Essas fotografias que eu estou procurando para mostrar. Nós fomos pescar o ouriço-do-mar, uma trabalheira que só. Quer coisa complicada, vai nessa. Corta uma taquara, enfia uma rolha e amarra pra ele não fechar. Aí a gente vai cutucar o bichinho lá, vai de canoa com uma tesoura velha para abrir toda, e leva limão. O que tem lá dentro para comer deste tamanho (risos). É mais pela farra do que por outra coisa, mas é divertido. Lá é lindo, aquelas praias, uma coisa maravilhosa. Não digo que nós não temos, temos, mas é outro jeito.
P/1 – E dona Olímpia, o que a senhora gostaria de dizer para as gerações futuras, para as pessoas mais novas?
R – Para os mais novos?
P/1 – É.
R – Estudem.
P/1 – É?
R – Tenham ambição na vida, mas não é ambição de querer trepar nos outros, a ser gente. Eu não contei para vocês, mamãe era pequenininha, praticamente filha única, ela tinha um irmão, mas naquele tempo era menino para um lado e menina para o outro. Tinha minha vó, a criadagem e mamãe só. Vivia aquelas formigas... apareceu um casal francês, do sul da França, que abriu uma escolinha, essas que estão abrindo agora. Do prézinho, jardim de infância e tudo. Aí o papai matriculou mamãe. Ela falava correntemente francês com o sotaque do sul da França, que é meio cantado.
P/1 – E a senhora acha importante ter deixado esse depoimento registrado pra gente?
R – Ué... se dá prazer a vocês... É uma colaboração.
P/1 – É. E o que a senhora gostaria que fosse feito?
R – Que não fosse exibido.
P/1 – Como? (risos)
R – Ah, não. Você prometeu.
P/1 – Eu? Prometi?
R – Se cair na mão de certa gente conhecida minha eu fico pelada.
P/1 – (risos)
R – É sim, porque tem muita gente futricando na minha vida, muita gente incomodada porque moro sozinha. Uma companheira morreu, era minha irmã. A Carlota foi para Amparo e ficou doente, o médico não quer que ela venha para São Paulo, porque, já pensou, uma pessoa que durante um ano fez 4 transfusões de sangue, dá para morar em São Paulo? E ela é mais baixa que eu. Quer dizer que é táxi pra que te quero, o preço que tá agora, divertido. Ela tem casa lá e mora com essa sobrinha que cresceu conosco.
P/1 – Ta bom, obrigada dona Olímpia.
R – Sabe que quando você ligou lá em casa eu estava futricando numa caixa de sapato que é das excursões que nós fizemos em 78 mais ou menos, que nós fomos para o sul. Que passeio gostoso. Apesar do calorão lá, saímos dia 22 de dezembro e voltamos dia 2 de janeiro, porque nenhuma das quatro estava disposta a passar as festas aqui, aqui em Sampaio é muito choco. Então fomos pela Gastour. Foi ótimo, essas fotografias que eu estava querendo mostrar para você, achei uma judiação. Nós temos aqui no Brasil, mas não tem. Falam de turismo, turismo aqui é só para depenar o próximo, porque nós fomos à Foz do Iguaçu, e a que organizava essa excursão nos levou ao hotel bonitinho lá em Foz do Iguaçu, mas longe da cidade. Mas beleza, tinha uma organização que eu vou contar, caricatura.
P/1 – Então a senhora procura essas fotos.
R – Hum?
P/1 – A senhora procura essas fotos.
R – É isso que eu estava ciscando, mas não dá fôlego porque naquele meu almoxarifado não da. Eu não acho. Não acho as minhas coisas. Porque tive que mudar para cá, o apartamento pintado como você viu. Só isso, minha sobrinha catou minha chave, a mulher do Zé Roberto, meu sobrinho, essa que é Macedo Soares, a Maria Emilia, tá lá em Paris. Ela catou minha chave, arranjou pintor e mandou pintar, não achou tinta do jeito que eu queria, mas pelo menos tá limpo. Mas tá tudo quebrado. Vou ter que trocar tudo, todas as coisas da torneira do banheiro. A cozinha também está em petição de miséria. Esse apartamento tem mais de 40 anos.
P - Dona Olímpia, obrigada pelo depoimento.
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