A Terra Treme
Por Angelo Brás Fernandes Callou
Se o cinema é uma forma de conhecimento, como sugere Marc Vernet, Luchino Visconti (1906-1976) é um grande mestre. Todos os admiradores da sétima arte têm predileção por algum dos 17 filmes de ficção deste diretor italiano, projetados na história do cinema mundial.
Há os que se curvam à fase neorrealista do cineasta, isto é, a uma estética cinematográfica marcada por um realismo social à flor da pele, pelo desalento e dor, com mesclas de esperança, em geral inglórias. Numa chave ideológica, portanto, que contraria frontalmente a estética fascista do herói, do mito, da grande arte nacional heroica, tão recorrente no Brasil de agora, no governo, nas instituições, entre os artistas, entre os colegas de profissão, na via pública, no seio familiar. Nesta vertente está o emblemático Obsessão (1943) - pioneiro, por assim dizer, do neorrealismo no cinema italiano -, A Terra Treme (1948), Belíssima(1951) e, em certa medida, Rocco e seus Irmãos (1960).
Outros admiradores se prendem à chamada fase decadentista de Visconti, caracterizada, entre outros aspectos, como se refere Luciana Costa, pela emergência do mau, em detrimento do bem, pela descrença nas instituições e no próprio homem, abrindo as comportas, penso eu, para a solidão, o desvario e a depressão. São obras-primas dessa fase O Leopardo (1963), Os Deuses Malditos (1969), Morte em Veneza (1971), Violência e Paixão (1974). Há, ainda, os que são aficionados por toda a filmografia do diretor milanês. Vejo-me entre eles.
Com algum esforço, consigo uma vaga no curso Luchino Visconti, do Neorrealismo ao Decadentismo, promovido pelo Cinesesc Augusta, São Paulo, ano passado, sob a responsabilidade do professor e crítico de cinema Fernando Brito. Oportunidade rara, porque coincide com a Retensorospectiva Luchino Visconti, cujos filmes projetados vieram diretamente da Cinemateca Italiana para a tela do Cinesesc....
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A Terra Treme
Por Angelo Brás Fernandes Callou
Se o cinema é uma forma de conhecimento, como sugere Marc Vernet, Luchino Visconti (1906-1976) é um grande mestre. Todos os admiradores da sétima arte têm predileção por algum dos 17 filmes de ficção deste diretor italiano, projetados na história do cinema mundial.
Há os que se curvam à fase neorrealista do cineasta, isto é, a uma estética cinematográfica marcada por um realismo social à flor da pele, pelo desalento e dor, com mesclas de esperança, em geral inglórias. Numa chave ideológica, portanto, que contraria frontalmente a estética fascista do herói, do mito, da grande arte nacional heroica, tão recorrente no Brasil de agora, no governo, nas instituições, entre os artistas, entre os colegas de profissão, na via pública, no seio familiar. Nesta vertente está o emblemático Obsessão (1943) - pioneiro, por assim dizer, do neorrealismo no cinema italiano -, A Terra Treme (1948), Belíssima(1951) e, em certa medida, Rocco e seus Irmãos (1960).
Outros admiradores se prendem à chamada fase decadentista de Visconti, caracterizada, entre outros aspectos, como se refere Luciana Costa, pela emergência do mau, em detrimento do bem, pela descrença nas instituições e no próprio homem, abrindo as comportas, penso eu, para a solidão, o desvario e a depressão. São obras-primas dessa fase O Leopardo (1963), Os Deuses Malditos (1969), Morte em Veneza (1971), Violência e Paixão (1974). Há, ainda, os que são aficionados por toda a filmografia do diretor milanês. Vejo-me entre eles.
Com algum esforço, consigo uma vaga no curso Luchino Visconti, do Neorrealismo ao Decadentismo, promovido pelo Cinesesc Augusta, São Paulo, ano passado, sob a responsabilidade do professor e crítico de cinema Fernando Brito. Oportunidade rara, porque coincide com a Retensorospectiva Luchino Visconti, cujos filmes projetados vieram diretamente da Cinemateca Italiana para a tela do Cinesesc. Assim, de dia, reassisto aos filmes; à noite, volto a Visconti nas aulas. Não há como negar, minhas últimas férias foram tomadas pelo cinema de Luchino Visconti.
Nascido no meio da nata artístico-cultural, com a qual conviveu no palácio de seus pais, na Via Cerva (vizinho ao Scala de Milão), o que tem a dizer o conde Visconti, rico, culto, aristocrata, comunista católico – o Conde Vermelho (il Conte Rosso, como era conhecido) – , homossexual assumido, em tempos sombrios do fascismo de Mussolini? Ou melhor, o que se aprende com o cinema viscontiano?
Aprende-se sobre o sublime, como já me referi em outro lugar. Sublime, no sentido atribuído por Kant, segundo Alexandra de Almeida, que o distingue do belo. Isto é, enquanto o belo emana da imaginação, em comum acordo com a aptidão natural de cada um, do prazer da contemplação, provocada pela imagem de um objeto (de arte, uma paisagem, uma lua cheia), o sublime, ao contrário, afronta, interpela a imaginação. Perturba. Causa admiração, espanto e até medo. Diz Kant, por meio de Almeida: “... o belo encanta, o sublime comove.”
É comovente assistir aos filmes de Visconti. Admirável é a compulsão deste diretor pelos detalhes no décor das cenas: as joias (verdadeiras) usadas pela atriz Claudia Cardinale, em O Leopardo; as obras de artistas consagrados emparedadas em Violência e Paixão; o perlage do champanhe na taça, em Ludwig (1973), cena repetida diversas vezes até atender à estética de Visconti; os “cenários” reais, em A Terra Treme, a casa, a comunidade e os atores pescadores e suas famílias, na impactante tragédia social na pesca de Aci Trezza, na Sicília.
Em tempos tão difíceis como os de agora, assistir ou reassistir aos filmes de Luchino Visconti é um aprendizado sobre os dramas humanos, o sentido da vida e de nós mesmos na sociedade do consumo e do desvario político exacerbado. Nessas longas horas no casulo, é sublime perceber a lucidez do príncipe Fabrizio di Salina sobre si e a sociedade circundante, de 1860, diante da ascensão da burguesia na Itália, em O Leopardo, Palma de Ouro (1963). É sublime Violência e Paixão pela afronta de duas realidades vividas em um mesmo condomínio, um professor aposentado, em completa solidão, em meio a obras de arte e insígnias perdidas no tempo e, no andar de cima, a vulgaridade de uma família burguesa emergente. Vidas que acabam se entrecruzando, na miséria subjetiva dos personagens.
Sublime, enfim, é a força e a dignidade de um pescador em lutar sozinho contra a exploração de seu trabalho pelos atravessadores de pescado em A Terra Treme. O insucesso desse herói-negativo, como desfecho, nos interpela sobre o sentido do individual, quando a luta é coletiva.
Fique em casa. Assista a filmes!
Recife, Pina, 22 de março de 2020.
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