P/1 – Só pra registrar, fala pra mim o seu nome completo, local de nascimento e a data.
R – José Lins Guglielmi. Nasci em Lins, em 18 de outubro de 36, mas fui registrado em São Paulo, dia 19 de dezembro de 36, então, legalmente eu sou do dia 19 de dezembro de 36, nascido em São Paulo, só que eu nasci em Lins. A minha mãe estava lá há uns dois anos e foi pra Lins exatamente porque meu pai precisava de uma zona quente pra tratar de uma pleura que ele teve e que aqui em São Paulo, como o clima era bastante úmido por causa da garoa, do frio de São Paulo, foi recomendado ele se afastar. E aí teve um patrício nosso, que chama Vitor L’Abbate que tinha máquina de café em Lins e convidou meu pai pra ir pra lá cuidar das máquinas de café dele em Lins, foi quando eu nasci. Depois de sete meses meu pai já estava recuperado, veio com a família pra São Paulo e a gente então começou tudo de novo aqui em São Paulo, em 1937.
P/1 – E o que é uma pleura?
R – A pleura é uma doença pulmonar que não é uma doença grave, nem contagiosa, mas é uma doença que precisa ser tratada. E o clima frio prejudicava bastante. É que nem a pessoa ter bronquite e enfrentar um clima frio. Foi por isso que ele foi pra Lins, mais pra se tratar, porque lá é calor direto, é zona norte de São Paulo. Depois a gente veio pra cá e começou tudo de novo. Essa doença fez com que meu pai ficasse afastado em São Paulo uns dois anos ou mais até, impossibilitado até de trabalhar. Depois, por causa de um bom médico que diagnosticou a doença, recomendou um clima quente, foi pra esse clima quente e voltou depois de dois anos e pouco restabelecido. E aí nunca mais ele teve problema. Faleceu depois, 40 anos mais tarde.
P/1 – Agora que você está falando do seu pai, vamos falar deles então. Qual o nome do seu pai e onde ele nasceu?
R – Ele nasceu em Polignano a Mare, na Itália dia 25 de janeiro de 1896 e faleceu dia 16 de novembro de 1975.
P/1 – E qual era o nome inteiro dele?
R – Paschoal Guglielmi.
P/1 – E ele contava pra você como era Polignano, com que era a vida dele na Itália, o que fazia?
R – Na realidade meu pai veio adolescente, ele teve uma infelicidade de perder o pai e a mãe lá. Eles eram seis irmãos, três vieram pra São Paulo e três ficaram na Itália.
P/1 – Seus avós morreram como?
R – Na realidade eles tiveram algum problema de ordem sentimental lá, ou de desgosto. Porque lá de fato chegou um tempo no começo do século 1900 que a Itália, não é que se passava fome nem nada, mas lá não tinha o que fazer. Então aqui tinha muito o que ser feito. Então eles vieram pra cá, meu pai veio jovem pra cá, com 12 ou 13 anos de idade. Ele foi então aprender um ofício no Liceu de Artes e Ofícios de São Paulo e depois ele mexeu com hidráulica. E graças à hidráulica ele conseguiu ter uma família de 11 filhos, que morreram dois e ficaram nove. E com esses nove a gente passou. Agora só resta eu e um irmão caçula, os demais foram embora.
P/1 – O seu pai contou pra você como foi a viagem dele pra cá, pro Brasil?
R – Não. Ele veio de navio, naturalmente, como todos vieram de navio. Chegando aqui ficaram na casa de parentes que acolheram ele, meu pai era órfão. Mas ele não comentou. Na realidade as passagens do meu pai na Itália, ele veio muito menino, com 12 anos, não tinha muita história, a história dele foi aqui no Brasil, não foi na Itália. Agora, tem muito italiano aqui que veio com 30, 40, 50 anos, aí claro, tem muita história pra contar. Minha mãe, por exemplo, veio muito menina pra cá também. Quer dizer, a história deles é brasileira, por isso é que no fundo, embora a gente tenha sangue 100% italiano eu sou 100% brasileiro, porque a minha história é brasileira. Se você me contar qualquer coisa com relação ao Brasil a gente pode te detalhar, porque de fato a nossa história foi aqui.
P/1 – Então o seu pai veio pra cá e ficou em que bairro?
R – Ele ficou aqui no Brás mesmo, sempre foi nessa zona aqui. Porque antigamente aqui a gente reunia o pessoal da Puglia, desse lugar que chama Polignano a Mare, de Bari, reunido até nessas adjacências desse bairro, a rua Benjamim de Oliveira, rua da Alfândega, rua Polignano a Mare até guarda o nome da cidade que eles nasceram, antigamente chamava-se Álvares de Azevedo e depois, em homenagem aos polianeses ficou chamado Polignano a Mare. A rua Assunção. Então aqui tinha a maior parte barês e alguns espanhóis, alguns napolitanos, mas a maior parte mesmo foi barenses aqui.
P/1 – E a sua mãe nasceu onde?
R – Minha mãe nasceu também em Polignano a Mare. Ela veio aqui com a família dela já constituída, já fizeram a sua vida aqui, diferente do meu pai. O meu pai veio como órfão, a minha mãe não, ela veio com a família dela inteira. Aí casaram depois que ficaram adultos, né?
P/1 – Qual o nome dela?
R – Angelina Caruso Guglielmi.
P/1 – E a família dela fazia o quê?
R – A família dela aqui, na realidade eles eram comerciantes também, na Itália minha avó por parte de mãe mexia mais com negócio de carnes e o pai, por exemplo, mexia com comércio exterior na Itália.
P/1 – Ah, é?
R – Ele importava produto.
P/1 – Então o comércio já estava sempre na família.
R – O comércio estava sempre enraizado com ele. Mas o meu pai não foi comerciante, ele foi mais um profissional da área hidráulica, né, que ele aprendeu no Liceu de Artes e Ofícios.
P/1 – Você sabe como seus pais se conheceram? Ele contou essa história pra você?
R – Na realidade quando meu pai veio, ele veio morar praticamente na... porque antigamente existia muito disso aqui, os que eram conhecidos moravam juntos, né? Antigamente as construções eram feitas aí de diversas suítes, diversos dormitórios, era uma coisa mais... existia as casas, existia também aquele conglomerado de casas num edifício só, igual um prédio, só que eram casas de um ou dois pavimentos que moravam cinco, dez famílias. Então a família da minha mãe morava numa casa e meu pai e os irmãos foram morar com ele, moraram juntos um determinado tempo.
P/1 – Então ele fez esse curso de hidráulica e foi trabalhar...
R – Na realidade ele começou a exercer a profissão dele, ele teve uma oficina aí na rua do Gasômetro, junto com um sócio, até em 1932 ele já tinha alguns anos de casado, ele estava muito bem de vida. Imagina que ele teve um Chevrolet 1932 naquele tempo, o que era um luxo. Mas em 33 ele ficou doente. Aí na rua do Gasômetro o meu pai com o sócio dele tinham 27 ou 28 empregados já, naquele tempo, isso era muito. Então ele fazia, por exemplo, ele fazia algum serviço como...
PAUSA
P/1 – Você estava falando do emprego do seu pai, né? Que ele tinha as oficinas e ficou doente.
R – Então ele veio de Lins, ele teve uma oficina boa aqui, já estava em pleno andamento. Mas daí ele teve que ir depois para outro lugar, com uma oficina menor, bem menor do que tinha, já não tinha Chevrolet 32, nem nada (risos), porque realmente ele ficou doente quase três anos, então acabou com as economias dele. Mas aí os filhos já estavam maiores, todo mundo começou a trabalhar, todo mundo ajudou de um lado ou do outro e as coisas depois se restabeleceram a partir de... o retorno dele de Lins foi em 37, as coisas se restabeleceram a partir de 1946, 47, depois que os filhos já estavam todos adultos, a maior parte.
P/1 – Você nasceu em que ano mesmo? Desculpa.
R – Eu nasci em 36.
P/1 – E você é o filho mais velho, mais novo?
R – Não, eu sou o penúltimo, tem eu e mais um caçula. Eu sou da segunda geração de filho dele, que ele teve 11 filhos, então eu nasci na segunda geração. E da segunda geração éramos cinco, então eu fui o quarto da escala dos cinco, tem eu e mais um caçula. Quer dizer, na realidade não foi bem assim. Teve um que morreu, ele era mais novo que o caçula, então eu era o terceiro, tem o meu irmão Paschoal, o quarto, e o último foi o caçula que morreu.
P/1 – E você nasceu no hospital ou você nasceu em casa?
R – Não, antigamente era em casa mesmo.
P/1 – Você nasceu onde?
R – Eu nasci em Lins, aquilo que eu te falei, a gente nasceu no meio de uma fábrica de beneficiamento de café. Tinha lá uma casinha, minha mãe tem os filhos lá dentro, tal e eu nasci lá. E naquele tempo tinha parteira, tudo, que assistia. E tinha médico também, mas não na quantidade que tem hoje.
P/1 – Então você cresceu aqui em São Paulo, mas você cresceu no Brás, então.
R – Eu cresci aqui no Brás. Eu saí do Brás quando eu casei, com 24 anos e meio.
P/1 – Ah, é? Ficou muito tempo no Brás então.
R – Eu fiquei bastante tempo no Brás, eu morei aqui a vida toda.
P/1 – E em que rua você morou aqui?
R – Eu morei aqui na rua Benjamim de Oliveira, 197. Depois o meu pai conseguiu comprar uma casa, reformou, nós passamos então pra mesma Benjamim de Oliveira, 313.
P/1 – Nesse 197 você ficou até que idade?
R – Onde?
P/1 – Na Benjamim de Oliveira, 197.
R – Eu fiquei até janeiro de 52 e nós mudamos então pra 313 em janeiro de 1952. E fiquei até casar, até 1961.
P/1 – Vamos falar um pouco dessa sua infância no Brás. Como é que foi crescer aqui nessa bairro, como era ele?
R – Ah, aqui na realidade não tinha o movimento que tem, quando eu era criança. O que predominava era carroça, carroça até de quatro cavalos, essas coisas todas. Quando eu tinha dois, três, cinco anos de idade. Depois apareceu algum caminhãozinho aí, até 46, 47, era uma boa parte de carroças, depois foi sendo trocado por algum caminhãozinho mais antigo. E depois é que vieram os caminhões um pouco maiores e aí começou um movimento forte, a partir de 1950. O Brasil começou a crescer forte mesmo depois de 1950, até lá era um crescimento pequeno. Mas São Paulo era um estado extremamente organizado já em 1950, imagina que aqui na zona cerealista, o que deu um grande incentivo para a zona cerealista foi a estação de ferro aqui, que é o terminal do Pari, que era Santos-Jundiaí, mas o terminal era aqui no Pari. E do Pari vinha, antigamente existia uma rede de estradas de ferro importante em São Paulo, muito importante, a tal ponto que aqui era uma zona cerealista e os produtos que hoje chegam de caminhão, antigamente era tudo de estrada de ferro. Aqui e aqui, cem metros daqui. Em linha reta, talvez, cem metros mesmo. O que acontece? Depois com essa corrupção violenta que não foi inventada pelo Lula nem nada, isso já vem vindo de muitos anos, acabaram com a estrada de ferro, principalmente as fábricas de caminhões que compraram deus e todo mundo aí pra desativar a estrada de ferro e incentivar a estrada de rodagem.
PAUSA
P/1 – Você estava falando da estrada de ferro, que estava sendo substituída por...
R – É, depois eles substituíram por estradas de rodagem. Mas isso aqui funcionava que era uma beleza. Imagina que todo mundo que recebia mercadoria, ou de São José do Rio Preto, ou de Bauru, ou de Santos, terminava tudo aqui. Então você ia lá, pagava o conhecimento e retirava a mercadoria. Claro, isso daí durou bastante tempo, até desativarem a ferrovia, aí transformou a estrada de ferro em estrada de rodagem. Quer dizer, isso aparentemente foi um progresso, mas na minha opinião foi um grande regresso porque nós, enquanto todo mundo estava incentivando estrada de ferro no Brasil, aqui estavam desativando, por aí você vê.
P/1 – Você se lembra mais ou menos em que ano que foi que desativou?
R – Eu acho que foi no comecinho de 1950.
P/1 – Então você viu bastante esse trem vindo.
R – Até carvão guza chegava aqui, carregava no trenzinho e ia descarregar na companhia de gás, sabe onde é? Em frente à Prefeitura? É lá que se produzia o gás de cozinha pra ser distribuído pela canalização. Porque antigamente não existia gás de botijão, ou se existia eu não conhecia. O que existia era o gás que era distribuído aí pela Companhia Paulista de Gás. O carvão mineral vinha talvez de Santa Catarina, descarregava aqui e o trenzinho pegava daqui, atravessava toda a Santa Rosa. Eu sei que a gente era criança e ficava chocando o trenzinho lá (risos). E descarregava o carvão lá, onde produzia o gás pra distribuir em toda a região aqui do Brás.
P/1 – E como é que as pessoas faziam pra pegar as coisas lá de dentro do trem? Como é que era isso?
R – Bom, aqui tinha um armazém grande, o pessoal descarregava do trem e tinha seus lotes, como faz um porto de Santos, por exemplo. Hoje é tudo container, mas antigamente as cargas descarregavam do navio, iam pros armazéns, os importadores chegavam e retiravam o produto que correspondia. Aqui era a mesma coisa, chegava arroz, feijão, banha, sabão e o pessoal retirava. Então pagava o frete, retirava e levava pras suas necessidades. São Paulo era bem restrito, não é a imensidão que é hoje. Zona Leste nem existia, imagina. Zona Sul então nem falava. Hoje em cada lugar você tem um Ceagesp. Antigamente era um Ceagesp aqui em Pinheiros e era só ele, depois é que se formou muitos Ceagesps, tá?
P/1 – Me fala um pouquinho mais sobre esse comércio de São Paulo. Tinha a zona cerealista aqui, o Ceagesp só em Pinheiros, é isso?
R – Na realidade tinha o Mercado da Lapa. Todo bairro tinha o seu mercado, pequeno, grande, mas todo tinha um pequeno mercado, ou talvez um mercado mais expressivo, como Pinheiros, como da Lapa. O Mercado de Santos também tinha o seu mercado. É claro que as coisas depois mudaram bastante, né? Hoje essa zona cerealista nossa, você tinha aí, por exemplo, toda ela constituída de gente que recebia a mercadoria do interior, alguns até importavam e revendiam aqui na zona cerealista pro Brasil inteiro quase, porque embora tivesse o mercado de Pinheiros, mas o pessoal vinha se abastecer aqui na zona cerealista. Aqui foi o primeiro centro importante de alimentação no Brasil. Não teve outro tão importante como este.
P/1 – Vamos chegar lá, a gente vai voltar pra esse assunto. Mas fala como era essa casa que você cresceu na Benjamim de Oliveira, 197?
R – Lá você tinha a oficina do meu pai na frente, atrás tinha quatro quartinhos onde a gente dividia 11 pessoas.
P/1 – Quanta gente!
R – Éramos 11, nove irmãos, meu pai e minha mãe, dividido em quatro quartinhos. E na frente tinha a oficina do meu pai. E aí eu passei uma boa parte da minha infância. Mas foi muito bom sim, antigamente a colônia polignanesa era muito unida. Então tinha a festa de São Vito, foi uma festa importante, ainda hoje tem. Existia uma confraternização muito grande, mas o pessoal começou a ganhar um dinheirinho e começou ir embora daqui. Então hoje aqui praticamente ninguém mora mais. Hoje quem mora é o pessoal que veio de fora, tudo. E mesmo como bairro já não é mais saudável como era antigamente. Muita sujeira na rua, tudo, antigamente não tinha nada disso, o pessoal era muito mais politizado, muito mais higienizado, ninguém jogava coisa fora. As coisas mudaram muito. São Paulo ficou muito grande, recebeu gente de tudo quanto é lugar e cresceu de uma maneira violenta, que é até difícil de controlar. Até que o que foi feito foi bem feito, né, porque não é fácil controlar tanta gente que crescia violentamente.
P/1 – Mas me fala um pouquinho como era o Brás nessa época. Por exemplo, você brincava, brincava na rua, como é que era?
R – O nosso campo de futebol era na rua mesmo. As crianças ficavam na rua, não tinha esse negócio de babá, não tinha nada disso. A criança era que nem passarinho quando sai de um ninho, tem que voar, e assim eram as crianças antigamente. E foi muito saudável. E a gente tinha a sorte de ter o Parque Dom Pedro II aqui perto também, isso ajudou bastante a nossa infância, quando a gente queria um verde estava aí pertinho. O rio Tamanduateí mesmo, tinha algum lambari naquele tempo. Hoje acabou, hoje realmente o rio não existe mais.
P/1 – Você ia no Parque Dom Pedro?
R – Todos nós íamos no Parque Dom Pedro. Sempre tinha um ou outro parque infantil lá que se armava, o circo, o Parque Shangai, enfim, sempre teve eventos lá. Depois que fizeram esse Palácio das Indústrias aí também, isso enfeitou bem a região, tudo.
P/1 – E você nadava no Tamanduateí também?
R – Não, Tamanduateí infelizmente não. Mas no rio Tietê sim, nos coxos dos Corinthians, o coxo do Esperia, que antigamente tinha coxo. Porque a água que vinha do interior era limpa. Quer dizer, se bem que o Tietê nasce aqui e vai pro interior, né? A água era limpa, relativamente limpa. Depois é que ficou sujo. O rio Tietê sempre foi um rio perigoso de muita corrente, por isso que ninguém nadava.
P/1 – Mas não por causa de poluição, mas pela correnteza.
R – Eu acredito que não por causa de poluição porque não era tão sujo assim. É verdade que ele nunca foi um rio limpo. Como também mesmo no tempo do Corinthians, nunca foi um rio muito limpo. Mas não era tão sujo que nem é hoje.
P/1 – E você se lembra de ir no Mercado Municipal na infância?
R – Claro! Eu frequento o Mercado Municipal desde que eu tinha três anos de idade. Eu vou fazer 80 anos, então faz 77 anos quase que eu frequento o Municipal. É claro que antigamente era outra coisa, né?
P/1 – Como é que era?
R – Hoje você tem aí restaurante pra tudo quanto é lado. Antigamente o que menos tinha era restaurante. Você tinha um ou outro bar que vendia uma coxinha, uma empadinha e só. O que tinha mesmo era banca de comércio, de fruta, de pescado. De fato esse Mercado aí foi inaugurado em 1933. Ele sempre teve uma personalidade muito grande no contexto do Brás. Porque pra zona cerealista ela nasceu antes do Mercadão. E o Mercadão talvez foi situado mais em função da própria zona cerealista.
P/1 – Como é essa relação da zona cerealista com o Mercadão?
R – Olha, o pessoal vinha se suprir aqui na zona cerealista pra comprar seus secos e molhados. Só pescado que vinha do porto de Santos, essa questão de aves, cabritos, carnes que vinham do interior também. Mas ele teve uma posição marcante muito importante no passado. Hoje é mais uma atração turística, né?
P/1 – Mas antigamente tinha uma importância maior pra zona cerealista?
R – Não, tinha, muita gente importante saiu do Mercado. Assim como empresários saíram do Mercado, saíram aqui da rua Santa Rosa, da rua Paula Souza também, que a rua Paula Souza não deixa de ser zona cerealista também. Eu mesmo trabalhei dos 13 anos aos 17 anos numa empresa cerealista aí do lado da Paula Souza. E foi aí que eu aprendi a mexer com comércio exterior.
P/1 – A gente vai chegar lá ainda. Mas antes me fala do que mais você brincava, o que você fazia pra se divertir na infância nessa época?
R – Era futebol na rua só. Futebol na rua. Grupo Escolar Romão Puiggari no Brás. Depois Escola Técnica de Comércio 30 de outubro. É isso aí. E claro, a gente com uma certa idade já começava a procurar um trabalho pra gente fazer pra ganhar um dinheirinho extra. Diferente de agora que a criança precisa estudar. Quer dizer, depende, se a criança quer trabalhar não pode? Antigamente se a criança queria trabalhar ela podia, por que não?
P/1 – Antes de chegar ao trabalho eu queria perguntar, você foi para o Romão Puiggari?
R – Isso, a gente estudou o primário no Grupo Escolar Romão Puiggari na Avenida Rangel Pestana. Inclusive nessa oficininha do meu pai eu fazia os papagaios pra vender, fazia balão pra vender, fazia patinete (risos). De vez em quando meu pai ia fazer uns serviços de consertar máquina disso, máquina daquilo, então sempre sobravam rolimãs, sabe o rolimã? Para eu fazer um carrinho pra andar. A infância foi muito bacana.
P/1 – E você sempre com seus irmãos ou vocês não andavam juntos?
R – Não, a gente andava com meus irmãos, mas mais com os amigos da rua, né? Que era amigo de tudo quanto é lado, cada esquina que você vê aí tinha um bando de criança, imagina quantas crianças que tinha. Porque tinha muita casa por aí. É diferente, que agora você não vê casa nenhuma. Você vê apartamentos desse tipo aí tudo meio vazio. Mas antigamente era criança de tudo quanto é lado, cada esquininha dessa era uma criança. A minha esquina, por exemplo, foi o Infantil Garoto do Brás, a gente teve aí umas coisas interessantes porque a gente tinha time de futebol, ia na 25 de março comprar camisa pra gente jogar, começou a jogar na várzea pra sair da rua. A várzea nossa era aqui no Ipiranga, pro lado do rio Tamanduateí, íamos até lá a pé, é mais ou menos uns três quilômetros até lá.
P/1 – Qual o nome desse grupo?
R – A nossa turminha era Infantil Garoto do Brás. E cada esquina tinha, tinha o São Vito também, da igreja São Vito, esse era um pessoal mais profissional, mais craque, que aí saíram alguns craques de futebol também, como o Rafael do Corinthians, o Nardo do Corinthians, o Dilvo do Corinthians, o Nicolino do Corinthians. O Nicolino foi meu cunhado, ele chegou a jogar no Corinthians no aspirante, era um grande ponta esquerda. Mas tinha que trabalhar, então, naquele tempo futebol não dava nada (risos).
P/1 – E você torce para algum time?
R – Eu sou palmeirense por causa da origem também. E eu não deixo de gostar do Corinthians porque quando era garoto eu ia nadar no Corinthians, lá (risos). O Palmeiras tinha uma elite que entrava, eu era pobre e no Corinthians entrava quem quisesse, né?
P/1 – Ah, é?
R – Por isso que eu gosto do Corinthians. Mas claro, hoje você pega um palmeirense, quer matar um corintiano ou vice-versa, não é o meu caso. Sou palmeirense, sim, mas eu gosto do Corinthians.
P/1 – E como era a escola, a Romão Puiggari?
R – A escola primária, foi lá que a gente se alfabetizou. Eu me formei, depois eu fui pro ginásio, cheguei até o segundo ginasial, mas aí eu falei pra minha mãe, eu já devia ter uns 12, 13 anos: “Eu não quero mais estudar, eu quero trabahar” “Então tá, já que você quer trabalhar você vai trabalhar”. Fiquei procurando emprego, acho que com 14, 15 anos eu tive seis empregos. Até que eu fui num emprego que eu gostei e aprendi comércio exterior e devo muito pra esse primeiro patrão que a gente teve, chamava Américo Afonso Sobrinho. Ele é da cidade de Sacramento, de Minas Gerais. Era gente muito evoluída pra idade deles. Eu tive a sorte de trabalhar com ele.
P/1 – Que anos foi? Você tinha?
R – Eu comecei a trabalhar em 50 e saí de lá em 54. Que eu já comecei a comercializar alguma coisa, então não podia continuar trabalhando.
P/1 – E nesses anos 50 você falou que tinha a questão do trem, né? O vagão que trazia as coisas.
R – Ah, sim, aqui na estação do Pari, né? A estrada de ferro do Pari.
P/1 – Essa era a principal forma de trazer a mercadoria pra zona cerealista na época?
R – Exatamente, pra ser distribuída aqui na Santa Rosa, na Paula Souza. Enfim, nesses caminhos todos que você vê aqui e que compõem a zona cerealista. Quer dizer, antigamente não era tão extensivo como é agora, antigamente era mais lugar concentrado entre a avenida Mercúrio, Santa Rosa, Polignano a Mare, Assunção, Benjamim de Oliveira. Mendes Caldeira aqui era uma indústria, imagina! Aqui fabricava parafusos, uma grande indústria que fabricava parafuso. Como a Santa Rosa cresceu bastante naqueles anos, eles então desativaram a fábrica de parafusos e lotearam. E aí se fez muitos armazéns. Aí começou, por exemplo, o Atacadão, começou outros grandes cerealistas.
P/1 – E qual era a relação do Matarazzo e a família dele com esse bairro aqui?
R – Ele quando montou a fábrica aqui, a Mariângela, e depois o moinho lá em cima, ele teve necessidade de buscar mão de obra lá fora. E como a Itália precisava, na realidade dispunha dessa mão de obra porque lá não tinha muito o que fazer, ele trouxe muita gente. Mas ele foi um grande empresário. Quando ele trouxe esse pessoal ele fazia muitas casinhas ao redor da fábrica pra acomodar essa gente. Ninguém ficou morando em cortiço, nem nada, pouca gente usou esses alojamentos pra morar, um ou outro caso que tinha.
PAUSA
P/1 – Esse Silva com quem o senhor estava falando é o Aurelino Silva ou não?
R – Não, não é, esse é o Silvio. O Aurelino Soares da Silva é o Negrinho, né? O famoso Negrinho. Esse é uma história também, né?
P/1 – É.
R – Esse veio do Piauí, tem muito. Bom, ele contou a história dele.
P/1 – Contou.
R – Não, mas ele dava mais pra artista do que pra outra coisa. Se bem que foi um grande vendedor desse nosso ramo, um dos melhores vendedores que o ramo teve.
P/1 – Ah, é?
R – Aurelino Soares da Silva.
P/1 – Onde a gente parou? Estava perguntando do trem, da infância, né?
R – Da infância.
P/1 – Então tinha um trem, mas o que se vendia mais de comércio nessa época da sua infância? Você sabia mais ou menos?
R – Era tudo, tudo o que você imagina chegava por trem. Um ou outro caminhão, que naquele tempo não existia grandes caminhões, nem nada. Era o fim da Segunda Guerra Mundial, então a Europa estava toda destruída, o Japão destruído, os Estados Unidos era o único que estava aí dando carta pro mundo todo. Então um ou outro caminhão que chegava, tudo, depois é que começou a industrialização forte, aí já mudou tudo.
P/1 – E você que nasceu em 36, você viveu um pouquinho da Segunda Guerra Mundial? Você sentiu um pouco no cotidiano?
R – A gente sentiu, até tinha blackout algumas vezes. Podia-se imaginar que como o Brasil apoiou os aliados na Segunda Guerra Mundial, podia imaginar que o Brasil pudesse ser invadido também. De vez em quando tocava a sirene pra todo mundo se esconder em algum lugar aí. Era gozado até. Mas nunca houve nada, foi só fogo de palha.
P/1 – Mas tinha uma sirene e vocês saíam correndo?
R – É, saía, todo mundo ficava preocupado, apagavam as luzes. Mas olha, nunca houve nada. Eu acho que foi mais uma prevenção que o governo andou fazendo. Mas isso foi na década de 44, 45, quando acabou a guerra. Eu me lembro que naquele tempo, imagina que pras nossas mães fazerem pão tinha que ir aí na rua Santa Rosa comprar caixa de macarrão que vinha do Uruguai ou da Argentina porque eles não fizeram parte da guerra, então eles tinham muito alimento pra vender. Então a minha mãe comprava aquele macarrão, moía pra fabricar pão. E quando começou assim, a gente acordava de madrugada pra ir nas padarias conseguir um ou dois filões de pão. Foi uma época interessante aquela, viu? O que eu me lembro da Segunda Guerra, no final, foi isso. Aí depois já se normalizou um pouquinho, as coisas foram se acomodando.
P/1 – E vocês ouviam muito rádio nessa época?
R – Era só rádio, não tinha outra coisa, era só rádio. As novelas de rádio, tudo o que se vê na televisão, antes era rádio. As músicas também. A Rádio Bandeirantes era aqui na rua Paula Souza. Quando a gente queria ver algum artista ia até lá, podia entrar qualquer um. Foi muito gostoso. A Panamericana era aqui na rua Direita, aí no centro de São Paulo e por aí vai. A Excelsior era na rua das Palmeiras.
P/1 – E você ia no cinema também?
R – No Glória, aí na rua Gasômetro tinha o Cinema Glória, muito bom. Até o gerente do Glória trabalhava com meu pai na oficina hidráulica. Então a vantagem é que a gente não precisava pagar ingresso (risos). E tinha também o Cine Piratininga aí. Depois a gente foi melhorando de vida, aí já teve o Marrocos, o Metro aí no centro de São Paulo, que antigamente era o Glamour.
P/1 – Vocês assistiam o quê nesses cinemas? O que você se lembra de ter assistido?
R – Ah, filme brasileiro da Vera Cruz e da Atlântida, grandes filmes brasileiros. O filme brasileiro piorou depois, mas naquele tempo era bom. Filme americano, grandes produções americanas, bastante filme italiano também. Bom, tinha de tudo.
P/1 – E você começou a trabalhar com 13 anos, foi isso?
R – Treze anos de idade, é, pra trabalhar pros outros. Antes disso eu já ajudava o meu pai na oficina, né? Eu ia com ele pra ajudar ele, pra fazer um serviço ou outro que ele fazia. Eu sempre gostei de trabalhar.
P/1 – Ah, é?
R – E eu quero terminar assim, trabalhando. Se eu gostasse de pescar talvez eu estaria pescando lá, mas não gosto de pescar, não, meu negócio é trabalhar.
P/1 – Então, seu Guglielmi, o senhor começou a trabalhar nos seus 13 anos, ficou até os 17, é isso?
R – Com 13 anos até 18 anos. Até antes de 13, o meu primeiro emprego foi aí na rua Polignano a Mare tinha um pessoal que fazia caixinha de joia, eu trabalhava lá. Trabalhei pouco tempo lá porque era um trabalho muito ruim, você ficava engolindo serragem o dia todo, depois eu fui procurando outros empregos, acabei trabalhando até na rua Direita, por exemplo, em São Paulo, em fábrica que vendia tecidos pra ajudar. Trabalhei em algum armazém aqui da zona cerealista também, um armazém na zona cerealista de um patrício nosso. Mas o que eu gostei mesmo foi desse cerealista mineiro, que a gente ficou quase quatro anos lá. Aí que eu aprendi a mexer com as coisas.
P/1 – Então me conta mais um pouquinho desse armazém. Qual era o nome dele?
R – Américo Afonso Sobrinho. E tinha o irmão dele, Omar Afonso de Almeida também, advogado. Mas eu gostei muito de trabalhar com essa gente. Essa gente pra mim é, nunca mais os vi também, mas também nunca me saíram da memória, tudo aquilo que a gente é deve pra eles. Também muito retos, faziam as coisas direitinho, não eram esses embrulhões que têm hoje e que sempre tiveram.
P/1 – Como é que era o armazém dele? Descreve para mim como era.
R – Era um armazém tipo esse nosso, um pouco menor, onde ele recebia bastante feijão, recebia arroz, vendia normalmente. Ele mexia com joias também, alguma coisa, era mineiro, pessoal mexia muito com joia e mexia com isso. Vendia, comprava algum brilhante, vendia. Mas o negócio dele mesmo, ele fazia importação, imagina. A família dele era uma família que mexia com leite em Sacramento, então eles foram os primeiros a importar uma linha completa de fabricação de manteiga da Dinamarca. Então talvez foram os pioneiros no Brasil em fazer isso. Eles eram muito evoluídos. Quando eu tinha lá meus 13 anos ele tinha 34, 35 anos, uma coisa assim. Ele casou com 36 anos, eu fui no casamento dele também. É gente muito boa, eu tive muita sorte em cruzar com gente desse tipo.
P/1 – E você entrou fazendo o quê lá?
R – Era office-boy.
P/1 – Mas tem um trabalho de office-boy lá?
R – Tem, claro, você entrega correspondência, vai receber, vai pagar, faz pagamento. Antigamente todos os produtos que entravam no armazém a gente era obrigado a furar na entrada, a gente fazia esse trabalho. Eu vinha, por exemplo, aqui na estação do Pari pra liberar a mercadoria, pra arrumar uma carroça pra carregar.
P/1 – E por que você furava o saco?
R – Pra ver se era aquilo mesmo, se não tinha nada errado, né? Quando fazia alguma coisa diferente tinha que por do lado. Hoje não existe mais disso.
P/1 – E fala pra mim um pouquinho desses trabalhadores que são ajudantes gerais, os chapas.
R – Certo.
P/1 – Você conheceu muitos chapas, como é que é?
R – Teve bastante chapa, toda vida teve. Ainda hoje tem, né? Gente que vem, faz trabalho avulso aí, carrega um pouco aqui, um pouco lá.
P/1 – Sempre foi assim.
R – Isso sempre foi assim. Claro, antes foi muito mais do que hoje. Mas sempre foi. Enquanto tiver a zona cerealista aí e pelo jeito vai ter durante muitos anos, eles vão existir. Isso não é um trabalho desonrado, nem nada, é um trabalho normal como outro qualquer.
P/1 – E você estava de office-boy lá então. Você observava muito seus patrões, você aprendeu como?
R – Vendo. Ele fazia importação e eu via como ele fazia os procedimentos da importação. Isso tudo a gente não aprende num dia e nem num mês. Eu fiquei lá quatro anos até que eu saí de lá um especialista em importação, eu sabia fazer importação como ninguém com 17 anos de idade, imagina.
P/1 – Você aprendeu bastante com eles.
R – Aprendi, aprendi bastante sim.
P/1 – E com 17 anos você foi pra onde?
R – Em 48 a gente queria que meu pai mudasse do ramo de hidráulica, então eu com meu irmão Júlio, principalmente meu irmão mais velho, a gente forçou até meu pai ir buscar um outro ramo. E nós começamos então com uma maquininha de limpar feijão aqui na zona cerealista. Foi a primeira máquina que se instalou na zona cerealista. Eu me lembro que a gente começou com essa maquininha e realmente a gente trabalhava o tempo todo. E gozado, nessa história que eu te contei do meu patrão cerealista lá, eu esqueci de comentar que quando eu fui lá falar do emprego, que na realidade ele queria contratar o irmão mais novo meu, mas ele tinha 11 anos só, eu tinha 13. Então o meu irmão foi perguntar pra minha mãe: “O Américo quer que eu trabalhe lá com ele, eu falei: ‘Puta’, mas a minha mãe falou: ‘Você é pequeno’”. Eu falei, eu vou. Então eu me apresentei lá. Ele perguntou pra mim: “Você estuda?”. Pô, se eu falo pra esse cara que eu não estudo ele não me dá o emprego. Eu então falei que estudava e era fevereiro, eu fui me matricular na Escola Técnica de Comércio 30 de outubro. E por causa dele eu me formei contador, depois de seis anos. Eu saí do segundo ginasial, depois tive mais seis anos de técnico de contabilidade, graças a isso eu me formei contador. Senão ele não me dava o emprego. Então graças a isso a gente formou contador. E, claro, depois desse ínterim, essa maquininha que o meu pai pôs aí de feijão, acabou pondo outra de arroz e acabou tendo mais armazém até, isso fez a nossa família prosperar bastante. E eu comecei a fazer alguma importação também, que eu já aprendi lá.
P/1 – Então seu pai começou no ramo cerealista também.
R – Não. Ele nunca foi cerealista.
P/1 – Só com a máquina.
R – Só prestação de serviço, pra limpar feijão, arroz. Ele foi a primeira câmara de expurgo. Sabe essas câmaras que antigamente expurgava cereais? Ele que fez a primeira, ele já mexia com hidráulica, tudo e pra ele foi fácil fazer isso, de ter uma máquina. Que o pessoal colocava lá, antigamente pro feijão não bichar, o que o pessoal fazia? Pegava banha de porco e passava fora do saco. E por causa da banha, aquela banha protegia um pouco o feijão de caruncho. E depois inventaram a câmara de expurgo, que era feito o expurgo com brometo de etila, é uma substância química que mata os bichos, ou mata as larvas. Então você punha o feijão lá dentro em saco, injetava o gás, o gás depois ia embora através de tubulação que meu pai fazia, e aí você abria a câmara pra esvaziar e o produto já ser expurgado. É isso que ele fazia. Também a gente prestava esse tipo de serviço. Com isso a minha família prosperou bastante. A gente começou a importar, exportar também alguma coisa e aí... Que mais, Lucas?
P/1 – Agora você me fala quem eram os maiores consumidores na zona cerealista nessa época? Quem ia comprar diretamente?
R – Ia mercadoria pro Brasil inteiro. Ia mercadoria pra Goiás, pro Rio de Janeiro, principalmente. Ia mercadoria pro Norte e Nordeste. Porque antigamente não tinha nada, era tudo São Paulo. Ia de cabotagem, ia por Santos, porque tinha uma boa cabotagem. Ia por estrada de ferro, ia por um ou outro caminhão que começou a aparecer na década de 50, pro norte do país.
P/1 – E aqui pra cidade de São Paulo?
R – Pra cidade principalmente, depois já começou se descentralizar, começaram a fazer essas marginais e nessas marginais se formou um centro de distribuição. E aí na realidade se resumiu na zona cerealista em pequenas casas de varejo. Você viu lá, não tem mais a zona cerealista aqui. O que tem na realidade é um centro comercial como outro qualquer, não tem a importância que teve 50, 70, 80, cem anos atrás. Aí sim, foi muito importante. Até na década de 50 teve uma importância boa aqui, depois foi já se disseminando, foi se segregando e hoje não é nem 1% ou 2% do que era antigamente.
P/1 – Agora voltando onde você estava, você começou a importar, né? Você estava falando.
R – Certo.
P/1 – Você foi importar por si próprio, foi importar o quê? Como é que era?
R – A gente importava coisa que o Brasil não produzia, importava bacalhau, azeite de oliva, grão de bico, ervilha e outras coisas que o Brasil não produzia. Hoje o Brasil produz tudo, né? Mas antigamente não produzia quase nada. Feijão branco, importava bacalhau. Bebida, muita bebida também. E assim foi evoluindo. A coisa de alimentação animal, alpiste, painço. Mexia com pimenta do reino que já era produzido no Brasil, mas se importava cravo de Madagáscar, se importava especiarias da Ásia, tal.
P/1 – E tem alguma diferença entre o comércio que se fazia na Paula Souza e aqui na Santa Rosa?
R – Lá era mais elitizado, na Paula Souza. Constituído de portugueses. Aqui era mais a nossa, pessoal da Itália e lá eram os portugueses. Era mais elitizado lá.
P/1 – Como assim?
R – Eles eram, vamos dizer, um comércio mais fino do que esse nosso aqui. Tinha lá o pessoal, aqui nós tivemos alguns portugueses, que nem o Nestor Pereira que foi muito meu amigo. Ele é desse tipo de comerciante que trabalhava com toda linha de produto, produto nacional e produto importado. Aqui nós tínhamos o Nestor Pereira e lá tinha diversos Nestor Pereira, sabe?
P/1 – Entendi. Então tinha mais e era maior o comércio lá também.
R – Os comércios lá eram maiores do que esses daqui de baixo. Aqui era mais familiar também, né? E lá também era familiar, só que era uma coisa mais ampla. Porque aqui eram europeus, principalmente italianos, que chegaram da Itália, desde o fim do século 19 e foi na década de 30, 40, 50. E lá os portugueses eram mais gente que já morava no Brasil há muitos anos. Então existia uma certa elite, né?
P/1 – E dizem que muitos deles formaram os primeiros supermercados daqui de São Paulo.
R – Alguns deles se formaram em supermercados, sim, não tem dúvida. Você pega o Sé, Gonçalves Sé, que antes era na Paula Souza. Você pega o próprio Monteiro, F. Monteiro, esse não foi bem com supermercado, mas o Sé foi. Bom, teve outros mais, Dias Martins. Veríssimo foi pro Eldorado, por exemplo, supermercado Eldorado. Aqui de baixo acho que supermercado não saiu nenhum, não.
P/1 – E como é o supermercado pra zona cerealista? Mudou o comércio ou não? Como é que foi isso aí?
R – Na realidade o supermercado alterou toda a situação. Antigamente o pessoal era constituído de boxe, de mercearia, hoje eles são redes de supermercados, até com 500 lojas. É claro que eles não precisam de mais cerealista nenhum. Ao contrário, pode precisar quando prescinde de algum alimento que falta, que o dele demora pra chegar então ele vinha pra zona cerealista comprar. Hoje não existe mais disso. O que existe são essas lojas que você conhece aí, um vende especiaria, outro vende bacalhau, outro vende cebola, outro vende alho e por aí vai.
P/1 – Mas por que eles não vêm comprar na zona cerealista mais? Eles compram de onde?
R – Aí é que tá. Os pequenos continuam comprando na zona cerealista porque não pode comprar das grandes fábricas. Via de regra eles compram de distribuidores. Hoje o que funciona é um grande mercado de distribuidores. Tem alguns distribuidores fortes, você tem Festpan, Rochapan, você tem o Aroumar, você tem o próprio Walmart mesmo, que é um dos maiores, o Makro. Então quem distribui é esse povo aí. A zona cerealista é para o mercado mais bem, bem reduzido, isso diminuiu bastante a força.
P/1 – E quando você estava começando a importar você tinha uma loja...
R – Eu vendia aqui, vendia no Mercadão, vendia no Mercado de Pinheiros, no Mercado da Lapa. Existia um mercado muito forte de feirantes, a gente vendia pra feirantes. Era feira todo dia, em todo lugar. Hoje não tem mais, hoje é uma feira por semana, um ou outro lugar.
P/1 – Tem uma coisa que só você está falando até agora, de todas as pessoas que a gente entrevistoou, que é do Mercado da Lapa e o de Pinheiros.
R – Certo.
P/1 – Você fala pra mim como era a relação da zona cerealista com essas duas? Como era o Mercado de Pinheiros e o da Lapa?
R – Eles vinham se abastecer por aqui também, que eram mercados pequenos. A gente mesmo vendia pro Mercado da Lapa, Mercado de Pinheiros, eles vinham se abastecer aqui.
P/1 – E o Mercado de Pinheiros vendia o que, tudo?
R – Vendia tudo, principalmente batata, cebola. Porque lá era porta de entrada do oeste paulista, de onde vinham as produções. Antes de vir pro Brás eles passavam por Pinheiros.
P/1 – Ah, é?
R – Exato. Então o Mercado de Pinheiros não é tão importante que nem o nosso, nunca foi. Mas era um mercado. Mas o pessoal vinha pra cá, existia por exemplo a Bolsa de Cereais de São Paulo, que era uma Bolsa vibrante naquele tempo, hoje não existe mais, foi desativada. Por quê? Porque não faz mais sentido essa Bolsa. Hoje tem aí uma Bolsinha que substitui. Quer dizer, não é uma Bolsa, Bolsa, Bolsa, pessoal que se reúne, se entra mais mercadoria o mercado abaixa, se entra menos o mercado sobe.
P/1 – E esse Mercado de Pinheiros era onde? No Largo da Batata.
R – O Mercado de Pinheiros era no Largo da Batata, exatamente.
P/1 – E você lembra como era lá esse mercado? Era na rua, era dentro de um lugar?
R – Não era na rua, todo mundo tinha seus armazéns lá. Se bem que tinha o mercado também na rua, uma espécie de uma feira, principalmente de batata, cebola, mas depois foi se elitizando. Aqui também era assim. Aqui antigamente era na beira do rio Tamanduateí, o pessoal se reunia e comercializava lá, aí nasceu a zona cerealista.
P/1 – Fala mais um pouquinho dessa história.
R – Bom, isso eu ouvi faz tempo, uma coisa que não deu pra gravar e também eu não vi isso, mas eu sei, a gente sempre soube que antes do Mercadão era um lugar importante que se comercializava produtos.
P/1 – Na beira do rio.
R – E eu não sei, seria interessante até você depois pesquisar pra saber que ano que foi feita a estação do Pari aqui, que ano que começou a rodar. Talvez você pode pegar no histórico da própria rede ferroviária. Aí começou junto com isso a zona cerealista aqui. Eu não sei precisar o ano.
P/1 – Dizem que é 1865, na verdade.
R – É, começou.
P/1 – A linha de ferro.
R – É, aí começou a zona cerealista aqui, começou junto. Acho que antigamente não tinha armazém, não tinha nada. Depois que já foi feito como é que seria a cidade de São Paulo, tudo, as ruas, como é que seria o rio, tudo. A movimentação das áreas que se constituíram. Que São Paulo foi meio remendado, né, não é que nem Brasília que nasceu direitinho, mas lá também depois acabou de esculhambar de novo porque não teve mais um prosseguimento metropolitano como manda o figurino.
P/1 – Engraçado você falar. A zona cerealista sempre foi desse jeito, as ruas, a mesma largura?
R – Que eu me lembre sim. Nunca foi muito estreito, nem nada, sempre foi desse jeito. A rua Benjamim de Oliveira, onde eu morava, só tinha casas lá, armazém mesmo era só perto da rua Santa Rosa, o resto era tudo sobrado, que foram demolidos pra ser construir armazéns. Aqui teve um grande proprietário que chamava Antônio Lerário, ele era um possuidor de muitos terrenos aí e ele que começou a fazer esses armazéns, tudo, foi um grande baluarte também da colônia baresa.
P/1 – E alugava pra eles?
R – Alugava pra bastante gente os armazéns que ele fazia.
P/1 – Entendi. E quando é que começou esse negócio de laticínios, varejo, aqui na Santa Rosa?
R – O laticínio começou com a família Vituzzo há muitos anos, talvez tivesse algum antes dele, não sei, eu conheci ele. Eu lembro que eles recebiam queijo do interior, em jacás que chamava. Jacá é aquela palha que eles punham o queijo dentro com folha de bananeira pra deixar úmido, tudo. Ele chegava aqui, lavava esse queijo e revendia. O único laticínio que eu me lembro foi esse. Se bem que o mineiro que eu trabalhei, eles tinham laticínios, sim, fabricavam manteiga em Sacramento, uma manteiga de altíssima qualidade. Mas eles não tinham laticínio, quem tinha aqui laticínio na Santa Rosa era o Vituzzo. Hoje você tem o Camanducaia, você tem mais uns dois ou três. No Mercadão você tem o mais importante deles, que é a Cruzília, que é um produto que tem até uma história boa de você contar pro pessoal. Porque eu estava vendo outro dia no Globo Rural, isso os dinamarqueses que chegaram em Minas, eles então produziram um queijo de altíssima qualidade no começo do sécullo 19 e trazia aqui pra vender na Santa Rosa. E hoje o dinamarquês não existe mais, mas o dono da Cruzília, Cruzília é um laticínio que começou pelo dinamarquês. Hoje eles vendem laticínios no Mercadão, e é um bom laticínios.
P/1 – Interessante mesmo. Agora, como é que estava o comércio, a importação? Você começou foi o que, anos 60?
R – Não, eu comecei em 54.
P/1 – Em 54 a importação. Você ficou até que ano, mais ou menos, com importação ou você está até hoje?
R – Até hoje a gente importa uma coisa ou outra. Mas teve ano da gente fazer 300 importações no ano, porque tinha poucos importadores. Hoje tem mais importador do que farmácia.
P/1 – Mas no começo era um trabalho que era você e mais alguns poucos, é isso?
R – É, eu e mais uns poucos, exato. Mas antes de mim já teve gente. Não muito antes, mas antes. Porque o Brasil começou a importar depois da Segunda Guerra Mundial. Até então vinha um ou outro imigrante que trazia alguma coisa por navio, não tinha uma importação regular. Imagina que o porto de Santos quando eu comecei a importar tinha 16 armazéns. Hoje tem quase 300! O porto de Santos é um dos maiores portos da América Latina, se não o maior. E só tinha 16 armazéns. Você andava os 16 armazéns em 20 minutos. Hoje se você vai percorrer o porto de Santos você precisa gastar um dia inteiro.
P/1 – E você falou que você aprendeu muito com esse cerealista mineiro que você começou.
R – Certo.
P/1 – Como é que faz uma importação? Explica pra gente que não sabe como funciona. O que você tem que fazer?
R – A primeira coisa que você precisa saber, naturalmente, é o mercado. E qual é o tipo de importação que você quer fazer, se é alimento, se é uma máquina, se é uma bebida, se é um produto químico. Então, por exemplo, no meu caso sempre foi alimento, embora eu tenha importado algumas máquinas e tenha importado alguma coisa que não fosse alimentos, mas basicamente é alimento. Então você tinha uma cadeia de representantes comerciais, você precisava de um produto que o representante a, b ou c tinha. E aí você fazia o pedido, embarcava por navio, via de regra, quando chegava você tem os documentos na mão, pra ter os documentos você precisava pagar. Você pagava os impostos e retirava o seu produto, que via de regra vinha 3%, 4% a menos porque o pessoal em Santos passava a mão. Como passa ainda hoje, né? Isso não mudou muito. Ainda mais em alimento. Se bem que hoje vem container, tudo, aqueles armazéns já definidos, tem uma parte privada muito importante aí, né?
P/1 – E tem algum negócio que você fez, com certeza vai ter, mas que te marcou mais por algum motivo?
R – Ah teve, sempre teve algumas coisas. Faltou cebola a gente correu na Espanha, importou cebola, ganhou muito dinheiro. Ou batata, ou alho, sempre teve. Ultimamente também é assim, só que eu não atuo mais, né? Mas tem gente que ganhou muito dinheiro, no ano passado faltou bastante cebola e teve um menino aí que importou 200, 300 containers e ganhou uma fortuna. Isso sempre tem. Como também pode perder uma fortuna, né.
P/1 – Então tem muito de sorte, né, parece?
R – Se não tiver sorte é melhor você nem acordar de manhã, senão vai se aborrecer muito. Sorte é fundamental (risos).
P/1 – Mas tem mais além disso.
R – Diz o tempo do reinado inglês lá, a primeira coisa que a rainha perguntava pros candidatos a almirantes de navio, se eles tinham sorte. Se o cara fala: “Olha, mais ou menos”, ela não contratava, precisava ter sorte.
P/1 – A mesma coisa com mercado.
R – Sorte é fundamental. Pra tudo, né?
P/1 – Mas também tem essa questão de ler o mercado, que você falou, né?
R – É, o mercado. Antigamente o mercado era muito fácil, o Brasil era muito pequeno, as produções eram só São Paulo, Paraná. Hoje o Brasil produz um Brasil inteiro, então você não tem uma exatidão como tinha antigamente, né? De repente se falta feijão em algum lugar o Brasil inteiro planta feijão, depois de seis meses enche o mercado de feijão e aí você é obrigado a jogar fora e perder muito dinheiro. Só não é nas commodities assim, as commodities você sempre tem o mercado garantido. Agora, nos outros produtos você tem altos e baixos porque não são commodities.
P/1 – E você acha que a zona cerealista ajudou muito a diversificar até a mesa das famílias, de tipos de feijão, tipos de arroz, você acha que ajudou muito nisso?
R – É, a Embrapa foi criada em 1973 pelo regime militar, foi até um dos criadores foi esse famoso político Antônio Delfim Neto. Graças a ele e a outras pessoas que nem ele, Roberto Campos e outros mais, gente de muita visão, até hoje eles são requisitados, que nem o Delfim Neto, eles criaram a Embrapa. A Embrapa realmente colocou o Brasil no topo do mundo em agronegócios, o grande mérito foi da Embrapa. Então você tem aí diversas variedades de arroz, de feijão, tudo, melhoramento em tudo quanto é sentido na parte agrícola, mesmo a parte de engorda de frango. O Brasil antigamente não era primeiro em coisa nenhuma, em café e olha lá. Hoje o Brasil cansa de ser primeiro nisso, em ave, em frango, em minério, em tudo o que você imagina o Brasil está em primeiro lugar. Quando não está em primeiro está em segundo, em terceiro, mas realmente é outro país.
P/1 – E você ao longo dos anos foi deixando esse comércio de importação?
R – É, faz tempo que eu deixei. Eu me dediquei mais à agricultura, à indústria. Eu hoje produzo margarina, gordura vegetal. Quer dizer, foi decorrência mais das atividades que se fizeram interessantes. A gente produz soja, se bem que hoje fazendeiro em São Paulo é tudo sitiante, os grandes fazendeiros estão no norte do país, com dez mil alqueires, cinco mil alqueires. Hoje aqui nós somos tudo sitiantes mesmo, tudo chacareiro (risos).
P/1 – E por que a importação foi deixando de ter esse chamariz?
R – Pelas outras atividades, né? O que eu gosto mesmo é de mexer com comércio exterior, mas eu já não tive mais oportunidade de voltar. Porque a gente acabou se difundindo em outras coisas, o tempo foi passando.
P/1 – Mas teve algum marco que você falou: “Não, a partir de agora eu não vou mais mexer com isso?”.
R – Eu sempre mexi, não teve esse ‘a partir de agora’. Eu sempre mexi, estou sempre uma vez ou outra importando alguma coisa. Mas não é mais com aquela organização que você precisa ter, né? As coisas mudaram bastante.
P/1 – Sei. E por que você começou a produzir também?
R – Eu achei interessante produzir, se bem que se eu fosse começar hoje, hoje a gente começaria com uma outra cabeça e não mais com aquela cabeça de um Brasil fervilhando, né? Como fervilhou durante. Eu quando comecei a trabalhar o Brasil tinha 50 milhões de habitantes, hoje já tem 200 e poucos milhões. Então eu vi quatro países se formar, e quatro países adiantados porque o Brasil, queira ou não queira, foi sempre um país, nos últimos 40 anos, ele sempre esteve entre os dez países mais importantes do mundo. E antes não tinha nada disso, antes era o septuagésimo país, era muito atrasado. Só era bem organizado, isso sim, principalmente no Sul, mas era muito atrasado. Então as coisas mudaram, né, mudaram pra melhor, talvez, se eu preferia mais um Brasil de 50 anos atrás, é claro que eu preferia, sabendo o que a gente sabe hoje. E antigamente se vivia muito melhor, você não tinha esse trânsito horrível, você não tinha essa violência feia que você tem hoje.
P/1 – Mas voltando nessa questão da produção, como é que você produz margarina, é isso?
R – Margarina.
P/1 – E óleo de soja.
R – Na realidade a gente transforma óleo vegetal em margarina, em gordura vegetal. Essa gordura que você come no sorvete, no pão, no biscoito, isso tudo é feito com gordura, ou margarina. O meu maior cliente de margarina é a Bauducco. Agora, margarina foi um negócio feito pra substituir a manteiga da vaca, então não é uma coisa fácil. Tanto é que só tem sete fábricas no Brasil, a minha é a sétima, mas é muito pequena, porque não me interessa ser grande. Porque é negócio muito pesado, então você tem que fazer uma concorrência com esses grandes grupos. O maior fabricante disso é a própria Unilever, a Bunge, como é que você vai fazer concorrência com eles? Eles têm 300 anos de vida, eu só tenho 60.
P/1 – Entendi. Então você acha melhor ficar no canto.
R – Achei melhor ficar, exatamente isso que você está falando (risos).
P/1 – E tem um negócio garantido, né, porque é uma coisa muito procurada mesmo assim, né?
R – É. Não é um negócio tranquilo que você fala: “Não, é um bom negócio”. Não tem bom negócio, o que tem é coisa que você precisa ficar vigilante sempre. A sonegação nesse país é bestial, ainda mais nesse ramo de óleos e gorduras aí, foi uma piratada do tamanho de um bonde que se formou nos últimos 20 anos, já.
P/1 – Ah, é?
R – Isso virou noticiário no Brasil inteiro. Então não é fácil mexer com isso. Gente aí que formava aí, abria a firma de manhã só pra fazer alguma sonegação e depois fechava ou abria outra, o negócio foi feio. Mas não só no ramo de óleo, todos os ramos. Até hoje tem quadrilha trazendo produto de contrabando, o pessoal não perde, ó, infelizmente.
P/1 – E como é que foi os anos 80, 90 aqui na zona cerealista? Em geral.
R – Foram anos de transição, a partir dos anos 70. Foram anos de transição, anos de metamorfose, muita transformação. E é como está hoje, hoje nós temos o negócio que realmente precisa ser avaliado, reavaliado, você não pode em linha reta ir pra lugar nenhum, senão vai saber pra onde você vai. Você precisa realmente ficar contornando conforme a situação. O que vai ser pro futuro, eu não sei. Mas o computador vem aí, você vê que até o computador fabrica até uma pecinha. Antigamente você ouvia alguma falar isso? Daqui a pouco um computador vai fabricar até uma pessoa!
P/1 – Por que você acha que a partir dos anos 70 é uma fase de transição, o que aconteceu?
R – É porque foram mudando as coisas, o Brasil foi crescendo bastante. O novo Brasil, porque agora o verdadeiro Brasil é o Norte do país, não é mais o Sul. Você vê que o agronegócio vai crescer bastante no Norte, ainda mais quando se fizer aquela estrada do Pacífico, então, ninguém segura. E essa transformação, ela começou a partir do fim da década de 70 e no começo da década de 80, se constituiu grandes áreas agrícolas no norte do país. Você vê aqui, enquanto o camarada que você anda no campo, tem uma colheitadeira colhendo, ou duas, no Norte você vê 20 colheitadeiras colhendo. Então essa transformação foi violenta. E isso veio pra ficar, né?
P/1 – Aqui está saindo de um atacado e virando...
R – Aqui já não tem mais atacado. Aqui o que tem é casinha de varejo, quando você quer comprar uma garrafa de vinho você vem, você vai ter mais variedade. Ou então vai no Mercadão, que é a mesma coisa que aqui, só que aqui é mais barato que o Mercadão. Então aqui vai servir pra isso aí, só.
P/1 – E o que você acha que vai ser o futuro daqui?
R – Olha, estão falando que isso ia sair daqui há muitos anos já e até agora não saiu. E na minha opinião sabe quando vai sair? Nunca. Vai ficar assim até um dia que o pessoal achar que tem que mudar, mas não vai ser nessa geração que vem aí, não. O pessoal, de certa maneira, acaba gostando daqui, acaba tendo uma oportunidade e acaba ficando e transmite esse sentimento pras pessoas que vêm aí. Antigamente se falava muito mais em mudança do que hoje.
P/1 – Ah, é?
R – Vai mudar pra onde? Quer dizer, isso é o que se pergunta. Porque esse negócio de mudar em bloco não usa mais, cada um vai onde quer. E faz o que quer, né? Não tem mais essa necessidade de mudar em bloco.
P/1 – Vai mudar pra onde e por que, né?
R – É. Exatamente. Quem é que vai mudar e quem não está satisfeito. Mas o pessoal aí está feliz, é tudo microempresa ou miniempresa, não tem macroempresa aqui. E não tem média empresa, é tudo micro mesmo, que fatura tanto por ano e quer ficar por aqui.
P/1 – Não interessa mais.
R – Não interessa mudança, não interessa nada. Tanto que não existe mais Bolsa de Cereais, não existe mais sindicato. O que é o sindicato do Dadá hoje? Não é nada. Antigamente tinha uma personalidade grande, tinha figuras importantes nesse sindicato. Infelizmente hoje, não é que o Dadá está errado e nem nada, é a situação. O Dadá até que manteve o sindicato vivo até hoje, tudo.
P/1 – Agora que você tocou no sindicato, como é que ele era nesses anos de auge, você que já viu tudo isso acontecendo?
R – Eu fui vice-presidente do nosso sindicato, né? Ele era bastante atuante, ele era mais necessário do que ele é hoje. Antigamente existia uma união, teve lá os seus cento e poucos, 200 e poucos associados, hoje eu nem sei quantos tem. Mas ele teve a sua vida, teve a sua história, teve bons elementos trabalhando no sindicato. Sindicato era ligado à Federação do Comércio, que por outro lado era ligado também à Confederação Nacional do Comércio. Eu mesmo, eu fui representante do Comércio Brasileiro no Conselho de Política Aduaneira na década de 70, no tempo que a gente atuava forte com importação. Eu era também diretor do nosso sindicato. Nosso sindicato trabalhava junto com a Bolsa de Cereais de São Paulo, que também tinha uma influência interessante no mercado como um todo, cerealista, quando esse mercado existia. Hoje não existe mais. Tem aí um montão de varejista, o que não quer dizer nada, é gente trabalhadora, gente boa, mas que não constitui um potencial de riqueza pra se falar de um setor forte como foi antigamente.
P/1 – E como é que o sindicato atuava antigamente? Ele defendia o quê, como ele trabalhava?
R – Na realidade tinha as suas questões pra se defender, antigamente você tinha que fazer as suas comercializações, até podia fazer em conjunto com o pessoal, né? Mas não era, vamos dizer, uma coisa que defendia a classe, né? O sindicato o que é? O sindicato que defende uma determinada classe, ou de metalúrgica, que nem foi do Lula, ou de empresário, que nem foi o nosso. Só que a diferença é que esse pessoal que defende a classe trabalhadora, nenhum trabalha. E os nossos sindicatos, todos nós trabalhávamos, à parte de sermos diretores. É claro que a gente, no fundo, no fundo, tinha esse sindicato então quando precisava fazer alguma gestão junto com o governo, alguma alíquota que tivesse que baixar de imposto a gente pleiteava. Olha, na realidade o sindicato não foi tão importante na vida das pessoas, pelo menos da minha não. Quer dizer, o sindicato era o sindicato, vamos imaginar, por exemplo, que você é um historiador, então você tem o sindicato de historiadores? Você tem?
P/1 – Não no caso porque não é uma profissão regulamentada.
R – Eu acho que deve ter sindicato de fotógrafo.
P/1 – Tem.
R – Então, quando o pessoal precisa de algum amparo, alguma coisa, ele vai buscar dentro do sindicato. Então é isso que se faz no sindicato, o camarada pra começar, ele é obrigado a ser sindicalizado, ele tem até uma taxa pra pagar pra esse sindicato se sustentar. E claro, ele precisa ser representado. Antigamente o que se fazia era representar os associados da melhor maneira possível, que alguns iam ficar insatisfeitos, isso tem em todo lugar, tá? Mas não tem mais a força que tinha antes. Porque também se pulverizou muito, né? Sindicato do Comércio Atacadista, Gêneros Alimentícios. Hoje tem tudo menos atacado. Por quê? Porque hoje você tem os atacadistas, eles já têm a organização deles, a associação deles que representa eles. Isso foi muito mexido, tá?
P/1 – Entendi. Então pro futuro você vê que esse pessoal não quer sair mesmo. Mas tem uma questão acho que também...
R – Como não quer sair?
P/1 – Aqui.
R – Ah, você diz da zona cerealista? É, eu acho que quem está feliz, está ganhando um dinheirinho, não tem por que sair. Você pega por exemplo o Mercadão, se você vem falar com aquele pessoal do Mercadão também, você vai perguntar pra eles: “Você quer sair daqui?”, pode ser que alguns te fale: “Olha, conforme for eu estou cansado e eu quero sair, os meus filhos não querem saber disso”, mas via de regra não, eles passam pros filhos e os filhos continuam, então ninguém quer sair.
P/1 – Mas tem uma questão também que eu ia lhe perguntar, é que parece que tem muitas pessoas que se conhecem aqui e também tem uma questão do bairro, de pessoas que se conhecem. Você acha que isso é um motivo também, que as pessoas não querem sair às vezes?
R – Antigamente era mais forte essa circunstância, antigamente isso era muito mais forte porque tinha muito, a gente ia reunir aí no bar todo fim de dia pra falar mais um pouquinho e ir embora. Hoje não existe mais isso, hoje realmente isso é uma coisa que o pessoal se isolou um pouquinho. Talvez o sindicato ainda se reúne três, quatro pessoas, mas antigamente se reunia 20, 30 pessoas, então as coisas mudaram, né?
P/1 – Como era isso?
R – As coisas mudam, mas mudam pela evolução das coisas mesmo.
P/1 – Mas como era? Vocês saíam no fim do expediente agora e iam...
R – Cada um vai pra casa e tchau. Antigamente eu passava num armazém tal, eu entrava. De repente o camarada estava tolando whisky lá e a gente tomava. Isso acabou, isso não tem mais. Às seis horas todo mundo foi embora.
P/1 – Quem era a turma que você mais frequentava?
R – Na realidade era tudo gente aqui do bairro mesmo, do pedaço. A gente se encontrava no bar ou no armazém deles pra se discutir. Isso acabou, isso realmente, eu pelo menos, eu sei que tem uns três, quatro cerealistas aqui que se reúnem de vez em quando, que não é da minha turma. Eu sei que algumas vezes eles se reúnem. Mas é três ou quatro cerealistas só. Alguém me comentou aí um ano atrás que eles se reúnem, vão fazer uma brincadeira não sei onde.
P/1 – E você sente falta dessa reunião que tinha?
R – Eu vou te falar, talvez foi do seu tempo, né? Foi do tempo da gente. Mas que faz falta? Não. Acho que se você for sentir falta, você acaba sentindo falta de muita coisa. Mas sente falta, porque sente falta mas aquilo foi daquela época, foi daquele momento, aquela conveniência, porque era importante daquele jeito, porque você precisava de muita informação, informação se faz aqui reunindo com pessoas, né? Mas hoje a evolução da comunicação evoluiu tanto que você hoje tem a informação que você quiser. Quer dizer, você liga o Google, na pior das hipóteses você já sabe que você tem o que você quiser numa caixinha de fósforo. Antigamente não tinha nada disso, as notícias corriam, então quanto mais se comunicava era melhor, né?
P/1 – Tem uma questão meio de interesse por trás também, de estar atualizado.
R – Também, você troca informação, informação sempre é importante. Você muitas vezes começa a ter uma ideia aqui, o que está faltando, o que está sobrando.
P/1 – Eu vou passar para umas perguntas finais agora, tá?
R – Tá.
P/1 – Eu queria voltar bastante no tempo agora e perguntar pra você desse hobby que você falou de fotografia. Como é que começou esse interesse?
R – Começou com a aquisição da... primeiro dinheiro que eu ganhei eu comprei uma caixãozinho. Sabe aquelas caixãozinho? Muito baratinho, antigamente que vinha aquele filme de rolo. Depois fui melhorando, fui comprando uma máquina melhor que a outra, fui fotografando tudo o que podia. E fui comprando Rolleiflex e o camarada ia viajar e eu encomendava uma máquina. Mas hoje já não tem mais isso aí. Mas foi interessante isso.
P/1 – Você tirava foto de quê, de tudo?
R – Tudo o que eu podia tirar fotografia, documentava.
P/1 – Você gosta de tirar foto?
R – Gostava, hoje não. Hoje eu já não tenho mais paciência, faz muito tempo.
P/1 – E você filmava também, né, você falou.
R – Filmava um pouquinho também, algumas vezes. Eu gostava de fazer isso assim.
P/1 – E você conseguiu guardar muita coisa disso aí?
R – Não, eu não consegui guardar. Acabou que eu mudei três, quatro vezes de casa, então foi ficando um pouco aqui, um pouco lá, mas eu vou ver o que eu posso reunir, se tem alguma coisa interessante eu quero te reservar.
P/1 – E você casou, tem filhos?
R – Casei, claro. Casei e estou casado até hoje.
P/1 – Ah, é?
R – É. Tem gente que troca aí cinco, seis vezes, a gente está firme aí.
P/1 – Como é que você conheceu sua esposa?
R – Na realidade quando eu voltei a estudar novamente ela estava na sala de aula. A gente ficou amigo, depois namoramos e casamos.
P/1 – Ela fazia Contabilidade?
R – Você vê que mudança? Ela fez Contabilidade comigo, exato. Você vê a mudança que fez aquele emprego que o camarada perguntou se eu estudava? Eu falei: “Se eu falo pro cara que não estudo ele não me dá o emprego”. Aí eu fui me matricular porque eu também não podia passar por mentiroso. E graças a isso eu me formei contador e acabei casando com a minha mulher por causa disso também.
P/1 – Qual é o nome dela?
R – Iolanda.
P/1 – Iolanda. Você se lembra o dia que você conheceu ela?
R – Não, eu já conhecia ela aqui do Brás, ela morava aqui perto. A gente era conhecido, depois é que a gente ficou amigo.
P/1 – E vocês tiveram filhos também?
R – Tivemos quatro filhos. Três meninas e um menino. O rapaz é esse rapaz que chegou aí.
P/1 – Ah, tá aqui. Quais são os nomes dos seus filhos?
R – Paschoal, a mais velha é a Luciana, a Sílvia e Cíntia. Todos casados, com filhos.
P/1 – E como é que foi ter filho pela primeira vez?
R – Naquele tempo era importante ter filho, hoje nem tanto. O pessoal não tem mais aquele negócio de família que tinha antigamente. Não sei se você é casado, se não é. Mas antigamente casar era fundamental, era o fim da linha, o começo de uma nova linha. Hoje não é fundamental. Tanto que não existe casamento como existia antigamente.
P/1 – E hoje você tem sonhos pro futuro? Tem planos pro futuro?
R – Na realidade eu acho que planos pro futuro mesmo é ver o Brasil ficar um pouco melhor nesse negócio de corrupção, porque está muito feio. Infelizmente a gente ia ter um camarada aí que ia por isso nos trilhos, que é esse tal de Lula aí, vai ver foi pior que todos. E é uma pena que isso acontece. Enquanto o Brasil não normalizar com a corrupção é complicado a gente ter um futuro garantido aqui. Na realidade a gente sempre quer fazer alguma coisa. Há muitos anos teve um grande filósofo aí, um intelectual que se chamava Tristão de Ataíde, ou Ataíde, uma personalidade no mundo intelectual, quando ele dizia que o empreendedor é o eterno insatisfeito, nunca está satisfeito com nada, quer dizer, isso é o empreendedor. Então eu estou meio nesse negócio. Não adianta eu querer ter mais futuro porque eu não tenho uma vida com mais 30, 40, 50 anos como vocês têm. Então pra mim o que interessa é mais organizar o meu futuro do que propriamente criar novas coisas. Tá Lucas?
P/1 – Tá bom. O que você achou de falar um pouquinho da sua história pra gente?
R – Achei interessante porque eu vivo pensando na minha história. Eu até queria mesmo um dia ter essa oportunidade de fazer isso tudo, esse depoimento que a gente fez aqui, porque realmente isso faz parte do nosso passado, faz parte do presente e vai fazer parte do futuro também.
P/1 – Tem alguma coisa que eu não perguntei e você gostaria que eu perguntasse pra você?
R – Olha, tem talvez alguma outra coisa, mas depois eu ponho num papel e te mando se eu lembrar, tá bom? Não tem nada que a gente não tivesse conversado que foi importante. Sem dúvida nenhuma a gente conheceu gente importante, gente boa. Conheceu bastante picareta também (risos). Mas que vale a pena mais você se aprimorar pelo lado bom das pessoas e não pelo lado ruim dos picaretas.
P/1 – E o que você acha de registrar essa história da zona cerealista?
R – Eu acho interessante, se você puder me fazer o favor de me mandar uma cópia antes de publicar, né, Lucas. Eu não meti o pau em ninguém, quem sou eu pra ficar metendo o pau nos outros, né? Mas é bom a gente ver pra ver se lembra de alguma coisa, até pra acrescentar, tá certo, Lucas?
P/1 – Tá certo.
R – Enriquecer mais o seu trabalho. Porque eu acho que de fato você pensou bem, eu não sei de quem foi a ideia, mas alguém tinha que registrar isso aí. É uma pena que muita gente foi embora, isso teria que ter sido feito antes um pouco. Mas, diz o provérbio: “Antes tarde do que nunca”, né? Então ainda é válido.
P/1 – Tá certo, obrigado então, seu Guglielmi. Foi ótimo, viu?
R – Imagina, Lucas!
Recolher