P/1 – Vamos lá! Alice, pra começar, eu gostaria que você se apresentasse, dizendo seu nome completo, data e local de nascimento.
R – Alice Gonçalves Freitas, 11 de abril de 1979, nascida no Rio de Janeiro.
P/1 – E quais os nomes dos seus pais?
R – Miguel Américo Lopes de Freitas e Solange Gonçalves de Freitas.
P/1 – E o que eles fazem?
R – Meu pai é neurocirurgião, minha mãe é dermatologista. São divorciados há mais de vinte anos.
P/1 – E você sabe como eles se conheceram?
R – Eu acho que eles se conheceram por causa da minha dinda. A irmã do meu pai era uma das melhores amigas da minha mãe, na faculdade de Medicina, em Petrópolis e aí a minha dinda, que virou minha dinda, sempre levava minha mãe pra passear, pra fazer férias, tal e o irmão dela estava junto, que é o meu pai. E aí, numa dessas viagens, se conheceram e ficaram quinze anos juntos.
P/1 – E como você os descreveria?
R – Ai, meu Deus! É nesse nível, o negócio aqui, né? (risos) Vamos lá! Ahhhh, meu pai: um cara frio socialmente falando, emocionalmente falando, é muito difícil ele expressar as próprias emoções, acho que ele não sabe muito bem como fazer isso, ele tem essa dificuldade. Não é um cara de muito toque, então não é uma pessoa que abraça, que toca muito, mas é uma pessoa altamente sensível, poeta e muito solidário, muito generoso. Sempre foi muito generoso. Eu nunca me esqueço, em todas as cirurgias gratuitas que meu pai fazia no hospital, ele ganhava porco assado no final do ano, um dia ganhou uma cabra e tinha a cabrinha lá, pastando no nosso jardim, que ele ganhava cabra, bicho, era assim. Então, meu pai é essa pessoa, assim. Ele não é um cara de muita fala, muito aconchego, mas ele é muito solidário e a primeira pessoa que está lá, pra você, na hora que você precisa. Ele é esse cara. Sempre deu pra gente muita liberdade. Acho que a...
Continuar leituraP/1 – Vamos lá! Alice, pra começar, eu gostaria que você se apresentasse, dizendo seu nome completo, data e local de nascimento.
R – Alice Gonçalves Freitas, 11 de abril de 1979, nascida no Rio de Janeiro.
P/1 – E quais os nomes dos seus pais?
R – Miguel Américo Lopes de Freitas e Solange Gonçalves de Freitas.
P/1 – E o que eles fazem?
R – Meu pai é neurocirurgião, minha mãe é dermatologista. São divorciados há mais de vinte anos.
P/1 – E você sabe como eles se conheceram?
R – Eu acho que eles se conheceram por causa da minha dinda. A irmã do meu pai era uma das melhores amigas da minha mãe, na faculdade de Medicina, em Petrópolis e aí a minha dinda, que virou minha dinda, sempre levava minha mãe pra passear, pra fazer férias, tal e o irmão dela estava junto, que é o meu pai. E aí, numa dessas viagens, se conheceram e ficaram quinze anos juntos.
P/1 – E como você os descreveria?
R – Ai, meu Deus! É nesse nível, o negócio aqui, né? (risos) Vamos lá! Ahhhh, meu pai: um cara frio socialmente falando, emocionalmente falando, é muito difícil ele expressar as próprias emoções, acho que ele não sabe muito bem como fazer isso, ele tem essa dificuldade. Não é um cara de muito toque, então não é uma pessoa que abraça, que toca muito, mas é uma pessoa altamente sensível, poeta e muito solidário, muito generoso. Sempre foi muito generoso. Eu nunca me esqueço, em todas as cirurgias gratuitas que meu pai fazia no hospital, ele ganhava porco assado no final do ano, um dia ganhou uma cabra e tinha a cabrinha lá, pastando no nosso jardim, que ele ganhava cabra, bicho, era assim. Então, meu pai é essa pessoa, assim. Ele não é um cara de muita fala, muito aconchego, mas ele é muito solidário e a primeira pessoa que está lá, pra você, na hora que você precisa. Ele é esse cara. Sempre deu pra gente muita liberdade. Acho que a autonomia e liberdade que eu tenho hoje, veio dele. É um cara que sempre estimulou a gente a tomar risco, sabe? Sempre botou a gente nos lugares desconfortáveis, para que a gente pudesse sair dele sozinho. Minha mãe é uma mulher muito guerreira. Durante muitos anos, ela ficou num pedestal na minha vida, assim. Acho que ela só caiu do pedestal quando eu virei mãe. E ela sempre foi uma mulher muito trabalhadora. Ama, é apaixonada pelo que faz, ama a dermatologia, ela é uma das primeiras dermatologistas aqui de Friburgo, todo mundo a conhece. E também muito generosa, muito solidária, sempre participou de grupos de apoio para pessoas em vulnerabilidade, baixa renda. Sempre levou a gente para esses lugares. E ela é amorosa, ela que entregava essa amorosidade. E acho que é uma mulher que está sempre buscando alguma coisa. Eu não sei se ela sabe o quê, mas ela está sempre buscando alguma coisa.
P/1 – E onde eles nasceram?
R – A minha mãe nasceu em Niterói, num bairro chamado Barreto, que era no interior, subúrbio de Niterói. Meu avô era taxista, foi taxista a vida inteira. Meu avô veio de Portugal, com oito anos de idade, emigrado, num navio. E se casou com minha avó aqui e nasceram cinco filhos, minha mãe é um deles. Minha mãe foi a única, da família inteira, que cursou faculdade, que hoje tem uma vida mais confortável. E o meu pai nasceu em Buraco Fundo, que é uma micro, micro vila perto de Miracema, no interior do norte do estado do Rio de Janeiro. Era uma roça. E meu bisavô tinha roça de café, de arroz. Meu bisavô perdeu tudo, na época, lá, de 1919, quando teve a Grande Recessão. E meu pai nasceu ali na roça, no Buraco Fundo, na casinha que eu passei as minhas férias, tempos depois. E veio para Niterói estudar, quando tinha treze anos de idade, que ele tinha um problema na coluna, minha vó cismou que ele tinha que nadar, o médico o mandou nadar. Então, minha avó o mandou num trem, na época que tinha trem, morar sozinho, com treze anos de idade, em Niterói. Ele morou numa pensão, desde os treze anos e lá ele ficou, fez faculdade lá, enfim.
P/1 – E você conheceu seus avós?
R – Conheci todos os meus avós. Inclusive, perdi a última avó há cinco meses. A gente era muito próximo, todos nós. Tanto meus avós paternos, quanto os maternos. Meu avô paterno foi o primeiro a ir embora; depois foi meu outro avô, taxista, morreu há uns três anos; e depois a minha outra avó, enfim. Já velhinhos, em uma idade... viveram bastante.
P/1 – Alice, você sabe a história do seu nascimento?
R – A que me contaram. (risos) A história que me contaram, que a minha mãe conta, que ela tinha 24 anos quando engravidou de mim, estava namorando meu pai e aí eles resolveram mudar de Niterói - porque meu pai estava morando em Niterói - para Nova Friburgo, que é essa cidade do interior na região serrana do Rio de Janeiro. E era uma cidade com um pouco mais de cento e cinquenta mil habitantes na época que eles chegaram e eles foram morar numa cabana. Meu pai cismou que ele queria construir uma cabana canadense. Meu pai tem essas coisas aventureiras, exploradoras, assim. Ele adora essas coisas. E aí ele construiu uma cabana canadense pra gente morar, pra minha mãe morar e pra ele e era uma cabana toda de madeirinha. Minha mãe conta que, de madrugada, passava um frio, porque a região serrana é gelada. Então, não tinha separação nas madeiras, o ventinho entrava entre as madeiras e eu não sei como eu fui concebida, mas eu sei que eu cheguei, minha mãe passou a gravidez praticamente toda nessa cabana, o meu pai ia muito pra Niterói, várias vezes, durante a semana, para dar plantão. Eles eram muito jovens, imagina, trinta anos, 24 anos, você está no auge da sua tentativa de conquista de carreira, jovem. Eu vim nesse cenário. Os dois, minha mãe terminando a pós-graduação, para se firmar dermatologista, pra fazer a especialização e meu pai já dando muito plantão em Niterói. Então, minha mãe ficava muito sozinha e ela grávida de mim, tinha alguns medos durante a madrugada, porque ela morava numa região que não tinha nem vizinho. Era super isolada. Mas aí ela falava que queria muito que eu nascesse logo, pra fazer companhia pra ela. Então, eu meio que nasci assim, pra fazer companhia pra ela e preencher um pouco desse vazio que papai deixava, quando ele saía. Mas logo depois que eu nasci, ela já engravidou de novo. Então, (risos) eu tinha quatro meses quando a minha mãe engravidou de novo e aí veio meu irmão Diogo, que tem um ano de diferença de mim e, quando o Diogo tinha seis meses, ela engravidou de novo (risos) e aí veio o Lucas. Então, eu não sei. Eu era uma bebê que nunca fui muito sozinha, que sempre a casa tinha gente, muita gente, vinha muita gente de fora, pra cuidar da gente, sabe? Eu tenho poucas lembranças, assim, da minha infância, infância. Mas eu sei desse cenário, que eu nasci e logo depois nasceu outro. (risos)
P/1 – Me conta uma coisa: como é a sua relação com seus irmãos?
R – A minha relação com os meus irmãos... eu não sei a deles comigo. Mas a minha relação com os meus irmãos, no começo, lá, na primeira infância e tal, tinha uma necessidade tácita, minha, de me sobressair. Eu lembro que eu ficava fazendo showzinho. Eu ia pra sala, ficava dançando balé sozinha, pra me amostrar. Eu sempre muito amostrada. Uma criança amostrada, que gosta de aparecer. E eu sei que isso incomodava os meus irmãos, assim, porque era meio difícil ser irmão meu, dizem eles. (risos) Mas durante a infância. E aí, assim, durante a adolescência, foi cada um meio que pro seu lado, mas a nossa relação sempre foi muito boa, muito presente, muito unida. Claro, briga de irmão toda hora, dois moleques dentro de casa, imagina, eu, a primeira menina, aquelas brincadeiras de moleque eu nunca gostava, aquelas brincadeiras grossas, sabe, porqueira. Essas coisas de menino. E aí, quando os meus pais se separaram, eu tinha treze anos, treze para quatorze, e foi um processo bem difícil pra gente. Pra mim, então, foi muito difícil, porque aquilo mudou muito a minha vida e eu descobri coisas, sabe? Eu era muito menina, eu descobri coisas que eu não podia descobrir, aí comecei a entrar numa de querer ser adulta antes do tempo e me ferrei, a cabeça ficou totalmente zoada e aí eu peguei a primeira oportunidade que eu tive, de viajar e fui fazer um intercâmbio. E aí eu fui pra Tailândia. Morei um ano na Tailândia, quando eu tinha quinze anos de idade, no processo de separação dos meus pais. E aí a gente se afastou um pouco, eu e meus irmãos, que eles ficaram aqui, sofrendo toda a barra e eu falei: “Eu vou embora dessa loucura aqui, senão eu vou enlouquecer”. (risos) Mas depois que eu voltei, aí foi totalmente diferente, porque meus pais já estavam separados e a gente só tinha um ao outro. Então, mudou um pouco, a gente se agarrou muito um ao outro. A gente ficou muito unido, morou junto no Rio de Janeiro, num apartamento alugado, durante muitos anos, fazia os mesmos amigos, aí depois a gente ficou muito unido. Eu sou apaixonada pelos meus irmãos. Não consigo conceber a vida sem eles. Eles são muito importantes pra mim.
P/1 – E você lembra da rua e da casa que você passou a sua infância?
R – A casa, claro, eu estou aqui, né? Eu estou aqui, agora. Eu voltei pra minha cidade natal. Estou fazendo um super processo de resgate disso tudo, assim, por isso que eu... ah, que saco, gente! É pra ficar chorando? Não vale. Ah, que droga! (risos) Eu voltei pra cá, depois de trinta anos fora. Eu morava numa casa, depois que meu pai mudou e saímos dessa casinha canadense, meu pai comprou uma casa muito grande, com cinco andares. A casa era uma coisa grande, um jardim grande. Ele era apaixonado por tênis, aí ele construiu uma quadra de tênis no terreno da casa. Então, a gente viveu a nossa infância inteira nesse oásis, nesse paraíso, assim, numa casa com muito quintal, muita área verde e tinha, sempre, muita criança, porque eram os vizinhos, aí tinha minha dinda, que tinha três moleques também, então eu sempre fui a única menina, no meio de um fuzuê de molecada, eu sempre era a única menina. E a gente brincava demais, mas era brincadeira, assim, de rolar na lama, pular de bicicleta. Uma infância muito saudável. Eu não posso reclamar, que a minha infância foi muito saudável. Eu não tive muita atenção, presença dos meus pais, na rotina do dia a dia, porque eles trabalhavam muito. Mas, nossa, eu tive uma infância muito linda. Assim, queria muito poder que meus filhos tivessem a mesma infância que eu tive, com muita motricidade.
P/1 – E qual é a sua primeira lembrança da escola?
R – Da minha escola?
P/1 – Sim.
R – A escola era uma caixinha de fósforo, uma escolinha super pequenininha aqui na cidade, se chamava Externato Santa Inês. E essa escola foi muito importante pra mim, porque era uma escola... ai, gente, que saco, não consigo falar! (choro e riso) Uma escola de ensino tradicional, mas muito pequena e muito amorosa. Uma escola muito amorosa. Eu lembro que eu detestava ir pra escola, eu não queria ir pra escola. Todos os dias eu chorava e entrava dentro do carro e fingia que estava dormindo, inventava que eu estava com febre. Minha mãe sofreu muito pra me levar pra escola, todos os dias, porque era de manhã cedo, sabe, eram sete horas da manhã que tinha que estar lá. E era um frio na cidade, então era muito difícil acordar. E essa escola, toda vez que eu chegava chorando, nesse estado, o diretor da escola me levava pra salinha dele, botava um colchãozinho no chão e falava: “Fica aqui, até você se acalmar. Quando você estiver melhor, a gente vai pra sala, está bom?” Então, passei muitos dias dormindo, muitas manhãs dormindo naquela salinha (risos) do diretor. E a escola, o externato sempre era muito preocupado em conectar a gente com o mundo real. Então, a gente tinha muitos projetos, que a gente visitava uma instituição aqui em Friburgo, chamada Casa dos Pobres, que é até hoje uma instituição que acolhe pessoas em alta vulnerabilidade, sabe? São pessoas com deficiências mentais, físicas, muitos idosos abandonados pelas famílias. Então, eu tenho várias lembranças, assim, de muitas vivências na Casa dos Pobres, eu ia muito lá. E teve um dia que eu conversei com uma velhinha, uma senhorinha de 93 anos de idade e ela olhou pra mim e falou assim: “Minha filha, você sabe qual é a pior coisa que tem? É a gente chegar na idade que eu tenho e ser abandonada, ninguém nunca mais vir visitar a gente.” Ai, eu lembro até hoje dessa senhorinha falando, com os olhos cheios de lágrimas, sabe? Então, essas vivências que o externato proporcionava, tinha muito festival de poesia, eles estimulavam muito a nossa criatividade, a nossa presença, a nossa oralidade. Então, apesar de ser uma escola de ensino tradicional, tinha esse aconchego e esse lugar diferente, assim. Pra mim, foi muito importante. Me fez, muito do que eu sou, eu devo àquela escola.
P/1 – E teve algum professor marcante, professora, nessa época? Além desse diretor.
R – O Ronaldo, fofo. Eu tinha uma professora de História, a Gracinha, que era muito legal, ela me despertou pra História, era minha matéria preferida, eu era apaixonada por História. A maneira como ela contava. Eu acho que eu sempre fui meio apaixonada por Humanas. Exatas, eu lembro da minha professora de Matemática que, pelo amor de Deus, eu queria morrer! (risos) Eu nunca tive bons professores de Exatas, porque eu não gostava. Mas nenhum marcante. Nada que me fizesse mudar de rumo, não foi ali. Minha mudança de rumo não foi ali, não. Foi em outro lugar.
P/1 – E você ficou nessa escola até qual série, assim?
R – Eu fiquei nessa escola até o primeiro ano do ensino médio. Minha vida inteira. Fui até o primeiro ano do ensino médio. Aí, quando eu tinha quinze anos, foi aquela história que os meus pais se separaram e aí eu fui fazer a prova, pra ver se eu conseguia uma vaga no intercâmbio, eu consegui e eu fui embora e fiquei esse ano fora. Quando eu voltei, eu voltei pra mesma escola, fiz mais um ano, o segundo ano, lá, porque eu tive que repetir, o ano que eu fiz na Tailândia não valeu, então eu fiz o meu segundo ano lá e depois que eu fui morar no Rio. Então, eu fui pro Rio com dezessete anos. Aí eu já fui fazer o terceiro ano, pré-vestibular e lá fiquei.
P/1 – E, nessa, um pouco antes ainda, você pensava com o que você queria trabalhar, quando crescesse? Isso vinha dos seus pais? Era uma conversa que vocês tinham?
R - Nunca tivemos conversa ‘do que você vai ser quando crescer’. Eu lembro que meu pai só brincava com a gente porque, quando eu era pequenininha, como ele era muito apaixonado por tênis, ele me fez jogar tênis. Ele me obrigava a gente tinha que ter aula de tênis, tinha que jogar tênis e ele falava assim: “Quando perguntarem pra você o que você quer ser quando crescer, você fala: ‘Jogadora profissional de tênis’”. (risos) Eu já tinha isso decorado. Todo mundo que perguntava: “Jogadora profissional de tênis”, que você vai repetindo, vai fazendo as vontades. E o tênis foi muito legal também, a nossa época de tênis, a gente jogava muito, eu fazia parte de federação, eu cheguei a jogar vários campeonatos e tal, mas aí teve um dia que ele puxou a barra demais, num jogo terrível, que eu já tinha ganhado por WO, que era a primeira campeã lá do estado e essa menina faltou, não foi, chegou atrasada. E aí o campeonato me deu o título. Só que a menina chegou, duas horas depois e aí meu pai me obrigou a jogar com ela. Falou assim: “Não, vai jogar, vamos tirar o título”. Aí eu entrei na quadra meio-dia, um calor dos infernos em Niterói, verão, quase morri naquele jogo, comi muita banana, pra conseguir. No último ponto do tie-break eu perdi. E aí, nesse dia, eu peguei a raquete de tênis, joguei no colo do meu pai e falei assim: “Eu nunca mais jogo tênis, pai”. E eu nunca mais joguei tênis. (risos) Foi assim. (risos)
P/1 – E, com quinze anos, como estava a Alice, no meio de uma separação e como foi essa decisão de viajar?
R – A Alice, no meio da separação, estava mal. Não estava bem, não. Estava... foi muito difícil, pra mim, o que eu descobri. Foi muito duro, porque não foi um processo que a gente foi vendo acontecer. Foi uma coisa que ninguém via, só eu via. E aí eu descobri, peguei o telefone uma vez, ouvi coisas que eu não tinha que ouvir, aí foi bem duro pra mim, assim, porque eu tive que ficar guardando aquilo pra mim. Meus irmãos não sabiam, eu era a única pessoa que sabia, que minha mãe já tinha falado: “Vai rolar, a gente vai se separar, a gente está se planejando, não sei o quê”. E meu pai não queria de jeito nenhum, então ele levou a gente pra uma viagem, fomos pra Abrolhos juntos. Minha mãe não quis ir. Aí ele deu um tempo, voltaram. Enfim, foi um processo bem difícil, assim. E, cara, aos quinze anos, você está num processo interno, já, de descoberta de quem sou, pra onde vou, né? O que vim fazer nesse mundo? Que personalidade eu tenho? Que corte de cabelo? Que postura eu adoto? Então, era muita mudança dentro de mim e essa separação dos meus pais me deixou meio maluca. Eu achei que eu podia segurar a onda, podia ser forte, mas aí eu saí com uns amigos. Aqui, cidade pequena tem isso. Você sai, vai pra casa de um, vai pra boate, tinha boate no Country Club, que a gente ia muito. Eu dançava até de manhã. E aí bebia, entrei numa ‘depré’. Bebia muito. Teve um dia que eu caí, vomitando, na frente da agência do Banco do Brasil e aí vinham os amigos socorrer. Teve um dia que eu cheguei em casa, minha mãe abriu a porta da casa: “Você está bem?” Eu fingi que estava bem, puf, vomitei no pé dela. (risos) Coisa de adolescente, mesmo! Pré-juventude. Mas foi muito importante, porque eu saquei que eu não ia dar conta. Então, quando eu saquei que eu não ia dar conta, eu falei: “Eu preciso fazer alguma coisa” e eu fiz. Sempre fui muito de correr atrás das coisas. Desde pequena eu pegava, fazia, ia. Não dependia muito de ninguém, não. E aí eu me inscrevi nessa prova do intercâmbio e aí eu tinha escolhido Inglaterra ou Canadá, pra serem os países que eu ia visitar e aí fiquei esperando, não tinha vaga, que era cidade do interior, não sei o quê e aí, quem fez a prova junto comigo foi a Ilona Szabó, que é uma menina super conhecida também, hoje, do Instituto Igarapé, que é muito minha amiga e ela foi pra Letônia. Ela já tinha escolhido ir... quer dizer: tinha vaga só pra Letônia, ela tinha escolhido pra Letônia. E aí, um dia me ligaram do intercâmbio, dizendo o seguinte: “Olha, Alice, tem uma vaga aqui. Se você quiser, é sua. Mas não é pra os países que você escolheu”. Eu falei: “Ah, meu Deus do céu, (risos) o que vem?” Ela falou: “Tailândia”. Eu falei: “Como? Onde que é isso?” Gente, imagina: 1996. Não tinha internet. Celular que tinha era aquele Nokia desse tamanho. E aí eu desliguei o telefone, liguei pra Ilona: “O que eu faço?” “Você vai, óbvio que você vai”. Também, a doida que vai ligar logo pra quem? A amiga estava indo pra Letônia e eu falei Tailândia, claro que ela ia me estimular a ir. E aí eu peguei o telefone, liguei e falei: “Eu vou”. E aí, assim, nem falei com meus pais. Eu voltei pra mesa do almoço, eles ainda estavam naquele processo de separação, estavam juntos, eu falei: “Gente, chegou a minha vaga, eu vou viajar”. Aí, minha mãe: “Jura? Pra onde? Vai pra Inglaterra?” Meu pai: “Que legal!” Aí eu falei: “Não, eu vou pra Tailândia”. (risos) Aí minha mãe estava comendo, assim, eu lembro que o garfo dela caiu, pá, no prato, (risos) com aquela cara! Imagina, um país do outro lado do mundo, né? “O que minha filha de quinze anos vai fazer nesse país?” Mas foi demais. Foi difícil, mas foi bom.
P/1 – Como foi essa viagem? Como foi chegar numa outra cultura?
R – Imagina: uma menina do interior. Eu era do interior, aqui. Querendo ou não, Friburgo é uma cidade do interior. Foi assim: no começo foi muito duro, ainda fui parar numa cidadezinha com três mil habitantes, no interior da Tailândia. Eu lembro que, quando eu cheguei lá, eu estava com um herpes enorme na boca, sabe? E a gente foi pra um camping em Bangkok, ficamos conhecendo todos os intercambistas, meio que pra ter uma lição do que é a Tailândia, as primeiras palavras de tailandês que você vai aprender, pra depois a gente ir pras nossas famílias. E aí, quando eu fui, quando eu cheguei na minha casa, era uma casa bonitinha, bem tailandesa, mas no meio de uma plantação de arroz. Então, tudo que eu via era campo de arroz. Uma estradinha de chão, passava búfalo. Os monges, todo dia de manhã, iam pedir comida, pra fazer o desjejum. Assim, era bem interior. Três mil habitantes. Eu era a única estrangeira. Na cidade inteira, eu era a única estrangeira. E lá as pessoas, o nariz... é muito engraçado, porque lá eles não têm nariz e o meu nariz é enorme, então lá eles não têm (risos) isso aqui. Meu nariz era atração da cidade, onde eu passava as pessoas queriam tocar no meu nariz: “Posso tocar no seu nariz?” Vinham aqui, tocar nesse osso, que lá não existe. Mas foi bem dura essa entrada, porque eu não sabia falar nada e tinham pouquíssimas pessoas que falavam, de fato, inglês. A minha mãe lá, tailandesa, não falava nada de inglês, a minha irmã mais nova que falava um pouco, assim, porque lá você fica numa família. E aí você tem que chamar a mãe de mãe, o pai de pai, a irmã, de irmã. Pessoas que você nunca viu na vida, de repente você está chamando de mãe. E eu lembro de algumas pirações que eu tive no começo, nos primeiros três meses, assim. Teve um dia que eu estava tão desesperada, que eu desmaiei no chão, assim, de tristeza, depressão. Sei lá do quê. É aquela coisa que te bate e você fala: “O que eu estou fazendo aqui, sua louca?” Do outro lado do mundo, as pessoas não te entendem, é uma cultura completamente diferente. Aí eu decidi que eu ia falar tailandês, a qualquer custo, porque assim eu ia conseguir me virar lá. E aí, em um mês eu estava falando tailandês, assim. Eu me virei, eu era muito chata, eu entrava em todas as conversas, ficava ouvindo, assim. Se eu não entendia uma palavra, parava a conversa e perguntava o que era. Anotava no meu caderninho. Andava com um caderninho pra todo lado. E aí eu acabei virando a intercambista lá do nosso grupo, de intercambistas do mundo, que mais falava tailandês. Todo mundo me chamava pra dar entrevista sobre o programa de intercâmbio. Aí eu fiz muitos amigos e dali pra frente, assim, foi incrível, porque eu acho que a Tailândia trouxe pra mim duas coisas muito importantes: uma é essa questão da religiosidade, lá é um país muito budista. E o budismo é muito diferente do catolicismo, no qual eu fui meio que concebida. Minha avó era muito católica. Minha mãe não era, mas minha avó era. É uma outra visão de mundo. E acho que me trouxe também a certeza de que nós somos seres amplamente adaptáveis, a qualquer coisa. Tanto que, quando eu voltei, eu cheguei no aeroporto, depois de um ano sem ver a minha mãe, eu falei com a minha mãe oito vezes, por telefone, depois que tinha telefone. Minha casa nem tinha telefone, ela tinha que mandar um telegrama avisando a hora que ela ia ligar, pra eu poder ir pra um outro lugar, pra atender o telefone dela. Em um ano eu falei oito vezes. Quando eu cheguei no aeroporto, eu olhei pra ela e falei assim: “Mãe, eu quero voltar”. (risos) Você imagina! Que ingrata, né? Meu Deus do céu! Como minha mãe sofreu comigo, gente! (risos) Mas foi demais.
P/1 – E depois dessa experiência, imersão cultural, numa outra cultura, como foi voltar, já com os pais separados, voltando pra mesma escola, mas acredito que muito diferente, né? Você.
R - Muito diferente. Eu estava muito diferente. Eu não conseguia mais entender muita coisa. Porque eu acho que pra eu sobreviver lá, eu precisei dar uma apagada em alguns conceitos meus. Uma vez me contaram isso e é exatamente: como você trocar a lente dos seus óculos. Você está enxergando com uma lente, aí quando você vai pra lá, você troca a lente, tem que botar outra. E eu não conseguia mais trazer a lente de volta. Tanto que, assim, na escola eu não mantive as minhas amizades, não conseguia mais me relacionar com as pessoas que estavam, daquele jeito que eu me relacionava antes. Quando eu estava lá, eu lembro que teve um dia que a minha mãe mandou telegrama e, nesse dia, ela me contou que eles iam mudar da nossa casa, que a separação já estava andando, que eles iam sair da casa. Esse dia foi bem duro pra mim, (choro) porque imagina: eu fui pra Tailândia e quando eu voltei, não voltei mais pra minha casa, sabe, que eu morei a vida inteira. Então, foi bem difícil, assim, de ter sabido essa notícia por telefone. E meu pai mandava muita carta. (choro) Eu me lembro, assim. Meu pai foi demais, porque ele era muito frio, um cara muito frio. Nunca dialogava muito com a gente, assim. E, na Tailândia, ele me mandava cada carta! Receber as cartas dele, eu passava o dia inteiro chorando, porque ele é lindo, assim. Ele fazia cada poesia, sabe? E ele declarava o amor dele por mim, da filha que ele tinha, não sei o quê. Coisa que ele não fazia, quando eu estava aí. Então, foi bem especial essa conexão à distância. (risos) Acho que eu me conectei mais com ele à distância, do que quando eu estava perto dele. E aí, voltar não foi fácil, foi bem difícil, porque eu estava muito diferente. Eu não me adaptava mais. Minha mãe já estava casada com outra pessoa, meu pai também estava namorando outra pessoa, então tivemos um processo bem duro de adaptação, desses novos jeitos, dessas novas pessoas que entram na nossa família, que não viveram com a gente todos esses anos e são muito diferentes, de personalidade. Tivemos vários embates, assim. Não foi nada fácil, foi bem difícil. Mas aí eu fiquei só um ano em Friburgo e logo eu fui pro Rio. E, quando eu estava em Friburgo, eu comecei a namorar com um menino chamado Gustavo Schettino, que a irmã dele hoje é minha sócia. Foi com a Raquel Schettino que eu fundei a Rede Asta. Então, (risos) também pensando por esse ponto, foi super importante ter conhecido o Gu e ficamos quatro anos juntos. Eu fui pro Rio, eu estava com ele, fui fazer o pré-vestibular lá. Aí, quando eu fui pro Rio, já fui numa de mais autonomia, de deixar pra trás e de viver a minha vida. Agora estava na hora de eu viver a minha vida. E voltei com muita vontade de fazer Diplomacia. Quando você viaja, você fala: “Eu quero viajar, eu quero conhecer esse mundão aí, porque esse mundão é incrível”. E aí eu cismei que eu ia fazer Direito e Relações Internacionais e que eu ia tentar passar pra faculdade de Relações Internacionais da UNB, da Universidade de Brasília. Tanto que eu fiquei no Rio, fiz pré-vestibular, passei pra Ufrj, em Direito e fui morar em Brasília durante seis meses, pra tentar o pré-vestibular lá. Mas em Brasília eu caí numa gandaia danada, (risos) não deu certo estudar. Foi bom demais! Fiz muito amigo, vivi minha juventude adoidado e não passei lá e acabei fazendo Estácio de Sá aqui, fiz Relações Internacionais e Direito, ao mesmo tempo.
P/1 – Como foi em Brasília? O que você fazia?
R – Aff, Maria! Brasília foi bom demais! (risos) Brasília foi um hiato na minha vida, assim, que eu fui lá pra estudar, morei na casa de uma tia minha, que eu tinha, no Lago Norte de Brasília, então eu ia de carona com minhas amigas, pro Objetivo. Eu estudei no Objetivo. Mas eu conheci muita gente legal. A gente fez uma turma de amigos, que a gente saía todo dia, a gente ia lá pro Gilberto Salomão. Ih, meu Deus, era bom demais! A gente ia estudar naquele templo lindo que tem, o Templo da LBV de Brasília. A gente ia sempre estudar lá. E eu me lembro de Brasília como se fosse um sabático, pra mim, assim. Eu voltando, fiz aquele ano de pré-vestibular, que é super difícil, estudando igual uma louca, sete horas por dia e aí passou. Quando passa, você faz vuhhhhhhhhh, agora vamos lá, ver o que vem pela frente e Brasília foi esse vuhhhhhhh, mas muito divertido, nossa! Ai, gente, eu curti a vida adoidado. Foi bom demais. (risos) Que meus pais não saibam! Agora, vão saber, né? (risos) Já vão assistir isso aqui. (risos) Mas foram só seis meses.
P/1 – Seis?
R – Seis.
P/1 - E como foi entrar na faculdade? Primeiro você fez Direito?
R – Eu fiz duas faculdades ao mesmo tempo. Então, o que aconteceu? Eu fui morar em Niterói, depois que eu voltei de Brasília, num apartamento da minha dinda, que tinha comprado apartamento, não tinha ninguém morando, eu fui sozinha morar nesse apartamento. Primeira vez que eu fui morar sozinha. Então, já é um impacto, assim. Eu tinha dezoito anos e aí fui morar sozinha, pela primeira vez. E eu estudava no Rio. Então, eu fazia Ufrj de manhã, tinha que sair de casa seis horas da manhã, pegava ônibus, ia pra faculdade de manhã, almoçava lá mesmo, voltava pra casa, em Niterói e depois pegava o ônibus pra voltar pro Rio, pra fazer faculdade à noite, na Estácio. Então, minha rotina era essa. Saía às seis da manhã, voltava, depois fui fazer na Estácio e chegava meia-noite em casa. Onze horas, meia-noite. E sempre pegando ônibus, atravessando a ponte. Até que eu consegui um estágio. O primeiro estágio que eu fui fazer eu tinha dois meses de faculdade. Não, mentira. Acho que eu estava no segundo semestre, se eu não me engano e aí fui estagiar na Firjan, carimbando certificado de origem. Nunca me esqueço. Tinha uma área que era o Centro Internacional de Negócios da Firjan e aí eu fui lá, pra ficar lá, pá, carimbando. Eu carimbava o dia inteiro. Chegava em casa, quase dormia, fazendo assim. (risos) Carimbando certificado de origem. (risos) Mas foi muito legal também, conheci o mundo mais corporativo da Firjan, todo certinho, fiz muitas amizades e aí eu estudava de manhã, trabalhava na Firjan de tarde, estudava de noite e voltava pra casa. E acho que foi minha rotina durante alguns anos. Até o dia que meu pai fez uma cirurgia em uma moça e ela não tinha dinheiro pra pagar a cirurgia e deu um Golzinho pro meu pai, um carrinho velho, Golzinho quadradinho daqueles, sabe? Rodado à beça. E meu pai falou: “Um carrinho aqui pra você. Acabei de ganhar”. Nossa, fui tão feliz com aquele Golzinho! Foi o melhor presente da minha vida! Aff, minha vida foi outra, depois daquele Golzinho. Nunca me esqueço do meu Golzinho azul.
P/1 - E quais eram as suas expectativas de carreira, nessa época? Ainda a Diplomacia?
R – Ainda a Diplomacia. Eu fui perseguindo a Diplomacia. Tanto que eu entrei na faculdade de Direito e eu queria fazer a cadeira de Direito Internacional. Eu só entrei no Direito, pra fazer Direito Internacional. Só que Direito Internacional da Ufrj era muito ruim, o professor era muito ruim. Eu nunca aprendi nada. Enfim, eu não sei por que eu fiz Direito, né? Foi um desvio da minha história, assim. (risos) Eu não devia ter feito Direito. Mas eu fiz porque eu conheci tanta gente legal também, farreei à beça. Ihhhhh. Tomava mais cerveja, que estudava. Era bom pra caramba. E Relações Internacionais, que também era muito focado em Comércio Exterior. Então, assim, eu não tinha disciplinas políticas, nada dessa área política. Isso só mudou a minha vida depois que eu fui fazer o projeto Realice, com a minha amiga, que foi mais ou menos no final da faculdade.
P/1 – Me conta desse projeto. Como surgiu essa ideia?
R – Esse, sim, foi o presente da minha vida, mudou tudo. Eu estava cursando Direito e RI e aí eu mudei de trabalho, eu estava trabalhando numa multinacional chamada Forever Living Products, que era de cosméticos, americana, em Botafogo. E aí estava lá trabalhando, estava tudo indo bem, crescendo, evoluindo. Ia, eventualmente, virar uma executiva naquela empresa. E aí uma amigona minha, que eu conheci na Firjan, que inclusive fazia a Estácio também, a Renata, foi pra Nova Zelândia e voltou dessa viagem, assim, transformada, falou: “Ai, Alice, sério: as pessoas jovens brasileiras ficam aqui, trabalham, trabalham, trabalham, trabalham, casam, têm filhos e não sei o quê. A gente não viaja. Os israelenses, os europeus saem do ensino médio e vão trabalhar em café, pra fazer dinheiro, pra depois viajar, fazer um mochilão, não sei o quê. Então, eles têm muito essa experiência. E a gente não tem. Vamos viajar”. Eu falei na hora, topei, nem pensei duas vezes. E aí a gente começou a fazer várias reuniões. Era muito engraçado, que a gente pegava o mapa-múndi, assim, botava em cima da mesma, pegava dois copos de cerveja e a gente: “Vamos pra esse aqui. Esse aqui deve ser muito legal”. Pá. A gente marcava. “Não, vamos pra esse aqui também”. Pá e marcava. A gente fez uma viagem de dois anos. A gente marcou, ia fazer uma viagem de dois anos, por 79 países. Praticamente louca. Enfim, a gente foi conversando, conversando, conversando e a gente falou: “Cara, a gente vai viajar por viajar? Não, né?” A gente tinha 23 anos, na época. “Vamos fazer alguma coisa, vamos pensar mais no projeto”. Aí ela: “Tá. Como é que a gente faz isso?” Eu falei: “Não tenho a menor ideia. Vamos ligar pra quem sabe fazer isso” “Quem sabe fazer isso?” “Amyr Klink”. Pá, pega o telefone. (risos) A gente deitada na nossa cama, assim, no quarto, liga pro Amyr Klink: “Oi, tudo bem? Então, a gente queria falar com o Amyr Klink” “Olha, ele não pode atender vocês. O que vocês querem?” Foi o assessor de comunicação do Amyr Klink que atendeu a gente. E ele curtiu a nossa maluquice e começou a contar tudo: “Gente, não é assim. Vocês fizeram projeto? Tem que fazer assim, assim e assim, de aventura. A primeira coisa que vocês têm que ter é um objetivo, um propósito. O que vocês vão fazer, nessa viagem? Vão viajar por viajar? Não funciona. O que vocês vão fazer?” A gente: “Ihhhh, é mesmo. O que a gente vai fazer?” Aí, bem, desligamos o telefone com ele: “Bem, primeira missão: vamos arrumar um objetivo pra gente fazer no projeto”. E aí, depois, conversando com várias pessoas do terceiro setor, estava super na moda, começando a aparecer comunidade. Eu nunca tinha entrado numa favela na minha vida. Isso estava fora de cogitação, não estava no meu radar. E aí um amigão nosso, da Firjan, que era um amigão da Renata, Salomão, que até faleceu, falou assim: “Por que vocês não vão pesquisar projetos sociais lá fora?” Aí, Renata: “Humm, interessante”. Ela voltou com essa ideia, eu falei: “Tá, vamos ver o que é isso”. Aí eu comecei a me conectar no Rio de Janeiro mesmo, sabe? Falar com algumas organizações grandes, famosas e pedindo: “Posso te visitar? Deixa eu conhecer o que você faz?”, tal. Comecei a entrar nesse mundo. Foi muito, assim, na cara de pau. A gente ligava pras pessoas, chegou a ligar pro presidente da Sadia, a gente era completamente maluca. E a gente foi, foi indo, foi indo e a gente decidiu, então, virou Projeto Realice – super criativo, Renata e Alice - uma aventura socialmente responsável. Então, esse era o nosso tagline. E a gente passou um ano, a Renata era de Vitória, ela morava sozinha no Rio também, pra gente economizar dinheiro, ela veio pro meu apartamento, morar comigo e com os meus irmãos. No meio dos corredores, ela e meu irmão se misturaram, casaram, ficaram quinze anos juntos e ela virou minha irmãzona, melhor amiga, a gente passou um ano trabalhando no projeto, aí a gente conseguiu várias parcerias. A Osklen foi uma das únicas financiadoras que aportou pro projeto e a gente conseguiu chancela da Unesco, do Ministério das Relações Exteriores, na época o ministro recebeu a gente no gabinete dele. Quando a gente chegou lá de uniforme, a logomarca do Realice, toda chique a gente chegava lá, ele falou assim: “Minhas filhas, o que vocês estão fazendo aqui?” Aí a gente falou: “Olha, ‘seu’ ministro, a gente gostaria que o senhor abrisse as portas das embaixadas, que a gente quer passar, não sei o que, não sei o que, não sei o quê”. E o cara: “Anota”. E ele foi e abriu as portas das embaixadas brasileiras. A gente conseguiu mais de dez parcerias. Que um deu curso de jornalismo, o outro deu o seguro-saúde, seguro-viagem. A gente foi conseguindo, até o dia que a gente falou: “Não, agora chega, vamos raspar a poupancinha que a gente tinha, da vida de trabalho, Fgts, raspa tudo e vamos embora, porque não dá mais pra esperar”. E a gente foi viajar, só que a gente não foi aquilo tudo de país, óbvio, a gente resolveu fazer um piloto, que a gente chama, porque a gente é chique e a gente fez Índia, Bangladesh, Tailândia e Vietnã e foi o piloto mais intenso da minha vida, a gente passou quatro meses viajando por esses países, com muito pouca grana, de mochilão, duas meninas, imagina, de 23 anos, viajando a Índia inteira. Norte, sul, leste, oeste, pegando camelo como meio de transporte, trens. A gente não andava de primeira classe. A gente andava de segunda classe, ali, de trens, ônibus, os transportes mais loucos e, nossa, essa viagem, se eu parar pra contar aqui, vai a entrevista inteira só falando dela. Tem muita coisa, assim. Tem um episódio, aliás, bem marcante, depois eu te conto.
P/1 – Teve algum episódio marcante que você queira contar? Como foi conhecer isso: culturas muito diferentes? Como foi essa experiência, estando acompanhada, mas sendo mulher?
R – Eu aprendi uma coisa nessa viagem: ficar muito ligada nos meus instintos e a acreditar nos anjos da guarda, porque eles existem, gente. Nossa, se eles não existissem, eu não estava viva nessa viagem, não estava. Três situações, tiveram algumas situações que a gente não era pra estar viva. (risos) Mas a gente acreditava, sabe? E era muito louco. Na hora que a gente estava no maior sufoco, vinha alguém e fazia assim, puf, tirava a gente do sufoco. Aconteceu isso umas três vezes. Você ia ver, o cara sumiu. Então, tinha um misticismo ali, tinha uns anjos da guarda protegendo a gente. Eu percebi, depois dessa viagem, que eu não vim a esse mundo de passeio, sabe assim? Tem alguma coisa que eu preciso fazer aqui e não é pouca coisa, não, porque me salvaram de umas ali, que a minha dívida é grande com o universo. Mas teve um em especial, eu até contei isso num live talk que eu dei, que eu e Renata estávamos em Delhi e estava indo pro Nepal e resolveu - a gente era muito sem noção – ir pro Nepal na época que o Nepal estava em guerra, dos maoístas, na época de 2003. Então, estava uma situação bem difícil lá. A gente encontrou algumas pessoas, todo mundo falava: “Não vai, não vai. Está tendo revista na estrada, vocês vão de ônibus, passar pela fronteira”. E a gente falou: “Nós vamos”, que a gente queria dar uma de repórter maluca, a gente resolveu ir. E aí a gente estavam em Delhi, a gente ia pegar as nossas malas e a gente ia pegar um trem, que ia de Delhi pra Varanasi, de Vananasi a gente ia pegar o ônibus pro Nepal. Só que a gente não sabia, mas a gente estava no meio do festival Diwali, que é o festival mais importante da Índia, como se fosse o Natal e Ano Novo deles. E a gente estava na estação de trem e ia pegar o último trem, que ia pra região do Bihar, que é uma das regiões mais pobres da Índia. E esse trem foi invadido, completamente. A gente não tinha ideia. Enfim, a gente se separou na estação, por alguns motivos, a Renata foi pegar a mala e eu falei: “A gente se encontra na plataforma”. Só que eu cheguei na plataforma, não dava pra ver, porque estava muito lotado, muita gente, eu não a achei, não a achava e aí eu fui chegar mais perto do trem, pra saber se ela tinha entrado, ver se eu conseguia ver no vagão. E na hora que eu cheguei perto do trem, veio um cara querendo pular, entrar no vagão. Ele passou por cima, pulou por cima da gente, assim e o pé dele agarrou na minha bolsinha, eu estava carregando uma bolsinha com meu passaporte, meu cartão de crédito e meu caderno de contatos, com todos os contatos que a gente fazia e um pouco de dinheiro. E quando esse cara passou por cima, a minha bolsinha voou e, quando eu olhei pra ela, estava sem nada. Perdi tudo: passaporte, tudo. Aí eu entrei em pânico, falei: “Caraca, o que eu vou fazer agora?” Aí o trem começou a apitar, pra sair e eu falei: “Gente, o que eu faço? Eu entro nesse trem, eu fico aqui? Eu não sei o que eu vou fazer”. E aí, não sei por que, eu falei: “Deve ter caído dentro do trem, eu preciso entrar”. Aí eu olhei pra trás e falei assim: “Me bota pra dentro” e aí um cara: “Você quer, mesmo?” Eu falei: “Quero”. Aí ele pegou o pé dele, assim, me empurrou pra dentro do trem, porque não dava, era muita gente e aí eu fui entrando, assim, no trem, chorando, desesperada, (risos) não sabia o que fazer, eu só chorava, chorava, chorava e, nisso, eu estava com um manto, que é tipo um lenço amarelo, que é meio sagrado, assim, mas estava com uma camiseta por baixo. E eu era a única mulher, no trem inteiro. Tantas mãos. Ai, não gosto nem de lembrar. Era mão pra tudo que é lado, no meu corpo, sabe? Na hora que eu estava entrando no trem. Ai, mão nojenta pra tudo que é lado. E aquilo foi me dando um pânico, aí teve uma hora que eu entrei, eu falei: “Eu vou desmaiar”. Estava muito calor, um cheiro horrível, assim. Aí eu segurei a onda, falei: “Não desmaia. Se você desmaiar, vai dar problemas. Segura a onda”. Aí eu segurei a onda, segurei a onda, chorando, chorando, chorando, o trem fechou a porta, no que deu pra fechar e eu não consegui nem... eu fiquei, sei lá, menos de cinquenta centímetros da porta do trem. Não deu pra entrar no vagão. Eu fiquei entre um vagão e outro, naquele intervalo de vagões. E, dentro desse intervalo, devia ser, sei lá, um espaço de três por três, tinha umas sessenta pessoas. E era um amontoado, não tinha posição pra ficar, ficava do jeito que dava, né? Enfim, eu entrei, aí fui respirando, tentando me acalmar e perguntei: “Alguém fala inglês?” E aí um menino que estava do meu lado, chamado Arum, falou: “Eu falo”. Eu falei: “Arum, pergunta quando o trem vai parar, porque eu não tenho condição de viajar nessa situação, preciso sair. Eu não vou achar as minhas coisas aqui”. Aí ele perguntou, voltou e falou assim: “O trem só para em Varanasi”. Quinze horas depois. (risos) Aí eu entrei em pânico de novo e falei: “Cara, como eu vou viajar quinze horas em pé?” Isso era dez horas da noite e o trem chegava uma da tarde, do dia seguinte. Aí eu falei: “Vamos lá, né? Respira fundo e vai do jeito que dá”. Enfim, aí foi, teve uma hora que eu lembro que eu estava com muita sede, porque não tinha nada pra beber, aí estavam passando uma água amarela, daquelas da Índia, que falam pra você: “Não beba essa água”. Não teve jeito, eu bebi, porque eu senti o que é sede. Eu nunca soube o que era sede de verdade, sentir o que é sede de verdade, o que é fome de verdade, sabe assim? Eu senti ali. E, enfim, o Arum foi um anjo da guarda. Um desses anjos da guarda, que ficou viajando do meu lado o tempo inteiro. Teve uma hora que ele confundiu um pouco as coisas, porque a gente não tinha posição, então, pra sentar um pouco, eu tinha que entrelaçar as minhas pernas nele, sabe assim? Tinha que ser um negócio... e ele nunca tinha sido tocado, assim, por uma mulher. Ele era de uma casta mais baixa, lá do Bihar, tinha sido prometido em noivado e ele falou: “Quando a gente chegar em Varanasi, eu vou vender o meu anel de noivado, pra gente comer”. Enfim, viajamos assim, nessa situação, chegamos lá em Varanasi uma hora da tarde e aí eu falei pra ele: “Continua, segue pra sua casa”. Tinha três anos que ele não via a família, ia voltar a ver a família pela primeira vez, eu falei: “Deixa que eu já estou aqui, aqui eu me organizo”. Ele: “Não vou te deixar, eu conheço meu país, eu vou ficar com você”. Ele desceu comigo em Varanasi. E foi a salvação, porque a história não termina aí. (risos) Ele desceu comigo, eu estava sem dinheiro, tinha perdido tudo e aí a gente foi dar queixa da perda dos meus documentos numa delegacia, ele foi comigo, ficou traduzindo e tal, aí eu fui pra uma lan house, pedir pra eu mandar um e-mail pra Renata. Não sabia onde ela estava, não sabia o que tinha acontecido com ela. E aí eu mandei um e-mail e ela me respondeu na mesma hora. Não, quando eu cheguei na caixa de mensagens, tinha um e-mail dela, falando assim: “Alice, pelo amor de Deus, você foi sequestrada, onde você está? Você não pode ter pegado aquele trem, era humanamente impossível entrar nele, mas se você entrou, fica aí em Varanasi, curte o Diwali...”- quando ela falou ‘curte o Diwali’, eu uaaaaaaaaa, comecei a chorar (risos) – “... que eu já estou chegando. Amanhã eu pego um trem e eu chego aí de noite”. Aí eu respondi, contando toda situação, falei que eu não tinha nada, não tinha como comer, não tinha dinheiro, não tinha cartão de crédito, nada, o que eu ia fazer, né? Imagina: perdida em Varanasi, sem documento, sem nada. Aí ela falou: “Espera que eu vou arrumar um contato, consegui um contato, o diretor da estação de trem de Varanasi”. Aí eu fui lá, bati na porta dele, aí ele já tinha sabido da minha história, ele deu um prato de comida pra mim e pro Arum e falou: “Vou te botar no próximo trem, de volta. Você volta pra Delhi”. Aí a gente comeu e fomos. E o trem estava vazio, não tinha ninguém. Completamente vazio. Aí eu falei: “Puts, vou dormir, né?” Quando cheguei no trem, dormi um pouco, quando acordei o Arum estava conversando com dois policiais indianos, dentro do trem. E eu sabia das histórias dos policiais indianos, né? E aí eu o chamei e falei: “Arum, o que está acontecendo?” Ele falou: “Não, está tudo bem. Eles estão preocupados com você, porque você é a única estrangeira no trem, eles querem garantir a sua segurança, que a gente vá pra um outro vagão”. Eu: “Você tem certeza?” Ele: “Tenho certeza”. Eu falei: “Tá bom, então vamos”. Aí, os dois na frente e a gente atrás e vagão, vagão, vagão. Cara, a gente andou muito e cada vez que a gente passava, menos gente ia tendo. Então, os vagões todos apagados. Chegou no último vagão, tinham mais três policiais. Aí eles falaram: “A gente vai ficar aqui”. Aí eu falei: “Isso não está bonito”. Comecei a ficar nervosa. Imagina: eu não tinha documento, se alguma coisa acontece comigo, ninguém nunca mais ia me achar, né? E aí, de repente, o Arum começa a brigar com os policiais. Os policiais o pegaram, o empurravam assim, o botavam na parede, começaram a brigar, eu cheguei lá no meio e falei assim: “Gente, o que está acontecendo?” Chamei: “Arum, pelo amor de Deus, o que está acontecendo?” Ele chorou, começou a chorar, chorar, chorar e falar: “Eles querem me jogar pra fora do trem, porque eles estão dizendo que eu não sou uma boa pessoa pra você, que eu quero te fazer mal”. Aí eu comecei a falar inglês com os caras, assim: “He my friend, he stay, my side. He stay”. Não sei o que, comecei a falar e agarrei no Arum, fiquei assim com ele, junto com ele, sabe? Fiquei a viagem inteira assim, mais, sei lá, dez horas de volta, eu e ele sentado, assim e os policiais o mandando sentar, mandando eu dormir, tentando tirá-lo de mim, ele voltava. Então, eles viram que eu não ia soltar, se o jogassem pra fora, iam ter que me jogar também, acho que eles devem ter pensado um pouco e chegou em Delhi (risos) nessa situação, depois disso tudo. Eu cheguei acabada, toda suja, toda... nossa, Renata foi me buscar... aí a Renata ficou, nessa situação toda, quando eu fui no trem, ela dormiu na estação de trem e os ratos passando em tudo que é lado, me esperando, me chamando no interfone da estação e não me achava. Enfim, e a gente se reencontrou e foi bem... e fiquei sabendo de uma história, uma semana depois, de uma francesa que tinha sido estuprada bem desse jeito, assim. A levaram prum vagão mais distante, onde tinham mais policiais e ela foi estuprada por policiais. Então, escapei, assim, de uma, por causa do Arum. Se o Arum não estivesse comigo, eu não estaria aqui, pra contar essa história. Foi isso. (suspiro)
P/1 – E como foi tudo isso, depois de ter vivido essa experiência? Vocês continuaram a viagem?
R – A gente continuou. Eu fiquei bem debilitada. Foi ruim depois, pra mim. Foi um tempo ruim, porque eu já não queria mais a Índia. Aquilo, pra mim, foi demais. Falamos: “Vamos embora, vamos embora”. A gente já estava meio que saindo da Índia, mesmo, a gente decidiu não fazer o Nepal, porque a gente entendeu isso como um sinal, falou: “Cara, nós não vamos cair na burrada agora de fazer a mesma viagem e ir pro mesmo lugar”. Pra mim aquilo foi um sinal, porque não ia dar certo se fosse pro Nepal, sabe? Eu acho que tinha, também, esse sinal por trás. Pra mim essa foi minha leitura. E aí a gente continuou e fomos pra Bangladesh, de ônibus. A gente dormiu na fronteira, que a gente não podia atravessar à noite, então a gente dormiu na fronteira da Índia com Bangladesh, dentro do ônibus pra, no dia seguinte, a gente poder atravessar. E eu estava ingênua, não conhecia nada, imagina, achando que Bangladesh ia ser melhor do que a Índia. (risos) Mas não pode ter nada pior, sabe assim? “Vai ter um lugar melhor”. Gente, Bangladesh. E a gente ia entrar no Bangladesh e não via asfalto, eram casebres pouco iluminados e estrada de chão, não via asfalto e de repente o cara fala: “Chegamos. Estamos em Daca”. Aí eu: “Ué, gente, cadê a cidade grande? Cadê o supermercado? Cadê o mercado? Impossível”. Não tinha. Era um... bem, Bangladesh é um capítulo à parte, né? Porque é isso: um país muito pobre e muito densamente populado e a gente chegou em Bangladesh no meio do Ramadã, que é o jejum dos islâmicos. Então, tinha todo esse processo do jejum, de manhã e a gente não fazia Ramadã e a Renata fumava. A gente andando na rua, um dia ela começou a fumar, os caras quase a lincharam, sabe, porque ela estava fumando, no meio do Ramadã. E aí foi um processo também, mas foi lindo: a gente visitou várias iniciativas de microcrédito, foi lá que eu conheci o microcrédito, que a gente viu o Grameen Bank, assim, mesmo que por fora, a gente estudou, ficamos sabendo como funcionava. E tanta inovação social que aquele país tem, apesar de ser tão miserável assim, sob o ponto de vista de grana, de acesso, de recurso, né? Mas tanta inovação social. Então, foi muito legal também ter conhecido esse lado, a gente visitou muitas confecções, que lá também tem essa coisa da confecção, garnet, que eles chamam. Muitas fábricas gigantescas e aquelas ruas enormes, com aquelas oficinas pequenininhas. Então, conhecer um pouco dessa realidade dura de onde vem a nossa roupa, né? Tanto que tem algumas marcas, quando eu olho, eu já puf, na hora, eu remonto pro lugar que eu visitei e eu falo: “Não, isso aqui eu não compro”. Então, foi bem especial também, maduro. E aí, de Bangladesh, a gente foi pra Tailândia. A Tailândia eu conhecia, né? Lá, aí, sim, quando a gente chegou no aeroporto de Chiang Mai, gente! O aeroporto de Chiang Mai é lindo. Tinha orquídeas. A Renata ficava assim: “Orquídeas! Não estou acreditando. Orquídeas!” Meu Deus, depois de tanta loucura que a gente viu, a gente foi pra um lugar que era mais próximo da nossa cultura, mais organizado, aí foi lindo! Eu reencontrei minha família, fazia tanto tempo que eu não via, reencontrei lá, voltei a falar tailandês, foi muito gostoso. Aquela comida maravilhosa. Foi demais.
P/1 – E, Alice, qual foi o propósito dessa viagem, assim? Vocês estavam buscando o que, exatamente? Vocês chegaram a encontrar essa busca? Vocês acabaram se surpreendendo com outras coisas? Como foi?
R – A nossa ideia era pesquisar essas iniciativas sociais locais que davam certo, catalogar isso, botar no nosso site, que era o realice.com.br e a gente tinha uma rede de escolas que visitavam esse site, pra conhecer sobre as histórias desses países, através da nossa lente de jovens, tal e a gente queria meio que montar um banco de iniciativas, sabe? Ideias legais que a gente pesquisasse e poderiam servir pra cá. Então, acho que isso a gente cumpriu, esse papel. A gente trabalhava muito, a gente escrevia, fazia diário, eu tenho um diário de não sei quantas páginas, escrevi todos os dias, a Renata escreveu todos os dias. Dava pra aproveitar um livro dessa viagem. Realmente, um dia ainda vou fazer isso. (risos) É que não deu tempo. Mas, sob o ponto de vista prático e tático do que a gente tinha se programado a fazer, a gente fez. Mas acho que a maior transformação da viagem, não foi pra fora, foi pra dentro. Ali eu me entendi como - eu nem sabia o que era isso ainda – uma empreendedora social, sabe? Ali, quando eu voltei, eu falei: “Nunca mais eu vou trabalhar para uma grande empresa, na minha vida”. Quando eu cheguei, eu falei: “Eu tenho muita coisa pra fazer. Eu não posso ficar gastando meu tempo e todos os recursos que eu tenho, tudo que meus pais conseguiram me dar, né? Olha como eu sou privilegiada, de ter nascido branca, numa casa com recursos, ter sido filha de médico. Olha quanta coisa eu recebi! Eu não posso ficar só pra mim e transformar isso numa estrutura puramente material, sabe? Eu preciso usar isso que eu tenho, pra entregar pras pessoas e pro mundo, o que eu puder entregar”. E ali eu percebi isso. Ali eu me dei conta de que era preciso. Que eu não ia ser mais diplomata, de jeito nenhum. Aí eu falei: “Você está louca que eu vou ficar numa embaixada, num consulado, tratando de burocracia e de política. Eu não vou nem pensar. Eu vou é fazer”. Ali eu percebi que eu tinha que fazer. E a gente visitou muitas casas de artesanato na Índia. Muitos projetos de geração de renda e eu fiquei muito apaixonada. A Renata me falou isso, eu nem lembro. Na época não tinha Asta, não tinha nada, né? Ela disse que um dia eu estava andando numa dessas ruas que têm umas feiras vendendo artesanato e eu falei pra ela assim: “Um dia eu ainda vou trabalhar com isso e eu vou ficar vendendo essas coisas”. (risos) E foi meio que doido, porque quando eu voltei, eu também não sabia o que eu ia fazer. Fiquei perdidinha. Voltei e fiquei um ano perdidaça, sem ter noção do que eu ia fazer, mas eu sabia que eu queria ir pro terceiro setor. Isso virou um drive importante e foi isso que eu fiz.
P/1 – E hoje, como você percebe? A virada foi dada nesse projeto, nessa viagem, mas quais foram os próximos passos, pra você conseguir realizar, ir atrás do que você nem sabia ainda, mas já sabia que ia chegar em algum lugar?
R – Sim. E aí a virada foi dada quando eu resolvi aplicar pra voluntária. Eu sabia que eu não tinha experiência pra ganhar dinheiro trabalhando nisso, eu precisava ganhar experiência e aí um dia eu mandei meu currículo pro grupo cultural Afroreggae, do Junior. E o setor de parceria institucional recebeu meu currículo, gostou e falou: “Vem” e eu fui, fiquei seis meses como voluntária, na área de parcerias institucionais, depois eles me contrataram e eu fiquei dois anos trabalhando no Afroreggae e foi muito importante pra mim, porque eu vivi a realidade das favelas, né? Eu estava sempre em Vigário Geral, sempre em Parada de Lucas, pensando projeto, entendendo, conversando com as pessoas, vivendo aquela realidade, pra eu saber exatamente o que era necessário. E foi ali que eu comecei a enxergar o papel das mulheres, né? Foi muito forte pra mim, assim, essa coisa da mulher, da mãe, moradora da comunidade. Quando ela estava desassistida, não tinha as oportunidades da vida, acabava que o filho também não tinha. Estava tudo meio que sempre conectado a essa figura feminina. O pai, muitas vezes, nem existia. Então, eu comecei a pensar em programas de mulheres lá dentro. Acabou que a gente não conseguiu evoluir e aí eu reencontrei a Raquel Schettino, porque eu sabia que eu tinha que fazer alguma coisa com geração de rendas. Não sabia nem que esse era o nome. Queria vender, pra gerar dinheiro, sabe assim? Fazer algum tipo de transação comercial que gerasse dinheiro. E a Raquel, que era minha ex-cunhada, tinha ido pra Suíça, passado muitos anos lá, trabalhando em multinacional, era especialista em Comércio Exterior e ela tinha vindo pro Rio, eu fiquei sabendo que ela estava no Rio, procurando outro emprego, assim, que ela tinha largado tudo lá e eu falei: “Nossa, Raquel, vem cá, vamos conversar, vamos fazer alguma coisa”. Que ela tinha experiência comercial, eu não tinha. E pronto, assim a gente foi. A gente começou a visitar umas feiras, aí descobrimos um artesão que fazia arte com jornal, o Edinelson, que está com a gente até hoje, a família dele toda está com a gente até hoje. E aí descobrimos uma galera lá em Campo Grande, que fazia um trabalho de arte em jornal, que ainda não era muito bom e a gente falou: “Vamos levar o Edinelson lá e vamos criar um grupo, pra gente treinar e era um grupo de trinta mulheres, depois virou um grupo de dez mulheres e a gente é um grupo produtivo, estávamos ali: elas produziam, a gente fazia a gestão e vendia. E foi assim que a gente começou. A Asta nasceu assim, nasceu do nome Mãos Brasil, eu e Raquel, começou como Mãos Brasil, depois que virou Rede Asta. Assim, experimentando. Indo lá, fazendo, conhecendo as pessoas, sabendo o que era necessário, sabe? Tudo pequenininho, sem dinheiro, sem nada, não tinha nenhum financiamento. Era a gente fazendo.
P/1 – E nesses encontros teve alguma história marcante, que tenha te tocado, de alguma forma?
R – Uma só, não, né? Os encontros têm um milhão de histórias marcantes. Nossa, cada ser humano é um mundo. Ai, Dona Zezé, Juraci. A gente entregava pra elas umas coisas que elas não sabiam fazer e elas faziam o que a gente não sabia fazer. Então, a gente era uma comunhão, assim, de parceria. E gerou bastante renda, ali. Mas quando a gente resolveu abrir um quiosque no Shopping Tijuca, era o Quiosque Mãos Brasil, que a gente trabalhava no quiosque, então tinha duas funcionárias, mas quem batia a barriga no balcão lá éramos eu e Raquel. A gente ficava lá, se revezava, ia vender e tal. E aí, ali, outros artesãos começaram a procurar a gente, falavam: “Pô, você está vendendo isso aí, vende o meu também”. E aí as coisas foram acontecendo. Só sei que a gente passou dois anos e meio tirando dinheiro do bolso, não tinha mais de onde tirar. Eu lembro que não dava mais pra eu trabalhar, né, no Afroreggae, já não dava mais tempo. Ou a gente abandonava e se envolvia, pra poder construir ou não dava mais pra levar os dois ao mesmo tempo. E aí minha mãe comprou um aparelho de fazer depilação a laser, nessa época e o meu irmão estava fazendo faculdade de Medicina também, tudo ‘durango’, no Rio de Janeiro e aí minha mãe falou: “Por que vocês não fazem depilação?” Aí eu falei: “Di” – meu irmão – “você entra com a expertise técnica e eu entro com as clientes”. (risos) Eu só sei que a gente chegou a ter sessenta clientes e a gente fazia depilação a laser clandestino, dentro do nosso apartamento. O nosso quarto, a gente levantava a cama, assim, botava um pano no estrado, pra ele não aparecer e metia a maca lá e era depilação a laser na mulherada, todo dia e era assim que a gente ganhava o nosso dinheiro. Então, assim, meu trabalho foi fazer depilação a laser durante um ano inteiro, na mulherada, pra conseguir ganhar dinheiro, sabe? Aí começaram os bicos. Pra você conseguir se sustentar. Aí eu fui hastear a bandeira do PT, na época da eleição, lá na rua, ganhava dinheiro, voltava, fui ser recepcionista de evento de petróleo, fui fazendo um monte de bicos, assim, pra conseguir me bancar, enquanto a gente empreendia. E a coisa não vingava, dois anos e meio investindo, não acontecia e tal, até o dia que a gente falou: “Cara, não tem dinheiro pra pagar conta de luz. E agora?” Aí veio a ‘santa’ Mônica, que a gente brinca, que era uma mulher que vendia Natura e Avon. Ela ia lá em Ramos, na nossa casinha, que a gente tinha uma casinha lá do ex-marido da Raquel, a gente ficava lá e ela chegou vendendo Natura e a gente querendo comprar Natura, a gente falou: “Cara, não estou acreditando que a gente quer comprar Natura e a gente não tem dinheiro pra pagar a conta de luz do escritório”. Aí eu e ela se olhou na mesma hora e falou assim: “Raquel, Mônica, pega essa bolsa aqui” - enchemos de produtos que a gente vendia – “leva pra suas clientes e vende”. Aí ela voltou com a bolsa vazia, assim, uma semana depois e aí eu falei: “Quel, é isso, cara, vamos ser a primeira rede de venda direta de produtos artesanais do Brasil, assim. Vamos fazer”. E essa foi a nossa grande ideia, que surgiu porque era muito angustiante. Eu sentia que eu tinha, sabe, que ia fazer alguma coisa diferente, mas a gente não estava conseguindo fazer nada diferente. E aí a gente teve essa ideia, escrevemos esse projeto, eu fui conversar com a Cindy Lessa, que foi a segunda diretora da Ashoka no Brasil, muito querida, conheci num evento e é minha amiga até hoje. E aí eu falei: “Cindy, eu tenho essa ideia”. Aí comecei a vender aquela ideia: “Nossa, pode ser incrível, imagina milhões de pessoas vendendo esse produto, geração de renda”. E a Cindy: “Nossa, eu tenho que falar com o diretor da Avina”. Pegou o telefone e falou: “Francisco, tem que receber uma menina aí, vou te mandar a Alice, uma ideia fantástica, uma rede de venda direta, tudo a ver com a Avina. Consegue recebê-la quando? Tá bom, semana que vem”. Marcou a reunião. Fui eu pra Belo Horizonte, falar com o Francisco, aí o Francisco Azevedo falou: “Tá bom, gostei da ideia. Agora você vai ter que convencer a nossa rede, de líderes da Avina, só aqueles empreendedores tops A, que eu olhava e falava: “Meu Deus, são meus ídolos, como é que eu vou convencê-los de quem eu sou?” Eu não tinha título nenhum, não era ninguém. E aí fui lá pro evento, um a um, pa pa pa, convencendo todo mundo e aí, no final, conseguimos, assim, o primeiro financiamento da nossa vida. Foram cento e oitenta e sete mil reais, eu nunca me esqueço, pra gente tirar a rede de venda direta do papel. E tiramos, depois disso a Asta voou. Hoje já são mais de, sei lá, quinze mil mulheres atendidas, mais de dez milhões de rendas geradas, enfim, um monte de coisa bonita.
P/1 – Mas como foi esse comecinho, depois do investimento, quais foram os primeiros passos?
R – Ah, deu tudo errado. Você acha que dá certo? (risos) Eu brinco que eu sou uma grande vendedora de sonhos e uma outra coisa também que eu sou muito, que eu acho que todo mundo é um pouco, todo empreendedor é: a gente tem uma ignorância convicta, né? A gente acredita naquele negócio, mas a gente não tem a menor ideia do que é aquilo. Então, a gente vai lá e vende um sonho. Tem muita vontade de realizar, por trás. Tem muita vontade, muita força, muita garra e a gente acaba conseguindo, porque eu acho que o universo conspira, mesmo que você não saiba o que você está fazendo. Imagina rede de venda direta, gente! É o treco mais complexo da face da Terra. A gente não tinha a menor ideia do que era isso. Aí a gente foi pra uma consultoria, em São Paulo, a consultoria fez várias análises financeiras, técnicas, contando o que a gente tinha que fazer, não sei o quê. Deram uma mega diagnóstico, dizendo que todo mundo ia querer ser sócio desse negócio, que esse negócio ia dar muito dinheiro. (risos) Aí a gente falou: “Tá bom, vamos lá!” E aí começamos, né? Contratamos a primeira promotora, aí trouxe um pouquinho de gente, mas catálogo, gente, a gente não tinha a menor ideia como fazia um catálogo, como escolhia os produtos, categoria, varejo, mix, preço. Não tinha nenhuma ideia, imagina! Tudo errado. O primeiro catálogo a gente cortava a cabeça da modelo aqui, assim. Aparecia só metade da sobrancelha. (risos) Aí os preços eram cento e noventa e sete reais e trinta e um centavos, sabe assim? Tudo errado. E aí não vendia e a gente ficava: “Não é possível que não está vendendo. Os produtos são lindos, mas, gente, como é que alguém vai comprar, com esse catálogo, sabe? Os produtos não têm lé com cré, não tem categorização, não tem nada”. E aí chegou na nossa história uma mulher chamada Rosane Rosa, que caiu o nosso catálogo na mão dela, ela falou: “Puts, essas meninas aqui são corajosas, mas está tudo errado” e aí ela chamou uma conversa: “Vamos conversar”. Acabou que a Rosane era especialista em varejo, ela vinha de Ponto Frio, Casa & Vídeo, não sei o que, Shoptime e ela montou todo nosso varejo. Ela chegou, passou uma borracha em tudo que tinha sido feito, montou tudo de novo e aí começou a acontecer. As primeiras revendedoras... isso é uma coisa que a Rô falou pra gente, que eu nunca me esqueço: “Gente, não adianta vocês quererem contratar uma pessoa que vai vir de fora, uma rede com noventa vendedoras, que vocês vão bombar. Não vai. Essa rede vai nascer de dentro pra fora. Ela não vai nascer de fora pra dentro”. E aí, quem foram as primeiras revendedoras? A mãe da Raquel, minhas duas tias venderam pra caramba, sabe assim? Eu, a Raquel, a gente foi, as primeiras vendedoras. E foi de fato assim que aconteceu: a gente foi nascendo de dentro pra fora. Aí saiu uma matéria de jornal aqui, outra ali, a gente chegou a ter setecentas revendedoras no catálogo, com 59 grupos produzindo para rede de venda direta e aí, no meio do caminho, um monte de coisa começa a acontecer, a gente começa a perceber que só isso não bastava, que precisava abrir outro canal. Aí fomos abrir o canal B2B, pra vender brinde, mais peças, mais quantidade. Enfim, aí muita coisa aconteceu, em quinze anos.
P/1 – E, Alice, onde vocês encontravam essas mulheres, artesãs? Como foi esse movimento de encontrá-las? E vocês têm artesãs fixas? Como funciona isso?
R – O modelo mudou muito, tá? A gente vai chegar. O modelo hoje é outra organização. Mas a gente, antes, ia buscar, muito. Eu amava fazer isso, gente. Era a coisa que eu mais gostava de fazer: ir em feira de artesanato. Afff Maria, meu filho fala pra mim assim, quando vê uma feirinha: “Mamãe, não a deixa sair do carro. Papai, segura”. (risos) Eu sou apaixonada por uma feirinha, meu Deus do céu! Sou louca numa feirinha. Eu fui em muita feirinha. A maioria dos artesãos que a gente trouxe primeiro, pra rede, foram das feirinhas e foram das redes de organizações que a gente conhecia. Então, dentro do Afroreggae a gente acabou conhecendo muita gente, depois o Sebrae ajudou também. Então, a gente foi conhecendo as pessoas dentro das redes. E a gente ia lá, batia na porta, conversava, tomava um café, perguntava se a pessoa não queria vir, fotografava, comprava, fazia todo aquele processo. Era uma relação muito próxima com elas, todas que trabalharam com a gente, durante a nossa época de varejo. E aí a gente ia vendo as transformações acontecerem, isso não tinha preço. Aí você falava: “É isso. Eu posso ganhar mal, mas eu vou fazer esse negócio pro resto da minha vida”. (risos)
P/1 – E hoje, você tem contato direto com os artesãos?
R – A gente chega num nível de organização que eu perdi... eu fico brincando que eu, agora, estou num lugar que... é uma pena, sabe, assim? Mas eu tenho umas pessoas que a gente se relaciona muito, assim. Eu tenho uma artesã que eu falo, eu brinco que ela é minha mestra, porque a história dessa mulher é a coisa mais linda que já aconteceu, assim e ela foi um processo um pouco... foi da Asta, mas foi muito meu, porque a Lucia, quando chegou a primeira vez com a gente, ela era uma mulher assim: semi obesa, negra, uma autoestima muito baixa, ela não olhava no nosso rosto, assim, era muito envergonhada, sabe? Ela falava assim, olhando pra baixo. E ela fazia uns fuxiquinhos, difícil de vender, digamos assim. E aí, um dia, a gente a chamou e falou assim: “Moça, vamos melhorar esse fuxico aqui”. E tinha uma designer nossa, que era a Larissa, criou com ela uma almofada fuxicão, que é grandão, assim, que é uma almofada dentro, sabe? Um tecido super colorido e tal. E aí, cara, ficou o produto mais vendido da Asta, assim. Essa mulher vendeu muito, mas muito, a gente vendia muito fuxicão, toda hora era fuxicão, era um produto que não podia faltar. Era a nossa batata, na prateleira. E a Lucia fazendo dinheiro, foi ganhando dinheiro. Não só dinheiro, mas ela foi ganhando autoestima, foi se percebendo, aí ela foi levantando a cabeça, sabe assim? Ela foi se posicionando de um jeito diferente e a gente visitava muito a casa dela, porque a gente levava, acabava levando o financeiro, o patrocinador pra conhecê-la e tal. Ela morava numa comunidade bem difícil, com facção criminosa e tal, perto de Vigário Geral, chamava Dick. E a casa dela estava interditada pela Defesa Civil, então era uma casa que ia cair. Ela tinha dois filhos... três filhos, na verdade, o marido não contribuía em nada, era trocador de ônibus e não botava um real dentro de casa. Ela tinha que sair pra rua, catar xepa de feira, pra trazer pra casa. Então, assim: viveu uma vida muito sofrida. Foi uma pessoa... enfim, várias questões. E aí eu fui vendo a transformação da Lu e comecei a chamá-la pra fazer palestra comigo. Teve um dia que eu a levei pra Natura, em São Paulo. Foi a primeira viagem que ela fez, assim, de avião, na vida dela, eu estava do lado dela. Olha que orgulho, a gente vivenciar isso! E aí eu fiquei olhando o rostinho dela, enquanto o avião decolava, aquela tensão e a gente chegou na Natura, em São Paulo, veio um carrão chiquérrimo buscar a gente, com motorista, aí a Lucia: “Alice, isso é pra gente?” (risos) Eu falei: “Entra aí”. Ela foi, eu fui, a gente conversava muito durantes os processos e eu ficava o tempo inteiro falando pra ela: “Mulher, você é muito potente. Tem que descobrir essa potência dentro de você, sabe? Você não pode deixar o mundo externo e o que falaram pra você, de você, te dominar, que você não é isso, você é outra coisa. Você é muito potente”. E ela foi se descobrindo, assim, essa potência dentro dela. Ela dá palestra, cara. A primeira palestra que eu dei com ela, eu falei: “Nossa Senhora!” Uma mulher escândalo, assim. Ela deixa todo mundo no chinelo. Ela é uma das melhores palestrantes que eu já conheci na minha vida, porque ela vai numa cadência e ela faz você rir e chorar ao mesmo tempo. Quando você está assistindo-a falar, você não sabe se você ri ou se você chora, sabe? Ou seja: essa mulher ameaçou se separar do marido, coisa que uma mulher, na situação dela, nunca faria. O marido mudou completamente de posicionamento frente à família, eles compraram um apartamento, saíram desta casa e hoje ela vive uma vida assim, produz pra caramba, vende pra caramba, pra um monte de gente. Está no Facebook, no Instagram, em tudo que é canto, divulgando o produto dela. Não precisa mais da gente comprar produto dela. Ela mudou e fala assim, que agora ela é a inspiração, sabe? Então, como ela, tiveram várias outras. Mas ela é especial, que ela é minha parça, minha parça. (risos)
P/1 – E, Alice, como surgiu o nome Rede Asta?
R – Era Mãos Brasil. Aí a gente ia mudar pra rede de venda direta, o nome já não cabia mais. E aí a gente foi fazer um processo de naming, com uma agência de comunicação e eles trouxeram Asta. Trouxeram vários outros, mas Asta a gente olhou e falou: “De onde vem Asta?” E a Asta criaram esse nome da deusa Astreia, que era uma deusa grega do Olimpo e que foi a primeira mulher a governar o mundo, na época. E, quando a Astreia governou o mundo, foi conhecido como a Idade de Ouro, a Idade da Harmonia. Então, assim, o nome Asta vem de Astreia, porque Astreia é um nome meio difícil de falar. Então, a gente mudou um pouquinho o nome da deusa. Então, Asta vem da deusa Astreia. (risos) Aí surgiu, e tem tudo a ver com a gente.
P/1 – E o que significa, pra você, pensar num comércio que tem como pilar, assim, inclusão e sustentabilidade, que são grandes propósitos, mesmo, né? O que significa isso, pra você?
R – Significa missão. Nossa missão. A gente não poderia fazer nada diferente, sabe? Acho que foi uma escolha... isso tem a ver com o nosso propósito; porque a gente está aqui, nesse mundo; do porquê e do como a gente atrai as pessoas pra nossa rede. Essa é a nossa missão, a nossa bandeira, que a gente quis trazer. É pra isso que a gente trabalha, né? Todo mundo tem um propósito. Acho que esse é o nosso: inclusão através da produção, do empreendedorismo, da potência. Eu tenho falado muito de potência agora. Eu acho que essa coisa do poder e da potência. O poder é uma noção meio de fora pra dentro, não é externalizada e quando alguém olha pra você fala: “Você tem poder, porque você tem um carro, porque você é branco, porque você tem uma casa, porque você manda”. Isso é poder, é de fora pra dentro. A potência, não, não tem nada a ver com o mundo exterior. Tem a ver com o mundo interior. É quando você se descobre empreendedora, quando você descobre o que você ama fazer. Eu tenho falado muito que o novo tagline pra Asta deve ser algo parecido: “Pra se viver do que se ama” porque, pra você empreender, você tem que amar. E acho que na vida do empreendedor social, acho que de todos também, eu percebo que a minha vida, a vida da Raquel, sabe, a nossa vida foi moldando a organização. Quanto mais a gente ia evoluindo fisicamente, enquanto ser humano, mais a Asta ia evoluindo com a gente. Então, é uma amálgama: quando você ama tanto aquilo que você construiu e que você faz, você vai se moldando, junto com ela, né? Então, eu acho que o Pedro, que é meu primeiro filho, que nasceu há oito anos, trouxe essa força do yang na minha vida. Ele trouxe isso muito forte pra mim. Eu me tornei uma empreendedora muito resiliente, com a chegada do Pedro, eu acho, porque ele trouxe o masculino. Ele enalteceu um pouco do masculino que já tinha em mim. Mas eu senti muito falta do meu feminino, que eu nem sabia direito onde é que estava, mais. E aí veio a Luna, minha segunda filha, que está com dois anos e meio, agora. E pra Luna eu resolvi tirar um ano, assim. Primeira vez que eu fiz isso: eu tirei um ano, parei de trabalhar. Foi um ano que eu me dediquei exclusivamente à maternidade e não é à toa que o nome dela é Luna. Quer coisa mais feminina do que a lua? Mulheres lunares, enfim. Então, isso trouxe pra mim esse contato com meu feminino, que eu nem sabia que existia. Então, o falar mais devagar, o entregar presença mais ativa. Escutar, acalentar, o cuidado, a amorosidade. Então, eu comecei a, querendo ou não, trazer um pouco isso pra Asta também. E aí acho que a gente está chegando nesse equilíbrio. Acho que tudo, na vida, é o yin e yang, tudo é o equilíbrio. Como é que você traz as duas forças. Uma força sozinha é incipiente, mas quando você traz as duas juntas, ela promove muita coisa bonita. Então, acho que agora a gente está num momento muito maduro da organização. Tanto que a gente está podendo ir para outros universos. A gente está abrindo umas frentes, assim, que a gente nunca imaginou que fosse abrir, sabe? De impacto sistêmico, de tecnologia com humano. Tech com touch, o data com hard. Então, como a gente faz a integração dessas coisas. Enfim, unindo esses processos.
P/1 – Estou pensando aqui: artesanato é um universo do feito à mão, que traz a cultura regional e toda a carga de tradições. Como é isso, pra você? Ter um lugar que teça, que promove encontros de diferentes universos feitos à mão, trazendo histórias de outras pessoas, de outros lugares. O que isso significa, pra você?
R – Eu acho que, quando a gente empreende com as nossas mãos, construindo algo com as suas próprias mãos, é como se você estivesse empreendendo você mesmo. O seu produto é a extensão do seu ser. E eu acho que essa é uma das formas mais potentes de empreendedorismo, porque ela é um pouco misturada. Difícil você separar o seu produto de você; a sua casa, do seu negócio. Por isso que ele é muito profundo. Eu acho que é um movimento muito profundo, de empreendedorismo. E quando você mergulha nesse universo, você mergulha dentro do ser das pessoas. Então, a gente brincava, nas lojas, na época que a gente tinha loja, eu entrava na loja e parecia que eu via Matrix. Sabe o Neo, que só vê aqueles pozinhos? Eu olhava o produto e via a pessoa. Então, era difícil desconectar o produto da pessoa. E aí eu fiquei pensando: nossa, imagina se todo mundo olhasse pros produtos dessa forma, enxergando o que está por trás, histórias por trás dos produtos, que virou inclusive uma tagline da Asta, um tempo. Cada produtinho que a gente toca, pode ser um eletrônico, um celular, qualquer coisa, sua manta da cama, tem um ser humano por trás. Há vários seres humanos por trás desses produtos. E a gente ‘produtizou’ demais o mundo, a gente desconectou a economia da nossa vida cotidiana. E quando você faz essa desconexão, você começa a ver o produto como matéria física. Você não vê mais produto como trabalho, como labor, como gente. Você não vê como economia. E eu acho que a gente tem essa vontade, de trazer pras pessoas esse olhar que a gente tem do produto, de fazer diferente. Porque aí você começa a entender que o seu dinheiro de consumo não pode ser gasto com qualquer coisa. Pensa onde você vai botar esse dinheiro. Dinheiro é energia, né? Onde que eu vou botar a minha energia? Então, acho que trabalhar com o universo do feito à mão trouxe pra gente esse nível de profundidade. Acho que foi esse nível que levou a gente agora pra um outro lugar, de se abrir, pra trabalhar com outros empreendedores também. Então, acho que as artesãs são esse universo profundo, de mistura de ser com fazer e a gente agora quer ir pra esse outro lugar, que talvez não sejam os empreendedores que façam com as mãos, mas prestam serviços. Mas, enfim, tenham comércio, mas que empreendem, que fazem a economia acontecer perto de você. E então, essa coisa da localização, de você se voltar para onde você está, começar a enxergar que a Economia acontece aqui, no seu bairro, na sua cidade, no seu lugar. E é isso que a Asta está botando o pézinho agora. A gente está construindo essa nova identidade, para trabalhar movimentos de localização. Como a gente conecta quem quer comprar com quem tem pra vender, no seu próprio território. E começa a fazer o dinheiro circular ali, perto de você. A gente está assumindo a plataforma pertinhodecasa.com.br, que é uma joint venture nossa com a Accenture e estamos começando a fazer essa integração. Essas microrrevoluções. Você vai para uma cidadezinha, traz esse conceito, as pessoas começam a entender que isso funciona. Você vai pra outra, vai pra outra, vai pra outra e de repente você está no Brasil inteiro, assim. E as microrrevoluções são as que geram as grandes.
P/1 – E pra você, qual foi o momento mais marcante, nessa sua trajetória como mulher empreendedora?
R – Ai, nossa, um momento não tem, né? Eu acho que, assim, foi muito marcante pra mim, é muito marcante, a minha conexão com a Raquel, que é minha sócia parceira de vida, assim. Acho que a gente tem uma parceria que é raríssima de se ver, se encontrar, sabe? A gente se complementa muito, em tudo que a gente faz, respeita demais, a gente é muito companheira, uma da outra, acho que isso é raro. Eu nunca faria nada sozinha. Se ela não está do meu lado, não teria nada. Então, a gente brinca que eu sou a pipa e ela é a cordinha. (risos) Então, quando eu vou: “Não, agora você volta pra cá. Não vai pra esse lado aqui”. Então, a gente vai se coordenando, nessa vida, nessa jornada e a minha vida é junto com a dela. Enquanto mulher, ela casou, no meio do nosso processo empreendedor, no início; teve um filho atrás do outro, no meio do nosso processo empreendedor. Então, ela vinha pra Asta e ficava fazendo nota fiscal, assim, escrevendo nota fiscal, com o Mateus amamentando, no colo. Então, essa mistura e eu vivi isso dela, eu sou madrinha da filha dela. Depois eu casei, então também eu ter casado, porque não é qualquer homem que topa uma mulher assim, como eu. (risos) Tem que ser um homem, alguém que vem junto. E encontrei o meu parceiro de vida numa história muito doida. Então, eu acho que o meu casamento também, com ele e o nascimento do Pedro, que foi totalmente inesperado, mas absolutamente necessário. E um tempão depois a rechegada dessa nova bebê na família, da Luna, uma menina, pra reequilibrar e tudo isso se mistura, também, um pouco, com a Asta, com a carinha, com a identidade, com o tom de voz, sabe, com o que a gente quer fazer, com as nossas ambições, vão mudando um pouco de figura, a maneira como a gente se comunica. Eu acho que foram vários momentos, sabe, Lu, foram vários momentos, assim, de muitas emoções. Nossa, assim, ai, é tanta coisa! Você vai pensando, aquele bando de coisas acontecendo. Não dá pra lembrar de um. O que a gente tem hoje é uma construção de micro pedaços. E todos são importantes. Se tira um, fica faltando um buraco.
P/1 – E quero saber como você conheceu a Ernst & Young e como foi a experiência de ter participado do programa.
R – Ai, lembrei da Marina Martins. Então, fiquei sabendo do programa, aí me inscrevi, aquelas coisas. Você fala: “Nossa, que legal! Vou me inscrever”. Me inscrevi e aí a Marina Martins, que era, na época, uma das coordenadoras, diretoras do programa, veio numa conversa presencial comigo e a Marina, gente, foi uma dessas pessoas, assim, que, nossa, muito engraçado. Ela sentou na mesa, falou: “Conta sua história”. Aí eu contei minha história e aí ela começou a chorar, chorar, chorar, chorar, chorar, chorar. (risos) Eu: “Marina, pelo amor de Deus, o que está acontecendo?” Ela se inspirou muito. Engraçado, a gente vai percebendo como a nossa história vai inspirando as pessoas, sem a gente perceber que a gente vira... e aí dói o ombro, né? Eu tenho dores no ombro, porque eu sei que a minha responsabilidade aumenta, sabe assim? A Marina foi uma que foi muito tocada pela nossa história. E aí eu entrei no Winning Women, só que eu me senti um pouco peixinho fora da água, porque eu era a única organização social que tinha lá dentro. Todos os recrutamentos eram de mulheres empresárias, que tinham negócio lucrativo e tal. Então, eu fiquei meio... me senti um pouco peixinho fora d' água, mas depois, éramos todas mulheres, que empreendem, cada uma com uma história diferente. Umas com histórias incríveis. Tem mulheres muito fantásticas. Tem umas ídolas minhas que estão lá dentro. Ana Fontes é uma ídola e está lá. E aí foi muito legal o processo. A gente viveu várias - presencial, na época era tudo presencial, era bom demais - reuniões com todas elas, a gente se preparando para fazer o pit e a minha coach foi a Gabriela Baumgart, que é do Instituto Center Norte. Foi tão legal, que até hoje a gente faz projeto com ela. A gente está fazendo dois projetos e está fazendo um quiosque, tem um quiosque da Rede Zona Norte, CriaNorte, que a gente construiu, com a Escola de Negócios Artesãs, com artesãs da zona norte, lá. No Center Norte tem um quiosque que está vendendo muito os produtos. Elas mesmas vendem e a gente meio que coordena. A gente está agora levando a Pertinho de Casa pra zona norte, via Gabi, via Instituto Center Norte. Então, acho que foi uma parceria bem linda que a gente construiu ao longo do tempo, assim. Ela abriu as portas e a gente foi. E tem esse grupo do whatsapp, maravilhoso, só com mulheres incríveis, eu recebo muitas referências, muitas histórias lindas, muita coisa bonita eu tirei de lá. Muitas referências legais, indicações, estudos. Acho que tem muita coisa legal acontecendo, assim. Então, foi lindo. Eu participo até hoje. Eu queria participar mais, mas a gente não consegue, por causa do tempo. Mãe de filho pequeno, não dá. (risos)
P/1 – E, olhando um pouquinho pra trás, projetos diferentes, mas são unidos por você. Você consegue encontrar alguma relação entre o Realice e a Rede Asta?
R – Eu acho que o Realice foi pra mim e a Rede Asta pro mundo. O Realice me preparou pra construir algo pro mundo. Essa é a conexão que eu vejo. E com a Renata foi a mesma coisa.
P/1 – E me conta como você conheceu seu marido e como foi se tornar mãe, o que a maternidade representou para você.
R – Fausto, nome profundo. Só o nome já diz muito sobre ele. (risos) É um homem goethiano. O Fausto eu conheci em 2007, no primeiro evento internacional que eu fui, da Fundação Avina, quando a gente estava lá, na época, negociando a venda direta. Eu fui pra esse evento no Chile, em Santiago. Ele trabalhava numa multinacional madeireira e estava trabalhando na área de Responsabilidade Social. E aí, nesse evento, a gente se encontrou no corredor e eu falei que eu ia ficar mais um final de semana, que eu queria conhecer Santiago, ele falou: “Eu também. Vamos ficar no mesmo albergue”. Eu falei: “Vamos”. Aí a gente foi ficar no mesmo albergue e, nesse albergue, aí rolou um berenguendém danado, a gente ficou lá, in love, nos apaixonamos durante um final de semana, foi super lindo e aí eu voltei, vim embora, ele ficou mais um tempo lá. Ele é super profundo, super poético, então ele acabou ficando lá, triste, me mandava várias mensagens e eu voltei pro Rio e ele morava em Curitiba, na época. Ele ainda me ligou, falando: “Eu vou aí, pra te visitar” e eu não queria, não estava pronta, tinha acabado de voltar do Realice, eu estava me sentindo muito poderosa, ainda estava naquela esfera do poder: “Odeio essa viagem”. Eu estava me sentindo e o achei muito menino pra mim naquela época e, enfim, não rolou mais, eu me relacionei com outra pessoa, quase casei e tal e a gente ficou quatro anos sem se ver. E aí o meu relacionamento já não estava indo muito bem, um dia, do nada, eu recebi uma mensagem no Facebook. Mas, voltando um pouquinho atrás, eu faço meu mapa astral, eu super sou dessas. E aí um dos meus mapas astrais, a minha astróloga lá falou o seguinte... a gente estava em março, acho, não sei direito a data: “Sobre relacionamento, não precisa se preocupar mais, porque você vai conhecer um homem pronto pra você em, sei lá, julho, em novembro você casa, em janeiro seu filho nasce. Aí eu: “Vixe, você está louca”. Enlouqueceu, pirou, as datas não batem, não vai dar tempo isso que ela falou, não tem a menor condição. E foi exatamente assim que aconteceu. Aí o Fausto me manda essa mensagem, no Facebook, aí eu: “Nossa, quatro anos depois, sem ver. Caramba! Fausto”. Aí fui lá na foto dele, falei: “Meu Deus, está gato pra caramba, deixa eu ver esse homem”. Respondi na hora, ele estava online e a gente ficou conversando, nesse mesmo dia, varamos a madrugada, virou skype, a gente ficou se relembrando e tal. Aí desligamos o telefone, fiquei assim: “E agora?” Apaixonei. Ele se apaixonou, eu me apaixonei, a gente tem que se ver. Enfim, não dava, que ele ia viajar pro Chile de novo, que ele tinha subido uma vaga nessa emprega grandona, ele ia pro corporativo uma semana depois e eu não ia mais vê-lo, porque eu estava no Rio, ele estava morando em Goiânia e aí, no final de semana, no dia seguinte que a gente desligou o telefone, eu falei: “Puts, não vou te ver, você vai embora, eu vou ficar aqui”. Aí ele: “Pega um avião e vem pra Brasília me encontrar. Hoje”. Eu: “Ai, meu Deus!” “Amanhã”. “Raquel, o que eu faço?” “Estou comprando sua passagem”. E aí a Raquel comprou minha passagem e eu já tinha que fazer um trabalho em Goiânia, de um grupo lá e aí eu fui. E aí, minha filha, foi uma loucura, né? Nos agarrando na Praça dos Três Poderes e fomos pra um hotel e aí foi uma loucura e enfim, voltei, ele foi pro Chile e aí, um tempo depois, ele mandou uma passagem do Chile pra mim, eu fui, passar uma semana com ele. No último dia ele veio com tudo e eu falei que não precisava ser assim e aí, um mês depois, eu estava grávida. (risos) Foi assim que aconteceu. Ou seja: conheço o Fausto treze dias antes de estar grávida. Se contar os dias que a gente se encontrou no Chile, mais essa semana e mais esse dia em Brasília, dá treze dias e eu fui conhecer o meu marido, grávida. Eu fui conhecer a família dele grávida e ele foi conhecer a minha família comigo grávida, eu com 34 anos. Então, assim, quando a gente está nessa idade, 34, o relógio biológico começa a apertar e você fala: “Puts, não tenho...”, acontece. Amigas, acontece. (risos) Não se desesperem. E aconteceu. E aí eu me lembro que eu fui buscá-lo no aeroporto, com uma mala grandona, pra vir morar comigo, no meu apartamento. E assim, nesse universo, nesse ecossistema, nasce o Pedro. Pedroca. Desse amor, louco.
P/1 – E aí?
R – E aí foi uma gravidez de muitos desafios, que eu não estava preparada, assim. Eu não esperei aquilo, eu não planejei e tinha que acontecer desse jeito, porque também acho que eu nunca planejaria. Se as coisas têm que acontecer, têm que acontecer e acabou. Ele veio nessa fagulha fulminante, assim. Ele chegou nessa energia, sabe, de unir a gente. Porque, se não fosse ele, com certeza a gente não estaria junto. Ele estaria no Chile, eu estaria aqui, vivendo a minha vida e a gente não teria feito esse movimento tão forte, dele mudar, sair, largar tudo, pra vir morar comigo, no meu apartamento no Rio de Janeiro. Ele nunca tinha morado no Rio de Janeiro, antes. Então, o Pedro veio com essa força de união, assim, de fazer assim, pá. É o Pedro. Esse pá é o que define meu filho. E foi uma gravidez que eu estava empreendendo muito ainda, num movimento muito forte de empreendimento no começo e o Fausto era muita novidade, então a gente não sabia como se posicionava dentro de casa, direito. Então, o Pedroca foi prematuro, assim. Eu comecei a ter contração com sete meses, tive que ser internada, fiquei um mês internada, em casa, tomando Inibina e ele chega com dois quilos e quatrocentas, oito meses, foi uma cesárea, daquele jeito que eu nunca queria ter, assim, mas eu também não me preparei, não sabia bem como fazer, foi aquela cesárea antiga, que dá tapinha na bunda, aquelas coisas. (risos) Mas está aí, um molecão superforte. Teve muita doença, no começo. Ele teve síndrome de Kawasaki, que é super rara, que inflama os vasos sanguíneos, quando ele tinha um ano e dois meses, quase morri. Eu vivi, assim, um processo intenso com ele, de aprender o que é ser mãe. Eu acho que o Pedro me ensinou sobre o cuidado, porque eu sempre fui muito cuidada, sempre gente em casa, eu nunca precisei fazer muita coisa, assim. Eu sempre fui muito cuidada. Não tinha muita noção do que era cuidar. E ele me ensinou o que é ter que cuidar e eu fui na marra, lá, aprender o que é ser mãe. Ser mãe é cuidar, né? Amar incondicionalmente, cuidar, sem pedir nada em troca. Aliás, o que se recebe em troca é muito amor, óbvio, mas choro, noite sem dormir, tudo aquilo que vem no pacote. (risos) Então, o Pedroca foi isso e aí o Pedro também foi aprendendo, junto com a gente, essa dança de homem que chega, marido e de repente vira parceiro de vida e vira pai também, não sabia o que era ser pai. Então, a gente foi aprendendo juntos, em família e hoje nós somos uma família muito melhor, mas, assim, ralamos. Foi uma jornada de aterrissagem. (risos)
P/1 – E, Alice, o que a Rede Asta representa na sua história?
R – Ai, gente! Eu digo que a Asta é uma extensão de mim. Ela sou eu, eu sou ela, uma confusão. A Asta... agora que eu estou começando a entendê-la como uma pessoa... eu estou começando a me perceber como uma pessoa separada da Asta. Que eu posso ser outras coisas também. Inclusive eu comecei a pensar sobre isso: “Será que eu vou fazer outra coisa da minha vida? Eu não posso morrer assim, mas calma, ainda tenho tempo, só quarenta, estou na metade da vida, né? Talvez, daqui a pouco, eu vá fazer outra coisa, mas por enquanto, é ali que eu tenho que estar”. E a Asta é muito linda, uma deusa, gente. É incrível, tem muita verdade na Asta. Muita honestidade. Muito propósito. Muito trabalho com amor. É raro a pessoa que entra ali. Não teve, eu acho que nunca, uma pessoa que entrou pra trabalhar por trabalhar, só pra ganhar dinheiro, não tem. As pessoas entram, se envolvem, conhecem quem está por trás e entram de corpo e alma. Então, acho que é um lugar pra gente viver de corpo e alma.
P/1 – E, Alice, logo no comecinho você falou que agora está fazendo um resgate, tanto é que voltou pra sua cidade. Como que está isso? Como é esse momento, pra você?
R – Uma vez eu ouvi um empreendedor, eu não me lembro direito quem era, que morava na favela, durante a vida inteira morou na favela e aí ele falou assim: “Eu morei na favela, saí da favela e aí eu percebi que eu tinha mais que voltar pra lá, porque eu precisava entregar, o que eu consegui buscar lá fora, pra trazer pra cá”. E aí ele falou isso, mas assim: voltar pra Friburgo, pra mim, significava muita coisa do passado que eu não estava pronta pra resgatar, sabe assim? Essa história dos meus pais, da separação, da minha vida aqui, por ser uma cidade pequena e eu estar com a cabeça muito aberta, o horizonte muito expandido e de repente você volta pra uma cidade pequena, como é que seria isso? Eu nunca pensei que isso fosse acontecer. Nunca. De verdade, assim. Eu acho que Friburgo, pra mim, estava na minha vida como uma cidade da minha infância, pra qual eu não retornaria. Mas aí veio a pandemia e mudou tudo. A pandemia mudou tudo na nossa vida. Nossa, gente, quem não se transformou com a pandemia? E eu estava em São Paulo, eu tinha saído do Rio e a gente estava morando em São Paulo, a nossa família, por causa do Fausto, ele estava trabalhando lá. E a gente resolveu fazer sabático em São Paulo, a gente foi experimentar essa vida de lá, eu estava sem trabalhar, estava fazendo esse sabático com a Luna e a gente ficou morando lá, numa casinha em São Paulo, eu fiquei vivendo esse movimento dona de casa, cuidava só dos filhos. Levava pra escola, não sei o quê. E foi o trabalho mais difícil que eu já fiz na minha vida. Juro. (risos) Quando eu ia trabalhar, era um oásis. Eu estava a fim de trabalhar, fecha as portas, ninguém sai. E tem que valorizar esse trabalho. Essa economia doméstica, que só quem a vive, sabe o tempo que você dedica. E a emoção, porque é uma mistura muito doida, de filho, de você ter que lidar com as emoções dos seus filhos, você tem que ser aquele equilíbrio, tem que ficar ali pra poder coordenar a situação, você não pode deixar as petecas caírem, são muitos pratinhos, ao mesmo tempo, que você levanta. Então, assim, eu não conseguiria cogitar a possibilidade de trabalhar na Asta, mais viver isso que eu vivi em São Paulo. Não dava. Assim, sempre vai ter um prato que vai cair. Não tem jeito. Na vida da mulher sempre tem alguma coisa que você vai deixar pra trás. Você não dá conta de fazer tudo ao mesmo tempo: trabalhar, empreender, se esforçar, se conectar, fazer happy hour, conhecer gente, que é esse universo livre e masculino, que você vai pra rua beber cerveja, sair com os amigos e aí ter família, marido. Não dá. São muitos pratinhos. Então, resolvi viver um dos pratinhos, assim, intensamente. E eu fui viver e percebi que é difícil pra caramba. E aí, no meio da pandemia, não fazia mais sentido estar em lugar nenhum, em São Paulo a gente não tinha mais apoio, a pessoa que trabalhava com a gente não pôde voltar, por causa da pandemia e a gente ficou sozinho, eu comecei nesse processo de máscara, porque eu estava fora, eu estava estudando como é que eu ia voltar pra Asta, depois da minha licença de um ano e, quando eu comecei a estudar voltar, surgiu a pandemia. E eu voltei pra trazer pra organização essa história da produção de máscaras, que era o que dava pra fazer. O que uma organização focada em empreendedorismo feminino de costura e artesanato vai fazer? Máscara. O resto ficou o resto. Enfim, então voltei com uma força muito grande, assim. Falei que a gente produziu sete milhões de máscaras, duas mil e novecentas mulheres ao mesmo tempo. Fizemos vários projetos, com mais de 25 investidores, produzimos máscara no Brasil inteiro, distribuímos no Brasil inteiro. Então, eu vim com essa potência represada, de um ano, ali. Represando, represando, de repente vaaaaaa, a pandemia, graças a Deus, que lindo que a gente pôde prosperar na pandemia e fazer tanta coisa incrível, pra tanta mulher, em uma escala muito grande. Então, foi muito bonito. E aí, em São Paulo, imagina: eu e o Fausto trabalhando assim, no meio da produção de máscara, eu ligando pra fornecedor: “TNT, para o TNT no meio da rua, pega o caminhão, entra não sei o que, faz uma máscara, chama a costureira”, aquela loucura toda (risos) com filho. Então, eu entrava no quarto e trabalhava uma hora, aí saía, pá, cuidava dos filhos, aí o Fausto trabalhava uma hora, aí ele saía, eu pá, entrava no quarto, trabalhava. Aí lavava roupa, fazia café, não sei o quê. Uma confusão. Eu falei: “Burnout familiar”. Cai todo mundo duro, no chão, no fim. Ninguém aguenta mais. Falei: “Vamos pra Friburgo” Friburgo virou sinônimo de porto seguro. Eu falei: “Pai, estou indo pra aí. Recebe a gente, vou ficar aí, sei lá, quinze dias, pra gente dar uma respirada, depois eu volto”. Aí, no quarto dia que eu estava aqui, eu olhei pro Fausto e falei: “O que a gente está fazendo em São Paulo? Volto, não. (risos) Vai lá, pega a mudança, que eu vou arrumar a casa, pra gente morar é aqui, mesmo”. A nossa chegada na cidade foi nessa fuga, dessa vida louca, de tudo, no meio da pandemia, tudo online, essa loucura que a gente já sabe e aí eu comecei a me reconectar com a cidade. Mesmo sem conseguir ter interação social. Eu cheguei aqui no meio da pandemia, meu filho não tinha escola, a escola estava fechada, eles abriram agora. Então, fiquei muito aqui no nosso mundinho, na nossa casa, no meio da montanha, que é uma delícia, no meio da natureza, super gostoso, mas onde eu estou em Friburgo, tinha que ser aqui, não tinha jeito, eu tinha que trazer um pouco do que eu faço. Então, quando a gente começou essa estratégia nova de trabalho, de movimento de localização e a Fundação Coca Cola, que é super nossa parceira, topou fazer o primeiro aporte pra gente, pilotar esse movimento novo, eu falei: “Vamos pilotar em Friburgo?” e eles toparam e eu trouxe o projeto pra cá e está sendo a primeira cidade que a gente está pilotando com esse movimento de localização, já estamos com trezentos microempreendedores na plataforma, já está rolando vendas, está fazendo super movimento de compra local e engajamento cívico, engajando vários stakeholders e é muito engraçado, porque eu chamo a pessoa pra conversar: “Ah, você é filha da Solange? Nossa, Alice, te vi pequenininha”, sabe? (risos) Então, está muito engraçado, que eu vou, olho na rua e falo: “Meu Deus, aquele garoto da minha adolescência! Ele era lindo, olha aí, está com ________ ”. Sabe assim? Você vai vendo as pessoas da sua infância, assim. Então, está uma mistura muito interessante. Eu ainda estou navegando nela. Mas eu acho que está fazendo muito sentido. Retornar pras origens, reviver a minha relação com a minha mãe. Revisitar a minha relação com o meu pai, de um lugar mais maduro, mais consciente, menos adolescente, que foi o que eu vivi, quando eu estava aqui. E poder entendê-los sobre uma outra perspectiva. E trazer o meu filho pra essa convivência da infância que eu tive, também. Meus filhos, para que eles entendam um pouco do mundo onde a mãe veio. Então, está muito linda essa conexão. Um dia eu conto, mas estou vivendo.
P/1 – E quais são seus sonhos?
R – Ai, sonhos. Nossa, meus sonhos! Ai, meu sonho, assim, que eu não sei se eu vou viver, pra ver, mas é viver numa sociedade, num mundo onde as pessoas fazem o que amam. Porque eu acho que isso muda tudo. Isso muda a maneira como você se relaciona com as pessoas no seu entorno, a maneira como você colabora com o seu entorno, como você se vê. Acho que tem tanta gente que faz o que não gosta, faz por obrigação, por necessidade, porque não tem outra opção. Então, se a gente conseguisse viver num mundo que as pessoas fazem o que amam e num mundo onde não existe diferença entre o que é um homem, o que é uma mulher, o que é preto e o que é branco. Um mundo onde a gente pudesse se relacionar de forma mais equânime. Isso é sonho de todo mundo. Eu vou fazer a minha parte, pequenininha, que eu puder fazer, eu vou fazer, mas meus filhos vão ter que fazer muito mais ainda. Mas eu acho que isso é um sonho, pra todo mundo, assim, viver nesse lugar mais próspero, com mais amor.
P/1 – Estamos acabando, eu queria só te perguntar se você gostaria de acrescentar alguma coisa, contar alguma história que eu não tenha instigado ou deixar alguma mensagem, enfim.
R – Ah, vai, deixar a mensagem fazendo uma coisa que eu já devia ter feito há muito tempo, assim, que eu sempre me cobro, porque eu nunca tenho tempo, essas entrevistas são muito rápidas, a gente acaba não falando muito, mas eu queria deixar uma mensagem agradecendo uma pessoa, assim, que é muito especial na minha vida, que é a Raquel. (choro) Eu nunca falo dela, assim. Engraçado, ela está sempre nos bastidores e, quando eu saí da frente da organização, eu a chamei: “Vem pra frente. Vem viver a frente. Acho que vai ser importante pra você, pra construção da sua... pra melhorar sua autoestima, pra você se ver como empreendedora de verdade. Vem pra frente”. E ela veio pra frente e ela, nossa, eu tenho a honra de poder ver a evolução dessa mulher, dessa minha parceira, que ela é, que ela virou. (choro) E o que nós duas viramos juntas. Eu acho que, na vida... a nossa vida não vale nada, se não tiver parceiros, não vale nada. Que saco fazer tudo sozinha, sabe? Ainda mais empreender um negócio social. E parcerias profundas, não é essa parceria rasa. Eu faço uma coisa, você faz outra. Não. Parceria que se adequa. Que uma vai pra frente e depois a outra está atrás e a gente vai, nesse jogo das cadeiras, juntas, na vida. Já são dezesseis anos juntas. Então, assim, queria terminar agradecendo-a ser essa parceira. (choro) Sem ela, não tinha nada, não. Não tinha eu. Acho que sem ela não tinha a Asta, não tinha eu como eu sou hoje. Eu só consegui passar um ano fora, porque tinha ela. Eu só consegui ter o Fausto, porque ela comprou a minha passagem para Goiânia. (risos) Então, a gente interferiu muito na nossa vida. Aliás, eu só a tenho porque teve o Gustavo, tinha o irmão dela e veio ela. Então, queria agradecê-la, por ser minha parceira de vida. (risos)
P/1 – Alice, como foi, pra você, ter passado um pouquinho dessa tarde com a gente, relembrando tudo isso?
R – Ai, foi bom, vou dormir chorando hoje, afffffff Maria! (risos) Muito bom, gente. Obrigada pela oportunidade, viu? A gente não faz isso na vida, a vida é tão corrida. A gente olha tanto pra fora, não para, não celebra a nossa história. Acho que foi um momento de celebração da minha história. Muito gostoso. Obrigada!
P/1 – Obrigada você, por dividir com a gente! Foi uma tarde muito gostosa. Espero que também tenha sido pra você. Quando tudo estiver pronto, a gente vai te mandar, com muito carinho e acho que vai ser legal também, até pros seus filhos, né, depois, poderem ver, fica pra posteridade. Mas agradeço muito. Muito obrigada!
R – Imagina! Eu que agradeço. Obrigada a vocês. O Museu da Pessoa sempre esteve no meu coração. Eu falei: “Um dia eu ainda vou estar lá!” e olha aí, outro sonho se realizando. Está vendo? Ai, tem muitos sonhos pra realizar, gente. Obrigada, gente!
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