Conte sua História - Vivências LGBTQIAPN+
Entrevista de Gil Marçal
Entrevistado por Bruna Oliveira
São Paulo, 25 de outubro de 2023
Realização: Museu da Pessoa
Entrevista nº PCSH_HV1422
Revisada por Genivaldo Cavalcanti Filho
(0:22) P/1 - Gil, pra começar eu queria que você dissesse seu nome, a data e o local do seu nascimento.
R - Eu sou Gil Marçal, nasci em dezesseis de junho de 1979. Nasci na favela Monte Azul, na Zona Sul de São Paulo.
(0:43) P/1 - E quais os nomes dos seus pais?
R - Minha mãe se chama Eva Marins, meu pai biológico se chama José Marçal. E o meu padrasto se chama Mário Pereira.
(0:55) P/1 - E como você descreveria eles?
R - Minha mãe é uma mulher negra que teve quatro filhos, veio de Minas Gerais, de uma pequena cidade de cinco mil habitantes chamada Sobrália - fica próximo de Governador Valadares. [É] muito batalhadora, muito guerreira, foi criar os quatro filhos sozinha, depois que o meu pai foi embora. Uma mulher bastante dedicada ao trabalho, à família, com muita fé. Uma matriarca bastante sensível também, pra entender o conjunto das pessoas que orbitam no entorno dela. [É] uma pessoa espetacular, minha mãe.
(1:51) P/1 - Você quer falar do seu padrasto?
R - Meu padrasto é uma pessoa muito querida, ele é um homem agora com… Por volta de oitenta anos. Ele vem da Bahia, da região ali de Ilhéus, Itabuna. Um cara muito popular, grande figura humana. Toca pandeiro, é jardineiro - não atuante nesse momento, por conta da idade. Mas uma pessoa bastante querida também.
(2:24) P/1 - E você sabe como eles se conheceram?
R - Eles se conheceram na favela Monte Azul também, de onde eu venho, onde minha família morava. A favela Monte Azul fica no bairro Jardim São Luiz, na Zona Sul de São Paulo. Jardim São Luiz é um subdistrito, eles têm um bairro chamado Monte Azul e dentro desse bairro tem uma favela, chamada favela Monte Azul.
(2:49) P/1 - E como era na sua infância esse lugar?
R - [Era] uma...
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Entrevista de Gil Marçal
Entrevistado por Bruna Oliveira
São Paulo, 25 de outubro de 2023
Realização: Museu da Pessoa
Entrevista nº PCSH_HV1422
Revisada por Genivaldo Cavalcanti Filho
(0:22) P/1 - Gil, pra começar eu queria que você dissesse seu nome, a data e o local do seu nascimento.
R - Eu sou Gil Marçal, nasci em dezesseis de junho de 1979. Nasci na favela Monte Azul, na Zona Sul de São Paulo.
(0:43) P/1 - E quais os nomes dos seus pais?
R - Minha mãe se chama Eva Marins, meu pai biológico se chama José Marçal. E o meu padrasto se chama Mário Pereira.
(0:55) P/1 - E como você descreveria eles?
R - Minha mãe é uma mulher negra que teve quatro filhos, veio de Minas Gerais, de uma pequena cidade de cinco mil habitantes chamada Sobrália - fica próximo de Governador Valadares. [É] muito batalhadora, muito guerreira, foi criar os quatro filhos sozinha, depois que o meu pai foi embora. Uma mulher bastante dedicada ao trabalho, à família, com muita fé. Uma matriarca bastante sensível também, pra entender o conjunto das pessoas que orbitam no entorno dela. [É] uma pessoa espetacular, minha mãe.
(1:51) P/1 - Você quer falar do seu padrasto?
R - Meu padrasto é uma pessoa muito querida, ele é um homem agora com… Por volta de oitenta anos. Ele vem da Bahia, da região ali de Ilhéus, Itabuna. Um cara muito popular, grande figura humana. Toca pandeiro, é jardineiro - não atuante nesse momento, por conta da idade. Mas uma pessoa bastante querida também.
(2:24) P/1 - E você sabe como eles se conheceram?
R - Eles se conheceram na favela Monte Azul também, de onde eu venho, onde minha família morava. A favela Monte Azul fica no bairro Jardim São Luiz, na Zona Sul de São Paulo. Jardim São Luiz é um subdistrito, eles têm um bairro chamado Monte Azul e dentro desse bairro tem uma favela, chamada favela Monte Azul.
(2:49) P/1 - E como era na sua infância esse lugar?
R - [Era] uma favela bem típica do dos anos 80, então a maior parte das construções das casas eram feitas de madeira, com muito resto e retalho de madeira. Feitas com esse tipo de material, com muita cor, mas também com muita precariedade. Então com caminhos, vielas também, com muitas subidas e descidas, com escadas improvisadas, com córrego no meio, que corta essa favela. Ao mesmo tempo, com algum verde ainda presente no entorno, com muitas brincadeiras entre as crianças, mas também um ambiente um pouco perigoso, com necessidade de cuidados para não sofrer nenhum tipo de violência física.
[É] um lugar interessante também, porque essa favela teve um trabalho social que começou a ser desenvolvido quando eu nasci, então eu, [quando] criança, pude ir crescendo e acompanhando o desenvolvimento desse trabalho também.
(4:20) P/1 - Você falou um pouco de onde seus pais vieram. Eu queria saber se você chegou a conhecer os seus avós.
R - Eu só conheci a minha avó por parte do meu pai biológico, que faleceu deve ter uns dez anos, agora. Mas não conheci o pai e a mãe da minha mãe, meus avós maternos, porque quando eu nasci eles já tinham falecido.
Não conheci os pais do meu padrasto. Não conheci o meu avô paterno. E tive a oportunidade de conhecer a minha avó paterna.
(5:01) P/1 - E tem alguma história com ela, alguma lembrança?
R - Sim! Eu lembro, a gente visitava a casa dela quando era criança e eu lembro dela e minhas tias, as irmãs do meu pai, costurando conchas de retalhos, muitas vezes em atividade desse tipo, de costura, de produção de objetos para casa, enfim.
(5:33) P/1 - Você estava falando que sua mãe teve quatro filhos. Eu queria saber em qual lugar da escadinha você tá e o nome dos seus outros irmãos.
R - Nós somos quatro irmãos, eu sou o mais novo desses quatro. A gente começa com um irmão mais velho que se chama Gerson, que tem oito anos a mais, então hoje eu tenho 44, ele tá com cinquenta anos. Aí eu tenho uma outra irmã com 48 anos, que é a Rosa - o nome de registro é Rosenalva. Depois tem uma terceira irmã, que é a Rosemeire, a Meire, com 46 anos. E eu com 44.
A gente tem uma diferença de dois anos de um para o outro, do primeiro ao último filho.
(6:29) P/1 - E como era a relação com eles durante a infância?
R - Relação de irmão, bem comum, bem natural, de muita solidariedade, pancadaria, fofoca, intriga, ajuda, briga, enfim. Entendo que nossa relação num conjunto, pensando na infância, foi muito comum. Essas relações vão mudar um pouco depois, quando eles vão ficando jovens e eu adolescente, mas a relação de infância é uma relação de muita brincadeira, de assistir filmes, ou séries juntos. De um cuidado coletivo, porque minha mãe tinha que sair para trabalhar, enquanto os mais velhos cuidavam dos mais novos. [É] uma memória afetiva boa, gostosa.
(7:30) P/1 - E quando você pensa nessa infância, tem algum cheiro ou alguma comida que lembra essa época?
R - Nesse momento, não!
(7:50) P/1 - E te contaram como foi o dia que você nasceu?
R - Não, eu não sei como foi o dia que eu nasci. A única coisa que eu sei… Eu nasci no dia dezesseis de junho e minha mãe é do dia dezoito de junho, então ela sempre fez uma relação, falou muitas vezes que eu fui o melhor presente que ela ganhou de aniversário. Tem uma relação do meu nascimento com o aniversário da minha mãe.
(8:21) P/1 - Você estava falando que tinha um projeto social no Jardim Monte Azul. Eu queria que você contasse um pouco como era na infância esse projeto, como ele se desenvolveu.
R - Esse projeto é o que hoje se chama Associação Comunitária Monte Azul, uma organização não governamental que tem na Zona Sul de São Paulo, muito forte, muito importante, que foi fundada formalmente em 79, mas que começou alguns anos antes, na casa da Ute Craemer. A Ute é uma educadora alemã, professora Waldorf, que vem para o Brasil nos anos 70 assumir uma turma de uma classe da escola Waldorf de São Paulo, que é uma escola de elite, de referência alemã.
A pedagogia Waldorf é uma educação que foi pensada por um pensador/filósofo que é o Rudolf Steiner; ele, na verdade, pensou essa pedagogia para os filhos dos operários de uma fábrica de cigarros. Assim surge a pedagogia Waldorf. Mas o Rudolf Steiner vai pensar diversos campos da humanidade, da sociedade - agricultura, educação, saúde. Por fim, quando ele vai desenvolver esse trabalho pra educação, ele pensa nesse processo de formação que vincula muita arte ao aprendizado, então a arte é um dos pilares do processo de formação e aprendizagem na educação Waldorf.
Começa esse trabalho na favela Monte Azul e depois de um tempo eles abrem creches para as crianças, filhas e filhos dos moradores da comunidade. E essas creches são lugares muito importantes, porque além de possibilitar com que essas mulheres possam procurar trabalho, prestar algum serviço, ela possibilita que essas crianças tenham em primeiro lugar uma alimentação, que é uma… A fome é uma questão muito forte nas comunidades pobres e a isso a gente remonta ao final dos anos 70, pro começo dos anos 80; nós não estamos falando do Brasil, de São Paulo de 2023, que já vive num processo muito difícil, hoje. A fome hoje é novamente uma pauta, mas naquele momento também [era] muito forte.
Eles abrem essas creches para as crianças da comunidade, mas utilizando, traduzindo essa pedagogia alemã pra favela, então isso é muito legal, muito interessante.
À medida que o projeto foi crescendo e desenvolvendo outros atendimentos, eu também fui crescendo e acessando esses outros atendimentos que a associação Monte Azul criou. Num primeiro momento eles abriram creche, depois abriu uma pré-escola, depois abriu atendimento e trabalho com crianças no contraturno escolar, que antigamente a gente chamava de Centro de Juventude - apesar de ser criança, ia até os quatorze anos, por aí. Eu podia ir acompanhando esse processo dentro, me beneficiando desse processo que a associação Monte Azul realizou, de ação social naquela favela.
(12:03) P/1 - E tem alguma memória dessa época? Um momento que foi especial pra você?
R - Tenho muitas memórias dessa época, muitas memórias, porque elas estão justamente conectadas no artístico e no simbólico, então lembro muito das rodas das creches. As rodas são, na verdade, uma contação de história relacionada a algum mito, conectando, por exemplo, aos equinócios e aos solstícios: uma roda da lanterna, que é o momento do inverno, que é o momento que fica frio, ou então uma roda que depois vai falar da primavera. A diferença dessa contação de história é que as crianças aprendem a contar essa roda e vão contando e cantando juntos, durante um período, durante um mês, então tenho muita memória disso.
Tenho muita memória da alimentação, que era uma alimentação diferente: arroz integral, aveia, essa papa, esse ingrediente, que estava ali disponível pra gente. Muitas memórias dos rituais - rituais de Natal, de Páscoa, que eram e são presentes até hoje nessas creches, que a Associação Monte Azul segue conduzindo até hoje para as crianças dessas comunidades e de outras comunidades agora na Zona Sul.
(13:53) P/1 - E nessa época com o que você gostava de brincar? Qual era a sua brincadeira favorita?
R - Eu gostava muito de brincar de carro, eu sempre gostei muito de carro, mas eu não tinha carrinhos, porque a gente era pobre, então eu imaginava, criava carrinhos, alguns com a ajuda do meu irmão. Carrinhos de brinquedo com lata, com madeira, toquinhos, ou mesmo criava ali, imaginava um carrinho… Terra, né, favela, barraco, chão de terra, então você finca uma estaca ali, coloca uma madeira em cima, vira um acelerador, aí você arruma um toquinho, é o banco, algo redondo que já vira o volante. Mas tinham as brincadeiras populares na favela, que também me divertia muito, curtia muito. Amarelinha, guerra de mamona com estilingue, esconde esconde, lembro muito dessas brincadeiras na infância. Jogo de taco.
Eu sempre fui muito ruim no futebol, então sempre me diverti com outras coisas. E tinha coisas que eram populares, então pipa, bolinha de gude, mesmo o futebol, que eu nunca fui muito bom. Bolinha de gude eu dava um jeito de juntar dinheiro para comprar; pipa eu sabia fazer, mas eu não sabia soltar. E futebol não era, não rolava mesmo.
(15:33) P/1 - E como era a sua casa nessa época?
R - A gente morava num barraco com dois cômodos, então tinha um quarto e uma cozinha-sala. Eu digo cozinha-sala, porque não tinha sofá, na verdade. Tinha uma cama de solteiro na cozinha, que acabava transformando aquele ambiente também em sala. E um quarto com beliches, camas, onde eu, meus irmãos e minha mãe dormíamos nesse período da infância.
(16:11) P/1 - E nessa época… Eu fiquei curiosa para saber, se você quiser contar, como que sua mãe, em que momento sua mãe conheceu o seu padrasto?
R - Meu pai vai embora quando eu tinha um ano de idade e volta pela última vez na nossa casa quando eu tinha três anos. Quando eu estava com oito anos, cinco anos depois, minha mãe e meu padrasto se conheceram e passaram a morar juntos. A partir daí a gente passa a ter na nossa família ele também.
Esse é um momento que muda um pouco as coisas. Como tinha minha mãe trabalhando e meu padrasto também, as condições melhoraram e aí a gente reconstrói esse mesmo barraco, nessa mesma estrutura de alvenaria, com dois cômodos.
Era um terreninho que também tinha quintal, isso era uma coisa muito bacana da época. Eu lembro que a gente também… Como o meu padrasto era jardineiro, a gente passa a ter plantação nesse quintal, de verduras, alface, couve, outras verduras. Pé de milho, lembra que a gente tinha pé de milho e isso virava aqueles pudins de curau, virava pamonha, virava milho cozido, essas coisas.
(17:44) P/1 - E nessa época você tinha amigos, você brincava com outras crianças
ou você gostava de brincar mais sozinho?
R - Esse é um momento, com sete para oito anos, que eu vou para a escola. Lembro muito [que] no primeiro ano de escola todos os dias alguém me levava e me buscava na escola e no segundo ano, no primeiro dia alguém me levou e me buscou, e depois nunca mais. A partir do segundo dia do segundo ano, eu e meus amigos, que já eram amigos naquele momento da infância e que os pais também eram amigos, começam a ir juntos, em grupo pra escola.
Eu tinha uma turminha ali, nesse começo, com sete, oito anos, que a gente estava ou nas mesmas salas, ou na mesma série, e fazia essas turmas pra ir e vir, fazer lição de casa, brincar.
[É] um momento em que explode na televisão nacional essas primeiras séries japonesas de lutas, tipo Jaspion, Robô Gigante, coisas assim que eram o nosso tema de diálogo. Era o que a gente via na TV também.
(19:08) P/1 - E nessa época… Eu queria saber se você tinha sonho de ter alguma profissão no futuro.
R - Nessa época, meu sonho era ser policial. Tinha uma série na TV que chamava Chips, sei lá, [na] TV Record, acho que nem era TV Manchete que passava essa série, mas era uma série que contava a história de dois policiais americanos que usavam motos e a partir dali cada episódio contava uma história. A gente era muito fã dessa série.
Não só eu, como outros ali daquela geração, daquela turminha, achavam que seriam policiais, tinham o sonho de ser policial quando crescessem.
(19:54) P/1 - Você contou como ia para a escola com os seus amigos, mas você não contou onde você estudou. Queria saber.
R - Eu estudei num colégio estadual que tem no Monte Azul também, que se chama Dona Zulmira Cavalheiro Faustino. E na escola eu descubro que eu sou uma criança viada, porque as outras crianças me contam. Esse foi um momento bastante tenso, de tentar entender isso, porque de alguma forma o meu jeito de ser era lido nessa categoria gay, viada, diferente.
A escola revela muitas coisas, ela amplia o grupo social ao qual eu tenho acesso, participo. Traz essa informação, traz… Vem junto com isso uma questão do acesso a outros conhecimentos.
Eu chego na escola já letrado, já sabia ler e escrever, aprendi com a minha irmã em casa, então o primeiro ano é muito difícil pra mim, ele é muito chato, porque tudo aquilo que as crianças estavam aprendendo eu já sabia. Mas eu vou começar a acessar outros conhecimentos que tem ali, relacionados a outras matérias, da matemática, das ciências naturais. Acho que foi isso na escola.
(21:36) P/1 - Você quer contar um pouco como era para você naquele momento que apontassem a sua sexualidade de alguma forma? Você nem sabia, né? Mas como você se sentia naquela época?
R - Com esses apontamentos… Eu realmente não sabia, na verdade, do que a gente estava falando, entendendo o que estava acontecendo, mas era evidente para mim que era uma coisa ruim, uma coisa não aceita, motivo de chacota, de violência, porque eu tinha só uma referência até esse momento - na verdade, duas grandes referências na favela Monte Azul. Uma moça, uma travesti que é assassinada brutalmente na favela. Eu era menor, era criança ainda; lembro apenas que ela era uma personagem que transitava, que estava por ali na comunidade e que algum dia é assassinada brutalmente na comunidade. E esse era um assunto que não se falava, que não se tocava. A outra - isso me desperta para uma referência também, que eu ouvia falar na comunidade - era um casal gay que tinha lá. Esse casal era composto por um rapaz que era bastante afeminado e o outro era um rapaz bastante assim, do estereótipo de trabalhador de obra. Eles muitas vezes estavam bêbados, andando e caminhando juntos. E não tinha nenhum ato explícito, público, que falassem que eles eram um casal. Todo mundo sabia que eles eram um casal, que tinha uma relação ali que envolvia os dois, mas também não era algo que era mostrado de forma explícita na comunidade.
(23:47) P/1 - E nessa época da escola tinha algum professor ou alguma matéria que marcou você? Pode ser de forma positiva ou negativa também.
R - No segundo ano tem uma coisa que me marca, que é um livro que uma professora que eu tive, a professora Daisy, lê para a classe. Ela passa cada dia a ler um pequeno trecho desse livro pra gente. É um livro que pra mim ficou muito marcado, que chama O Conde do Toquinho.
Mais tarde, na adolescência, eu fui pesquisar e descobri que esse livro teve… Que acabou a edição, não teve novas edições, ou seja, não foi um livro republicado. Mas a memória dessa contação de história desse livro foi muito forte nesse primeiro ciclo do ensino básico.
(24:46) P/1 - E como continua… Você continua na mesma escola, ou você muda? Em que momento isso acontece?
R - Eu fico nessa escola até a sexta série - devo estar falando de doze, treze anos. E aí passo a estudar numa outra escola, no bairro vizinho, que era uma escola que tinha ensino noturno, porque é o momento, naquela época em que a gente pensava que era o início do trabalho dos jovens, com quatorze anos. Por volta dos treze eu passo a estudar à noite numa outra escola e aí eu faço a sétima série, a oitava série e a oitava série de novo, porque eu repeti a oitava série nessa escola, no noturno. E depois volto pra essa primeira escola, porque lá tinha colegial à noite.
(25:44) P/1 - E me conta o que mudou e se mudou alguma coisa quando você chegou na adolescência.
R - Quando eu chego na pré adolescência, diferentemente daquele momento, dos sete anos, entrando na escola, é um momento em que eu passo muito sozinho, que eu fico muito isolado de outros amigos, de outras crianças. Esse é um processo que começa mais ou menos com uns dez anos. Esse processo também tem muito a ver com esse entendimento de que tinha algo estranho comigo e que não era aceito nessa sociedade.
É um momento em que pessoas muito mais velhas viram minhas referências; uma amiga da minha mãe vira minha referência, um ou outro professor. Eu passo a ter relações e referências [de] pessoas mais velhas.
Eu lembro que no meu aniversário de doze anos eu olhei pro lado e só tinham pessoas velhas. Eu não tinha um amigo presente naquele momento. Um momento de muito recolhimento, de entendimento do corpo mudando, da voz começando a mudar, mas um momento também que eu acabo lendo bastante, literatura para aquele período, livros infantojuvenis, da série Vagalume, que é um clássico. Quem da minha geração que não acessou esses materiais?
[Foi] uma adolescência dessa forma, mas sem discutir a questão da sexualidade abertamente com família, ou pra fora da família. Eu não tô nem falando da minha orientação sexual, tô falando da discussão da sexualidade mesmo, da mudança do corpo e todo esse processo. Isso é um tabu muito forte nesse período. Essa discussão não acontece na escola, ela não acontece nas famílias pobres, nem nas famílias de classe média. Ela é uma discussão proibida, na verdade. Só aparece na televisão, nos filmes, em alguns elementos que permeiam a nossa vida social. É o não dito!
(28:12) P/1 - Eu ia te perguntar exatamente isso, se tinha alguma referência, se não próxima, na televisão ou em música, em que você via. E eu queria saber se você sentia acolhimento ou identificação nessas referências, ou não.
R - Veja, quando eu entro na puberdade, com doze anos, as referências que a gente tem de sexualidade, ou de pessoas LGBT, para além das que eu já falei anteriormente, são dos grandes artistas. E aí a referência que a gente tem naquele momento da TV é que morre Cazuza, um grande poeta e músico brasileiro de AIDS. Com treze anos, em algum momento da vida eu achei que podia ter AIDS porque eu me masturbava. Esse é o grau de informação que a gente tinha de como se contaminar, como pegar HIV, AIDS, por exemplo. Você não tinha nem informação de que para contrair o vírus você tinha que estar em relação sexual com outra pessoa.
(29:33) P/1 - E nessa época você falou que a amiga da sua mãe era uma referência para você. Eu queria saber por que, se você quiser contar.
R - Eram referências afetivas, referências de pessoas com quem eu dialogava, trocava ideias. Essa relação de conversar com pessoas mais velhas é um processo contínuo, então mesmo depois, ainda jovem, eu consigo ter relação com outros jovens também - isso muda, é óbvio - mas ainda também me relacionando muito com pessoas mais velhas.
Eu acho gostoso conversar com pessoas mais maduras, mais experientes. A simplicidade é uma coisa que me encanta também.
Essa relação com os amigos muda um pouco depois que avança esse processo da puberdade, a gente… Por conta também desse trabalho da Associação Monte Azul ter um trabalho desenvolvido para jovens, eu vou, com quatorze anos, participar desse trabalho com jovens, e ali eu conheço uma turma muito especial. A gente se conecta e fica muito amigo. A gente passa a desenvolver processos artísticos ali também, de teatro, de dança, de várias relações com as linguagens artísticas, mas que passa a querer conhecer a cidade.
Eu lembro que a gente ia muito pros SESCs. Os SESCs eram uma novidade, a gente sabia que, sei lá, tal dia da semana o SESC distribuía ingresso de graça pra ir num show de algum artista no SESC Interlagos, no Bem Brasil. E nesse processo, sem conhecer, a gente foi lá e viu shows como Pato Fu. Fomos ver também muitos shows… Lembro que a gente foi ver Vanderléia.
Lembro que a gente ia ver… Era um momento que o pagode estava muito em evidência, em ascensão, no começo dos anos 90, e as rádios produziam grandes shows, no Vale do Anhangabaú, no Parque do Ibirapuera. É um momento que essa turma que eu tô nela começa a se deslocar, a entender que tem direito a acessar alguns espaços da cidade. A gente passa a fazer esses movimentos.
(32:10) P/1 - E como é isso? Antes você ficava só no Jardim Monte Azul e é nesse momento então que você começa acessar a cidade, acessar o centro. Como era pra você conhecer outros bairros?
R - Acho que [havia] uma relação e uma vivência muito bairrista e também tinha uma questão de grana pra você se locomover. Nossas referências são principalmente aquelas, mas a gente passa a perceber que tem outros lugares que a gente podia acessar e que não tinha que pagar nada além da passagem, na verdade. E aí a gente começa a ocupar a cidade e a partir daí, a conhecer o centro mesmo, espaços culturais, clubes, coisas assim.
Isso também vai se conectando depois com um processo de começar a sair de São Paulo e acampar nos litorais, nos interiores. Um processo muito bacana de cada vez ir expandindo o espaço geográfico que a gente circulava.
(33:28) P/1 - E você estava contando que você começou a estudar à noite por causa do trabalho. Eu queria saber quando foi e como foi o seu primeiro emprego.
R - Meu primeiro emprego [foi quando] eu tinha quinze anos. Fui trabalhar de office boy e auxiliar de escritório numa [empresa de] contabilidade, que tinha ali perto da estátua do Borba Gato, na [Avenida] Adolfo Pinheiro.
Foi um trabalho muito traumático, muito traumático. A primeira coisa era carregar marmita, foi uma coisa que eu nunca consegui lidar bem, até hoje. Minha primeira experiência com ter que levar um pote de comida para algum lugar… [Foi] muito forte. Acho que a primeira coisa que eu não me dei bem foi o rolê da marmita.
A segunda coisa foi um ambiente que eu entendi muito hostil, muito duro, muito do mal, porque naquele lugar eu pude ver pessoas sendo passadas pra trás em contratos de sociedade. Por exemplo, um restaurante que tem dois sócios e no contrato social vai que um sócio tá com 80% e o outro 20%, quando o acordo é 50/50 e dá-se um jeito ali dos dois assinarem esse documento. É um momento que eu tenho acesso a esse tipo de situação que envolve a questão da corrupção, inclusive, ou de golpe. Isso também me incomoda muito.
Eu fico três meses nesse emprego, ganhando um salário mínimo. E nesses três meses tem uma coisa muito interessante, que era uma [empresa de] contabilidade e embaixo tinha uma autoescola, com clientes, com instrutores. Essa autoescola tinha uma cozinha, e aí eu conheço algumas pessoas que trabalham nessa autoescola, dentre elas um casal de mulheres lésbicas, que putz, diferente de mim, jogavam futebol, tinha toda uma pegada. E aí eu começo a poder dialogar sobre essa coisa da sexualidade, não a partir de mim, mas a partir delas, com elas, que já olhavam pra mim [e pensavam]: “Esse moleque é viado! A gente precisa contar pra ele que ele é gay.”
Com elas também abre esse espaço de poder dialogar, mas a partir da vida delas, do dia a dia delas, da referência delas. Mas eu saio desse trabalho três meses depois, não dou conta, e passo a viver um processo de muita autoformação. Vou encontrar pessoas muito importantes nesse caminho, tanto dentro da Associação Monte Azul, como fora da Monte Azul. E diferente dos meus irmãos, que vão trabalhar com quatorze, quinze anos, eu vou ter o meu trabalho formal com 21 anos, e isso é uma mudança no ciclo da minha família.
Eu só posso fazer isso porque os meus outros três irmãos mais velhos começaram a trabalhar cedo. E não é porque as coisas estão boas economicamente nesse momento, mas não estavam tão ruins quanto quando eles tinham quinze anos.
Minha mãe é essa pessoa que dá muito essa retaguarda para eu poder fazer dança, fazer teatro, fazer curso de elaboração de projeto, aprender, fazer curso do que é produção cultural, fazer teatro na escola, fazer teatro fora da escola, desenvolver projeto com os amigos, com outras relações. Eu tive essa oportunidade, diferente dos meus irmãos. Isso muda esse ciclo da família.
(37:37) P/1 - Antes da gente falar desses projetos que você fez na adolescência e na vida adulta, eu queria só saber o que você fez com o seu primeiro salário, se você lembra.
R - Era muito pouco dinheiro, era um salário mínimo, então eu tinha o salário mínimo e o transporte. E veja, nós não estamos falando do salário mínimo no padrão que teve a partir do governo Lula em 2023, nós estamos falando do salário mínimo dos anos 80, então era algo em torno de R$180,00, eu não lembro muito. Eu consumia uma parte significativa desse salário para trabalhar, inclusive, para além do transporte. Mas eu lembro que eu devo ter comprado um tênis, alguma coisa assim, acho que um tênis e uma calça, e o resto do dinheiro eu deixei para viver o mês seguinte, para o próprio trabalho, porque enfim, nem todos os dias eu conseguia comer a marmita, então às vezes eu precisava ter um dinheirinho para sair e comer alguma coisa fora.
(38:59) P/1 - E me conta como foram esses projetos que você começa a fazer antes da sua experiência profissional mais tarde. Como eles começaram? Eles tinham a ver com a associação?
R - Eu conheço um cara, uma grande figura humana, um mestre, um professor, que é o Ralf Rickli - inclusive tem uma entrevista do Museu da Pessoa com ele, muito legal! O Ralf é essa pessoa que também chegou a trabalhar na Associação Monte Azul, mas que era independente, orbitava por ali. Era uma pessoa muito conectada às artes também.
Eu conheço o Ralf, porque eu tava… Entre outras coisas, o Monte Azul tinha aulas de música. Eu tava brincando ali com uma escaleta e ele viu, brincou; foi lá, pegou a escaleta e tocou também.
Ele comentou que na casa dele tinha um piano, eu pirei! “Eu quero ver um piano, quero tocar um piano.” E aí eu vou na casa dele conhecer o piano e começo a encher o saco dele para ele me dar aula de piano, e ele percebeu que eu não ia desistir.
Esse é um encontro que é um divisor de águas na minha vida; é o Ralf, essa grande figura, que eu [tive] acesso por conta da música. Um cara que vem também da classe média, branco, dos olhos verdes, que teve oportunidade de estudar. Uma grande figura… Enfim, eu colo no pé dele por conta desse rolê da música.
O Ralf é legal porque por conta da história da música ele passa também a me convidar para eventos e atividades. “Você está estudando música, vai ter um show em tal lugar, vai ter um concerto…” O Ralf é a primeira pessoa que me leva ao Teatro Municipal de São Paulo, por exemplo, com quinze anos, para assistir uma peça do Bártok. Aquilo eu não esqueço até hoje. E em outros espaços, Museu da São Bento - Museu não, a igreja da [Rua] São Bento, que tem um órgão. Eu tava ali querendo aprender piano, então, depois: “Existe órgão na cidade de São Paulo.” “Onde é que estão esses órgãos?” Pude ver um concerto de órgão.
Uma referência que eu tenho… Algum dia o Ralf fala assim: “Nós vamos num show de uma cantora maravilhosa no Parque do Ibirapuera, tal dia, chamada Nina Simone.” E eu falei assim: “Não sei quem é, não conheço.” Ele falou assim: “Mas vamos, porque no futuro você vai saber e você vai gostar de ter ido no show da Nina Simone.” E hoje eu tenho dimensão do que é ter ido, ter visto a Nina Simone presencialmente aqui.
Ele é essa grande figura e com ele a gente desenvolve uma grande parceria, porque ele é um cara que acaba usando o conhecimento dele, a estrutura dele, seus livros, sua biblioteca, seus discos, seu computador, telefone, a casa dele. Na verdade, depois um conjunto de jovens ocupa a casa dele e ele oferece essa estrutura para esses jovens. E para além dessa estrutura ele oferece a experiência e o conhecimento dele para contribuir, para que a gente realizasse os nossos projetos. E isso é muito louco!
O Ralf era uma pessoa que discutia muito o desperdício de talento, que o Brasil era um dos países que mais desperdiçava talento, que não tinha oportunidade para as pessoas se desenvolverem naquilo que elas tinham aptidão, desejo, vontade. Ele tinha muito clara essa atuação, essa intencionalidade de fazer com que as pessoas desenvolvessem seus desejos e seus próprios projetos.
Esse é o momento… Eu me identifico muito com essa história. Enfim, era muito jovem ainda, mas me coloco nessa situação e vou ficar junto com ele, com outros amigos e outros jovens, outras pessoas nesse projeto [por] uns bons anos, fazendo essa roda girar. Muitos projetos meus, dos meus amigos, do Ralf, de outras pessoas, porque aquilo era um espaço de encontro…
A casa dele se torna o que mais tarde a gente chama de Ponto de Cultura, sabe? Naquela época não existia essa política pública. Nós éramos jovens que estavam realizando ações culturais no final dos anos 90 e só depois, em 2004, que vai surgir uma política pública como o programa VAI [Programa para a Valorização de Iniciativas Culturais], que apoia justamente atividade de jovens que estão se desenvolvendo, então foi um projeto muito pioneiro para aquele momento, o Ralf junto com a gente, com essa questão de discutir… O Ralf também vem dessa filosofia, da pedagogia Waldorf, e ele vai fazer naquele lugar a discussão da importância de entender que as fórmulas que foram feitas dentro da antroposofia na Europa… O conceito serve, mas as formas que foram feitas pra lá, não necessariamente servem pra cá, porque lá tem outro solo, outro clima, outro sol, outra cultura, outro tudo. E aqui a gente também tem outro clima, outro sol, né? Mesmo na educação, as referências e assim por diante.
Por conta desse exercício que ele faz lá na antroposofia, de pensar isso, quando ele vai desenvolver esse trabalho com a gente ele vem também nessa pegada de desenvolver aquilo que a gente é de onde a gente é, por isso uma questão de uma identidade periférica. Estamos na periferia da Zona Sul, e aí ele vai cunhar junto com a gente a primeira vez que eu ouço a expressão “a periferia é o centro”, que hoje é uma expressão que… Quando eu tava como coordenador do programa VAI, a gente lançou um documentários de dez anos do VAI, que se chamava A periferia é o Centro. Agora eu trabalho no Museu das Favelas, que teve um seminário, A favela é o Centro, mas que foi elaborado com esse nome, com esse título, antes de eu trabalhar lá. Já teve candidatura coletiva com esse título, A periferia é o centro!
Ele era esse pensador, que tava ajudando a mostrar o óbvio, a deslocar algumas coisas do lugar, para que a gente pudesse ter outras percepções e visões.
(46:06) P/1 - Além do Ralf tem algum amigo, ou amiga que tenha sido marcante nessa época de montar os projetos? Eu queria saber também se tem algum projeto que você lembra dessa época com muito carinho.
R - Essa história com o Ralf se conecta com uma história que a gente começa no ensino médio - na época a gente chamava colegial. A gente tá jovem ali, mais ou menos com dezesseis anos. E desse momento que eu volto lá para o Monte Azul, para um trabalho de jovens e eu me conecto a um grupo, sai uma pessoa muito especial pra minha vida, que é uma pessoa chamada Anabela Gonçalves. A Bela, a gente fica muito amigo.
Eu lembro quando a gente se conheceu. Eu tinha quinze anos, ela treze anos; ela tava conectada nesse rolê de ocupação da cidade, de direito à cidade. Depois ela também vai para casa do Ralf, mas a gente tá no colegial, nesse mesmo momento, no ensino médio, e a gente tem uma turma ali de amigos. A escola era muito chata e a gente começa a cabular aula, faltar aula, para ir para o Parque do Ibirapuera, para fazer outras coisas, para ir às vezes ao teatro, pra ir ao cinema. A gente faltava na aula por isso. E faltava na aula para vagabundear também, jovem, pra brincar de escravos de Jó, quem errou toma a cachaça, a bebida - esse momento da adolescência pra juventude, que a gente começa ter acesso ao álcool, enfim.
Eu lembro que uma vez a gente tava num rolê desses, ali perto da escola, à noite, bebendo, fazendo, sei lá, jogo da verdade, bicho que bebe, escravos de Jó etc. E um de nós pega e fala assim: “Poxa, a gente não entra na escola. A escola é muito chata, né? Putz, assim a gente vai repetir de ano por falta. Às vezes nem é pelas nossas entregas, é por falta. A gente precisa fazer alguma coisa na escola, pra escola ficar mais legal, pra gente poder ir para a escola.” E ali, naquela noite, a gente decide que vai fundar um grêmio na escola, porque a escola já tinha tido grêmio anos atrás, mas não tinha grêmio.
A gente passa a frequentar a escola para fazer um grêmio, para fazer uma eleição de grêmio, passa a mobilizar a direção, a coordenação, os alunos, pra fundar esse grêmio. A gente funda esse grêmio, começa a ter presença na escola e não repete de ano por por falta - sobretudo a gente cumpre esse objetivo. Também [um grêmio] como espaço de tornar a escola num lugar mais saudável, mais legal, mais propositivo. E a gente tava numa escola que a diretora tinha uma… Foi formada na época da ditadura, então ela era bastante rígida. Pra você ter ideia, num nível, que quando a gente vai propor fazer uma eleição de grêmio, ela prefere nomear a gente o grêmio da escola do que fazer eleição, porque ela fala assim: “Vai que uns vândalos ganham a eleição. Vocês já pensaram no que vai acontecer?” E a gente naquele momento ainda era muito frouxo, a gente aceitou o grêmio eleito de forma indireta pela diretora, fazendo a meia culpa.
Nossa, me perdi… Ah, tá! Então, por conta desse grêmio, a gente resolveu fazer uma semana cultural na escola e a diretora só autorizou depois de muita briga, muita contestação, [pra que] a nossa primeira semana cultural durasse duas aulas, de cinquenta minutos cada. Nossa semana cultural, na prática, teve menos de duas horas de duração.
A gente prepara coisas para apresentar nessa semana cultural: dança, show, apresentação, tudo muito rápido, pequenas apresentações para esse evento. Esse preparo da semana cultural é muito bacana e instiga um grupo, e aí uma professora propõe da gente montar na escola… A professora Antônia Pietro, além de ser professora, ela é artista, ela é poeta, então ela escreve. E Antônia propõe, professora de literatura, que a gente monte, no segundo colegial, uma adaptação do Auto da Barca do Inferno, do Gil Vicente.
A gente monta com ela essa adaptação e se empolga no rolê do teatro. E essa turma que montou, praticamente essa turma que monta o Auto da Barca do Inferno, quando acaba esse processo, vai para casa do Ralf como base e usa o Centro Cultural Monte Azul para montar outro espetáculo de teatro, independente da escola. Com aquele sonho de juventude, dezessete anos e “vamos fazer teatro, vamos mudar o mundo a partir do teatro, o teatro vai pagar a nossa vida”. Tipo “o teatro é o resultado, é a solução para todos os problemas do mundo.” E é, na verdade! A gente só não conseguiu essas coisas. (risos)
Esse é o primeiro projeto. A gente funda um grupo amador de teatro, em 98, chamado Grupo Submundo de Teatro. Esse projeto fica sediado na casa do Ralf. E essas pessoas… Você tem a Anabela, mas a gente é um grupo que é formado pela Carla Lopes, pela Ana Paula da Paz, por um conjunto de jovens que estavam ali no colegial naquela escola, naquele momento. E o bacana é que praticamente todo esse grupo hoje… Nem todos no teatro, mas todos trabalham no campo das artes, seja na produção cultural, ou na produção artística propriamente dita.
(52:43) P/1 - E como começa essa experiência de emprego em seguida, com 22 anos? Tem algum fato marcante dessa experiência de emprego, entre o grupo de teatro? Ou você tava atuando, fazendo um grupo de teatro e daí vai em seguida para essa experiência?
R - Uma das principais questões que aflige um grupo de arte, cultura, principalmente os pequenos grupos, ou os grupos amadores, é quem vai cuidar da parte burocrática, da parte comercial - comercial eu quero dizer negociação. Para onde nós vamos levar esse espetáculo? Vai ter bilheteria ou não vai ter bilheteria? Quanto vai custar? O que que nós vamos fazer para levantar dinheiro para o figurino da peça?
Por conta disso, alguns de nós, eu, Carla, Bela, alguns de nós, a gente começa a realizar produções para o teatro. E depois, como esse trabalho com o Ralf vai crescendo, vai ficando intenso, eu passo a trabalhar muito com o Ralf, contribuindo na elaboração de projetos, organizando essas ações, não só para o grupo de teatro, mas para o conjunto de coisas que tinha na casa.
A gente intitula esse trabalho de Tropes. E o Ralf vai conceituar, porque Tropes tá pensando justamente o que é morar nessa área tropical do mundo. Tropes e quilha são a mesma coisa, é aquela madeira que [vai] do começo ao fim do barco, cortando o vento, que dá direção, mas que equilibra o barco também, para ele não virar. Então essa ideia Tropes, quilha, ela vem nesse sentido, de se conectar a esse processo que o Ralf fazia, de contribuir para o caminho de cada um, para que cada um pudesse navegar por esse mar em busca da sua Ilha, do seu tesouro, do lugar, ou simplesmente circular.
Esse trabalho com o Ralf passa a ter uma visibilidade, resultados. E eu passo a ser convidado para fazer coisas profissionais, não necessariamente a partir da atuação do teatro, mas da atuação em produção, que eu passo a desenvolver junto deste trabalho da Tropes, que inclui o teatro. E aí eu vou ter o meu primeiro trabalho no Instituto Sou da Paz e no Canal Futura, ao mesmo tempo. É um salto grande, aos 21 anos, porque eu vou trabalhar para o Canal Futura por meio de uma cooperativa, para desenvolver conteúdos educativos junto às escolas. Eu viro um articulador do Canal Cultura, que vai em escolas públicas que são parceiras do Canal Cultura, que além de ofertar os conteúdos em vídeos - VHS, que chama? - VHS pras escolas, e montar uma videoteca nas escolas, [pra] que fosse ferramenta para os professores darem aula com diversos temas. A gente também buscava conteúdos e ações que a própria escola desenvolvesse, que pudessem virar pauta para o Canal Futura.
Esse é um primeiro trabalho de articulação e mobilização. E um segundo trabalho, no Instituto Sou da Paz, o primeiro projeto que o Instituto Sou da Paz realiza, é um projeto de montar um guia para grêmios, e eu estava vindo de uma situação de grêmio de escola, então eu vou fazer parte dessa equipe do Sou da Paz para formular esse caderno e realizar uma experiência junto com aquela equipe em três escolas públicas que estavam com interesse em implantar grêmios.
Começo a minha vida profissional, após três meses de contabilidade e frustração, nessas duas atuações que foram muito bacanas e que me deram perspectiva para atuar em lugares que eram mais interessantes do que numa contabilidade que aplicava golpe.
(57:31) P/1 - Você estava falando sobre o seu trabalho, sua primeira experiência. Eu queria saber se nesse momento você já tinha entendimento da sua sexualidade, ou ainda não é nesse momento que isso começa a passar pela sua cabeça.
R - Eu vou contar essa história que se conecta com o Ralf e a Tropes e essa minha turma. Primeiro tinha uma relação na adolescência muito difícil de lidar com a sexualidade, com o desejo, com esses pensamentos. Lembro de muitas vezes que acontecia alguma situação que eu me sentia oprimido, ou que eu me sentia culpado por conta da sexualidade. E nesse momento eu não tinha uma vida sexual, mas me sentia mal, oprimido pelos próprios pensamentos, ou pelas relações que você tem com as pessoas, de homofobia.
Teve uma semana que foi muito significativa pra mim. Eu lembro de alguma situação que alguém me ofendeu por conta da questão da sexualidade, [quando] eu tinha quinze anos, numa segunda-feira. Na quarta-feira eu tinha aula de piano com o Ralf, eu estava indo fazer aula com ele e alguém grita na viela, na favela; faz alguma piada, me relaciona com algum personagem caricato, gay, da TV.
Aquilo me machucou muito. Eu lembro que cheguei na casa dele muito mexido, muito mal com tudo isso, porque afinal eu não queria ser gay, não queria ser homossexual, com essas referências tão ruins que eu tinha da infância, ou que você morre, ou que tá errado, enfim.
Eu começo a falar com ele sobre isso e desabafar. E ele vira para mim e pergunta: “Mas qual o problema em ser gay? Eu também sou gay!” E isso para mim foi um choque. “Meu Deus, eu tô fugindo disso! Eu tô querendo acordar no dia seguinte e sentir que eu não sou gay e aí de repente tô eu aqui na casa de um gay, tendo aula de piano.”
Eu sumi de lá! Fiquei uma semana sem aparecer, porque também foi um choque ele falar: “Eu sou gay também, um monte de gente é gay. Tem vários filósofos gays.” Vao falar do Sócrates, o Alexandre o Grande, vai buscar referências, aí já começa a discutir o que tinha na Bíblia etc. Eu [pensava:] “Mano, o cara é gay. Eu tô aqui, tentando me desassociar dessa história e ele vem falar que ele é gay, me dar essas referências, então eu não quero nem ficar perto também.” Mas eu gostava muito dele, queria aprender piano e continuo indo para as aulas.
O Ralf é um personagem que foi muito importante também nessa área da vida, de desmistificar, de discutir o que era moral, explicar o que é moral, o conceito de certo e errado, o autocuidado. Enfim, ele foi uma pessoa muito importante, que me deu a possibilidade de aos poucos ir aceitando que eu realmente era gay.
Com o Ralf eu vivo também uma primeira experiência que é inesquecível, que foi na primeira parada LGBT de São Paulo, que hoje é a maior parada do mundo. Foi [em] 97, 98. Na verdade, eu estava fazendo um curso de elaboração de projeto para a Lei Rouanet, então eu vivo um pouco esse processo dos quinze, dezesseis, pros 21, com o mundo do trabalho - fazendo muitas formações, uma dessas foi um curso de elaboração de projeto pra lei de incentivo. No dia do curso, que eu fazia na Barra Funda, ia ter essa mobilização e a gente resolve um pouquinho ali, com medo…Tinha quinhentas pessoas na Avenida Paulista.
Eu fico ali um pouco, vou para o curso, termino o curso às quatorze horas e volto para encontrar o final dessa parada, na praça Roosevelt. E a praça Roosevelt ainda é um lugar muito escuro, muito dos garotos de programa - muito underground, na verdade. Então tem essa reflexão, essa memória.
Esse já é um momento em que eu tô entendendo que talvez não tivesse problema ser gay, ser homosexual, LGBT. E com dezoito anos eu tenho meu primeiro namoro, [com] um outro rapaz que tinha 21. A gente se conhece ocasionalmente na igreja e começa… Mas era uma igreja já também mais moderna, mais inclusiva. Começa uma história ali e aí eu vivo um namoro de um ano, dos dezoito aos dezenove, com Christian, que é essa figura que a gente é amigo até hoje, se acompanha, troca ideia.
Esse namoro foi muito interessante. Foi a primeira vez também que eu cheguei para esse grupo de amigos e amigas - estavam ali, no entorno do teatro, por mais que já soubessem ou não - e falo: “Esse é o meu namorado.” Começo a ter uma vida social, pelo menos com os amigos, assumindo que eu era gay, que eu tinha um namorado, que eu tava bem com isso.
(1:03:27) P/1 - E com a família não era esse momento ainda?
R - Com a família não era esse momento. E com cada membro da família tem uma relação e um tempo diferente. Com a minha irmã, a Meire, que é só dois anos mais velha que eu, sempre tive uma relação muito direta, então a Meire sabia que o Christian era o meu namorado, sabia da minha sexualidade; a gente tinha essa cumplicidade. [Com] a minha outra irmã, a mais velha, a gente tem uma relação mais distante, ela já morava em outro bairro. Meu irmão, que morava com a gente, tem uma conversão de jovem do catolicismo para jovem evangélico, e aí a gente cria uma comunicação muito difícil, em diversos aspectos da vida, mas nesse também. Pra minha mãe eu só vou falar que eu sou gay aos 22 anos, depois que eu já tinha tido esse primeiro namorado, já tinha acabado, já tava vivendo outras paixões.
Eu sempre saía muito com os amigos. Era tipo uma noite de sexta e eu tava em casa, ela achou estranho eu estar em casa. Mas eu estava bem comigo mesmo, eu tava lendo, fazendo minhas coisas. Ela vai no quarto: “Tá tudo bem com você?” “Tá, tá tudo bem comigo, sim!” Tá precisando falar algo?” “Não.”
Depois de um tempo ela volta: “Mas tá tudo bem mesmo? Tem alguma coisa que você precisa falar comigo?” Eu falei: “Pronto! É a oportunidade que eu tenho de falar pra ela. Ela tá me falando: ‘Me fala!’” E aí eu falo: “Mãe, preciso te contar uma coisa.”
Eu lembro que fiz uma relação com aquele livro dos animais. Como chama? Faço uma conexão com o livro A Revolução dos Bichos. E falo para ela: “Mãe, preciso te falar uma coisa. Algumas pessoas são iguais, mas algumas pessoas são mais iguais que as outras. E aí também tem os diferentes…” Eu começo a fazer esse discurso. Ela: “Mas o que você tá querendo me dizer?” E aí eu falo: “Eu não sou tão igual aos outros meninos. Eu gosto de meninos também, eu me relaciono como meninos, eu sou gay!” E aí ela olha pra mim: “Tá bom! É isso mesmo?” Eu falo: “É!” Tudo certo!
Depois ela vai ficar uns dias na casa da minha irmã mais velha, que mora mais distante. Essa minha irmã mais nova fala assim: “Você contou pra mãe que é gay. Ela ficou tão mal, por isso ela até foi para a casa da nossa irmã. Ela ficou muito triste, me contou. Não tá sabendo como lidar.” Isso me pegou, óbvio! Se era tão óbvio para o mundo, porque não era óbvio pra minha mãe? Enfim, aquelas histórias.
Ela volta, a gente tem um diálogo ali. Ela me abraçou, falou: “Eu te amo, você é meu filho!” Aquela história bonita. Mas depois eu descubro que minha mãe tava fazendo uma novena, rezando um terço de três meses, para me curar de ser gay, pedindo para Deus, para Ave Maria, para todo mundo. Minha irmã me conta, e aí aos poucos eu vou dialogando com ela, trazendo o questionamento: “Poxa, mãe, e se Deus me quer assim? Não tô fazendo mal para ninguém, não adianta rezar o terço porque eu não tô doente, não vou me curar.”
Nas aflições e angústias dela, ela procura uma psicóloga da Associação Monte Azul que ela confiava, que ela conhecia e tem uma consulta com ela. Minha mãe sai diferente dessa consulta, absolutamente diferente, com outra compreensão, com outro olhar. E aí minha mãe se torna referência para outras mulheres, outras mães da comunidade, da favela, ou daquela região, que de repente descobrem que os filhos são gays, que algum filho é gay, ou que o filho chega para mãe e conta que é gay e essas mulheres não sabem o que fazer. O que elas vão fazer? Elas vão procurar alguma mãe que elas conheçam que já tenham vivido isso, elas vão procurar a minha mãe. E a minha mãe passa a ter um papel muito, muito legal, muito bacana, de consolar e dar orientação para essas outras mães com filhos e filhas gays.
É uma mulher que estudou só até a terceira série, negra, que tem todo esse processo de cuidados com os filhos. Esse giro que ela fez, essa pra mim é a melhor parte da história, essa referência que ela se tornou, sabe? De mãe de uma pessoa gay, de referência. Muito legal!
(1:08:36) P/1 - E como começa a história com o programa VAI?
R - Justamente por conta da Tropes, por conta desse trabalho no Sou da Paz, no Canal Futura, do projeto de teatro, desse conjunto de ações que a gente fazia ali, que era muito capitaneado por jovens. Tinha o Ralf, que era essa figura que dava toda essa base pra gente, dava retaguarda, mas essas ações que eram feitas por nós, diretamente.
Aos poucos eu vou conhecendo pessoas, as pessoas vão me conhecendo, a Tropes vai sendo conhecida em diversos lugares. Eu sou convidado uma vez para participar da primeira, ou segunda Semana da Juventude que a cidade de São Paulo faz, no ano de 2002. E eu vou participar de um painel, de uma mesa que vai discutir a atuação da Juventude, relações com as mídias; era muito essa discussão de projeção das ações da Juventude junto à mídia. Eu vou participar de uma mesa e nessa mesa tinha duas pessoas que trabalhavam na Secretaria Municipal de Cultura, outra na Secretaria do Trabalho, outra na Juventude; tinha alguns convidados, tava lá Helena Abramo, pela Secretaria de Juventude, tava Maria Tendlau, que tava pela Secretaria de Cultura, tava eu, falando da Tropes, tinha Reginaldo, falando da favela de Heliópolis, da rádio comunitária que eles tinham em Heliópolis. E ali tinha uma janela em que eu pude apresentar para essas pessoas e para o público presente o que a gente tava fazendo lá na Tropes, que a gente tava fazendo protagonismo juvenil de teatro, de formação etc.
Essa pessoa, a Maria Tendlau, ela tá na Secretaria de Cultura e eles começam a desenvolver um projeto que fazia conexão com teatro e ação cultural, quero dizer, ação cultura/produção cultural. Era um projeto em que a parte de teatro era o Teatro Fórum, o Teatro do Oprimido, do Augusto Boal, e a parte de ação, produção cultural, era organizar feiras de culturas nas comunidades. Eu sou contratado para esse projeto, junto com 36 pessoas na cidade.
Eles estavam procurando esse perfil, gente que tinha conexão com teatro ou com as artes e que tinha essa pegada de realização, eventos, atividades. Selecionam 36. A gente primeiro passa por um processo de formação no Teatro do Oprimido, com o próprio Augusto Boal. Eu falo que esse é o auge da minha carreira no teatro, ter conhecido o Boal, ter aprendido com ele, porque depois essa parte de gestão cultural, de produção cultural, é o que vai deslanchar. É aí que eu vou me estabelecer como profissional, que vou pagar minhas contas, que vou ter uma atuação mais consistente.
A gente desenvolve esse projeto. Quando acaba esse projeto, eu sou convidado para virar servidor da secretaria com cargo, trabalhar na implantação dos CEUs na cidade de São Paulo - eu era um deles, tinha 23 anos - com uma equipe muito bacana, uma equipe com dez pessoas, pessoas mais sêniors da cultura. Tinha eu e Carla ali, do grêmio da escola, que entrou também nessa equipe da secretaria, que éramos mais júnior.
Após a implantação dos CEUs, cada um vai tomando um caminho e eu chego no programa VAI, que em 2003 também virou lei - ele foi implantado em 2004. Eu chego no programa VAI em 2005, num momento de dar continuidade para o programa, com a Maria do Rosário Ramalho, que é uma das criadoras do VAI.
A Rô foi uma grande escola, uma madrinha dentro da Secretaria de Cultura, que me ensinou como fazer gestão pública, como pensar o desenvolvimento do VAI. Eu era um moleque da Periferia e tinha muito pouco isso na secretaria, porque gente da Periferia dentro da Secretaria de Cultura... Por conta disso, acabei sendo chamado muitas vezes para atuar em programas que se conectavam com as periferias - por isso o CEU, depois o VAI, depois Pontos de Cultura e assim, sucessivamente.
Começa a minha história com o VAI, para trabalhar num programa que eu sabia a importância, porque não existia anos antes, quando eu tava ali na ponta, fazendo teatro, por ter uma dimensão do que era a juventude da periferia, arte, cultura e por estar na gestão pública. A Rosário coordena o programa por um bom período, o programa cresce, a gente amplia a equipe; eu assumo a coordenação do programa também, por alguns anos, e fica essa história. O VAI se consolidou como uma política pública de juventude na cidade, ele gira por si só.
(1:14:04) P/1 - E dentro desse trabalho na secretaria, em várias frentes, pode-se dizer assim, eu queria que você contasse - com certeza tem - alguma história marcante dessa época?
R - Nossa, tem muitas! Dessa época?
P/1 - Pode contar mais de uma.
R - A inauguração do primeiro CEU é uma história muito marcante. O primeiro CEU inaugurado no final de 2003 foi o CEU Jambeiro, que é um CEU que fica em Guaianazes. O primeiro CEU a ser lançado, com a presença da prefeita, que era Marta Suplicy, na época, e com a presença do presidente da república, Luiz Inácio Lula da Silva. E a gente coordenando esse evento.
Tinha um cortejo de visitação ao CEU, no dia da inauguração, com as autoridades, com o presidente, com todo mundo, que era guiado pelo Nóbrega, o Antônio Nóbrega. E foi tão caótico esse dia, porque quando você tem um evento que tem a presença do presidente, entra a segurança do presidente com um conjunto de restrições. Pra mim foi muito marcante ter que dar um jeito de trazer o Nóbrega pra dentro do CEU, porque ele tava lá fora, não conseguia entrar, e ao mesmo tempo a prefeita e o presidente aguardando o Nóbrega para fazer o cortejo da visita ao CEU.
Esse foi um dia marcante, porque foi muito caótico. Deu tudo certo, mas foi aquele dia de chegar em casa às três horas da manhã e passar um carro às seis da manhã para te pegar, para ir para à abertura do evento.
(1:16:08) P/1 - Antes da gente falar um pouco mais dessa parte profissional, eu queria voltar porque eu fiquei pensando… Quando o Ralf te leva na sua primeira parada, eu queria saber o que você sentiu e como era a parada nos anos 90.
R - Na ida eu senti… Enquanto a gente tava indo para essa primeira parada, essa concentração na Paulista com quinhentas pessoas, eu senti apreensão, medo. Achava que a mídia ia estar lá, não tinha contado ainda pra minha família, pra minha mãe. Meu rosto podia aparecer na televisão e todo mundo no dia seguinte ia saber que eu era gay, como se isso fosse mudar o curso do mundo.
Eu vou um pouquinho no começo, vou fazer o curso. Quando eu volto do curso, que encontro a parada no final, é um momento em que eu já tinha vivenciado a primeira etapa do evento, então já tava mais tranquilo. Esse é um momento em que eu posso olhar para aquela concentração de gente e falar assim: “Nossa, tem duas mil pessoas aqui embaixo! Meu Deus, quanta gente! Que absurdo, que coisa louca, que legal!”
Mas na segunda e na terceira parada, é aí que eu vou. A partir da segunda estou objetivamente indo para a parada. Não tô indo para outro lugar, eu estou indo para a Parada Gay de São Paulo. E na terceira aparece pela primeira vez o sentimento de orgulho: “Eu sou gay, eu tenho orgulho de ser gay! Tenho orgulho de ser.”
As paradas têm essa conexão comigo, elas me ajudaram a ter orgulho de ser gay, de poder ver outras pessoas, [ver] que eu não tava sozinho. Tinha muitas pessoas que também passavam um processo como eu, também viviam seus processos de opressão, mas mesmo assim estavam ali naquele dia protestando, despejando, se encontrando, se conectando.
Eu tenho essa relação muito forte com a parada gay de São Paulo, ela me ajudou.
(1:18:25) P/1 - Gil, eu sei que você tem uma carreira muito grande e muito marcante também na cultura daqui de São Paulo. Queria que você fizesse uma reflexão de três momentos que foram marcantes da sua carreira para a gente conseguir abarcar ela.
R - O Programa VAI, na Secretaria de Cultura, é um momento marcante, porque eu vou me desenvolvendo à medida em que o programa também vai se desenvolvendo, se estabelecendo, vai ampliando a sua atuação na cidade. Junto com isso, eu consigo ter uma atuação também mais ampla na cidade. E o VAI, como esse lugar de potencializar aquilo que você é… O projeto fazia e faz toda a conexão com o que o Ralf tava falando lá nos anos 90.
Nesse momento que surge o VAI, ao mesmo momento que surgem os Pontos de Cultura, é um primeiro movimento da aparição direta de políticas públicas de cultura de fomento. O que a gente tinha antes disso? Qual era o papel do poder público, para além de realizar contratação de eventos, de shows artísticos? Era manter suas redes e equipamentos, os teatros, as bibliotecas, centros culturais etc. Mas na virada dos anos 2000 aparece esse conceito.
O fomento ao teatro é o precursor, ele é quem aponta a direção, mas logo na sequência aparecem esses dois programas, que são programas de cidadania cultural; o mesmo programa, se você for ver, como pontas de um iceberg que é um só, que tá conectado lá embaixo, mas que essa linha de apostar que a sociedade civil de grupos, as pessoas organizadas, os artistas, têm propostas interessantes, que essas propostas podem ter apoio com recurso público e que o beneficiário desse apoio sempre vai ser a sociedade. Os Pontos de Cultura têm isso, o VAI tem isso, acho que esse é um momento muito marcante.
Outro momento muito marcante, depois de ter uma atuação no campo da cultura, conhecer de gestão pública, de cultura etc, é assumir a coordenação de um Centro de Cidadania LGBTQIA+. Essa foi uma experiência muito marcante, porque esse centro é lançado na gestão do Haddad, como espaço também de conexão com o programa Transcidadania.
A gente sabe que a gente tem muitas meninas trans que infelizmente não têm outros caminhos, vão sobreviver da prostituição, muitas vezes são expulsas de casa, não tem moradia. E vem esse programa Transcidadania, que te dá bolsa de um salário mínimo para você estudar, para você melhorar sua qualificação pessoal, e por consequência ampliar suas oportunidades de atuação no mundo do trabalho.
O Centro de Cidadania LGBT, além de fazer esse atendimento direto ao Transcidadania, tem um conjunto de serviços que vai desde assessoria para quem quer fazer parceria civil registrada, [ou] alguém tá com alguma questão e quer acessar uma assistente social, ou psicólogo; um pai ou uma mãe, às vezes, que também não tá sabendo lidar com esse tipo de situação, situações e denúncias sobre homofobia, violência. O Centro de Cidadania é um conjunto de serviços.
Foi muito bacana ter podido trabalhar diretamente com a comunidade LGBT, com as mulheres trans, com os homens trans, com os profissionais que atuam nessa área e levar também… Aprender e levar também um pouco da forma da gestão da cultura, a forma com que a gente faz gestão na área da cultura para um centro de cidadania LGBT - organizar a grade de programação, de formação, reorganizar o espaço a partir das demandas, das ações que a gente fazia. Essa foi outra experiência muito marcante para mim.
Por último, eu tô vivendo uma nova experiência agora, então vou destacar ela porque por mais que seja agora em 2022, pra 2023, [são] vinte anos de carreira, de atuação direta nas políticas públicas. Trabalhar num museu pra mim é uma grande novidade. Eu sempre atuei ou no campo dos fomentos, do financiamento, do apoio, das políticas públicas, ou em gestão pública que conectava ações culturais, eventos, editais, chamadas públicas. E agora eu tô na gestão de um equipamento que é um museu, que é um museu em parceria com a Secretaria do Estado e da Cultura, com gestão de uma organização social, que tá trabalhando justamente essa temática que se conecta à minha origem, que é a favela.
Estar agora no Museu das Favelas tem sido também uma experiência muito enriquecedora. Ainda é muito no início, eu tô lá vai fazer três meses na semana que vem, mas tô podendo aprender, tô podendo contribuir também com aquele espaço.
(1:24:28) P/1 - E me conta o que você sente de estar trabalhando agora com uma temática que te reconecta com o começo da sua trajetória profissional e vida também.
R - Estar trabalhando agora no Museu das Favelas me possibilita completar um conjunto de reflexões que eu tive desde o início da juventude sobre moradia, sobre nossos direitos, sobre nossos acessos. Em algum momento, de alguma forma eu interrompo, eu saio da favela.
Minha mãe decidiu que a gente iria se mudar da favela quando eu estava com quinze anos, porque a favela entra numa guerra de grupos e as pessoas começam a se matar. Minha mãe olha e pensa: “O meu filho mais novo tem quinze anos, o meu filho mais velho tem 22 anos, sei lá, 23 anos. É o momento que eles estão na rua, meus filhos e as minhas filhas. E aqui, morando aqui, eles estão sem esse direito.”
A gente vende a casinha, o barraco na favela e vai morar de aluguel, justamente para que os filhos possam sair na rua. De certa forma, essa mudança interrompe um conjunto de reflexões que eu já vinha tendo, e nesse momento eu vou super abrir a cabeça para o mundo das artes, para esse desenvolvimento.
Hoje, quando eu tô no Museu das Favelas, e citam justamente essas questões, reflexões, que eu tava tendo naquele momento, antes de sair dessa favela, e que agora eu acesso de novo - inclusive para pensar, do ponto de vista simbólico, de identidade, o que que tem que ser esse Museu das Favelas, que está em construção - eu faço essa conexão.
(1:26:41) P/1 - Conta um pouco dessa mudança que não tinha aparecido quando a gente estava falando da sua adolescencia. Quando você sai, você vai para o Jardim São Luiz?
R - Eu posso só contar com mais riqueza de detalhes, mas é isso que acontece, nossa família se muda porque existe uma guerra interna na favela de grupos, de quem vai dominar a favela, quem vai mandar na favela. Essa guerra primeiro acontece internamente, depois ela envolve outra comunidade e a gente vive um processo muito difícil, de ver muitas pessoas morrerem nessa guerra.
Uma noite meu irmão tá voltando da escola e essas duas favelas [estão] uma atacando a outra. Tinha um carro estranho, ele e os amigos têm que correr do carro, porque atiram. Minha mãe fica muito preocupada com essa história e resolve se mudar, para fugir um pouquinho dessa violência que naquele momento estava localizada ali.
(1:27:54) P/1 - Em outro momento você muda de novo ou você continua morando lá?
R - Esse bairro, o Jardim Monte Azul - porque também tem o bairro Monte Azul… O Jardim São Luiz é uma referência na minha vida. Eu moro lá até os trinta anos, depois eu tenho uma experiência de morar dois anos no centro de São Paulo, já que eu trabalhava na Galeria Olido, na República. Fui morar lá dois anos com essa minha amiga Anabela, aquela da escola, da Associação Monte Azul. Foi uma experiência muito bacana. De lá eu volto para Zona Sul, continuo morando no bairro. E agora, exatamente em agosto, tá fazendo nove anos que eu moro no Butantã.
Fui morar no Butantã por uma questão estratégica de localização. Eu já tinha tido a vivência de morar no centro de São Paulo, que tem pontos ótimos, não tem nada melhor do que sair na sexta-feira do trabalho, ir para o seu apartamentinho, olhar pra fora e ver um trânsito caótico, todo mundo tentando sair do centro e falar: “Já cheguei em casa.” Esse é o ponto positivo.
O ponto difícil é que eu que nasci numa favela, numa comunidade, com os amigos da mãe, com as crianças. A vida pra quem mora no centro… Também é um bairro, também tem uma vida de bairro, mas num outro grau, muito diferente. Eu me reconheço nessa vida de bairro. Depois de ter tido essa vivência, eu entendo que eu preciso… Eu percorria uma distância de 21 quilômetros todos os dia para ir, mais 21 quilômetros para voltar, do Jardim São Luiz até a República, na Galeria Olido, ou seja, 42 quilômetros por dia. Eu estava muito cansado e aí eu decido que quero economizar tempo, qualidade de vida. Aí penso: “Onde posso morar que ainda seja bairro, mas que eu chegue mais rápido no centro?” Aí eu me mudo pro Butantã, porque o Butantã é o bairro logo após a ponte do [Rio] Pinheiros, que me faria economizar os dez quilômetros da Marginal Pinheiros, de ida e volta. E sigo no Butantã até hoje.
(1:30:17) P/1 - Eu queria saber também um pouco - a gente passou rápido por essa parte, eu queria retomar - do seu trabalho no centro de acolhida, se tem alguma história marcante dessa época.
R - Tem uma história muito legal do centro de cidadania LGBT, porque a gente começa um projeto lá, que é o CineClube Ouro Preto. O centro ficava na Rua Ouro Preto. E aí um conjunto de pessoas que gostam de cinema, que gostam de filmes… Essa história se conecta comigo porque eu começo a acessar na adolescência e juventude esses filmes. Lembro que um dos primeiros filmes que eu assisti foi aquele filme com o Tom Hanks, que fala abertamente das pessoas gays e da AIDS - um filme dos anos 90, acho que é 1996. Assisto esse filme, depois eu lembro que eu assisto um filme chamado Bent. O Bent é uma obra clássica, que vai falar de dois judeus num campo de concentração nazista. E aí depois assisto um filme… Enfim, eu começo a assistir alguns filmes com a temática LGBT e tem uma coisa que me pega: as pessoas gays, LGBT, sempre se ferram no final. Conclusão dos filmes: a pessoa tem algum problema de saúde mental, ou é louca e mata alguém. Almas Gêmeas é um exemplo disso, foi o primeiro filme lésbico que eu assisti. Falei: “Nossa, que filme bonito, que fotografia”, mas [tinha] essa referência. Essa pessoa, que é uma mulher lésbica, na conclusão do filme, ela… É isso, ela é uma pessoa com problema de saúde mental e mata uma pessoa. No Filadélfia, a pessoa que é gay, que é homossexual, morre de AIDS. No Bent, nós estamos falando de dois prisioneiros em campo de concentração, e ali me cita uma questão: porque que a gente não pode ter filmes com final feliz, simples assim? Só queria isso, filmes LGBTs que pudessem ter um final feliz.
A partir daí eu começo uma busca incessante por assistir filmes LGBTs e comprar filmes dos camelôs, das bancas, das repúblicas, que enfim, quem conseguia ‘chupar’, trazer produções legendadas, porque às vezes não tinha tido no cinema. Começo a ver muitos filmes desses DVDs piratas, até que eu assisto o primeiro filme que eu acho que resolve essa questão, que é um filme muito bacana, chamado Delicada Atração, superbonitinho.
Crio essa relação de pesquisa com os filmes. Lá no Centro de Cidadania encontro essas outras pessoas. O Eduardo, que é uma grande figura, que tem uma história com cineclube, a gente funda o CineClube Ouro Preto, que existe até hoje. Mesmo a gente não estando mais no centro, o cineclube exibe mensalmente filmes com temáticas LGBTQIA+, relacionadas a direitos humanos, enfim, que são pautas.
(1:33:44) P/1 - E nessa vida adulta, depois da adolescência, no início da vida adulta, o que você fazia para se divertir? Onde você ia para se divertir?
R - Eu tive um círculo de amigos muito dinâmicos e muito bacana, então eu digo que boa parte do tempo eu tava com esse círculo de amigos. E a gente sempre gostou muito de ir aos barzinhos com música ao vivo, tomar cerveja, se divertir, paquerar. E aí tem namoros, histórias etc. Mas tem um momento também, que é esse momento no final dos vinte anos, que eu falo: “Poxa vida, eu fico aqui só com os meus amigos heteros, tá todo mundo namorando e eu tô aqui sozinho, não encontro outras pessoas que também são LGBTs para trocar, ou para conhecer, ou pra namorar.” E aí eu faço uma mudança na vida. Eu passo a frequentar um circuito mais de baladinhas LGBTs e me divirto muito nesse processo, de conhecer muitos… Já conhecia antes, mas eu não era um frequentador assíduo. Mas esse momento, ali dos 29, para os quase quarenta, eu me divirto muito nesse rolê, conheço outras pessoas, vou criar outras relações e vou me divertir muito com isso. Inclusive, ampliando… [Eu era] um garoto intelectualizadinho, então as referências são a MPB, o jazz, a música clássica. Quando eu tava com quinze, quatorze anos, que tava estourando, explodindo o axé, eu era aquele jovem ‘nojinho de nóis’, falava: “Axé, que baixaria, que coisa feia, que baixaria.” Hoje eu acho um mico uma pessoa da minha geração não saber dançar É o Tchan. Acho um mico, acho que perdi tempo, acho que eu era todo cheio de preconceitos, sabe? E por isso eu sou superaberto para as novas linguagens que a juventude apresenta. O funk é um exemplo disso, o trap, as manifestações culturais com os slams. Tudo isso me interessa muito, sabe?
(1:36:15) P/1 - E quando você faz essa virada de frequentar lugares da comunidade LGBT, nessa virada para os trinta anos, em quais lugares você gostava de ir?
R - Eu tenho referência de dois lugares que são muito importantes pra mim. Primeiro é uma balada que fica ali na Barra Funda, perto da Estação Marechal Deodoro, que é a Blue Space. A Blue Space é uma balada que tem desde os anos 90, que é justamente nesse momento que eu começo a sair e é a balada que marca meu primeiro namoro. A gente ia para a Blue Space se divertir lá, era ponto de encontro.
Para além desse primeiro namoro, eu tenho um amigo muito querido, Kleber, que é do mesmo bairro e eu conheci o Kleber em uma situação muito interessante. Anos 90, eu tô sentado numa rua, passam dois garotos de mão dadas. Eu falo: “Meu Deus, tem dois garotos que andam de mãos dadas nesse bairro, se tem dois garotos andam de mãos dadas nesse bairro eu quero conhecer.” E depois vou conhecer o Kleber, que é esse garoto. O Kleber é outra referência, eu vou para a Blue Space, chego lá e encontro o Kleber, sem combinar, diversas vezes, então crio essa relação.
A Blue Space tem uma coisa muito legal de ter show ao vivo e essa cultura, essa produção existe até hoje. É uma casa que desde os anos 90 produz shows estilo Broadway, a cada semana muda. A casa tem corpo de baile, corpo de bailarinos fixo, então tem suas estrelas, as cantoras que vão lá se apresentar, que usam esse corpo de baile, que preparam coreografia. Aí tem festa temática, festa temática de cinema, festa temática de determinados cantores ou cantoras pop, enfim. Então a Blue Space é esse lugar que desde o começo, até hoje pra mim é uma referência.
Outro lugar é a Tunnel. A Tunnel é uma casinha pequena que tem na Rua dos Ingleses, no Bixiga. A Tunnel construiu pra minha geração, um rolê de “a família Tunnel”. Como era uma balada pequena, todo mundo se conhecia; se você vai com frequência, você conhece mais ainda e acaba virando uma família. Se sai na rua em outros rolês, você acaba conhecendo: “Aquela pessoa é frequentadora da Tunnel.”
Eu tinha essas referências lá no comecinho e essas referência seguem até hoje. Tive outras casas que eu curti, me diverti, mas que não existem mais.
Antes dessas duas baladas existirem, a balada mais antiga de São Paulo é uma que ficava ali na Paulista com a Consolação, chamada Nostro Mundo, que nos anos 2000 fez uma reforma e começou a se chamar Nostro 2000. A balada mais antiga da América Latina, ela tinha, sei lá, quarenta anos e deve ter fechado há uns dez anos, aproximadamente, então deu para curtir. E tinha um rolê muito legal também desse período, do final dos anos 90 para o começo dos anos 2000, que era o Autorama. Esse era um lugar de muita diversão. O Autorama é no Parque do Ibirapuera, do lado do Portão 3, tem uma área só de estacionamento de carros. Hoje essa área é fechada à noite, mas essa área não era fechada, então as pessoas iam, colocavam os seus carros nas vagas, abriam o capô do carro, porta-malas, sentavam ali, alguns com seus som desligados, e outros carros iam circulando entre as fileiras de carro para fazer a famosa ‘caçação’, pra ver gente, pra se conectar.
O Autorama foi um lugar muito de referência pra gente, de um lugar que você podia ir antes ou depois da balada. O Autorama era a própria balada, porque só ir ali já era um evento, um grande acontecimento. E com o tempo, enfim, a Prefeitura de São Paulo fecha esse espaço e ele deixa de existir. Mas ele é uma referência interessantíssima, que a gente não tem mais hoje.
(1:40:35) P/1 - Gil, você quer contar alguma história marcante com a Tropes?
R - Acho que agora não.
(1:40:57) P/1 - Eu queria saber se o Alisson quer perguntar alguma coisa. Tudo tranquilo?
Queria saber como foi esse momento de chegar… Dessa mudança pro centro. Você morou dois anos e depois foi pro Butantã. Do ponto de vista de uma pessoa LGBT, essas mudanças, ser LGBT no Jardim São Luiz, depois no centro e depois no Butantã, tem alguma diferença que seja marcante para você?
R - É diferente ser LGBT em qualquer uma dessas três referências. Na periferia mesmo - Jardim São Luiz é periferia, lógico que tem mais fundão ainda, Jardim ngela, Jardim Jacira e assim, sucessivamente, no caso da Zona Sul e Leste também, Norte, enfim. [Assim] como é diferente estar no Butantã, que é um bairro, que uma parte é composta por famílias tradicionais, classe média, outra parte de estudantes universitários, outra parte também de pessoas de povão como nós, população comum, para o parâmetro do centro de São Paulo.
É óbvio que quanto mais próximo do centro, você percebe que o direito de ser LGBT é mais amplo, e quanto mais distante do centro, ele é mais estreito, mais reduzido. Mas eu pude ver no correr, principalmente desses trinta anos, uma mudança social muito grande. E essa mudança social que chegou na TV, que chegou nas novelas. A gente não falou, mas outra referência pra mim desse tempo é a literatura. De localizar, de entender, de procurar, de acessar literatura conectada à cultura LGBT.
Essa mudança social que vem acontecendo nessas décadas chegou aos lugares - em maior ou menor escala, mas ela chegou. Então se no final dos anos 90 era uma surpresa ver um garoto de mãos dadas com o outro no jardim São Luiz, hoje não é, mas isso não quer dizer que esses meninos ou meninas não estejam correndo risco. Eles estão… Eles e elas estão mais próximos de sofrer algum tipo de violação do que se você estiver na Praça da República ou na Avenida Paulista. Isso é fato! Como também no Butantã, por ser esse lugar de encontro do bairro com a universidade, com também muita gente do povo da cultura, possibilita também que ali de alguma forma você tenha um processo mais avançado de direitos da comunidade LGBT. Mas todos ainda têm seus graus de dificuldade, as pessoas ainda tomam lâmpadas na Paulista por ser LGBT, a gente ainda apanha, ainda morre, por grupos extremistas, por uma pessoa mal resolvida. Enfim, uma questão que ainda precisa avançar muito na sociedade.
(1:44:25) P/1 - Você quer me contar como começou essa história nas Ciência Sociais?
R - Eu escolhi Ciências Sociais porque eu entendia que era um lugar amplo. E outras pessoas que trabalhavam com cultura, que eu conhecia, vinham das Ciências Sociais. É uma referência para mim.
O ambiente da universidade possibilitou sobretudo conhecer outros mundos, inclusive ter acesso a outros tipos de conhecimento que não estavam ali disponíveis para nós, pessoas inclusive. Acho que esse é o destaque que eu faço. Não tem muito destaque, não.
(1:45:12) P/1 - Essa você só conta se você quiser. Você tem algum relacionamento atualmente?
R - No momento eu não tenho nenhum relacionamento formal. Eu tenho histórias, estou vivendo histórias. E tá sendo bem interessante, tô conhecendo pessoas, tá sendo bem legais as trocas que estão acontecendo. E é tão bom quando você pode fazer essas trocas, conhecer pessoas, quando você tá resolvido consigo, quando a própria sociedade está mais resolvida. Se eu era um menino, um jovem que não tinha a coragem que meu amigo tinha, de dar a mão na rua e sair junto, hoje eu sou essa pessoa. Tenho essa coragem, essa possibilidade. Entendo que não tô ofendendo ninguém por isso.
A gente tá num momento muito interessante, difícil também, um momento em que a própria parceria civil registrada está sendo questionada no Congresso Nacional. Nós estamos aí com um projeto de lei para proibir a parceria civil, sendo que essa foi uma conquista que a gente conseguiu na verdade por meio do Judiciário, isso foi uma conquista que aconteceu por meio do STF, porque a gente tem uma câmara de deputados e deputadas muito conectada a esses valores cristãos, católicos e protestantes - de opressão, na verdade. Uma galera que acha que o problema da família é alguém ser gay, ou alguém se casar com alguém do mesmo sexo, quando o problema da família são as amantes. Não quero nem julgar quem tem amante, ou não. Essa hipocrisia não tem uma relação aberta, mas tem lá duas, três amantes e cria um padrão hipócrita de vida social que não existe.
A gente vive esse momento bastante delicado, mas que ao mesmo tempo, apesar da gente ter vivido um país com indícios, apontamentos de retrocesso, inclusive no campo das liberdades individuais, pós-governo Bolsonaro… Apesar da gente ter vivido esses últimos anos de governo com uma ameaça de diminuição de retiradas dos nossos direitos individuais, falando especificamente do governo Bolsonaro, foi muito bacana ver que a sociedade civil não arredou um pé das conquistas desses direitos que ela foi conquistando aos poucos. E mesmo tendo esse governo que maltratou, que incitou violência, que falou mal, que não tratou com dignidade a humanidade, mesmo assim essa construção, essa base social que foi construída em décadas, ela resistiu a esse processo, sem realmente ter sido prejudicada. A gente não avançou, mas a gente também não regrediu, e ter percebido isso para mim foi muito bacana! [Fico] muito feliz! Porque quando a gente teve a informação que o Bolsonaro ia assumir o governo, uma das comunidades que ficou mais preocupada foi a comunidade LGBT. Mas essa mesma comunidade foi a que conseguiu fazer com que não houvesse retrocesso nos direitos sociais, nas políticas públicas e assim, sucessivamente. Não só isso, né, gente? Quando a gente fala de saúde, nós estamos falando do SUS, [é algo] muito maior. Tô fazendo essa observação em relação à nossa comunidade, mas a sociedade defendeu o Sistema Único de Saúde, por garantia de cidadania, civilidade e direito do acesso à saúde, ao tratamento da saúde, então eu acho que a gente tem coisas boas acontecendo também.
(1:49:49) P/1 - Gil, como é o seu dia a dia? E o que você gosta de fazer no seu momento de lazer?
R - Eu acordo, fumo um cigarro - eu preciso mudar isso. Daí tomo um café, vou qo banheiro, levo o cachorro para passear, tomo um banho e vou trabalhar. Isso em duas horas. Eu gasto oito horas no trabalho, às vezes nove, às vezes dez. Volto, levo o cachorro para passear.
Quando é sexta, sábado e domingo, vou encontrar os amigos no boteco do Butantã, pra ver o samba, ou show de MPB, ou ir no forrozinho, fazer algum rolezinho de amigo. Visito a família.
Se tem algum show em algum parque eu gosto de ir. Adoro festa, adoro dar festa, adoro ir em festa. Se tem alguma festinha também adoro, adoro dançar, curtir, trocar ideia. Enfim, gosto de dar um rolê, de caminhar, de ir em parque.
Eu gosto do domingo, domingo se tornou um lugar muito importante pra mim. Em algum momento o domingo foi muito ruim… Quando você tem uma relação, que você vai criando cultura, o domingo muitas vezes é onde vocês vão fazer coisas juntos, vão criar rituais. Eu lembro que quando acabou minha primeira grande relação o domingo era uma dor, eu não sabia o que fazer com o domingo, porque o domingo sempre foi compartilhado com o meu namorado. E aí, de repente, reconstruir esse domingo, para mim, independente se eu tô namorando ou não, foi um processo muito legal, então domingo é um dia muito especial, que eu não tenho pressa, que eu posso me dar o luxo de tomar um sol, que eu respiro, que eu não aceito trabalhar, que eu não aceito reunião, que eu não atendo o telefonema de trabalho, que eu não respondo WhatsApp de trabalho. Domingo é esse dia, é o meu dia de descanso.
(1:51:57) P/1 - E o que é importante para você hoje?
R - Hoje pra mim importante é ter saúde, ter tempo. Com tempo você pode fazer muitas coisas que você gosta, que são importantes para você, dormir.
Hoje para mim é importante dormir. Eu dormi muito pouco na juventude e na vida adulta. Eu curti bastante, saí muito, então hoje para mim é importante dormir bem, estar bem, ter dinheiro para pagar as contas, para poder fazer algumas coisas básicas. Ter amigos, ter relacionamentos e afetividades. Eu não tenho relacionamento fixo agora, mas eu tenho algumas afetividades. Poxa, se alimentar bem, tá tranquilo, sabe? Respirar. Essas coisas para mim hoje são importantes.
(1:53:01) P/1 - E quais são os seus sonhos?
R - Não ter que trabalhar, não ter que pagar conta. Se tivesse um rolê do tipo “faz aí que a gente paga a conta” eu ia fazer feliz. Acho que esse é o meu sonho, não ter esse compromisso de levantar o dinheiro para sobrevivência básica e essa é a vida cotidiana de nós trabalhadores, dos operários. Essa coisa de você não ter casa própria, então você tem que pagar o aluguel, então você também não pode ficar sem trabalho, porque você tem que ter dinheiro para pagar esse aluguel. E a gente nunca ganha bem assim para juntar esse dinheiro e ter um fundo para isso, ou para comprar uma casa. A gente vive num sistema muito cruel, muito cruel! Quando a gente pensa na moradia, quando a gente pensa no acesso aos direitos, acho que isso seria a coisa mais gostosa, porque aí você tem tempo, energia, para fazer as coisas, mas a gente gasta muito tempo na sobrevivência básica. E eu sou mais um desses, só mais um.
(1:54:15) P/1 - Gil, qual o legado que você deixa para o futuro?
R - Não deixo legado nenhum! Imagina, não tenho legado para deixar. Meu compromisso é comigo.
Um dia, quando eu tava lá por volta dos dezoito, dezenove, vinte anos, andando na rua com aquela intenção de mudar o mundo a partir do teatro e tudo que a gente entendia por injusto… E eu continuo entendendo as mesmas coisas, não mudou! Mas em algum momento ali eu me senti importante, por ser uma pessoa que estava pensando na melhoria do mundo.
Naquele mesmo momento, naquele dia ali, com dezenove, vinte anos, eu pensei assim: ‘Poxa, se a gente não vivesse com tantos desses problemas, com todos esses problemas e com tantos problemas, o que será que eu estaria pensando agora?” E isso me tirou daquele lugar arrogante de querer ajudar a resolver os problemas do mundo.
Tudo que eu quero é poder andar numa rua sem me preocupar com os problemas do mundo, sem me preocupar com os problemas ordinários de ter que pagar aluguel, conta de água, luz, internet, Netflix, não sei o quê. Não resolvi isso!
Não tenho legado para deixar. Meu compromisso é independente de quando encerrar essa minha vida, que eu tenha vivido da melhor forma possível que eu pude. Eu sei que em boa parte da minha vida, por exemplo, eu tive muito problema para desenvolver relações afetivas, bloqueios, traumas. Eu me autosabotei muito, ia gostar de gente que era heterossexual, que não gostava de mim; não queria gostar, ou não tava aberto para as pessoas que de repente estavam gostando e queriam estar comigo.
É um processo… A gente vive um processo de adoecimento social por conta dessa moral em relação às pessoas que são diferentes, que estão fora do padrão da heterosexualidade, que deixa traumas muito pesados na gente. Confesso que nos últimos anos, desde os quinze anos, eu tenho trabalhado muito isso, estar bem comigo mesmo, com quem eu sou. De tentar não me autossabotar, de achar que eu posso gostar de quem gosta de mim também, não só de quem não gosta. De tentar sair desses círculos viciosos, sabe?
Acho que esse legado eu quero deixar pra mim mesmo, esse compromisso de me desprender um pouco, porque eu sempre fui muito preocupado, na medida de ser mais preocupado com problema dos outros do que com os meus. E agora eu tô um pouco preocupado com os meus problemas. Sigo quando dá, na medida que posso, acompanhando os problemas dos outros, mas também tentando entender eu como um personagem que eu também preciso dar atenção. Sempre fui muito para fora, sempre gastei mais dinheiro com os outros, sempre apoiei mas os outros, sabe? É um momento de se cuidar. Não tenho legado nenhum para deixar.
(1:58:07) P/1 - A gente já tá chegando ao fim, eu tenho só mais duas perguntas. A primeira delas é dupla. Você tem alguma história que eu acabei não perguntando, que você gostaria de contar? Ou se não, você gostaria de deixar alguma mensagem?
R - Outra coisa que eu vivi que foi muito bacana, no campo profissional, foi que entre 2021, 22, e 23, até agora, no meio do ano, eu trabalhei para uma organização social, também do Estado de São Paulo, que realiza a difusão, que apoia projetos das cidades do interior de São Paulo, do interior e do litoral. E eu tive a oportunidade nesses dois anos de trabalhar na coordenação de um programa que se chama Mais Orgulho SP, que apoia vinte paradas LGBT anualmente, nessas cidades do interior e do litoral.
Isso foi muito bacana pra mim, em 21, em 22 e 23, porque foi poder olhar essas paradas para além dessa referência que eu tenho aqui da maior parada gay do mundo, a de São Paulo. Entender que o processo estava acontecendo nas pequenas cidades do Estado de São Paulo, pensando na mobilização, pensando na repercussão, pensando nas respostas que às vezes representantes do parlamento dão para essas ações nessas cidades, respostas positivas ou não, positivas de boicote ou de recurso à homofobia. Mas poder participar desse movimento, atuar diretamente, contribuir como operário, enquanto operário, pra que essas paradas recebessem esse apoio desse recurso público foi bastante legal. Foi outra oportunidade de atuação direta, mas aí pelo viés da cultura com a comunidade LGBT no estado. Eu curti!
(2:00:45) P/1 - Tem alguma nesse processo… Antes de fazer a última pergunta, apareceu outra. Eu queria saber se tem alguma cidade que tenha sido marcante nesse processo do Mais Orgulho.
R - Rio Claro é uma cidade marcante porque eu estive em Rio Claro outras vezes, conheci pessoas em Rio Claro. Depois eu estive em Rio Claro na conferência de cultura; fui lá participar, fazer uma mediação na própria conferência de Rio Claro. E depois encontrar Rio Claro no Mais Orgulho, inclusive tendo como referência as pessoas da área da cultura que estavam na conferência da cultura, que estavam na organização da parada, da semana da Universidade de Rio Claro, tudo isso pra mim foi muito bacana, fez uma conexão maior. [É] um lugar que primeiro eu fui como turista, mas já envolvido num processo de trabalhos como a Tropes, que estava desenvolvendo trabalhos com jovens lá, para depois ir à conferência e depois acompanhar o processo de Rio Claro na parada e na Semana da Diversidade de lá.
(2:01:59) P/1 - Gil, como foi contar um pouco da sua história hoje no Museu da Pessoa?
R - [Foi] muito bacana contar essas histórias. Abriu diversas caixinhas, portas, memórias que eu nem lembrava mais que estavam aí, que existiam. Algumas coisas apareceram com mais ênfase do que apareceram para mim em outras ocasiões.
Eu achei que a gente ia falar muito mais da relação ou das histórias que se conectam à questão LGBT. A gente falou bastante de trabalho e de história de vida, que é óbvio que se conectam, mas que às vezes tem outra linearidade. Isso também pra mim foi surpreendente, porque eu vim muito nessa ótica, nesse campo de pensar a minha trajetória LGBT. E chegar aqui e ela se conectar com infância, local de referência, de origem, atuação, juventude, trabalho, é bem interessante!
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