Conte Sua História - Vivências LGBTQIAPN+
Entrevista de Elvis Justino de Souza
Entrevistado por Genivaldo Cavalcanti Filho, Bruna Ghirardello e Leonardo Vieira
São Paulo, 29 de agosto de 2023
Realização: Museu da Pessoa
Entrevista nº PCSH_HV1407
Transcrita por Mônica Alves
Revisada por Genivaldo Cavalcanti Filho
(0:27) P/1 – Então, boa tarde Elvis. Tudo bem?
R – Boa tarde! Tudo bem, tudo ótimo!
(0:32) P/1 – A gente vai começar pela pergunta mais básica. Gostaria que você dissesse seu nome completo, a data de nascimento e a cidade em que você nasceu.
R – Tá. Meu nome é Elvis Justino de Souza, nasci em São Paulo em 03/08/1986.
(0:49) P/1 – Como você descreveria seus pais?
R – Bem, minha mãe é baiana, uma pessoa branca, ela é analfabeta. E o meu pai é semianalfabeto, filho de escravos, inclusive ele foi escravizado lá no Nordeste por senhores de engenho. Ele já é uma pessoa mais parda e é de Pernambuco.
(01:13) P/1 – Certo. E quais os nomes deles?
R – Luciene Maria da Silva Souza e Manoel Justino de Souza.
(1:21) P/1 – Você nasceu em São Paulo. Sabe por que eles vieram pra cá?
R - A minha mãe morava numa fazenda lá na Bahia e a minha avó decidiu vir aqui para São Paulo, apesar de que minha mãe não foi criada pela minha avó, foi criada pelo meu bisavô. E ela resolveu vir pra São Paulo também, né? Não sei por que ela veio também pra cá, pra São Paulo.
O meu pai fugiu do Nordeste, porque ele não queria trabalhar nas fazendas como escravo; ele fugiu para São Paulo para tentar uma vida melhor. A minha mãe, por outro lado, tinha uma vida muito boa na Bahia e veio justamente pra periferia de São Paulo junto com minha avó. Minha mãe foi o contrário do meu pai.
(2:10) P/1 – E você sabe como eles se conheceram?
R – Olha, pelo que eles contam, eles se conheceram através do primo da minha mãe, lá em Capão Redondo. Foi assim que eles se conheceram. Meu pai já era noivo de uma outra pessoa,...
Continuar leituraConte Sua História - Vivências LGBTQIAPN+
Entrevista de Elvis Justino de Souza
Entrevistado por Genivaldo Cavalcanti Filho, Bruna Ghirardello e Leonardo Vieira
São Paulo, 29 de agosto de 2023
Realização: Museu da Pessoa
Entrevista nº PCSH_HV1407
Transcrita por Mônica Alves
Revisada por Genivaldo Cavalcanti Filho
(0:27) P/1 – Então, boa tarde Elvis. Tudo bem?
R – Boa tarde! Tudo bem, tudo ótimo!
(0:32) P/1 – A gente vai começar pela pergunta mais básica. Gostaria que você dissesse seu nome completo, a data de nascimento e a cidade em que você nasceu.
R – Tá. Meu nome é Elvis Justino de Souza, nasci em São Paulo em 03/08/1986.
(0:49) P/1 – Como você descreveria seus pais?
R – Bem, minha mãe é baiana, uma pessoa branca, ela é analfabeta. E o meu pai é semianalfabeto, filho de escravos, inclusive ele foi escravizado lá no Nordeste por senhores de engenho. Ele já é uma pessoa mais parda e é de Pernambuco.
(01:13) P/1 – Certo. E quais os nomes deles?
R – Luciene Maria da Silva Souza e Manoel Justino de Souza.
(1:21) P/1 – Você nasceu em São Paulo. Sabe por que eles vieram pra cá?
R - A minha mãe morava numa fazenda lá na Bahia e a minha avó decidiu vir aqui para São Paulo, apesar de que minha mãe não foi criada pela minha avó, foi criada pelo meu bisavô. E ela resolveu vir pra São Paulo também, né? Não sei por que ela veio também pra cá, pra São Paulo.
O meu pai fugiu do Nordeste, porque ele não queria trabalhar nas fazendas como escravo; ele fugiu para São Paulo para tentar uma vida melhor. A minha mãe, por outro lado, tinha uma vida muito boa na Bahia e veio justamente pra periferia de São Paulo junto com minha avó. Minha mãe foi o contrário do meu pai.
(2:10) P/1 – E você sabe como eles se conheceram?
R – Olha, pelo que eles contam, eles se conheceram através do primo da minha mãe, lá em Capão Redondo. Foi assim que eles se conheceram. Meu pai já era noivo de uma outra pessoa, terminou esse noivado com outra pessoa, aí ele noivou com outra pessoa, terminou esse outro noivado também. Só depois é que ele ficou com a minha mãe e aí noivaram e casaram. Já faz 38 anos que eles são casados.
(2:52) P/1 – Você sabe como escolheram o seu nome?
R – Ah, sei. Meu pai disse que o pai dele, antes de falecer, queria que o primeiro neto dele se chamasse Elvis, aí ele colocou Elvis. Eles eram fãs de Elvis Presley, lá em Pernambuco.
(3:15) P/1 – Você se lembra da casa onde você passou infância?
R – É a mesma até hoje, nunca mudei de casa. A diferença agora é o tamanho; antes ela era só um quintalzinho, um corredor, que era a cozinha, um quarto e uma sala. Era bem pequenininha. Agora não, ela está construída, tem três andares, agora está diferente.
(3:44) P/1 – Elvis, você tem irmãos?
R – Tenho, tenho um mais novo.
(3:49) P/1 – E qual é o nome dele?
R – Gabriel.
(3:53) P/1 – E tem alguma lembrança da sua infância, de algum cheiro, de alguma comida, de alguma data comemorativa que lembra essa época?
R – Qual época?
(4:03) P/1 – A infância.
R – A minha infância?
(4:07) P/1 – Algo que te marcou.
R – Ah, eu acho que o que marcou bem na minha época eram aqueles bolos de fubá que a gente fazia pra cantar aniversário e aqueles Ki-suco, que quem bebeu aquilo naquela época de infância, hoje em dia bebe qualquer coisa, que você tem certeza que você está bem, viu filho! Se você bebeu Ki-suco (risos). Aquilo ali marcou bastante, desapareceu aquele negocinho que fazia, acho que dois, três, tinha até de cinco litros o Ki-suco, num pacotinho “desse tamanhozinho”. Aquilo ali, pra mim, marcou bastante a infância, Ki-suco.
(4:47) P/1 – Quais eram suas brincadeiras favoritas nessa época?
R – Ah, eu gostava de ler bastante e tinha uma coleção de bonecos. Eu gostava bastante de ler, ou ficava com meus bonecos. Era o que eu gostava mais na minha infância.
(5:07) P/1 – Avançando um pouco da sua infância, quais são as primeiras recordações que você tem de ir pra escola?
R – Ah, as piores possíveis. Acho que qualquer viado quando pisa o pé na escola, principalmente na minha época… Deveria ser o lugar que a gente deveria ter como nosso, um lugar protetor, onde a gente vai aprender. E é justamente o lugar onde a gente vai aprender mesmo: vai aprender como ser maltratado, vai aprender como ser xingado, vai aprender tudo aquilo que não deveria aprender, né? Deveria ser um lugar de proteção e é justamente o contrário. É um inferno quando você pisa na escola.
Na minha época eu tinha dois problemas: um, por eu ser evangélico e outro, por eu ser gay, só que eu nem sabia que era gay ainda. Um, por ser gay e outro, por ser evangélico, porque na época a maior parte das escolas onde eu estudava eram católicas. Naquela época os evangélicos eram minorias e era uma minoria muito fraca, não era como hoje em dia. Era bem maltratada, era pisada. As pessoas batiam, falavam mal, era bem complicado falar que você era evangélico e todo mundo da sala era católico. Era uma coisa bem tensa.
(6:28) P/1 – Você tinha algum sonho de infância?
R – Ah, eu tinha. Eu tinha um sonho de infância, sim. Eu sonhava em ser veterinário. Só que aí quando você cresce, você descobre que o curso é muito caro, tá muito longe das suas condições e aí você vai mudando as coisas, você vai decolando para outro tipo de foguete.
(6:53) P/1 – Você disse que vocês não chegaram a se mudar, né? A casa onde você mora ainda é a casa da sua infância.
R – É a mesma.
(7:01) P/1 – Chegando na sua adolescência você começou a circular mais pelas áreas da cidade?
R – Sim, quando chegou a minha adolescência, eu comecei a circular com o pessoal da igreja. Foi aí que eu comecei a ir um pouco mais pra igreja, foi onde eu me tornei pastor inclusive, fiz Teologia na Igreja da Graça. Eu me tornei pastor da Igreja da Graça, era inclusive um dos poucos pastores que sabia ler, porque a maior parte dos pastores das igrejas pentecostais não sabem ler. Eles falam, repetem aquilo que eles escutam geralmente das lideranças, né? Eles abrem a Bíblia, mas eles não sabem o que está escrito ali, então eles repetem aquilo que eles escutaram. Eles escutam bastante a Bíblia por áudio pra eles irem gravando, sabe?
A maior parte não sabe ler, então eu era um dos poucos que sabia ler, escrever, fazer contas. Eu tinha essa facilidade em relação aos estudos. E a maior parte dos obreiros também eram pessoas muito simples, também não sabiam quase ler ou escrever, então eram pessoas muito humildes, pessoas que não sabiam muito sobre leitura, estudo. Só com o tempo que isso foi mudando e a juventude era a mesma coisa também, mal sabia interpretar um texto, então a gente tinha que sentar e ajudar os jovens a interpretar um texto, porque nem isso sabiam fazer também. Era bem complicado, você tinha que ensinar pra eles tudo de novo, era bastante complicado.
Na minha adolescência eu comecei a ir à igreja e comecei a sair com eles no bairro e ir pra outras igrejas também, fazer esse tipo de trabalho, que era justamente essa parte de interpretação de texto, ensinar algumas posturas, ensinar algumas coisas da Bíblia, algumas coisas que eram além daquilo que eles achavam eram verdades, algumas coisas que eles pegavam de outros lugares e achavam que tinham que enfiar dentro da igreja e não tinha que enfiar, aquilo não era da igreja, né? Eram algumas besteiras, enfim. A gente ia lá e ensinava eles a fazer o certo, né? Muita coisa ignorante que o povo tinha, que escutava e acreditava naquilo.
(9:29) P/1 – E por que você decidiu se tornar pastor nessa época? Teve alguma ideia?
R – Ah, eu acho que todo adolescente, quando cresce num bairro pobre e violento, que nem é o caso do meu, tem duas opções: ou você vira ladrão, ou você para de estudar e vai trabalhar - que era algo também difícil, na época também não tinha emprego - ou você vai pra igreja e vira uma liderança religiosa. No meu caso, como eu sabia ler bem e escrever bem, e sabia fazer as coisas, então por que não entrar pra igreja? Eu já tinha também uma amizade com o pessoal da igreja, então pra mim foi bem mais fácil entrar na igreja do que as outras coisas.
(10:21) P/1 – Passando essa época de adolescência, fora da escola e também da igreja, o que você costumava fazer nas suas horas livres?
R – [Gostava] mais [de] ler. Eu gosto bastante de ler ou assistir televisão, jornal principalmente, eu gosto muito de assistir jornal e ler. Era o que eu mais fazia, era ler. Raramente eu fazia alguma outra coisa além disso. De vez em quando eu jogava no time de futebol também, que nós tínhamos na quebrada, que se chamava Misericórdia, de tão ruim que era. A gente não conseguia ganhar uma, cara, era coisa incrível, a gente ainda jogava apostando. Eu falava: “A gente joga só para perder dinheiro, não ganhamos uma”, de tão ruim que era o time. Mas era gostoso jogar, até que era bom.
(11:21) P/1 – E falando sobre suas primeiras experiências profissionais, como foi isso pra você?
R - Olha, a primeira experiência profissional minha foi um bico que eu fiz no serviço da minha mãe. Inventaram de fazer o primeiro prédio inteligente do Brasil, que foi lá na [Rua] Treze de Maio. Foi o Lemos Brito, que cuidava de feiras e comércios. Ele fez o primeiro prédio, tentou, né, fazer o primeiro prédio inteligente do Brasil. Na época era muito caro e me contrataram para passar os cabos lá no prédio, mas não deu muito certo, não. Era muito dinheiro, muito gasto, a internet ainda estava começando; acho que na época não era uma coisa forte que nem hoje em dia. E aí meio que o cara meio que foi à falência, porque não deu muito certo a ideia dele.
Foi um visionário na época, até hoje em dia eu o vejo como visionário, inclusive. Só que ele tentou fazer algo que ele ainda não tinha o dinheiro pra fazer. Ele tentou fazer algo muito além do tempo, que não tinha grana pra fazer, e acabou indo à falência, lá na Lemos Brito.
Depois disso eu trabalhei no mercado lá na minha quebrada, que se chama Ricoy, e desde aquela época o Ricoy já tinha umas práticas meio complicadas. A gente via na TV como o Ricoy sempre aparecia nas páginas policiais. Deve ter desaparecido agora um pouquinho, mas tem algumas práticas que ainda continuam nesse mercado. É bastante complicado, o Ricoy. Trabalhei lá, foi meu primeiro emprego; gostava, inclusive, de trabalhar lá. Só que por eu ser também uma liderança religiosa, eu não trabalhava no domingo. Era uma condição que eu tinha com eles, então não trabalhava [aos] domingos, de jeito nenhum, até que um dia me colocaram pra trabalhar no domingo. Eu falei: “Eu não vou trabalhar”.
Eu fui trabalhar e já fui daquele jeito, já fui estressado. E aí o cara começou a gritar comigo, o gerente, o subgerente que não gostava de mim. Eu olhei pra cara dele e falei: “Ah, quer saber, tô fora”. Ele: “Como é que é?” Eu: “Tô fora, tô pedindo as contas. Tchau, vou pra casa”. E fui, virei as costas e fui pra casa.
Foi justamente nessa época do meu primeiro emprego que eu também comecei a descobrir minha sexualidade, porque foi quando eu comecei a ter bastante amizade com umas amigas travestis que moravam do lado do mercado. Elas sempre faziam compras lá no mercado, principalmente de dia e eu fiquei muito amigo delas, dessas meninas. A gente saía a noite também, a gente ia pro bar e nessa época eu ficava a noite toda tomando café. E a gente ficava lá conversando, eu e elas no bar a noite todinha. Elas faziam programas e eu ficava lá.
(14:32) P/1 – Você falou de ir pro bar com as meninas. Você tinha outros lugares LGBT na região, para se frequentar?
R – Não, o único lugar que tinha eram dois bares, na verdade, [que] nós frequentávamos. [Em] um o dono era gay e o outro era do irmão do que era gay; ficavam um de frente pro outro, que era ali na [Avenida] Yervant [Kissajikian]. Eram esses os únicos dois bares em que elas eram bem-vindas. Nos outros bares elas não eram muito bem aceitas, não.
(15:06) P/1 – E você conhecia alguma outra pessoa LGBT no bairro ou em algum ambiente que você frequentasse nessa época?
R – Ah, na igreja eu conhecia. Tinha uma travesti, que vai até hoje, inclusive, na igreja em que eu era pastor - ela e o irmão dela, que é gay. Os dois até hoje vão lá na igreja, eles gostam de lá.
(15:36) P/1 – Conte um pouco pra gente a respeito dessa questão. Você disse que estava em um período em que você começou a descobrir a sua sexualidade. Como é que foi isso pra você?
R – Ah, foi bem complicado, porque você cresce a vida inteira ouvindo que é pecado, que você vai pro inferno, e você já passa o inferno, literalmente, na escola. No trabalho não foi tanto, não, foi bem mais tranquilo. Agora, essa parte religiosa, ela pesa bastante, ainda mais quando você é evangélico de berço, que nem é o meu caso. Essa parte pesa bastante, porque você começa a ter preconceito contra você mesmo. É uma luta que você trava contra você mesmo internamente, então é bem difícil você se aceitar. Não é nem questão dos outros, é você se aceitar, então é uma batalha bem complexa.
Foram essas minhas amigas travestis, inclusive, que foram me ajudando a me aceitar. Elas foram me ajudando, elas e esse meu amigo gay que era dono de um bar que nós ficávamos a noite toda fofocando, tomando café, porque ele era o dono e não podia beber. Ele tinha que tomar outra coisa, então tomava muito café comigo. Nós ficávamos a noite toda conversando, eu e ele ficávamos a noite toda conversando. Foram eles que mais me ajudaram nesse processo.
(17:08) P/1 - Voltando em relação ao seu trabalho, a gente costuma fazer essa pergunta para todos os entrevistados. Você lembra o que você fez com o seu primeiro salário? Alguma coisa que você quisesse comprar, e você falou: “De repente agora dá pra fazer”?
R – Eu guardei, literalmente. Não comprei nada. Eu trabalhava no mercado, você não tinha tempo de sair de lá. Do mercado eu ia pra igreja, então, literalmente, eu guardei meu primeiro salário. Aliás, meus seis primeiros salários eu guardei, não gastei um centavo. Guardei o dinheiro e só depois de seis meses é que eu comprei uma bicicleta, que era o que eu tinha vontade. Eu tinha uma, mas a minha já estava bem defasada, aí eu comprei uma melhor. A primeira coisa que eu fiz, depois de seis meses.
(18:01) P/1 – Eu queria entender melhor essa parte da época em que você começou a descobrir a sua sexualidade e entender a sua sexualidade. Com quantos anos, mais ou menos, foi?
R – Ah, acho que com 16, 17 anos que eu comecei a ter esse conflito.
(18:22) P/1 – Nessa época você ainda estava na igreja?
R – Estava. Na época que eu ia pro bar e ficava a noite toda tomando café com o dono do bar, eu estava na igreja ainda. Lá na igreja não tinha esse tipo de problemática de você conversar, de você estar no bar conversando com outras pessoas, de conversar com mãe... Nós recebíamos mãe de santo na igreja, ela trajada, inclusive, com as vestimentas. Não tinha esse... Na igreja que eu ia, não tinha esse tipo de preconceito ou conflito, sabe? Foi mais pra frente, quando começou a entrar esse negócio de política, que aí começaram a mudar as coisas, aí sim começou a ter esse tipo de conflito. Mas antes não tinha esse tipo de conflito assim, forte, não. Tinha mais com outras igrejas, não com a nossa. A nossa era bem mais tranquila com relação a isso.
(19:19) P/1 – E prosseguindo na sua vida profissional, o que você fez em seguida?
R – Depois que eu saí do mercado, comecei a trabalhar como promotor de vendas, que é como se fosse um repositor, só que de uma marca só. Entrei na Unilever, trabalhei por um tempo nas Lojas Americanas. Saí de lá, porque promotor não fica muito parado por muito tempo em uma empresa só. Nós geralmente ficamos um ano ou dois e vamos pra outra marca, e geralmente para marca rival, eles sempre pagam mais pra gente, então eu ficava mudando de marca.
O lugar que eu fiquei mais tempo foi na Bonafont, foi um lugar que eu ganhei bastante dinheiro. Foi logo no comecinho da Bonafont e aí eu trabalhava em atacados. Foi lá que eu ganhei bastante dinheiro, porque tudo que você fazia na Bonafont dava dinheiro, então se você botasse uma garrafinha a mais na gôndola, você ganhava dez reais a mais por aquilo ali.
Imagina o que a gente não fazia, né? A gente destruía a loja pra botar água, velho. Em tudo que era lugar a gente enfiava água. Eu mesmo enfiava água em tudo quanto é lugar na loja, tudo que era lugar tinha Bonafont nas minhas lojas. Então eu ganhava bastante dinheiro nessa época.
(20:56) P/1 – Nessa época você continuava como pastor na igreja?
R – Não, eu já tinha saído como pastor, já tinha aceitado que eu era gay. Eu já frequentava algumas baladas, estava em outra fase, já namorava na época. Já era outra coisa.
(21:23) P/1 – E você pensou em estudar algo, já pensava em fazer alguma coisa nesse período, ou já estava cursando?
R - Olha, nesse período eu cheguei a fazer Radiologia. Fiz por seis meses, mas eu tive que sair por conta do trabalho, porque não dava. Eu entrava às seis horas da manhã nos atacados, que é o melhor horário que você tem pra você fazer as coisas no atacado, porque os clientes não entraram ainda e os funcionários ainda estão entrando. Você pega principalmente aquelas pessoas que estão na empilhadeira. Como os promotores também não entraram, não chegou ninguém, é o melhor momento que você pega pra fazer o trabalho. E como os outros também ainda não chegaram, é o melhor momento que eu pegava pra roubar espaço.
Eu entrava às seis horas da manhã e quando dava mais ou menos umas sete horas da noite, que era um horário que provavelmente a maior parte dos promotores já tinham vazado fora das lojas, era onde eu desfazia o trabalho deles e colocava a minha água também. Tirava as coisas dos outros e colocava a minha, colocava meus produtos, às sete horas da noite. Eu fazia bastante isso e pagava para os repositores manterem meu espaço, pagava para o cara da empilhadeira pra eu passar na frente de todo mundo, pagava para o gerente me dar também mais espaço na loja. Eu saía pagando a loja toda.
A loja toda estava na minha planilha de pagamento, porque tudo lá eu ganhava dinheiro, então pra mim era mais fácil dar dinheiro pra todo mundo e manter a minha parte. Eu pagava até a posição para ter espaço deles lá na gôndola.
(23:10) P/1 – E depois da Radiologia…. Você falou que fez só seis meses, né?
R – É, só seis meses.
(23:16) P/1 - Depois você pensou em fazer alguma outra coisa?
R – Não, depois eu dei uma parada nos estudos. Só bem depois, mais pra frente, é que eu vim fazer Gestão Pública, que foi o André Pomba que me incentivou a fazer alguma faculdade. Ele falou: “Faz Gestão Pública. É pouco tempo, você pode fazer on-line, você vai conseguir se adaptar com essa sua vida bem louca. Você faz mais rápido e depois você consegue entrar nos projetos mais legais”.
(23:48) P/1 – Eu queria saber… Na época que você estava falando que começou a frequentar as baladas, quais baladas você frequentava em São Paulo?
R – Ah, eu ia ali na Segredos, que é um barzinho que ficava ali na Avenida Atlântica, um barzinho bem pequenininho mesmo; acho que só o pessoal da Zona Sul que ia. Foi ali inclusive o primeiro bar em que me encontrei, foi ali que eu acho que dei o meu primeiro beijo gay. Eu ia bastante nele e depois um amigo meu me levou na Tunnel. Foi onde eu conheci o meu primeiro namorado - foi nesse dia, inclusive, que ele me levou na Tunnel.
Eu era todo... Como eu gosto de rap, eu andava todo com umas roupas mais de rap, umas correntonas. Nesse dia na Tunnel, eu estava desse jeito, todo “manão”. Aí entrou um menino nesse dia, um menino magrinho, loiro, dos olhos... Cabelos cacheados, ele todo de preto e com umas botas de coturno. Ele desceu aquelas escadas e eu bati o olho, aí eu falei: “Ah, é esse que eu quero”. E [com] ele foi a mesma coisa, ele bateu o olho e falou: “Nossa, que cara louco. É esse daí que eu também quero”.
A gente acabou ficando e trocamos o celular, naquela época que não tinha WhatsApp, era SMS na época. A gente começou trocar “torpedo” nessa época - não era nem SMS que a gente chamava, era “torpedo” - e começou a namorar. Namoramos por dois anos.
(25:37) P/1 - E como começou a sua militância?
R – Ah, no bairro eu já militava bastante. Eu sempre tive essa parte religiosa, [mas] eu já militava bastante nessa parte política. Nessa parte política, sempre fui de militar. Minha família, em época de campanha política, vai todo mundo pra rua militar, fazer campanha, pedir voto. Isso aí sempre fizemos, sempre foi algo muito nosso.
Na parte LGBT foi um pouco mais difícil, porque na época em que eu tentei entrar nos espaços, era [tudo] dominado por uma elite um pouco mais velha e chata. Era uma elite que falava que precisava ter novas lideranças, mas não dava espaço para as novas lideranças, sabe? Então era bastante complicado esse discurso demagogo que essas militâncias tinham. “Ah, precisamos de novas pessoas”, mas não davam espaço para as novas pessoas, não dava espaço para as novas ideias, não dava espaço pra mais nada. Só eles que queriam falar, só eles que podiam falar e gente tinha que ficar como plateia. E eu sou uma pessoa que não gosta de ser plateia, ficar sentado aplaudindo os outros, eu não nasci pra isso. Eu nasci pra botar a mão na massa.
Comecei meio que a enfrentar essa turma. Foi quando eu conheci o André Pomba, o Dário Neto, que foram as pessoas que foram mais abrindo esses espaços. Mário Grego… Eles foram abrindo mais esses espaços, principalmente nos conselhos estadual e municipal. Foi quando eu consegui dar uma entrada mais forte na militância LGBT. Foi aí que eu consegui dar uma entrada mesmo, de vez.
(27:29) P/1 – E quando foi isso, mais ou menos?
R – 2012, mais ou menos.
(27:39) P/1 – E como surge a questão da família?
R – Foi mais ou menos nessa época também. Foi nessa época que comecei a descobrir essa coisa toda de família. Quando eu namorava com esse meu primeiro namorado, nós fomos num encontro no Tatuapé e foi lá que eu vi que era um encontro gigantesco, bem maior do que eu imaginava. Numa segunda-feira eu vi aquele monte de viado lá, sapatão… Nossa, era muita gente. Falava: “Nossa, gente. De onde surgiu, esse povo não trabalha não? Não estuda? Isso tudo em uma segunda-feira? Ter tudo isso aqui?” Eu percebi que não era um encontro tão natural, porque tinha alguns grupos onde uma pessoa passava e ia aquele monte atrás dela. Falei: “Hum, não. Isso aqui tem alguma coisa que não é normal. Eu quero saber que tipo de grupos são esses”. Foi quando eu descobri que aquilo se chamava “família LGBT”. A pessoa que estava passando na frente e as outras iam atrás eram os filhos e aquela era a mãe. Foi quando eu descobri as famílias da noite, foi ali no Tatuapé, ali que eu comecei a descobrir quais famílias existiam. Tinham algumas que eram só no Tatuapé, mas as famílias que eles consideravam famílias mais fortes mesmo eram as famílias do [Largo do] Arouche, da [Avenida] Vieira de Carvalho. Foi depois que eu vim a conhecer a Vieira de Carvalho, eu também não conhecia o encontro lá da Vieira de Carvalho.
(29:11) P/1 – E como você chegou no Tatuapé?
R – Foi esse meu namorado que me levou.
(29:15) P/1 – Ah, ele que te levou.
R – Na verdade, ele que conhecia os points, eu não conhecia nada. Ele que me levou pra points, baladas, pra tudo era ele que me levava. Eu andava mais em lugar de hétero, não conhecia esses lugares. Ele que foi me levando pra esses lugares.
(29:36) P/1 – E o que que você sentiu a primeira vez que você foi nesse encontro no Tatuapé?
R – Ah, acho que eu falei: “Putz, tem mais gente como eu, estou vendo uma juventude aqui”, que ainda, na época, também não eram tão assumidos. Apesar de nós estarmos falando de pouco tempo atrás, era bem diferente do que é hoje em dia. Uma boa parte não era assumida e ia mesmo lá pra ficar, pra viver sua sexualidade, mas não eram pessoas tão assumidas.
Nem eu, na época, gostava muito de ficar falando que eu era gay; já esse meu namorado, ele não estava nem aí, falava que era mesmo e acabou. Eu é que era mais recatado, era diferente dele.
Mas foi algo libertador, porque ver outras pessoas que nem você é bem libertador, apesar de eu ser um pouco diferente de todos eles ali. Eu andava com aquelas minhas camisas de rap, então eu era bem diferente de todos eles, né? E o meu namorado, na minha época ele andava com… Ele era roqueiro, então ele andava com aqueles negócios de roqueiro, calça mais apertada. Ele era bem estiloso, nesse sentido.
(30:58) P/1- E quais foram seus próximos passos nessa militância, depois disso?
R – Acho que meus próximos passos… Eu fiquei bastante tempo nos conselhos, não como conselheiro, mas só indo mesmo, debatendo, aprendendo.
Acho que um grande precursor das famílias, de todas as famílias LGBTs, que ajudou as famílias LGBTs a saírem realmente do Arouche e começarem a se organizar politicamente foi o André Pomba, o Mário Grego e a Janaína Lima. A Janaína já é falecida, o André também, mas eu acho que essas três pessoas, principalmente a Janaina e o André, foram pessoas que nos ajudaram bastante.
(31:46) P/1 – Você estava falando em relação a essas famílias… Como você acha que é importante, qual a importância do acolhimento dessas pessoas nessas famílias? Como isso funciona? Conta um pouco pra gente.
R - Eu acho que mudou bastante com o tempo. Por exemplo, na época que eu conheci as famílias, algumas pessoas não eram muito assumidas, então tinha um outro tipo de acolhimento. E agora já existe um outro tipo porque agora todo mundo já está se assumindo, saindo do armário. Claro que tem ainda uma grande… A gente faz as paradas nas periferias, a gente percebe que principalmente a galera mais velha tem ainda um receio de se assumir, mas a juventude está em peso se assumindo e não está nem aí, né? A juventude acaba falando que ser hétero é que está fora de moda. Inclusive, quando a gente pergunta para os casais héteros: “Vocês são casados?”. “Que hétero que nada mano, isso está fora de moda”. Então, então é algo que você vem percebendo bastante nessa nova geração, sabe? Mudou bastante do que era antes.
Antes, as pessoas não eram assumidas, tinham dificuldades em se aceitar. Tinha essa dificuldade de se assumir porque eram expulsas de casa , então as famílias… O que elas faziam muitas vezes? Isso era uma coisa que eu achava bacana. Pegavam ali a sapatão, pegavam um viado, iam pra casa da família biológica e se apresentavam como namorados, mas não eram namorados. Era só pro pai, a mãe ou o vizinho que ficava ameaçando, falando que ia falar que o cara era viado, pra não falar nada e manter aquela identidade falsa.
Isso acontecia bastante em 2012, 2013 e começa a mudar um pouco de 2014 pra cá, porque começam a ter os embates. Aquelas pessoas começam a voltar para as ruas, começam a voltar para as manifestações. O movimento LGBT também começa a ir em peso para as ruas com a morte do Caíque e depois teve outras mortes também. Começou a ir com mais força para as ruas e começa a ter um pouco mais de consciência política. Nas próprias baladas, também, começa a se ter… Pessoas de outras baladas que a gente frequentava começam a ter um momento de militância. Aquele momento em que se fala de política, se fala de eleger pessoas, se fala da importância de ter representantes nossos, e a gente também já começa a fazer cursos de iniciação política, para falar da nossa história - onde estávamos, onde estamos e onde queremos parar. É aí que entra a Janaína Lima, que foi pedagoga e fez um curso; nisso a gente chamou várias lideranças da época, de outras famílias LGBTs.
É quando você começa a ver uma mudança de paradigma, uma mudança de pensamento e de acolhimento, porque antes você tinha uma série de pessoas expulsas de casa que você tinha que dar um jeito de colocar elas em algum lugar, depois você começa a trabalhar a autoestima dessas pessoas. Você começa a trabalhar com essas pessoas para que elas venham a se aceitar, para que elas não venham aceitar também serem pressionadas nas escolas. Você começa ver também a divisão nas escolas, que antigamente era aquele viado que sofria sozinho - por isso que eu falei, na minha época, quando eu entrava na escola era um inferno. Hoje em dia já é diferente, quando um LGBT sofre LGBTfobia na escola você vê uma divisão daquela parte de jovens que ainda é minoria agora e pensa de forma mais conservadora e aquela parte que já é mais liberal, mais progressista, faz protesto e vai pra cima mesmo, vai pra internet e não aceita. Existe essa mudança de paradigma que a gente está observando bastante na sociedade, essa mudança da juventude, inclusive.
(36:00) P/3 – Elvis, você falou que acompanhou por muito tempo a questão dos conselhos estadual e municipal e essa articulação. Queria entender, pra você qual é o lugar dos conselhos dentro dessa esfera de militância LGBTQIAPN+ de uma maneira geral e como que se dá essa relação também entre sociedade civil, conselho e esses entes, prefeitura e governo?
R - Olha, eu acredito que naquela época a militância estava um pouco mais preparada do que está agora para assumir os cargos de conselho. Foi o que eu senti, sabe? Está faltando um pouco mais de qualificação paras as pessoas que se candidatam ao cargo, está faltando um pouco mais de seriedade para as pessoas que se candidatam ao cargo, de levar a sério aquela esfera de controle social e de entender como é que funciona o conselho, o poder de fato que o conselho tem.
Na época que eu comecei a acompanhar… Eu estou falando de militantes históricos, militantes que fizeram história não só na cidade de São Paulo, como no Brasil. Tem outros também que eu acabei não conhecendo, como a Claudia Wonder, por exemplo, ela fez parte do conselho municipal LGBT. Janaína Lima, Dario Neto, que era um intelectual - é um intelectual, ele ainda está vivo. É um intelectual, é doutor, o trabalho dele foi em cima de Machado de Assis, daí dá pra ver como ele é ‘crânio’. Mario Grego, que foi o primeiro homossexual a se casar no município de São Paulo. Janaína Lima foi quem fez o curso para nós de iniciação política e também era pedagoga, então nós estamos falando de um outro tipo de militância, sabe? O André Pomba, que apesar de ser DJ… Muita gente fala: “Ah, ele era DJ e não entendia nada de política”. Pelo contrário, o André Pomba era um articulador nato, ele era muito bom no que ele fazia, sabe. “Ah, mas ele é um cara de direita, não sei o quê”. Gente, ele era um cara de direita, mas na parte cultural e LGBT ele era um cara que defendia com unhas e dentes, ele ia muito pra cima dessas questões. E principalmente no conselho, ele era muito foda, não faltava a uma reunião, sabe?
Não eram só pessoas que não faltavam em nenhuma reunião; eles faziam reuniões extraordinárias, e eram várias, então toda semana você tinha uma reunião do conselho. Toda semana o conselho provocando a coordenação, toda semana o conselho provocando o poder público. Naquela época, eles faziam a comissão do conselho que levava lideranças da sociedade civil junto com eles, faziam visitas nos espaços, faziam relatórios, projetos. Era outro tipo de militância.
Hoje em dia eu vejo mais uma militância egocêntrica, que quer entrar no conselho só pra dizer que entrou, só pra dizer que tem um cargo e acaba não militando, e aí acaba deixando o conselho esvaziado, um conselho fraco. É o que eu estou vendo hoje em dia, tanto o conselho municipal, quanto o conselho estadual LGBT estão fracos. Não estão conseguindo dialogar com o poder público, não estão conseguindo dialogar com a própria sociedade civil. A própria sociedade civil acaba não sabendo o que está acontecendo, o que se está falando, o que que eles estão fazendo no conselho estadual e municipal LGBT, no caso, aqui de São Paulo. Acaba enfraquecendo, porque você acaba não levando as suas demandas para frente.
Por mais que o conselho hoje em dia seja consultivo, você consegue fazer relatórios, consegue fazer documentos, consegue colocar o Estado na parede. Você consegue fazer as coisas. Ainda mais com a sociedade civil, você consegue dar um chacoalho, só que o que está faltando é isso que eu falo, colocar pessoas mais qualificadas que queiram fazer parte do conselho e que queiram fazer uma construção.
Eu vejo essa questão do conselho, que é uma coisa inclusive que nós, da família, estamos discutindo bastante. A gente tem colocado bastantes pessoas nos cargos de conselho, mas nós também não temos qualificado essas pessoas para estarem nesses espaços. E é algo que a gente tem conversado bastante sobre isso: antes de colocar alguém nesses espaços, nós vamos fazer uma qualificação com elas para ocuparem esses espaços de fato. Elas vão ter o compromisso de não faltar nas reuniões, essa é uma das demandas que a gente está fazendo com as novas pessoas que vão se candidatar a cargos de conselhos, porque se for pra faltar, só para ocupar o espaço, não vamos mais fazer apoio nem campanha.
(41:02) P/1 – Lá no início nos conselhos, você lembra de alguma pauta que foi marcante que você discutiram?
R – Ah, lembro. Eu lembro, tanto do estadual como do municipal. E aí eu falo o poder que o conselho tem e que essas pessoas de hoje em dia estão ocupando e não estão sabendo fazer, porque era consultivo também antigamente - LGBT nunca deliberou nada nessa cidade, nesse estado, nunca.
Uma das pautas foi a luta para manter o Autorama aberto. A gente perdeu, uma luta de anos. Eles demoraram para conseguir de fato fechar o Autorama, foi uma luta de anos. Nós fizemos o projeto do Autorama legal, mas acabou não dando certo o projeto, acabou não indo para frente. Mas foi algo bacana essa luta, porque o conselho lutou com unhas e dentes e por anos, sabe? Foi cansativo, mas demos muito trabalho para os reaças, o conselho municipal LGBT.
E o Transcidadania, apesar de o pessoal… Ele teve várias fases, o Transcidadania, mas uma das fases que ele foi discutido, e muito, foi no conselho municipal LGBT.
Essas duas pautas sempre estavam presentes no conselho municipal LGBT. A construção e a implementação do Transcidadania, o conselho cobrou muito isso, principalmente do governo Haddad, para implementar o Transcidadania e para a reabertura do Autorama, porque foi fechado na época do Kassab e queríamos que o Haddad reabrisse. Ele não reabriu, preferiu tentar fazer um outro investimento que foi no Arouche, só que acabou também não dando muito certo.
Foram essas duas pautas do conselho municipal LGBT que eu acredito que deram muito certo: o Transcidadania, que tem até hoje para provar que existe, e a outra questão foi do conselho estadual, que foi colocar nos boletins de ocorrência… Na época nós inventamos o termo ‘homolesbotransfobia’, nós inventamos esse termo. Vimos que não ia dar muito certo esse termo que ninguém ia saber falar, nem nós, aí falamos: “É melhor botar LGBTfobia, mais bonitinho e aí dá para colocar no boletim de ocorrência”. Já na época o conselho estadual conseguiu isso, conseguiu com que os presídios, principalmente de São Paulo, chamassem as meninas trans pelo nome social - isso foi uma conquista do conselho estadual. Na época, começou a se desenhar o RG social, para ter o nome social no RG, então se hoje tem um nome no RG social, principalmente no estado de São Paulo, foi uma conquista do conselho estadual LGBT.
Na época também já se podia… As meninas já podiam também escolher qual presídio elas queriam ir, se era o masculino ou o feminino; na época também já tinha essa resolução pela SAP, mas as meninas sempre preferiam o masculino, não queriam ir para o feminino, porque no masculino elas casavam, elas eram felizes e queriam ficar com os esposos delas, então não queriam ir para o feminino. Tinha essa questão, na época. Agora eu já não sei o que elas querem, mas na época, pelo menos, era isso que elas queriam. Foi uma conquista do conselho.
Teve as conferências, que também foi o conselho estadual que puxou isso, junto com o municipal, porque o representante do Haddad, que era o Alessandro Melchior, na época, não queria uma conferência municipal, aí o conselho municipal bancou a conferência e fez uma conferência livre e um acordo com o Estado para que os delegados da conferência livre fossem aceitos na conferência estadual. Isso forçou com que o Alessandro… A maior capital do país não ter uma conferência municipal é uma vergonha, ainda mais sendo governada pela esquerda, né, gente? Aí forçou com que o Alessandro fizesse a conferência municipal.
Foi uma briga na época, uma guerra, mas conseguimos fazer a conferência estadual para fazer o plano municipal LGBT, que foi feito na conferência e que até hoje não foi implementado na cidade, mas foi feito. Está em algum lugar este plano, foi feito. E tem o plano estadual, que também foi feito e está em algum canto, mas também foi feito na conferência estadual. Foi algo bastante legal.
(46:19) P/3 – São Paulo tem um lugar muito marcante quando a gente fala de organização LGBTQIAPN+. A gente tem uma das maiores paradas do mundo acontecendo aqui, a gente tem uma série de legislações, uma série de instrumentos enquanto política pública que garantem direitos consideráveis para essas populações. Para você, o que construiu esse lugar para São Paulo? É uma militância muito organizada? Esse poderio econômico e político que São Paulo tem, que você falou também agora há pouco, é uma multiplicidade cultural, é o quê?
R – Ah, eu acho que é um pouco de tudo, sabe? Eu acho que São Paulo, desde a época das batidas do [José Wilson] Richetti… Até antes disso, na verdade, São Paulo já tinha essas organizações, já se pensava em política, já nascia essa parte da militância, de você ter o Ferro's Bar, você ter a criação do Somos, você ter o Lampião da Esquina, então você já tem uma fermentação dessa luta.
Você já tem travestis como Brenda Lee, que fazia um trabalho de HIV e AIDS… Eu gosto muito de lembrar da Brenda Lee, porque na época do HIV e AIDS… É uma história que se mistura com a nossa, inclusive, quando ninguém sabia o que era AIDS. Eu falo para as pessoas da época da pandemia agora, da covid, que foi mais ou menos o que foi a AIDS. As pessoas não sabiam o que era AIDS e quando descobriam que a pessoa tinha AIDS, jogavam na rua e ninguém queria tocar nessas pessoas. A Brenda Lee vinha, passava e pegava principalmente os homossexuais e travestis. Ela pegava e levava para a casa dela, para cuidar dessas pessoas no seu momento, até que elas viessem a falecer. A Brenda Lee é quem cuidava dessas pessoas.
Você pega essas pessoas, Cláudia Wonder…. Você vai pegando outras pessoas que fomentaram essa militância, usaram baladas, como o André Pomba, que usa o rock, coloca o rock na Aloka, uma coisa inédita no Brasil, porque só eletrônica que era para LGBT. Você bota um rock, putz, isso foi revolucionário na época. Além disso, ele cria uma ONG, a Dinamite, aí cria cursos, cria outras coisas. A Brenda Lee também cria uma ONG.
Você começa a ver o movimento LGBT se desenvolvendo na cidade de São Paulo. Você vê essa multiculturalidade de pessoas vindas de vários países, de vários estados, vindo todos aqui para São Paulo, principalmente pro centro. Acaba fazendo aquele eixo Augusta-Arouche, na Vieira de Carvalho e acaba criando essa ilha, esse beco de resistência da militância.
Você acaba criando outras coisas. Vem a parada de São Paulo em 97, que também é criada por causa desse ambiente que já tinha sido criado antes, e ela se cria justamente ali, na República, que até hoje tem a sede da parada de São Paulo. Você vê que se cria um ambiente para se criar essa ilha de resistência, inclusive contra o conservadorismo.
Nós temos um prefeito que é conservador e lutou contra os LGBTs, quando estava na câmara, e hoje em dia ele deixou passar tudo, o que é LGBT ele nem luta contra. Ele não faz nada, na verdade, contra; pelo contrário, ele deixa passar tudo, fala que São Paulo é de todos. Antes não era, agora é de todos, né?
Você vê até nisso essa mudança. O quanto a militância LGBT, os comerciantes, a força do comércio, a força do dinheiro, a força política que se criou, com várias pessoas LGBT eleitas… Você vê que em São Paulo se criou uma ilha de resistência, vamos dizer, nessa parte LGBT.
(50:40) P/2 – Eu estava pensando, enquanto você estava contando que veio lá da Zona Sul e depois teve um período que você frequentou o Tatuapé, na Zona Leste e de repente você conhece a Vieira de Carvalho, você tinha falado isso. Eu queria saber como foi o impacto de conhecer a Vieira de Carvalho, de como era a sua vida até então e se teve algum impacto, alguma mudança depois que você descobre o centro.
R – Nós que moramos na periferia… Até hoje, a galera que mora na periferia tem um pouco de medo de ir ao centro. Agora está maior ainda o medo de ir ao centro, então, até quando a gente realiza as paradas na periferia você percebe que tem pessoas que não vão à Parada de São Paulo. Mas são pessoas leais e fiéis que em todas as paradas da periferia elas estão, porque se sentem mais seguras na periferia do que no centro. O quanto elas puderem evitar de ir ao centro, vão evitar. Pra mim também, nessa época era difícil eu ir para o centro de São Paulo, então quando eu conheci a Vieira de Carvalho foi algo bastante impactante, porque eu estava literalmente no centro no centro de São Paulo.
Conheci aquele lugar e a primeira coisa… Achei um lugar feio, horroroso. Falei: “Nossa, que lugar feio e o pessoal ainda fala que o centro é melhor do que a periferia, credo. Que lugar feio, lugar sujo, um lugar imundo”. Mas ao mesmo tempo, você vê aquela juventude toda tomando aquele espaço e eram centenas, eram milhares de pessoas que tomavam a Vieira de Carvalho nos domingos. Era tipo três vezes mais que o Tatuapé, então se o Tatuapé era algo que chamava a atenção, a Vieira de Carvalho era algo que chamava muito mais a atenção. Era outro espaço, era outra vibe ali na Vieira de Carvalho.
Ali, de fato, você via as famílias dominando bem mais do que no Tatuapé. Ali de fato você reconhecia o poder das famílias LGBTs, você via um poder muito forte das famílias nesses encontros, porque de ponta a ponta os jovens eram de uma família. Você andava e perguntava, eles eram de alguma família LGBT.
Acho que foi a época de ouro das famílias LGBTs, foi naquele momento da Vieira de Carvalho.
(53:16) P/2 – E como você entra na Stronger?
R – Eu era de uma outra família, mas eu não andava com o pessoal dessa família, eles não gostavam muito de mim. Eu andava mais com o pessoal da Stronger, ficava mais com o pessoal da Stronger e eu ia mais para os rolês com o pessoal da Stronger. Eu me dava muito melhor com o pessoal da Stronger do que com o pessoal da minha outra família, até que um dia eu saí dessa família que eu estava. Falei: “Ah, eu não aguento mais ficar nessa família. Família chata”.
Não entrei logo em seguida para a Stronger, continuei andando com eles e só depois de um ano, mais ou menos, é que eu entrei para a família Stronger de fato. Mas foi assim que eu fui conhecendo a Stronger, conheci lá na Vieira, inclusive. A mãe da Stronger estava lá, era a Talita. Ela era bem fofa, bem alegre; chegou, começou a trocar ideia comigo e pronto, a gente ficou bem amigos, eu e ela. Nós passávamos horas no telefone conversando, ficávamos seis, sete horas conversando no telefone, eu e ela. Nós ficamos bem amigos. Depois disso é que eu entrei para a Stronger, só depois, bem depois mesmo.
(54:30) P/2 – E como foi que começou a Stronger, antes de você? Você sabe?
R - Olha, pelo que eles contam foi em 2006. Foi o Roberto que fundou a Stronger e foi ali no Arouche mesmo, não foi no Bocage, que foi de onde saíram boa parte das famílias LGBTs. Mas a Stronger não é do Bocage, a Stronger é do Arouche mesmo.
Naquela época, as famílias eram mais para proteção, mesmo, [pra] saber quais lugares você entrava, quais lugares você não entrava e contra as batidas dos skinheads. Na época, o pensamento dos skinheads, dos neonazistas, principalmente, era de ir para a rua com um pedaço de porrete ou com bombas de coquetel molotov e atacar as pessoas, bater, dar surra. Eles pensavam muito dessa forma naquela época, hoje em dia não pensam mais assim.
Hoje em dia os skinheads estão mais organizados, também montaram associações, também se politizaram mais. E agora eles estão em outra pegada, que é entrar nas guardas civis, porque é mais fácil entrar nas polícias. Os skinheads estão de uma forma bem mais organizada e estão se chamando agora de neonazistas, mudaram o nome justamente para que não venha assustar a galera, as pessoas. Eles também mudaram a forma de agir, esses grupos de ódio.
(56:08) P/3 – Você pode falar um pouquinho mais do Bocage? Acho que ele também marcou uma geração inteira de LGBTs que estão na faixa dos 25, 35.
R - O Bocage foi um barzinho que ficava ali naquela regiãozinha, do eixo Augusta-Vieira de Carvalho. Ficava bem ali, naquela partezinha que o pessoal chamava de Paulista também, inclusive. Foi um barzinho que a juventude em peso ia para lá no final de tarde, beijar na boca, curtir, escutar um som. Foi na época inclusive que estouraram os emos, lembro que era essa época da modinha dos emos.
A galera ia bastante pra lá, até começar um monte de denúncias de moradores e o Bocage infelizmente fechar; foi quando o pessoal migrou pro Arouche. E também estava tendo muitos ataques de skinheads naquela época, porque sabiam que tinha o Bocage ali. Eles pegavam as pessoas que estavam mais sozinhas ali, naquela época. Tinha muito ataque dos skinheads também no Bocage.
Depois disso, depois dessas denúncias é que acabou fechando, mas Bocage pra galera que tem trinta anos pra mais era uma época boa, uma época gostosa, viu? O pessoal lembra muito bem dessa época. Acho como essa galera de agora também, né? Se a gente for perguntar pra galera de agora, de vinte e poucos anos, eles vão falar do Ibirapuera, da feira do beijo e do Masp e agora, um pouco mais recente, da Roosevelt, e agora estão migrando para a Liberdade. Agora estão na Liberdade aos sábados.
É um movimento da juventude que sempre vai mudando de lugar, sempre vai estar em um lugar diferente, em horários diferentes, encontros diferentes, mas não acaba. Sempre estão ali, rodeando, sempre estão em algum lugar.
(58:18) P/1 – Você estava falando das paradas da periferia e aí eu queria saber como começou esse processo. Eu sei que você está envolvido com a parada da Cidade Tiradentes. Conte um pouco pra gente a respeito.
R – As paradas, eles não começaram com a gente. Elas começaram em 2002, eu sempre falo isso pro pessoal, pelo menos a primeira que eu tenho ideia, o registro foi em 2002, lá em Itaim Paulista, na [Avenida] Marechal Tito. Eles alugaram um caminhão, fizeram um manifesto. Esse manifesto eu não sei onde está, mas fizeram um manifesto e aí foi a primeira parada. Não deu quase ninguém na época, era 2002, imagina, na periferia não vai dar ninguém mesmo, mas já era um lugar ocupado pelas LGBTs. Ali na [Praça] Silva Teles já tinha um encontro LGBT também; os LGBTs já frequentavam ali, já usavam lá pra beijar na boca, pra ter seus encontros casuais.
Na Marechal Tito, que é uma avenida que também passa próximo da Silva Teles, foi onde eles fizeram a primeira parada LGBT, só que pararam, literalmente, porque eles não conseguiam andar no Itaim Paulista. Depois eles tentaram de novo, dez anos depois, em 2013, fazer a parada no Itaim; também não conseguiram andar, fizeram parados. E aí, depois de quase dez anos, vem a gente da Stronger e faz lá no Itaim Paulista, continuando essa história.
A gente tentou fazer andando, mas aí chegou a pandemia e teve que fazer [a parada] virtual. Depois que passou a pandemia, aí sim, nós fizemos aquilo que aquelas pessoas lá atrás não conseguiram fazer. A gente continuou a história deles e conseguiu andar na avenida, conseguiu andar nas ruas do Itaim - eu errei a avenida, não era Marechal Tito. Foi na Tibúrcio de Souza a primeira parada.
A nossa primeira parada com trio elétrico andando na rua e palco foi em Cidade Tiradentes. Isso foi em 2016 ou foi 2017, se não estou enganado. A gente fez com nosso dinheiro, juntamos o nosso dinheiro e fizemos a primeira parada. O palco era de madeirite, então não podia subir muita gente. Dependendo do peso, a gente falava: “Olha, não é gordofobia mas, se você subir, o palco não vai aguentar”. Tanto que os equipamentos não ficavam em cima do palco, ficavam fora do palco, porque não aguentava o peso, senão ia cair. E os fios também, era tudo fio normal de casa, mesmo, então eram fios que não aguentavam a potência da energia que os equipamentos e a luz tinham, sabe? A qualquer momento podia pegar fogo a fiação, os equipamentos e tudo mais.
Nosso som também não era… Nós saímos pegando, recolhendo som de umas quatro casas de cultura para fazer a primeira parada, para colocar em cima do palco, então era uma gambiarra desgraçada. Era um monte de caixa, era um monte de coisa, um monte de fio… Era um monte de coisa assim, sabe? Também choveu pesado no dia na primeira parada, aí eu falei: “Pronto, agora que vai pegar fogo mesmo, essa coisa aqui”.
Foi nossa primeira parada. Fizemos com trio elétrico na rua, sem autorização da CET, sem autorização do subprefeito, que inclusive ameaçou a gente. Mesmo assim, nós desafiamos a prefeitura e fizemos. O subprefeito, na época, desafiamos ele e fizemos a parada andando na rua.
A desculpa dele de não deixar a gente fazer a parada era que: “Ah, os evangélicos não conseguiram fazer a marcha pra Jesus aqui, porque vocês vão conseguir fazer a parada?” Eu falei: “A parada nós estamos fazendo sem nenhum recurso público. A Marcha para Jesus quer dinheiro de vocês, é diferente, então se vocês não deram dinheiro pra eles e eles não conseguiram fazer, o problema é deles. Nós estamos fazendo com o nosso dinheiro, não tem um centavo público aqui. Tudo é nosso dinheiro, tudo; não tem oneração dos cofres públicos. E os serviços que vão ter, que é o da polícia, da CET, da limpeza urbana e pessoal da Casa de Cultura, isso é obrigação. A gente paga imposto, eles tem que estar lá, é obrigação deles estarem lá, então [a subprefeitura] não está sendo onerada em nenhum momento. Estão cumprindo com o dever deles pela lei e a gente está cumprindo com o nosso, não vai ter nenhuma oneração dos cofres públicos”.
Nós fizemos a primeira assim, a segunda também fizemos lutando contra eles, a terceira também lutamos contra eles, a quarta também lutamos contra eles. Só agora, na passada, é que eles resolveram; o subprefeito de lá abriu mão e desistiu, porque ele viu que não ia dar resultado, nós íamos fazer a parada do mesmo jeito, né?
O engraçado também foi… O prefeito Bruno Covas, na segunda parada, a pedido do André Pomba, falou com o subprefeito e pediu para o subprefeito parar com birra, parar de tentar proibir a parada e conversar com a gente, fazer um acordo com a gente e deixar a gente fazer a parada; ele, Bruno Covas, não via problema nenhum da gente ter a parada em Cidade Tiradentes. Ele falou: “Isso, pelo contrário, é ótimo, é bom pra Cidade Tiradentes. É bom pra vocês do bairro terem uma parada na periferia. Não tem em lugar nenhum. Vocês são os únicos e isso é um privilégio pra vocês.” O Bruno Covas falou na época pra ele e só depois disso que ele recebeu a gente, fez uma reunião de seis horas falando, bla, bla, bla, bla, bla.... Pra falar pra não deixar a gente fazer a parada e fazer no ano seguinte. A gente falou: “Não, a gente vai fazer a parada.” Mesmo o Bruno Covas pedindo pra ele, ele tentou não deixar. Depois ele desistiu e falou que não ia fazer mais nada contra a gente, aí a gente conseguiu fazer, passar com a parada na rua.
(1:05:26) P/2 – Fora isso, tem alguma história marcante de alguma parada que você fez, uma história que você lembre, memorável?
R - Eu acho que a primeira parada de Cidade Tiradentes, que foi uma parada de bastante luta, [com] muita chuva.
Algo que aconteceu, [que foi] engraçado na primeira: foi mais o pessoal do centro que foi nessa primeira parada e choveu torrencial. Era uma chuva muito forte, meu! E mesmo assim a galera dançando, beijando e tal.
Nós estávamos com a bandeira de São Paulo. A bandeira da parada de São Paulo tem uma de cinquenta e tem uma de vinte metros. A gente levou a de vinte metros, mas estava muita chuva e aí a gente fez como se fosse uma cabaninha, pro pessoal ficar lá. O pessoal começou a transar debaixo da bandeira e nós já estávamos na Casa de Cultura - o palco sempre ficou dentro da Casa de Cultura, aí tinha um pessoal indo transar do lado de trás da Casa de Cultura e aí as câmeras estavam filmando o pessoal fazendo, transando lá atrás das câmeras. Foi até engraçado porque um dos caras que estava fazendo isso era patrocinador da parada - foi o único patrocinador que nós conseguimos na primeira parada - ele estava lá transando debaixo da câmera e o segurança veio avisar a gente: “Olha, não leva a mal não, mas é assim… Nós sabemos que as paradas tem isso, é momento de vocês, mas fala pra eles transarem fora das câmeras, mano, porque fica uma coisa meio chata, todo mundo vai ficar olhando, né? Depois meu supervisor também vai falar se nós não vimos e vai ficar feio pra nós, então fala pra eles, sei lá, ir num cantinho mais escondido, tem umas moitinhas ali” - antigamente tinha umas moitinhas. Foi na hora que o pessoal começou a ir pra debaixo da bandeira, que estava literalmente como uma cabana de índio, sabe? E a galera começou a transar debaixo da bandeira.
Foi uma coisa bem engraçada, sabe? Não tinha muito o que fazer e eu falei pro pessoal: “Não vou ficar aqui pra ficar sendo fiscalizador de cu não, gente. Eu estou aqui para deixar a música tocar, não vou ficar fiscalizando, não”.
Foi uma coisa assim, bem marcante essa primeira parada. Além do palco ruim, a gente começou a ficar preocupado em não tacar fogo em nada, não quebrar o palco e alguém cair. Teve essa parte também da transa. O nosso trio elétrico era um triozinho pequeno, que era um carro também; o som queimou no meio do trajeto, então não tinha som no meio do trajeto.
Nossa, tudo que você podia imaginar que podia dar errado no dia estava dando errado, tudo! Foi uma parada com muita história pra contar, bastante marcante essa primeira parada.
(1:08:45) P/1 – Queria te perguntar… Você chegou a comentar sobre a pandemia, que chegou a atrapalhar os planos dessa parada. Eu queria saber como é que foi pra vocês, pra militância e também para as redes de apoio, como a família Stronger, a pandemia, no período mais difícil?
R – Foi bem decepcionante, porque a gente já estava com tudo planejado, tudo pronto pra colocar a parada de Itaim na rua quando começou a pandemia. Nós estávamos até com patrocínio bom da Converse, o pessoal da Converse estava interessado em patrocinar a gente com uma grana bem alta. Foi a primeira vez na vida que nós íamos receber uma grana daquele jeito, nossa! Ai, que sonho que ia ser aquilo ali! Aí entrou a pandemia e acabou tudo, o sonho foi por água abaixo. Não só pelo patrocínio, mas também por todo o projeto que eles estavam criando com a gente. Depois da pandemia, se perdeu o contato, essa vontade deles de falar com a gente, não sei por quê, mas se perdeu esse rolê.
Foi bem difícil, porque imagina você ter um bando de adolescentes loucos pra transar, louco pra viver sua sexualidade, louco pra beijar na boca e ter que ficar dentro de casa, né? Não ficavam. Festa clandestina estava aí, estavam lindos, belos, todos indo pra festa clandestina. Você via bastante isso e a gente sempre repreendia, a gente sempre puxava a orelha da galera por estar indo nessas festas clandestinas.
Depois começou a vir o problema da fome, porque as pessoas não trabalhavam, não recebiam. Muitos foram mandados embora e aí começou a ter realmente problemas. A gente começou a correr atrás de alimentos, de cesta básica e foi quando a gente conseguiu ajudar bastante pessoas da periferia, nessa questão de cesta básica. A gente conseguiu ajudar bastante, mesmo.
Muitos amigos, no sentido da militância, perdemos nessa época. Foi uma época bastante dura e difícil, bastantes pessoas falecendo, inclusive pessoas que incentivavam a estar nas festas: “Vamos aglomerar”. A gente conhecia bem essas pessoas. Acabaram falecendo, não acreditavam que o vírus era real e viram que era real - não era só o pessoal bolsonarista que não acreditava, as pessoas não acreditavam que isso ia matar, achavam que era invenção. Depois viram que não era, começaram a ver que o negócio era sério. Muita gente morrendo, aí você viu que o negócio era sério. Foi quando o pessoal começou realmente a dar uma parada de ir em balada, nesses lugares clandestinos. Eles começaram a tomar um pouco mais de consciência.
(1:12:09) P/1 - E pra você, pessoalmente, como foi esse período? Quais foram as suas dificuldades? O que você fazia pra tentar aguentar a barra nessa época?
R – Eu saía bastante porque eu entregava e pegava cesta básica e outros insumos de higiene. Até hoje eu entrego cesta básica e produtos de higiene, ainda faço isso. Mas na época foi bastante difícil, porque muita gente que a gente conhecia, muita gente querida acabou nos deixando, por falta de… Por essa falta de cuidado da ciência, mesmo, por falta do nosso governo na época não ter abraçado da forma que deveria ter abraçado, porque se o governo federal tivesse abraçado de fato a ciência, ter feito tudo que deveria ter sido feito, eu tenho certeza que muita gente agora estaria viva, sabe? Muita gente estaria viva.
A gente perdeu pessoas muito legais, bacanas nessa época, e não podia ir ao velório, não podia ir ao enterro. Foi muito dolorido, porque você acabava nem vivendo o luto. Você não conseguia viver o luto de tantas pessoas queridas que se foram nessa época, então foi uma época muito pesada, muito difícil.
Os comércios também, você via muita gente quebrando. Os comércios LGBTs, agora que estão começando a se recuperar, porque não se recuperaram ainda. Toda aquela dívida que ficou de dois anos, sem pagar conta disso ou daquilo, não é que foi perdoada, agora é que você vai começar a pagar a conta. A conta chega e você tem que pagar. Agora que eles estão começando a pagar as contas, ou seja, [é] toda uma dívida, e é uma dívida alta que se tem. Por isso você [vê] muitos, não só LGBT, mas muitos comércios, principalmente no centro, fechando, falindo, porque não aguenta pagar o aluguel de agora e o aluguel que ficou, não aguenta pagar funcionário, pagar despesas, água, luz, telefone, aluguel, IPTU… Enfim, é muita coisa que ficou e não aguenta, vai à falência. Alguns outros estão tentando sobreviver, sabe? Ainda está pegando no tranco, a coisa.
Ainda estamos sentindo o reflexo da pandemia, principalmente nos comércios. Pra gente, que faz as paradas na periferia e pede patrocínio, essa é uma das coisas que eles têm falado muito, que estão começando a pagar agora a conta que ficou da pandemia e ainda vai demorar um tempinho ainda para eles voltarem a ter algum lucro e voltar de fato a poder fazer mais alguma outra coisa, porque por enquanto está difícil ainda para os comerciantes. Está muito difícil, principalmente pro médio comerciante, pro pequeno comerciante, porque tem que pagar as contas. Está complicado.
(1:15:44) P/1 – E voltando a falar sobre a militância sobre os conselhos, quais pautas hoje em dia você acha estão mais urgentes, que precisam ser debatidas?
R - Olha, eu acho que são várias, são várias pautas que precisam ser debatidas. A gente precisa, por exemplo, rever o Transcidadania. Tem muitas falhas o Transcidadania, ele é ótimo, mas não é perfeito. A gente precisa arrumar um pouco das falhas do Transcidadania, porque com esse tempo a gente pôde perceber de fato o que tem de errado e o que tem de certo, o que deu certo e o que deu errado. Tem algumas coisas que deram errado e a gente precisa consertar o que deu errado, né?
As meninas ficam por dois anos, recebem uma bolsa de R$ 1.350,00; inclusive, a maior bolsa social que se paga na cidade de São Paulo é para as meninas travestis e homens trans do município. Só que fica por dois anos, e depois? Elas receberam o dinheiro, tá, e depois? O que se faz com essas meninas, como é que a gente recoloca elas no mercado de trabalho? Como que a gente recoloca elas na sociedade? Ainda está faltando fazer esse debate e ainda está faltando fazer essa liga, porque está faltando o depois, o pós-Transcidadania, porque é ‘tchau e benção’. “Tchau, vocês já ganharam seu dinheiro, já fizeram seu papel, vão embora...” E o que elas vão fazer depois, gente? Tem que ter o depois. Você dá o gostinho pra criança, dá o mel, o doce pra criança e depois você tira e fala “se vira”, sabe? Então é complicado, cada caso é um caso e precisa ser visto isso.
Antes do transcidadania existir o POT [Programa Operação Trabalho], que também atendia pessoas gays, atendia lésbicas, outras partes da sigla LGBT; foi colocado o Transcidadania e essas siglas foram esquecidas. E aqui na cidade de São Paulo nós também temos pessoas que são gays e que são tão vulneráveis quanto pessoas trans, por exemplo. Nós também temos lésbicas, por exemplo, que sofrem um estupro corretivo da família e elas não estão sendo atendidas da forma que deveriam ser atendidas, na Casa da Mulher, por exemplo, por que são lésbicas e acabam não falando o que sofreram e não estão sendo tratadas daquela especificidade. São coisas muito específicas, uma violência muito específica que ela sofreu. Foi lesbofobia que ela sofreu, então a gente precisa preparar melhor o Centro de Cidadania, precisamos preparar melhor algo que venha fortalecer essas mulheres que sofrem esse tipo de violência, e nós não temos isso hoje em dia, para essas mulheres específicas.
A gente precisa sim rediscutir para dar uma melhorada, ou seja, manter o Transcidadania, criar algo que proteja essas pessoas que sofrem esse tipo de violência, que nem eu falei agora, dei o exemplo das mulheres que são violentadas por serem lésbicas e precisam ter esse atendimento, precisam ter essa resposta do município, do estado e da sociedade. Precisa ter essa rede de proteção específica para essas pessoas que hoje em dia não tem. Tem para mulheres cis que têm família, mas não tem para mulheres lésbicas e bissexuais e precisa ter. Por que não uma bolsa também com algum tipo de valor para elas, uma ajuda psicológica para elas como é dado para as meninas trans, uma assistente social com acompanhamento para essas meninas que sofrem violência? E justamente a bolsa financeira, para que ela venha a ter a sua liberdade financeira, como a gente sabe, pra ela se livrar do agressor, que muitas vezes é o pai, é o primo, é o irmão, o vizinho, pra ela ter esse tipo de proteção. Por que não fazer isso? Isso tem que ser discutido, tem que ser a coordenação municipal LGBT, tem que começar a olhar para essa parte. Ver o que deu certo no Transcidadania, copiar essa parte e transferir para as outras letrinhas, porque cada letrinha tem a sua especificidade.
A gente, que faz as paradas na periferia, vê, por exemplo, muitos jovens gays que não completaram os estudos - é justamente uma parte do Transcidadania, ele combate a evasão escolar. Então por que a gente também não dá uma bolsa para esses jovens gays periféricos, para que eles venham completar os seus estudos, inclusive em tempo até menor do que a parte das mulheres trans, e fazer com que eles venham também a ter essa oportunidade de entrar no mercado de trabalho? Nós estamos falando de pessoas negras, de pessoas periféricas, pessoas que geralmente o pai abandonou, pessoas que não tem uma estrutura familiar. São vários motivos que levam essas pessoas a abandonar a escola e ter a evasão escolar.
A gente tem que discutir cada sigla, a gente tem que discutir como ajudar essa sigla e acredito que pra cada sigla a gente precisa fazer uma rede de proteção, para que a gente consiga fazer com que essas pessoas venham se realocar ao mercado de trabalho, venham a terminar os estudos, a gente venha a combater essa evasão escolar e também combater essa violência, A partir do momento que você começa a pensar nessa rede de proteção, você também acaba prevenindo muita coisa, você acaba mudando também esse mapa de várias violências que a comunidade acaba sofrendo.
(1:21:43) P/1 – Eu queria que você comentasse os bastidores, como aconteceu para essa parada que aconteceu em Cidade Tiradentes. Você também comentou sobre uma que houve em Santo Amaro, já faz um tempo. Pode comentar um pouquinho?
R – Na Zona Sul a única parada que foi tentada foi em Santo Amaro. Foi uma tentativa [de] uma militância que frequentava o CTA [Centro de Aconselhamento e Testagem] de Santo Amaro, que sempre foi um CTA muito militante para a pauta LGBT. Desde a existência dele, ele tem uma linha histórica muito forte com os LGBTs. Fizeram duas vezes em Santo Amaro, acho que em 2008 e 2009, só que não tinha palco, não tinha trio, não tinha nada disso. Foi uma coisa bem… Aquele negócio bem [de] protesto, do mesmo jeito que todo mundo pensa que tem que ser, sabe? Foram as primeiras. Depois disso não tentaram mais na Zona Sul.
Na Zona Leste, para acontecer o fomento da primeira parada, teve todo um ambiente, uma pegada pra se fazer na Zona Leste, principalmente em Cidade Tiradentes, porque o Jal [Moreno], o Sturm indicou ele para ser… O secretário André Sturm indicou ele para ser coordenador da Casa do Hip Hop Leste, porque ele tinha uma briga com o movimento Hip Hop naquela época. Acredito eu que o colocou lá pra fazer meio que uma provocação: bicha preta e afeminada, é ela que vai ficar como coordenadora do Hip Hop da Zona Leste. Foi isso que aconteceu, ele acabou indo pra lá.
No início teve brigas com algumas posses, não foi algo fácil, porque eles não aceitavam uma bicha preta periférica que não era de nenhuma posse do rap fosse coordenadora de lá. Eles não aceitavam de forma nenhuma, porque na mente deles eles estavam certos; a construção da casa, a construção daquilo foi um movimento que eles fizeram, e eles queriam alguém deles lá. Na época eles pensavam dessa forma, inclusive ameaçavam o Jal. Ele era meu namorado na época, aí eu ia para lá. Eu falava: “Se eles vão pegar você, eu vou estar aqui e vamos ver se eles são isso tudo mesmo. Eles são manos, eu também sou! Então vamos ver”.
Falavam que iam arrancar a cabeça dele, que iam botar fogo em todos os equipamentos de som da Casa, ou seja, teve vários tipos de discussão. Só que, com o tempo, a Casa de Cultura… Quando chegamos lá ela era horrível, ela era péssima. Era, na verdade, mais um espaço, parecia mais um depósito de lixo da Zona Leste do que uma Casa de Cultura, vivia fechada. Com a chegada do Jal na Casa de Cultura isso muda: a casa ganha vida, ela deixa de ser depósito de lixo.
A Casa não tinha internet; passou a ter internet, porque ele buscou implementar a internet na Casa. A Casa começou a contratar, inclusive, pessoas do próprio movimento Hip Hop para dar oficinas na Casa. A Casa começou a contratar pessoas do movimento Hip Hop pra cantar, pra fazer show, pra fazer eventos, sabe? Tudo aquilo que eles imaginaram que o Jal não iria fazer, que não ia ser a Casa do Hip Hop, foi ao contrário, realmente foi uma Casa do Hip Hop. Tudo aquilo que eles imaginavam que não ia acontecer, aconteceu, e diferente do que eles imaginavam, porque o Jal não contratava por posse. “Só vou contratar da minha posse, não vou contratar das outras, das outras posses rivais, vou contratar só da minha”. Como o Jal não era de nenhuma posse, então todas as posses tinham e têm acesso ao dinheiro da Casa. Todas as posses têm acesso a ser oficineiro da Casa, todas as posses têm acesso à agenda da Casa. Foi completamente diferente daquilo que eles imaginavam.
[É] por conta disso que a gente faz uma reunião com as posses. Eu lembro dessa reunião até hoje, que a gente tinha vontade de fazer a parada LGBT, como já existia a Casa de Cultura, então era só montar o palco lá e fazer a nossa parada, fazer o trajeto. Como a gente já tinha a família Stronger, tinha alguns artistas que também queriam fazer voluntariamente, que não ia ter dinheiro. Não tinha dinheiro pra fazer.
Nós tivemos que pedir a benção das posses de rap pra usar a Casa do Hip Hop pra fazer a parada do orgulho LGBT. A posse mais velha deu a benção pra gente e falou: “Não, vocês podem fazer à vontade. Nós não somos contra, somos a favor. Pode fazer à vontade”. A gente conversou com uma por uma, porque se fosse conversar com todo junto não ia dar certo, ia dar pau. Depois nós conversamos com as outras, eram cinco; uma, duas, três permitiram que a gente fizesse a parada, uma se absteve e a que sempre foi mais violenta falou que não queria porque lá era lugar de Hip Hop, não tinha que ter nada LGBT. Era a mais violenta e era a maior - era não, ainda hoje é a maior posse de rap aqui do Brasil. Mas com o tempo, depois da primeira, segunda parada, agora eles viram que tem espaço pra todo mundo, que a casa pode abrigar outros movimentos, outros coletivos, sabe? Que é isso mesmo, o movimento tem que dar voz justamente pro pessoal que é vulnerável. Agora sim eles observam essa mudança, essa importância da parada ter sido lá, de ter acontecido essa primeira parada, mas nós pedimos a benção pra todo mundo. Como a maioria falou que podia fazer e a mais velha posse deu a benção… No Hip Hop tem muito disso, de os mais velhos darem a bênção, então mesmo que os outros falassem não, o mais velho falou sim, tá falado, então nós não íamos ter problemas com eles.
(1:28:31) P/3 – Quando você falou da covid você falou um pouco da importância das famílias, também nessa orientação dos jovens. Queria que você falasse um pouquinho mais sobre isso.
R- É, a gente orientou os jovens a não ir para as baladas clandestinas. A gente sempre falava pra eles da importância de lavar as mãos, da importância de se usar máscara, de não ir pra festas. Fazíamos várias reuniões virtuais, justamente pra ver se eles tiravam um pouco da ansiedade de querer sair. Avisávamos pra eles: “Olha, se for sair tente sair sozinho, com o menor grupo de pessoas possíveis. Dá uma volta, dá uma andada. Cuidado pra não tocar”.. Porque na época até se você tocasse em objetos falavam que pegava covid, ainda tinha isso, então falava: “Cuidado com isso. Vocês tem pessoas que vocês gostam que são mais velhas com comorbidade, então vocês podem estar levando a covid para aí, podem estar matando pessoas que vocês amam, então cuidado com isso”.
Era uma orientação que a gente sempre tentava fazer pra juventude, mas era complicado porque você tinha pessoas da própria parte da saúde, enfermeiros, enfermeiras e técnicos de enfermagem que faziam tudo ao contrário, aí era complicado, né?. Você falava: “Porra, mano, a gente está tentando fazer o certo, aí vem a galera justamente que é da área da saúde e faz o errado, aí se lasca com a gente, né?” Era complicado, quando via essa pessoa, justamente da área da saúde, a galera fazia tudo ao contrário do que a gente falava. Dava vontade de pegar a pessoa.
Era bastante complicado, mas a galera conseguiu ficar um bom tempo sem ir em festas clandestinas. E era uma coisa que eu pegava no pé. A própria galera começava a pegar no pé pra não ir em festas clandestinas.
(1:30:43) P/2 – Elvis, eu acho que você já pincelou um pouco essa resposta, mas eu queria saber, pra você, individualmente e também politicamente, qual é a importância das paradas nas periferias pra você? O que você acha que traz?
R - Olha, pra mim, pessoalmente, é realizar sonhos. Eu sempre fui uma pessoa que lutou pela periferia, pela melhora da periferia e levar um evento majestoso, mágico como esse pra periferia é algo fenomenal. É uma sensação ótima, é você sentir que fez algo pra mudar o mundo, você está impactando o local. É um sentimento de gratidão, de realização de sonhos, porque são pessoas que não teriam oportunidade, por exemplo, de estar na Parada de São Paulo.
Eu sou diretor também da parada de São Paulo, mas não teriam oportunidade de estar se apresentando na parada de São Paulo, não porque não têm qualidade, porque não têm criatividade, por nada disso. É porque realmente a parada de São Paulo tem um tempo curto, são artistas do Brasil e do mundo todo mandando portfólio pra lá e você tem que fazer escolhas, então você vai cortando, não tem como você fazer, é difícil. É muito pouco espaço pra muita gente, então não dá, é humanamente impossível. Apesar de que esse ano, na parada de São Paulo, fizemos, colocamos mais pessoas negras, mais pessoas das periferias, mais mulheres. Isso daí é bem nítido, inclusive as próprias marcas também fizeram isso, colocaram mais artistas LGBTs negros, mais mulheres, mais pessoas trans; teve essa pegada nesse ano. Finalmente conseguimos fazer isso que a gente tanto queria e acredito que essa mudança veio pra ficar. Vai acontecer também de novo no ano que vem, mas mesmo com essa mudança a gente não consegue colocar todo mundo lá. Então quando você faz isso na periferia, você vê a felicidade não só dos LGBTs, dos héteros também, porque não vem trio elétrico na periferia, gente. E a gente pega trio elétrico grandão, a gente não pega pequeno. A gente faz com carreta, a gente não faz com triozinho. Você chega com trio elétrico, com aquele arco de bexiga todo enfeitado, as bandeiras do orgulho, travestis andando de dia na rua, pessoas fantasiadas, cartazes, pessoas com as bandeiras com as cores do orgulho, andando. As pessoas acham aquilo lindo, as pessoas acham aquilo mágico, sabe? Os heteros mesmo acham aquilo mágico.
O comércio ama porque vende muito bem. A galera do bairro ama porque vê que é uma coisa bastante bacana, legal, não é o que eles pensavam. Não é um monte de gente transando no meio da rua, que nem falam que é na Paulista, ou um monte de gente quebrando santos católicos, como falam também. Não é falta de respeito contra outras religiões, não tem nada disso. Eles veem que não é nada disso, que é uma coisa gostosa, uma coisa bonita. Não tem nada a ver com aquilo que falam, sabe? Nada [a ver] com aquilo que pregam, então você acaba quebrando esse preconceito também dentro dos bairros, né. E aí isso é uma realização muito grande, porque você vê as pessoas felizes.
Tem até um caso do Itaim que eu gosto bastante. Foi um senhor de idade, já era um senhor bem de idade mesmo, acho que devia ter seus setenta anos, por aí. Era uma bicha já velha, chegou assim em mim e ele falou: “Olha, hoje eu sou velho, sei que não faço parte da turma de vocês e os jovens também não querem ver a gente que já está com essa cara toda comida muito próximo. É outra geração, mas eu estou no fim da minha vida e eu tenho um sonho, que é subir em cima do trio pra tirar uma foto. Eu posso subir?”. Eu olhei bem pra cara dele; o trio já estava lotado, já não tinha mais pulseira pra nada. Chamei o dono do trio e falei: “Olha, eu sei que já está lotado o número de gente, mas olha”. Expliquei pra ele, contei a história pra ele, desse senhor que eu não sei nem o nome, e falei pra ele: “A gente vai ter que colocar ele lá em cima, não tem como não colocar ele lá em cima”. Ele falou: “Lógico que vamos”.
Colocamos ele lá em cima e ele foi o trajeto inteiro em cima desse trio elétrico. Não sei se ele está vivo, não sei se já é falecido, mas eu sei de uma coisa: se esse era o sonho dele, ele cumpriu o sonho dele, que era de subir em cima do trio elétrico, sabe? Então, acho que é realizar sonhos.
Muitas pessoas começaram com a gente como DJ, muitas pessoas começaram com a gente como drag. Você vê a parada de Arujá que teve agora, na segunda-feira teve uma moção de aplausos pra parada de Arujá, que foi difícil de fazer. A parada de Suzano também, que foi outra que o prefeito me processou por três vezes. E eu sou cabeça dura, eu falo que se eu vou fazer, eu vou fazer. Não adianta falar pra mim que eu não vou fazer, eu conheço os meus direitos e eu vou fazer. E aí você vê toda aquela juventude, sabe, fazendo, lutando para melhorar a cidade. Pessoas que não eram nem politizadas, não sabiam nem o que era militância, tinham ódio de política e hoje estão entrando em partidos políticos para se candidatar à vereança no ano que vem nessas cidades, sabe? Eram pessoas que odiavam a política e hoje querem ser vereadoras, depois que participaram da parada e viraram organizadoras, porque eu só implanto a parada e vou embora. Eu não fico na parada; eu só implanto, ajudo a implantar a parada e falo: “Agora é com vocês. Vocês já sabem como fazer. Vocês já sabem como ter o modelo que eu fiz, qualquer coisa vocês perguntam e eu vou respondendo pra vocês, mas agora é com vocês”.
Eu deixo que as pessoas tomem conta e sejam protagonistas das suas histórias, porque não é meu objetivo ir e dominar o negócio lá, ficar lá, até porque minha cidade não é lá, meu lugar é aqui em São Paulo e na Zona Sul, que é onde eu gosto, é o meu lar, é onde eu sempre amei. Não vou ficar dominando o território dos outros, não é essa a minha intenção, né? Implemento lá, faço com que elas realizem os sonhos delas e acho que essa é a minha maior felicidade, é saber que essas pessoas estão realizando sonhos, sabe? Isso pra mim é algo incrível.
(1:37:59) P/2 – Você quer contar do livro que você escreveu?
R – Ah, sim. Quem manda na noite eu escrevi porque alguém precisava contar a história das famílias LGBTs, e ninguém contava. Até hoje não contam as histórias das famílias da noite, acham que não têm relevância para cidade ou pro município de São Paulo. Acham que as famílias LGBTs não tem nenhum tipo de relevância pra capital, pra militância LGBT. E aí eu falei: “Não, vou escrever, vou falar como começou. Vou tentar buscar a história de como começaram essas famílias”. [Contar] a importância dessas famílias no meio LGBT, que não é só na noite, a importância que elas têm na parte política da cidade, a importância que elas têm em tudo. Foi quando eu comecei a escrever sobre essas famílias justamente pra mostrar a origem dessas famílias, de como tudo foi feito, por isso que eu escrevi Quem manda na noite.
Eu demorei dez anos escrevendo esse livro. Aí vem a editora e fala: “Olha, eu quero publicar isso aí que você escreveu”. Ela foi e publicou, não ganho nenhum dinheiro com isso, não é minha fonte de lucro. Eu quis assim. Antes que falem que foi a editora, fui eu que quis isso, não quis ganhar lucro nenhum com o livro. Eu só queria escrever o livro mesmo, que as pessoas tivessem acesso e estivesse registrado que as famílias LGBTs existiram e elas cumpriam um papel importantíssimo aqui na cidade de São Paulo. Elas são um grupo de resistência, inclusive nas periferias, e continuam moldando inclusive muitas coisas da militância LGBT. Só não são reconhecidas justamente porque são periféricos, pobres e pretos e esse negócio a gente sabe que não tem valor, e é essa a questão.
(1:40:01) P/2 – Por fim, antes de a gente entrar no bloco final, eu fiquei pensando. No começo você falou, contando do começo da sua vida, que era atuante na igreja e depois você saiu da igreja. Eu queria saber hoje em dia qual é a sua relação com a religião, com a fé.
R – Ainda continuo sendo evangélico, isso nunca… A igreja é só um lugar para que os irmãos venham se encontrar e viver em comunhão, nada mais que isso. A minha fé é com Cristo, Jesus, não é com o homem. Eu sempre fui aquela pessoa que debatia muito na igreja, justamente por eu ser um pouco mais estudado eu sempre era aquele que via a ordem que vinha de cima e não aceitava: “Espera aí, mas por quê? Me mostra onde está escrito isso”. A pessoa não conseguia mostrar, aí eu já mostrava os dez capítulos pra ela de versículos da Bíblia, eu dava uma aula, que aquilo que ela estava falando não estava certo. A galera não gostava muito, porque eu já mostrava logo, era briguento, então não aceitava que viesse me dar ordens ou falar besteiras.
Muita gente falava besteira. Vestimenta, batom, maquiagem, bebida alcoólica, fumar, inventavam um monte de coisas que não estão na Bíblia. E eu falava: “Me mostra isso, gente, pelo amor de Deus. Vocês não sabem nem a história dos evangélicos. Vocês não sabem nem quem somos nós. Aprendam quem somos nós, de onde nós viemos”. Era uma coisa que eu falava bastante pro pessoal, de onde nós viemos, quem somos nós.
Eu fico olhando agora, dá tristeza. Eu choro quando vejo o que a religião se tornou, sabe? É algo nojento você usar… Algo que alguns pastores fazem, usam a religião para ofender outras religiões. Isso jamais deveria estar acontecendo. Usam a religião para ter poder político, para ter poder financeiro, para se enriquecer, isso é nojento. Eu não vejo isso com bons olhos.
(1:42:34) P/2 – Eu queria saber como é o seu dia a dia hoje.
R - Olha, é uma loucura, viu? Eu acho que pra todo militante é uma loucura, o nosso dia a dia. Na verdade, hoje eu vivo de projetos, então você vai, trabalha com um edital ali, um projeto aqui, outro ali. E aí você vai pegando dez, quinze projetos para tentar sobreviver, pra você conseguir fazer alguma coisa, senão você não consegue.
Até pra colocar as paradas na rua você tem que ter tempo. Se você está trabalhando no privado você não consegue colocar nenhuma parada na rua, essa que é a verdade. Tem muita reunião pra fazer, é muita coisa pra fazer, muito café com muita gente que você tem que tomar, então você não consegue fazer esse movimento, não. Você tem que viver de projetos pra aí, no tempo, você encaixar um aqui, um aqui, uma coisa ali, outra aqui. E isso é complicado, porque quando você trabalha assim, muito… As pessoas não têm noção de como é ruim trabalhar com burocracia, fazer projeto, fazer nota fiscal. É documento, é isso e aquilo e isso mexe muito com a sua cabeça. Isso também acaba afetando a sua saúde mental, a saúde emocional, acaba te afetando enquanto ser humano.
Você vê que muitos da militância estão doentes, estão bem doentes, principalmente por conta disso. A gente nunca está bem, a gente nunca está 100%, sabe? As pessoas falam: “Ah, mas vai para uma balada, vai para um barzinho que aí você dá uma espairecida”. Mas dá uma espairecida por um momento, não é o tempo todo.
Nesse final de semana, por exemplo, eu fui pra casa de um amigo que mora em um hotel fazenda, lá em Minas Gerais. “Ah, passa o final de semana aqui, amigo. Dá uma descansada de trabalho, vem pra cá e dá uma descansada”. Realmente, eu fui pra lá, choveu e ficou sem internet, aí é que não tinha como mexer com nada mesmo. Fiquei uns dois, três dias incomunicável com o povo. Mesmo assim você não consegue recarregar as baterias, você não consegue colocar as coisas no lugar.
Quando cheguei em São Paulo ontem, que eu abri o celular e depois abri o meu e-mail, nossa, ali na hora eu desabei, comecei a chorar. “Nossa, não acredito nisso, voltou a minha vida.” Voltou a minha vida porque aí você tem um monte de coisa pra fazer, a parada de Cidade Tiradentes, que vai acontecer daqui a duas semanas. Você tem que resolver um monte de coisas menorzinhas, um monte de coisinhas ainda que têm que ser feitas. Tem aquele medo de não dar público, aí você tem que lutar pra que dê público, pra que a Secretaria de Cultura continue nos dando apoio, porque hoje elas apoiam a gente. Antes não tinha o apoio de ninguém, agora a gente tem pelo menos o apoio da Secretaria.
Gostaria que fosse política pública, gostaria que tivesse um edital, que nem tem para os blocos de carnaval, para as paradas LGBT da periferia. Por enquanto ainda não tem, mas eu acho que já está havendo pelo menos uma conversa nesse sentido, para ter um edital que venha fazer com que as paradas venham virar realmente política pública na periferia. E tem ainda a importância que elas realmente têm, de continuar tendo essa importância na periferia. A gente ainda tem essa questão, então você acaba pensando nisso, e aí, meu, isso acaba com você.
Tem dias que eu levanto da cama e fico pensando: “Caramba, como é que eu consegui levantar?” Tem dias que eu não consigo nem sair de casa, é difícil sair de casa porque eu não estou com o emocional bom pra sair de casa, não estou com cabeça pra sair de casa. Tem dias que eu só fico respondendo mesmo no Whatsapp, algumas questões mais urgentes - tem dia que também você não consegue responder a galera, né? Fora isso, tem várias outras questões que vão juntando do pessoal da família Stronger e vêm várias outras coisas na sua cabeça, várias.
Nossa, é realmente bem complicado o dia a dia, viu? Descanso, então, é algo que no meu vocabulário é difícil, é difícil ter descanso. É algo bem difícil, por enquanto está difícil. Acho que se viessem esses editais das paradas da periferia ia ajudar bastante, porque aí não precisava sair em tantos projetos, diminuiria um pouco mais os projetos. Conseguiria dar uma descansada, um pouco mais.
(1:47:35) P/2 – E o que é importante pra você hoje?
R – Ah, eu acho que o importante pra mim hoje é fazer essa luta, sabe? Eu acho que pra mim, estar na rua… Eu, como sou uma pessoa de esquerda, sempre aprendi que a rua é o nosso lugar. Ocupar espaço, pra mim, é ocupar a rua, é estar na rua, é ocupar a cidade. É enfrentar esses pensamentos reaças que existem, enfrentar esses pensamentos desumanos, até. Não vou nem classificar como esquerda ou direita, porque a esquerda também tem uns pensamentos assim, tem pensamentos desumanos até que as pessoas fazem. É você estar na rua e enfrentar esse tipo de situação, estar na rua e enfrentar esse tipo de coisa quando a gente coloca as paradas, quando a gente coloca as manifestações, quando a gente fortalece o movimento. Isso é algo fantástico, sabe, eu acho que isso pra mim não tem preço.
Em Suzano, fizemos isso. Suzano pode falar, antes da parada é uma coisa, depois da parada é uma outra coisa. Cidade Tiradentes é uma coisa antes da parada, depois da parada é outra coisa, inclusive projetos importantes aconteceram em Cidade Tiradentes depois da parada, como o PrEP1519, que hoje é política pública; não se dava PrEP para pessoas menores de idade nos CTAs, nem em lugar nenhum, porque não existia uma pesquisa para saber como aquilo ia se dar, a reação no corpo dessas pessoas nessa idade. Foi feita essa pesquisa em Cidade Tiradentes, porque lá se encontrou o lugar fértil pra fazer, por conta da parada, e a Casa da Cultura virou um lugar fértil, por conta da juventude que acabou frequentando lá, por conta da parada. A PrEP agora é política pública, ele pode ser dada para as pessoas, então acho que isso foi uma coisa bastante importante que a parada trouxe para a Cidade Tiradentes.
Esse é o trabalho agora no Itaim Paulista, por exemplo. Tem pelo menos uns trinta a quarenta comerciantes brigando para patrocinar a parada. Claro, [são] patrocínios não muito grandes, mas [estão] brigando pra patrocinar a parada do Itaim, porque eles querem fazer parte disso. Eles querem estar junto com a gente, mostrar que não são preconceituosos, que estão juntos com os LGBTs da quebrada, porque é um bairro que tem bastante moradores LGBTs, o Itaim Paulista. Tem também essa história com a militância, eles sempre cedem o lugar de encontro LGBT, então eles têm essa história e estão brigando para patrocinar a gente.
Eu acho isso muito importante porque você modifica o lugar. Você realmente muda aquele local, você realmente traz os políticos para a periferia. Você vê que os deputados vão para a periferia, eles investem, mandam emendas, e não é só para a parte LGBT, mandam emendas para arrumar os buracos, para arrumar o posto de saúde, para arrumar escola. Não é só a questão LGBT. A gente consegue dar visibilidade para muitas outras questões. Fora a imprensa, também, a gente está conseguindo levar a imprensa, principalmente a tradicional. Ela comprou muito a nossa briga na periferia, tem filmado, tem feito várias entrevistas longas nos jornais, tem colocado em mídias que eu nunca pensei que sairia [nada] sobre a nossa pauta. Isso é importante, falar sobre os LGBTs da periferia; isso é muito significativo, inclusive essa pauta ter chegado em Brasília.
A gente tem discutido isso com a Symmy Larrat, a secretária nacional LGBT. Temos discutido isso em outras pastas, da importância do movimento LGBT periférico e a diferença do LGBT periférico para o LGBT centrista. Gente, no centro da cidade tem tudo, na periferia a gente sabe que está abandonada pelo Estado. O Estado só coloca a polícia para matar, principalmente esse Estado agora, isso que ele coloca, polícia para matar; fora isso, não tem colocado mais nada. Quando você chega com a parada, você exige outras coisas, você cobra outras coisas, você força o governo a olhar para outras coisas, então não é só os LGBTs, você faz uma mudança legal ali na região, sabe? Você faz uma mudança legal, principalmente na parte de cultura, na parte social e na parte da educação; são coisas que a gente investe bastante quando a gente coloca as paradas nas periferias. Isso para mim é mega importante. Às vezes a gente acorda cansado, depressivo, chorando do nada, às vezes a gente fica louca, a gente fica perturbada, às vezes dá um tilt, que você fica olhando assim pro nada, que você fica tentando lembrar até quem você é. Mas depois que você vê tudo isso sendo feito, depois que você vê o impacto que isso causa na vida das pessoas, não tem preço. Não tem preço você ver essa mudança assim num lugar, quando você chega e depois, quando você sai. É uma mudança muito significativa, muito mesmo.
(1:53:23) P/2 – E quais são seus sonhos?
R – Ah, eu acho que o meu maior sonho acho que é o mesmo do Presidente Lula, sabe? Acho que é uma coisa que eu compactuo muito com o Lula, que todo ser humano deveria ter pelo menos três pratos de comida para comer durante o dia, todo ser humano vir a ter a opção de estudar, conseguir ter um estudo de qualidade. Esse é meu sonho, ver a galera estudando e ter a oportunidade que eu tive.
Eu vou estudar e agora eu vou trabalhar naquilo que eu gosto, vou fazer aquilo que eu gosto. Fazer dez mil projetos, mas é o que eu gosto. Eu acho que todo mundo deveria ter essa oportunidade de trabalhar naquilo que gosta, chegar no mercado e falar: “Olha, eu quero comer isso e é isso que eu vou comprar. Independente da marca ou do preço, é isso que eu quero comprar é isso que eu quero comer” e ponto. Esse é meu sonho, que todo ser humano chegasse a esse patamar, porque aí sim a gente começa a falar de meritocracia, aí sim a gente começa a falar “está todo mundo partindo do mesmo lugar”, entre aspas ainda, mas pelo menos já está um negócio mais equilibrado e menos injusto do que hoje em dia a pessoa falar de meritocracia, sendo que ela acorda às duas horas da tarde porque tem uma diarista, porque tem uma cozinheira, vai para uma escola bacana, já aprendeu a falar inglês com quatro anos de idade, já está fazendo programação, enquanto a gente ainda está aprendendo a fazer conta na periferia. Isso é muito desumano e desigual.
Eu gostaria mais dessa parte da igualdade. Essa é minha luta de vida, esse é meu sonho, ver essa igualdade. [Ver o] ser humano comer três pratos de comida por dia, porque eu já passei necessidade, então eu sei o que é isso, ir para a escola com o estômago roncando. Você não consegue aprender, porque você só está pensando em comer - isso quando você não deixa a escola para trabalhar. Nós temos que lutar muito para que essa parte da igualdade, tanto da parte da fome, quanto da parte da educação, venha a ser para todos, de fato e de qualidade, e que a pessoa que estude não venha a trabalhar.
Quando eu falo de estudo, não estou falando só do estudo fundamental ou médio; eu falo também do superior. Acho muito injusto o filho do rico poder estar se dedicando ao curso superior e o pobre ter que se lascar de trabalhar o dia inteiro, ainda ter que ir para a faculdade à noite e ter que ficar escutando lorota de professor que não quer entender que tu trabalhou o dia inteiro e não consegue fazer trabalho do jeito que deveria fazer, meu. Sabe, é difícil fazer isso. Aí você chega no patrão e o patrão também não quer entender, o patrão não quer deixar você sair mais cedo ou fazer uma pesquisa, estudar. É algo complicado, então acho que também deveria ter essa parte com o ensino superior. Isso [precisa] também ser olhado para o ensino superior e o filho do pobre também deveria ter a mesma igualdade que o filho do rico tem, de poder estudar sem trabalhar ou, se trabalhar por opção, não por obrigação, para conseguir pagar essa faculdade e mesmo assim não conseguir aprender tudo aquilo que você poderia aprender, como o filho do rico, por exemplo, consegue.
Acho que essa parte é o meu sonho de ter pé de igualdade, falar com eles de igual para igual, que é o que está faltando no Brasil. A gente vê que não é igual.
(1:57:15) P/1 – Qual o legado que você deixa para o futuro?
R – Eu acho que o legado que eu deixo pro futuro é justamente isso, a gente entender que a luta vale a pena e que se você for pra cima você faz a mudança acontecer. Sabe, eu acho que é isso, a gente ir para a rua, não desistir nunca daquilo que a gente quer, dos nossos sonhos e lutar para eles serem realizados, o máximo que for possível, sabe? E lutar para que a gente venha a mudar, acho que a mudança tem que ser necessária. A mudança na sociedade tem que ser necessária, se ela partir de nós. Acho que a gente é que tem que fazer isso.
Quando eu faço isso de colocar as paradas nas periferias… Não são só as paradas, a gente faz outros eventos também, mas quando a gente coloca isso nas periferias, quando realiza esses sonhos, a gente mostra para esse pessoal que tudo é possível. É só lutar, é ir para a rua, é lutar, acreditar e manter pé firme naquilo que você quer e que você acredita. E ir para cima, não desistir, é isso. Esse é um legado que eu deixo para essa galera, que lutar vale a pena.
(1:58:40) P/1 – A gente já está chegando ao fim, eu tenho só mais duas perguntas. A primeira delas é se você gostaria de contar alguma coisa que eu não perguntei ou deixar alguma mensagem.
R – Acho que perguntou tudo. A mensagem que eu gostaria de deixar para as pessoas… Acho que no futuro ou no presente, não sei como é que vai estar o futuro, se vai ser melhor, se vai ser pior. Esse negócio de Inteligência Artificial dá até um pouco de medo, na verdade. Eu não vejo um futuro muito legal, principalmente para os LGBTs. Tenho até um pouco de medo da automatização de muitos trabalhos e os LGBTs não se preparando e não conseguindo estudar. É algo que também precisamos debater e discutir sobre isso, mas eu acredito que o que a gente tem que deixar para o futuro é que a gente tem que acreditar nos nossos sonhos e como eu disse, sempre lutar.
A luta sempre tem que vir através dos livros, da escrita; é usar essa ferramenta que nós temos, que é a nossa voz, que é a nossa escrita, que é o conteúdo que você pode produzir hoje em dia através das redes sociais e da câmara, que também é uma outra forma, outro campo de luta. Nossas ferramentas de luta, não-violência, sabe? É olhar o passado, aprender com pessoas como Nelson Mandela, como Gandhi, como Martin Luther King: três pessoas de três religiões diferentes, e três pessoas que eu tenho como meus ídolos, que lutaram de forma não-violenta.
Acho que é isso que nossa geração do futuro tem que fazer, usar as ferramentas que nós temos de forma não-violenta, porque funciona. Funcionou no passado com esses três grandes líderes e muito bem. Houve uma mudança radical com esses três, muito boa, inclusive, e está funcionando hoje em dia.
Muita coisa a gente conseguiu mudar indo para a rua, sabe? Principalmente no Brasil, a gente conseguiu derrubar a ditadura indo para a rua, a gente conseguiu derrubar presidentes corruptos indo pra rua, a gente conseguiu mudar muita coisa indo para a rua. Tem muita coisa errada? Tem, mas conseguimos mudar muita coisa. Eu vejo, principalmente de um tempo pra cá, muita mudança indo para a rua, de uma forma não-violenta, usando aquilo que a gente tem, que são as ferramentas, como eu falei: a escrita, a fala, as redes sociais. É produzir conteúdo de forma não-violenta, sabe? Mais livros, menos armas, mais palavras e menos balas. Eu acho que é desse jeito que a gente vai conseguir uma mudança significativa no mundo.
(2:01:45) P/1 – Como é que foi contar a sua história hoje?
R – Ah, sei lá. Acho que é diferente, porque você vir da favela, como eu venho… Ainda moro lá e não pretendo sair de lá tão cedo. Não pretendo, porque o pessoal vê a favela como um lugar ruim. Eu já vejo como o meu lugar, o meu berço. É onde eu aprendi tudo, é onde eu amo, é onde eu gosto, meu lugar sagrado. Para mim é o lugar que eu amo de verdade, sabe? É um lugar de oportunidades e não um lugar como as pessoas acham. Não é um lugar de miséria como as pessoas enxergam, um lugar violento. A gente pode fazer uma transformação na nossa quebrada.
Vir da quebrada e contar sua história, fazer tudo que eu consigo fazer sem recursos, sem dinheiro, sem nada, acho que é fazer muito com pouco. Acho que isso é muito significativo, porque eu não tenho… As pessoas podem pensar… Eu não tenho dinheiro, não sei dirigir, não tenho carro, não sei falar inglês, não tenho nada disso. eu não tenho curso fodástico, não tenho aquela formação fodástica também de nível superior, que é a gestão que o público ‘ricão’ faz, é uma coisa muito difícil. Não tenho nada demais. E aí contar a sua história e ver essa mudança acontecendo nas coisas que a gente faz é algo bem significativo, sabe? Acho que é algo bem impactante, que faz com que quando a gente volta para casa fique refletindo: “Nossa, olha. Eu contei a minha história. Olha, eu falei um pouco sobre isso. Falei um pouco não só sobre a minha história, mas sobre uma lenhada de histórias, uma lenhada de coisas que aconteceram, que estão acontecendo, várias mudanças que ainda acredito que estão para vir, estão para acontecer, principalmente na cidade de São Paulo. Muita coisa está para acontecer”. Acho que é isso.
Recolher