Memória e Migração
Depoimento Fiszel Czeresnia
São Paulo, 05 de dezembro de 1991
Entrevistado por Claudia Leonor
Código MM_HV013
Transcrito por: Fernanda Regina
P/1 – Senhor Fiszel, quais os países ou país de onde o senhor veio?
R – Eu vim para o Brasil diretamente da Polônia.
P/1 – Diretamente da Polônia... Certo! E qual a língua que o senhor falava nesses países?
R – Na Polônia eu falava iídiche e um pouco de polonês.
P/1 – Iídiche e um pouco de polonês... Por quê?
R – Primeiro eu falava iídiche, aprendi polonês somente quando entrei no grupo escolar.
P/1 – Certo. O senhor poderia fazer uma descrição de um dia na casa de sua família?
R – Bem...
P/1 – Qual era o cotidiano dessa família?
R – Até os seis anos de idade eu morava com meu pai, minha mãe e meus irmãos, em 29 meu pai migrou para o Brasil, então de 29 até 34, a nossa família era minha mãe e cinco irmãos. Era uma cidade pequena, muito pobre, a maioria das casas eram de madeira. Nós mudamos... Eu lembro de três residências que nós mudamos, uma quando eu tinha três anos de idade, outra com sete anos de idade e a maioria delas eram com um quarto grande que servia de cozinha, de dormitório, de sala de jantar, de tudo, era um quarto só.
P/1 – Para uso comum?
R – Para toda a família, né.
P/1 – Certo. E como era os estudos quando o senhor era criança? Escolas públicas, particulares?
R – Na minha cidade, a maioria eram de judeus muito religiosos, cidade pequena, tinha ao todo três mil judeus. A população judaica da cidade era mais de 90%, 10% só eram poloneses não judeus. Como toda criança judia aos três anos de idade eu fui levado para o Heder que é onde a gente aprende o alfabeto judaico, então eu ainda lembro do meu pai me embrulhando no talit, me carregando para o Heder onde tinha a primeira aula. Antes de começar a estudar na escola pública aos oito anos de idade, dos três aos oito só estudava na escola judaica,...
Continuar leituraMemória e Migração
Depoimento Fiszel Czeresnia
São Paulo, 05 de dezembro de 1991
Entrevistado por Claudia Leonor
Código MM_HV013
Transcrito por: Fernanda Regina
P/1 – Senhor Fiszel, quais os países ou país de onde o senhor veio?
R – Eu vim para o Brasil diretamente da Polônia.
P/1 – Diretamente da Polônia... Certo! E qual a língua que o senhor falava nesses países?
R – Na Polônia eu falava iídiche e um pouco de polonês.
P/1 – Iídiche e um pouco de polonês... Por quê?
R – Primeiro eu falava iídiche, aprendi polonês somente quando entrei no grupo escolar.
P/1 – Certo. O senhor poderia fazer uma descrição de um dia na casa de sua família?
R – Bem...
P/1 – Qual era o cotidiano dessa família?
R – Até os seis anos de idade eu morava com meu pai, minha mãe e meus irmãos, em 29 meu pai migrou para o Brasil, então de 29 até 34, a nossa família era minha mãe e cinco irmãos. Era uma cidade pequena, muito pobre, a maioria das casas eram de madeira. Nós mudamos... Eu lembro de três residências que nós mudamos, uma quando eu tinha três anos de idade, outra com sete anos de idade e a maioria delas eram com um quarto grande que servia de cozinha, de dormitório, de sala de jantar, de tudo, era um quarto só.
P/1 – Para uso comum?
R – Para toda a família, né.
P/1 – Certo. E como era os estudos quando o senhor era criança? Escolas públicas, particulares?
R – Na minha cidade, a maioria eram de judeus muito religiosos, cidade pequena, tinha ao todo três mil judeus. A população judaica da cidade era mais de 90%, 10% só eram poloneses não judeus. Como toda criança judia aos três anos de idade eu fui levado para o Heder que é onde a gente aprende o alfabeto judaico, então eu ainda lembro do meu pai me embrulhando no talit, me carregando para o Heder onde tinha a primeira aula. Antes de começar a estudar na escola pública aos oito anos de idade, dos três aos oito só estudava na escola judaica, era onde se aprendia a bíblia, aprendia rezar...
P/1 – Uma educação mais religiosa?
R – É, religiosa. Você antes estranhou porque eu vim falando iídiche e polonês, a língua que todos nós, os meninos e os pais falavam eram iídiche, o polonês eu só comecei aprender quando entrei na escola pública polonesa. Como eu morava um pouco fora da cidade, então eu era o único da classe que sabia um pouco de polonês, então eu servia de tradutor, o professor era polaco, quer dizer, não sabia iídiche, eu era tradutor das aulas do professor para o iídiche porque o resto dos alunos não entendiam. Eu fiz quatro anos primários na Polônia.
P/1 – E havia alguma diferença na educação das meninas para a educação dos meninos?
R – Bem, na parte judaica a escola judaica não se misturava, então os meninos estudavam em uma escola, as meninas em outra escola. A escola pública era conjunta, meninas e meninos. A escola pública era governamental, oficial, mas todos os meninos judeus tinham uma educação extra escola pública, tanto meninas, como meninos.
P/1 – Havia diferença entre a educação das crianças pobres para as crianças mais ricas?
R – Não, não. Veja bem, na escola judaica quem não podia, não pagava. Na escola pública era gratuito, o ensino na Polônia já naquela época era obrigatório, não havia problemas, aliás, esse negócio de pobre e rico, havia muita pouca gente que não era pobre na cidade.
P/1 – E como se definiam as profissões?
R – É... Eu poderia caracterizar as profissões que eu me lembro porque, afinal de contas, eu saí de lá com 11 anos, eu não exerci nenhuma profissão, eram comerciantes, eram intermediários, a minha cidade era rodeada de dez ou doze aldeias de camponeses, então o judeu da cidade servia de intermediário, ele vendia produtos dos camponeses para a cidade e vendia coisas da cidade para os camponeses. Havia uma vez por semana, na praça central da cidade um mercado, a tal da feira, os camponeses vinham trazer cavalos para vender, vacas, galinhas, horta e granjeiros, eles aproveitavam e compravam dos judeus roupas, alimentos, sal, farinha, que de resto eram as tropas, né? E havia profissionais sapateiros, marceneiros, açougueiros, que eu me lembro da praça central é que tinha uma série de cinco, seis açougues, do outro lado era escola, do outro lado um negócio de tecidos, sapatos...
P/2 – Mas basicamente, os judeus desempenhavam que função? Que tipo de comércio nessas cidades?
R – Eram intermediários, intermediários, a maioria. Eram ou intermediários ou profissionais...
P/1 – Liberais.
R – Não, liberais não. Liberais eram o da ____ na capital. Mas nessa cidade não me lembro de... O único judeu liberal que lembro era um professor da escola pública, o resto eram comerciantes mesmo, comerciantes.
P/1 – E os casamentos como eles aconteciam entre vocês?
R – Os casamentos, veja bem... Vou repetir, eu saí com 11 anos de idade, assisti alguns casamentos, mas eram...
P/1 – O que mais te marcou?
R – Os casamentos eram, geralmente, feito por um _____, ____ era um casamenteiro, alguém que sabia que ela tem filhos e lá tem filhos e acertavam, não era mais... Era um pouco mais moderno na minha época, o noivo chegava ver a noiva, né.
P/2 – Seus pais são frutos de um casamenteiro também?
R – Parece que sim, parece incrível, mas os casamentos davam certo porque já havia uma coisa assim... Não se admitia coisa diferente, claro, tinha encrencas, tinham desavenças, então os judeus tinham divórcio. Eu não me lembro de nenhum caso de divórcio na minha cidade, vimos alguns casamentos...
P/1 – Casamentos mais... Quais eram as festas mais importantes?
R – As festas mais importantes eram as festas judaicas, né?
P/1 – Como elas eram comemoradas?
R – A festa mais importante se repetia toda semana, era o sábado, o sábado para uma cidade pequena judaica, não era só o dia de descanso, era um dia de festa, era um dia de elevação espiritual. O judeu mais pobre podia passar a semana toda tendo apenas pão e um e um _____ para comer, mas toda sua preocupação era arrumar dinheiro para preparar o sábado.
P/1 – Como era a comemoração Shabat na sua casa, especialmente?
R – Era muito simples, meu pai me levava para a sinagoga, enquanto isso em casa, à tarde a gente ia no banho ritual, os religiosos iam no banho ritual toda sexta, trocávamos de roupa e íamos para a sinagoga.
P/2 – Desde pequeno seu pai leva os filhos homens?
P/1 – As mulheres não.
R – Sim, claro, ele chegava em casa, era noite ____ porque sexta à noite, velas, na minha cidade não havia luz elétrica, eu nunca cheguei a ver um cinema até os 11 anos de idade, não havia luz na cidade, e o sábado era quando a mulher fazia a limpeza do quarto e punha a toalha branca na mesa, enfeitava, o pão era aquele pão (rala?). Havia todo um ambiente, no dia seguinte você levantava ia pra sinagoga, só que os meninos bem pequenos, eu lembro bem, meu pai já tinha viajado para cá, no mês de maio saímos todo sábado de manhã para passear no campo, a cidade era pequena, o campo era a cem metros da minha casa, começava o campo, os campos na Polônia eram lindos. O que mais me lembro da infância é aquilo que se chama em polonês (maiufca?) vem da palavra maio, (maiufca?) quer dizer o passeio do mês de maio. Eu me lembro minha mãe com as irmãs dela porque os maridos estavam na sinagoga, né, os pequenos escapavam, né? A gente arrumava um bom doce e ia fazer um piquenique de manhã, não era longe, era andando 400 metros, 500, era um campo, com árvores, a gente voltava quando os pais já voltavam da sinagoga pra almoçar.
P/1 – Mas a sua mãe era uma pessoa muito religiosa também?
R – Era religiosa, bastante religiosa.
P/1 – Usava peruca?
R – Usava tudo. Aqui no Brasil ela deixou de usar, veio com a peruca, depois de certo tempo deixou de usar, assim como meu pai, usava barba na Polônia, aqui ele tirou a barba. Acho que ele tirou a barba no caminho vindo para cá ou aqui, ele não deixou de ser religioso, meu pai até o fim da vida dele e minha mãe nunca comeram... A nossa era a comida tradicional, né? Na infância, a coisa interessante era essa porque era uma vida de pobre, vamos dizer, mas era uma vida... O sábado dava um conteúdo a vida da gente, todo mundo esperava o sábado, tanto os adultos, como as crianças. Sábado à tarde como havia liberdade, como não tinha o que fazer, o professor da escola judaica, não da escola pública, ele não podia permitir que os alunos vagassem na rua, ele juntava os meninos na casa dele, não na escola e todo sábado à tarde ele dava algum capítulo do ensinamento dos pais ou contava as lendas da história judaica para não permitir que a gente...
P/1 – Vadiasse (risos).
R – Vadiasse no sábado. E sábado à noite começava a semana porque pro judeu a semana começa no sábado a noite, quando ele faz a benção do havdalá que é a separação do sábado com a semana. E sábado a noite os judeus já abriam os negócios, já compravam, já vendiam.
P/1 – Mas nessa cidade que você morava havia uma interação grande entre os judeus e os poloneses não judeus? Ou você como criança...
R – Veja bem, não havia. Claro, que, vamos dizer, eu saí no quarto ano do grupo escolar, na minha classe não havia nenhum não judeu, era uma classe grande de 50 alunos.
P/1 – Na escola pública da sua cidade?
R – Na escola pública da minha cidade, o diretor era um polonês não judeu, era professor de história natural, mas outro professor de matemática e de língua polonesa eram judeus, mas que não falava iídiche, ele sabia iídiche, mas ele não pronunciou uma palavra em iídiche durante quatro anos. Agora no ginásio, aí já havia, na minha cidade havia um ginásio onde vinha gente das redondezas, então aí havia judeus e não judeus, aí inclusive a maioria eram não judeus. Havia os judeus da cidade, mas não judeus que vinham de outros lugares.
P/1 – Agora sua língua materna eram o iídiche? Você foi alfabetizado em iídiche?
R – Era o iídiche, em iídiche.
P/1 – Você até hoje fala iídiche?
R – Sim, sim, falo escrevo, leio iídiche e não sei polonês.
P/1 – Bom, quando o senhor imigrou para o Brasil?
R – Eu imigrei para o Brasil em 1934.
(Inaudível 14:20 até 15:00)
P/1 – Vamos falar um pouco das suas origens ainda, o que você lembra dos seus avós?
R – Eu lembro de dois avôs paternos, pais do meu pai e do avô materno, a minha avó materna não cheguei a conhecer, ela faleceu antes, inclusive, de minha irmã mais velha nascer. A lembrança mais gostosa que eu tenho é do meu avô pai da minha mãe, era a figura que aparece nas fotografias, um senhor, uma barba branca até aqui, ele tinha sido arrendatário do moinho que pertencia a um conde polonês, morava perto da cidade, mas morava em uma pequena aldeia, quer dizer, a minha mãe e os irmãos dela se criaram em uma pequena aldeia onde eram a única família judaica, a aldeia era de camponeses e poloneses e meu avô mantinha um professor para seus filhos, ele contratava o professor por dois semestres, o professor vinha, morava lá com ele, ensinava os filhos, dormia lá, comia lá e recebia um x dinheiro por um semestre, isso era o que minha mãe contava, eu não cheguei a... Eu já nasci na cidade, esse avô era um dos judeus que sabiam muito bem o polonês porque ele morou entre não judeus e conhecia os camponeses da redondeza, então eu me lembro que no verão da Polônia, toda tarde o rabino da cidade, que era uma figura venerada, não só na cidade, mas em toda redondeza, esse rabino passeava com meu avô nos campos e meu avô me levava junto, a gente passava pelos campos, pelos trigais, os camponeses paravam de trabalhar e vinham até a beira do campo e pediam a benção para o rabino.
P/1 – Olha só!
R – A gente fazia o mesmo trajeto durante dois, três anos que eu me lembro.
P/1 – Como era o nome dele?
R – (Bereú?), sobrenome (Plusik?).
R – Agora, os pais do meu pai já não tinham tanta intimidade com ele não, ele era negociante, ele exportava ovos, ele comprava ovos na redondeza, fazia os ovos passarem por um processo de banho de cal.
P/1 – Nossa! (risos)
R – É, dava banho de cal para os seus ovos não... Se mantinham frescos e exportava caixas de ovos para a cidade grande. É a lembrança que eu tenho dele, meu avô. E quanto ao... Você perguntou sobre o antissemitismo, os rapazes judeus tinham medo de sair fora da periferia da cidade...
P/1 – Por que esse medo?
R – Porque os rapazes não judeus atacavam, jogavam pedras, batiam...
P/2 – Mas você pessoalmente chegou a sofrer alguma atitude?
R – Eu, pessoalmente, até hoje tenho medo de cachorro porque o cachorro para mim significava o perigo, eu sabia que quando eu saia pra fora da cidade e chegava nas aldeias perto, meu grande medo eram os cachorros que os camponeses soltavam.
P/1 – Eles diziam alguma palavra?
R – Eles xingavam a gente. Na cidade a gente era muito valente, claro (risos).
P/2 – Claro, estavam em grupo (risos).
R – Não, lá nós éramos a maioria, mas eu lembro... Como eu morava na periferia da cidade, lá morava um ferreiro da cidade que era um dos chefes do corpo de bombeiros voluntários, eu briguei com o sobrinho dele, eu tinha uma boa pontaria, como rei Davi com Golias, atirei uma pedra nele, eu tinha dez anos, aquele homem, um homem fortíssimo, chegou e me deu um soco, me deixou completamente desacordado, essa é minha lembrança que eu tenho da Polônia, minha mãe gritando, chorando, me levando pro centro da cidade, na loja da minha tia, tinha dois policiais na cidade não judeus, os dois policiais bebiam junto com esse tal, não adiantava nada. Mas dentro da cidade, nós éramos maioria, o judeu da cidade pequena, de toda Europa Oriental, ele viveu pode chamar de gueto, certo? Ele viveu num ambiente onde ele era maioria, os judeus em Varsóvia não eram maioria, mas a maioria dos judeus das cidades pequenas da Polônia, ou da _____, da Rússia, eles saiam, no fim do século passado, de cidades onde eles eram maioria e foram para Londres, para Nova York, para Buenos Aires, para Rio, onde eles eram pequenas minorias, esse foi o grande acontecimento no sentido sociológico.
P/1 – Agora, você diria que esse vilarejo, essa cidade pequena seria um _____?
R – Um ____, exatamente um _____.
P/2 – Quantos judeus tinham?
R – Eu fui descobrir isso agora quando estive em Israel, tenho o ____ ____, você conhece o ____ _____? Acho uma das coisas mais maravilhosas, nesse aspecto de museu didático, não tem nada no mundo que se pareça com ele.
P/2 – É um grande trabalho de pesquisa mundial que eles executam.
R – Aí minha filha foi lá, lá tem...
P/2 – Você botou...
R – Botou lá o nome da minha cidade, apertou o botão, na saída ela errou porque a pronúncia não conferia com que estava escrito, ela me trouxe um papel da minha cidade para cá, só aí eu aprendi quantos judeus tinham, a origem...
P/2 - E quantos tinham na sua época?
R – Tinham uns três mil, correspondia a, sei lá, 500 famílias.
P/2 – E a sua família? Os seus avós, não sei se eram maternos ou paternos, eles já tinham nascido nessa própria cidade?
R – Sim, sim.
P/2 – Já era uma cidade.
R – E conta a minha mãe que a mãe dela veio de uma outra cidade para casar com o pai, isso era muito comum, esses casamenteiros arrumavam...
P/1 – Em outras cidades.
R – Tem até aquela piada, vocês conhecem?
P/1 – Não.
R – O casamenteiro chega para o outro e diz... Era gente muito pobre, se arrumavam um casamento pro outro...
P/1 – Era uma profissão ser casamenteiro, né?
R – Era profissão, era profissão. Diz que o casamenteiro chega lá perto do vizinho e diz “Moisés, eu estou arrumando um casamento que vai me dar um dinheiro, vai ser formidável”, muito contente, “Qual é o casamento”, “Estou fazendo o ____, estou fazendo o casamento da princesa da Inglaterra com o filho do ____ ___ aqui da cidade. Cinquenta por cento do casamento já está resolvido, o ___ ____ concorda”.
P/1 e P/2 – (risos).
R – Essas eram as piadas dos casamenteiros judeus.
P/2 – Você, por acaso, lembra, só pra gente poder já entrar nessa parte da sua trajetória no Brasil, alguma história contada pelos seus avos, alguma história de tradição ou da sua família, ou da sua cidade?
R – Eu lembro de histórias... Morávamos em um quarto, era um pátio, tinha três ou quatro casas, tinham dois banheiros no fundo do pátio, um era do dono que tinha uma chave e outro servia as outras quatro ou cinco... No caminho para lá morava um judeu velho que tinha um bode, uma cabra, muito pobre e esse judeu simplesmente, contava histórias pra gente.
P/2 – Que histórias, você lembra?
R – Eram histórias de bandidos ou histórias de andando de uma aldeia pra outra, com um saco de farinha e os lobos atacando, então ele conseguiu se salvar jogando a farinha e os lobos comiam a farinha e ele conseguia escapar. Histórias desse tipo, que se conta da Europa Oriental, nada especificamente judaica. O que me lembro, é que lá tinha perto marceneiro, nós brincávamos com madeira pra fazer balanço, eu uma vez um toro de madeira me caiu aqui em cima, no dedo, está aqui o sinal até hoje, amassou. E esse velho judeu, simplesmente, me colocou em cima de uma teia de aranha, isso foi em 1932 ou 33, teia de aranha, e sarou, secou. Depois descobriu que a penicilina se arrumava no mofo dessas coisas, ele era uma pessoa interessante. Outra figura interessante era o limpador de chaminés.
P/2 – Conta para gente qual é sua lembrança desse limpador?
R – Esse limpador de chaminés me deixou traumatizado, eu sonhava com ele, quando eu fiz minha psicoterapia, agora recentemente, eu contava sonhos que eu tinha quando eu tinha nove anos de idade daquele limpador de chaminé porque ele andava sempre preto, vivia bêbado. Ele nunca me fez mal, mas era o vizinho que eu tinha medo dele, eu sonhava com ele, sonhava que ele me punha uma bola preta na boca e me asfixiava. Por que uma bola preta? Porque eles faziam as vassouras, como é que limpava a chaminé? Pegava a vassoura e na vassoura tinha um peso, era uma bola de metal desse tamanho, pesada, que ele amarrava duas, três bolas e descia pela chaminé, puxava a vassoura e assim que ele limpava a chaminé. Isso que me deixou impressionado.
P/2 – Essa era uma tarefa exercida por um judeu?
R – Não, podia ter sido um judeu, mas esse era um gói, outro gói que eu lembro mulher, que vinha todo sábado no inverno acender o fogo em casa. Como a gente não podia fazer fogo e no inverno, então tinha uma não judia que ela tinha uma profissão, ela vinha de casa em casa e acendia o fogo.
P/2 – Você lembra de algum personagem, se a gente pode chamar isso de personagem, da sua cidade... Uma vez eu ouvi um relato, de um tal carregador de água, mas isso...
R – O personagem que a gente mais lembra que tinha em toda cidade, era a louca da cidade, chamava _____, era a louca da cidade, eu conhecia ela, ela vivia sujinha em uma casa que tinha sido queimada, ela vivia lá no chão, um dia nasceu uma criança, ninguém sabe de quem, e eu já conhecia essa criança com uma moça já grande que ficou a vida inteira sentada no mesmo lugar, não se mexia, a mãe cuidava dela, a mãe ficava louca e tinha épocas de lucidez e dizem que ela ficou sentada tantos anos que ficou grudada, então a gente passava lá, atirava pedra pra dentro, xingava, gritava, os meninos gostavam de brincar, os não judeus, os góis, dizem que iam lá e mantinham relação com ela. Então, era a figura que toda cidade conhecia. Os aguadeiros eram pessoas, conheci dois, vizinhos, eram pessoas comuns, porque havia água de uma fonte perto da... Era perto, 500 metros, um quilometro, ele vinha carregando água e vendia, então havia dois tipos de agua que a gente vendia ou que o aguadeiro trazia ou tinha o aguadeiro já mais rico, que tinha um cavalo e uma carroça com um tonel, ele ia lá embaixo e enchia o tonel e subia a agua de casa em casa. Tem outra piada sobre o aguadeiro, vocês querem ouvir?
P/1 – Pode falar.
R – Havia uma cidade judaica chamada (Relem?), (Relem?) era uma cidade que ficou com uma fama de gente burra, como o português aqui no Brasil, então sabia que os judeus de (Relem?) são burros, então se conta a história de todos os judeus de (Relem?) tinham que resolver um problema, na véspera da pascoa, todo judeu precisa de vinho pra fazer a benção para os quatro ____, o que fazer? Metade dos judeus da cidade tinham dinheiro, outra metade eram pobres, como resolver o problema? Aí se reuniu a comissão da cidade e tiveram uma ideia brilhante, vamos pegar um aguadeiro que tem o tom de 2000 mil litros, ele vai de casa em casa dos ricos e cada um vai por um litro de vinho, depois ele percorre a casa dos judeus pobres, cada um vem lá, ele tira e dá um pra cada um, assim, ninguém fica envergonhado ninguém sabe quem recebeu de quem, uma ideia muito boa. O primeiro judeu que ele passou, o aguadeiro, disse: “Olha, são 2000 litros, se eu jogar um litro de água que diferença vai fazer no vinho?”, a mesma ideia tiveram todos os judeus ricos, é claro, os outros beberam água. Me lembrei da piada por causa da água.
P/1 – Bom, a chegada ao Brasil, quando o senhor imigrou para o Brasil?
R – Bem, a chegada no Brasil, saí de lá em maio.
P/1 – O senhor saiu de onde?
R - ___ ____, então a única coisa que eu lembro é que meu professor, de toda a escola, me chamou para a casa dele e me deu o boletim, como se eu tivesse terminado o quarto ano do grupo escolar, não tinha terminado ainda o ano, porque o ano terminava um mês mais tarde, em junho, porque as férias lá são julho e agosto. Mas no mês de maio, ele me deu o boletim assinado, carimbado, como se tivesse terminado os quatro anos de grupo escolar. Todas as notas cinco, cinco era o máximo, ____ ___ muito bem, se despediu, etc. Mas da viagem...
P/2 – Mas por que vocês vieram para o Brasil?
R – Simplesmente, as condições econômicas ficaram cada vez mais difíceis. Um tio meu, irmão da minha mãe já tinha vindo ao Brasil antes, ele fez uma carta de chamada, chamou meu pai, meu pai veio aqui em 29, começou trabalhar como _____, como mascate.
P/1 – Onde? Em São Paulo?
R – Em São Paulo. Ele mandava dinheiro para a gente, todo mês um pouco de dólares, só deixou de mandar na Revolução de 30, 32, nós passamos dificuldades porque não tinha o... Mas ele quando juntou dinheiro para poder comprar todas as passagens, ele mandou as passagens e viemos para cá em 34.
P/1 – Veio toda a família?
R – Toda a família, nós vivíamos, praticamente, do dinheiro que meu pai mandava daqui para lá.
P/2 – Você como uma criança, na época, de doze anos, você tinha a consciência do que estava acontecendo?
R – Eu tinha consciência, eu tinha consciência perfeita que minha mãe tinha alguns sábados, ela tinha dificuldade em arranjar uma comida boa para gente, uma tia que estava melhor de vida, ela tinha uma mercearia, minha mãe emprestava, etc. Eu tenho a consciência perfeita da minha mãe tendo dificuldades em preparar o sábado para gente. Ao mesmo tempo, eu lembro da minha mãe, quando no meio da semana, minha mãe vestia a roupa de sábado, para sair com uma outra senhora, ela ia na cidade pra arrumar dinheiro para outro que era mais pobre que a gente, era alguém que estava necessitado, porque nós éramos pobres, mas a gente tinha, meu pai mandava dinheiro. Então sempre havia alguém que estava muito mal, então elas iam de casa em casa arrumar dinheiro para outra pessoa.
P/2 – Nessa sua cidadezinha tinham instituições judaicas?
R – Tinha, tinha instituição _____ ____ que ajudava os doentes, a maioria das instituições eram religiosas, ligadas ao ensino. Eu lembro meus primos, um deles era o presidente dos ultra ortodoxos, havia também partidos não religiosos, partidos de esquerdistas, acionistas de esquerda, de direita, havia todos os partidos. Eu até lembro de eleições, onde eu cheguei a pegar a letra G ____, que era a letra dos ultra ortodoxos, então meu primo me dava e “Olha, você vai...”
P/2 – (risos) Então quer dizer, quando sua família veio para o Brasil, vocês estavam realmente fugindo de problemas econômicos?
R – Não, meu pai veio para cá para poder nos trazer depois. Uma coisa interessante que talvez seja lembrar, que antes da nossa partida da Polônia para cá, o diretor da escola religiosa onde eu estudava, chamou minha mãe e propôs para ela “Olha, seu marido está lá no Brasil, Brasil é uma terra que não é religiosa, mas você tem obrigação de ir com o marido onde ele está com os filhos, mas deixa o Fiszel conosco aqui, nós vamos cuidar do ensino dele, ele vai ser...”, eles acharam que eu ia ser um bom aluno, da _____ e me tornar rabino. Sorte minha a minha mãe não concordou, você imagina, eu sai da Polônia cinco anos antes da Guerra.
P/1 – Muita sorte! E o que que se ouvia falar do Brasil? Sem ser as notícias que eu seu pai mandava?
R – Do Brasil a única coisa que eu ouvia falar, o primeiro cartão postal que veio daqui era um cartão postal onde aparecia o prédio Martinelli, era toda a cidade, em cima o prédio Martinelli, eu peguei aquele negócio e contei para todos os meus amigos. “Olha, o prédio que tem na cidade onde eu vou morar”, e o outro sonho meu era de que no Brasil tinha laranjas, na Polônia não tinham laranjas, só se comprava laranjas quando a gente ficava doente, então ia lá na mercearia especializada, e meu pai escreveu que aqui se comprava cestas de laranja, eu contei para todo mundo “Olha, lá onde eu vou no Brasil, eu vou ter assim”, meu sonho era um laranjal, deitado, pegar uma escada, subir e tirar uma laranja.
P/1 – Por que o pai do senhor escolheu o Brasil?
R – Escolheu o Brasil porque o cunhado dele, irmão da minha mãe, estava no Brasil, ele que mandou chama-lo para cá. Não havia uma razão específica, se o irmão da minha mãe tivesse ido pro Canadá, ele teria ido para o Canadá. Da viagem...
P/1 – Como vocês saíram do país?
R – Primeira vez da vida que eu subi em um ônibus, foi aos 11 anos de idade, nunca tinha saído da minha cidade, nunca tinha ido em um ônibus, peguei um ônibus até uma cidade próxima pra carimbar o passaporte, de lá nós fomos para uma outra cidade, um outro ônibus, até Varsóvia, em Varsóvia se reuniu todos os imigrantes do grupo que ia nesse navio, tomamos um trem em Varsóvia, o mesmo trem, o mesmo vagão, de dia, de noite até Paris.
P/2 – Puxa, quantos dias demorou essa viagem?
R – Não, essa viagem de Varsóvia até Paris acho que era uma noite, dois dias, ou duas noites, um negócio assim. Era Polônia, Alemanha, Bélgica, França... E de Paris nós fomos levados para um restaurante, de lá para o _____ onde nós embarcamos no navio.
P/2 – Você lembra o nome do navio?
R – Jamaica o navio, e o porto primeiro que nós paramos foi em Salvador, o navio não encostou, o navio ficava lá, eu lembro que tinham barcos com a laranja bahia, aquela laranja mulata que hoje quase não tem quase, e minha mãe jogava uma moeda, numa cesta, eles baixavam a cesta, enchiam a cesta de laranja e puxavam para cima. Isso foi a grande decepção da minha vida, para mim laranja, eu tinha visto uma laranja, meu tio veio de Viena nos visitar, trouxe laranjas, mas essa laranja do Brasil, era preta, era mulata, escura. Vocês lembram? Vocês conheceram essa laranja? Hoje, quase não tem, uma decepção... A laranja que eu conhecia era tipo mexerica, você descava, e essa aqui não dava para descascar, tinha que cortar, foi a primeira decepção que tive no Brasil.
P/1 – Essa no fundo foi sua primeira impressão do Brasil, né?
R – A outra impressão foi quando o navio parou no Rio de Janeiro, nós éramos crianças, minha mãe tinha que cuidar de cinco e nós ficamos o dia inteiro na praça Mauá olhando, em frente tinha o prédio da noite, vocês estão lembradas?
P/1 – Sim.
R – Nós ficamos todos em um tanque de roupa que tinha no navio para gente não... Sabe? Todo mundo desceu no Rio para passear, minha mãe ficou no navio, claro, ficamos lá olhando, depois nos avisaram “quando o navio sair de noite, não deixem de olhar para cá é a baía do Rio de Janeiro, é fantástico” e na manhã seguinte, chegamos à Santos, subimos de trem para São Paulo, chegamos em São Paulo no dia seguinte, meu pai e minha mãe foram de novo para Santos, para trazer a bagagem do... Porque na cabine só tinha bagagem de mão.
P/1 – O que sua mãe trouxe com ela para cada colônia? O que tinha?
R – Duas coisas ela levou para o navio, primeiro ela levou comida, ela não ia comer a comida do navio.
P/1 - Ela é kasher?
R – Era kasher, então ela ficou preparando uns biscoitos salgados de cebola e papoula, ele fica bom...
P/1 – Papoula?
R – Papoula, na época era gostoso. E são biscoitos que você podia aguentar uma semana, um mês, então levou esses biscoitos, o pão devia ser lá do navio, e a comida nossa ela levou salame kasher, salame não estragava, está certo? Então, o que ela fazia? Pedia cebola lá na cozinha, óleo e comia cebola, óleo e pão com salame, eu lembro dessa comida. Para nós, crianças até os treze não peca ainda, quer dizer, ela tentou que a gente comesse, mas eu não conseguia engolir a outra comida. Sabe? Aquele cheiro, dava impressão de que a comida não kasher era um troço... Ficou forte em mim, depois acabou, claro, depois acabou de uma vez (risos).
P/1 – Agora, coisas materiais, ela trouxe o que?
R – Material ela trouxe pouca coisa porque não tinha, ela trouxe dois castiçais, ela comprou perto da minha cidade, uma grande cidade que era o centro têxtil da Polônia, ela comprou cobertores de... Como é que chama? Não é veludo, é uma espécie de veludo, que era uma especialidade da Polônia, que a gente ficou até recentemente com uma delas.
P/1 – Uma camurça?
R – Não é camurça, era... ____ em hebraico, como diz isso em português, plush, era plush, na nossa língua, se diz plush também... Nós pegamos uma que ainda ficou, nós cortamos em pedaços e dividimos entre nós, fizemos travesseiros pequenos que tem até hoje.
P/1 – Até hoje vocês tem?
R – Tem.
P/1 – E os travesseiros com pena de ganso não foram trazidos?
R – Ah, sim, também trouxe. Trouxe penas de ganso e as cobertas, só. Que eu me lembro o que mais me impressionou é que as camas que a gente morava aqui, eram... Vocês lembram de cama patente? Era cama... Ninguém de vocês lembram? Vocês não lembram? Cama patente eram camas arredondadas, era de madeira maciça, eu fiquei assim, na Polônia o que eu tinha era simplesmente um estrado, palha e em cima da palha um pano, né?
P/1 – Qual era o bairro que vocês moraram?
R – Aqui em São Paulo era o Bom Retiro, Rua Guarani, morei na Rua Guarani quando eu vim de Santos, desci depois pra Guarani em outra casa, mas morávamos lá até eu ficar, acho que tinha uns 10 anos, mais de dez anos que moramos no Bom Retiro. Agora você quer saber mais do Brasil? Até agora eu já estou com 11 anos de idade, como tenho 68 agora, quer dizer, lá se vai...
P/1 – Havia alguma organização especifica para receber os imigrantes? Para ajudar?
R – Haver, havia, mas não era o nosso caso porque nós fomos recebidos pelo meu pai, os amigos dele, todo mundo veio para Santos receber, mas os primeiros imigrantes que vieram antes do meu pai havia a organização Ezra, era uma organização que ajudava trazer os imigrantes, inclusive, eu lhe contei que eu encontrei o pedido do meu pai na Ezra para nos trazer, que era a Ezra que preparava os papéis.
P/2 – Foi através da Ezra que ele conseguiu esse pedido de chamado de vocês?
R – Isso, exatamente. Mas aqui quando nós viemos meu pai já tinha alugado uma casa, já tinha mobiliado a casa.
P/1 – Já estava tudo preparado?
R – Uma maravilha, eu saí de um quarto em seis e entrei numa casa na Rua Guarani onde tinha...
P/1 – O seu pai trabalhava como mascate, mas ele já tinha feito uma certa reserva de dinheiro?
R – Muito pequena, ele ganhou o suficiente para pagar a entrada das passagens, ele não pagou toda passagem, quando nós viemos ele ainda pagou as prestações das passagens.
P/2 – Vocês entraram logo em escolas brasileiras?
R – Nós entramos na escola judaica que ensinava português, quer dizer, era Talmud Thora, ele tinha seu currículo normal, professoras brasileiras, professora Cecília, professora Linda, e aí eu... Meu pai não nos preparou, eu com 11 anos entrei na primeira série, se tivesse me preparado, uns dois, três meses, eu já tinha feito quatro na Polônia, então praticamente entrei na primeira série, mas aí a escola havia a segunda, e a terceira série, a mesma professora, tinha duas classes, até era segunda, depois a terceira. Ela dava um problema para o terceiro e outro para o segundo, ensinava para as duas séries, um dia ela deu um problema de aritmética para o terceiro, eu já tinha adiantado, tinha feito quatro anos, eu fiz o negócio, um amigo meu lá chamou “professora, olha o Fizser”, ninguém tinha acertado, era negócio de tanque de água, entra tanta água tals, todo mundo conhece esse tipo de problema, né? Nenhum do terceiro tinha feito, aí eu na segunda tinha feito, aí a professora “Fizser, vai para esse lado”.
P/1 – Então, o senhor passou de ano?
R – Eu do primeiro passei pro terceiro.
P/1 – Automaticamente (risos)
P/2 – A maioria dos seus colegas eram filhos de imigrantes de que nacionalidade na escola Talmud Thora?
R – Eu tenho impressão de que eram da redondeza lá do meu pai, de outras cidades, mas perto. Inclusive, alguns da minha cidade, de uma cidade vizinha onde morava meu tio, tinha uma colônia maior aqui, era Rua Prates, era a rua dos judeus, hoje já tem coreano, italiano, mas quando eu vim não havia uma casa na Rua Prates que não fosse de judeus, com uma única exceção, duas que eram de portugueses que moravam lá.
P/2 – Não, mas eu estou dizendo dentro da sua turma, por exemplo, vocês eram na sua maioria filho de poloneses?
R – A maioria era da Polônia, na minha turma era da Polônia a maioria, que eu me lembro disso, os amigos meus eram de uma cidade vizinha, um era da Lituânia... E aí nós passamos, vamos dizer, a infância igual a todo mundo, tínhamos mais horas de aula.
P/2 – Você aprendeu rápido o português?
R – Sim, foi rápido. O grande problema é que eu me formei com 14 anos, em vez de me formar com 11 porque lá naquela época eram quatro anos, daí fui me matricular no ginásio com 15 anos, eu estava em dúvida porque no ginásio do Estado se estudava no sábado, meu pai não queria que eu estudasse sábado, mas aí eu encontrei o inspetor da escola, ele me encontrou na rua, “, você não vai estudar?”, “Não, meu pai não quer que eu estude sábado”, ele disse: “Não, eu tenho uma escola que você pode faltar sábado”, era o Instituto de Ciências e Letras, onde era a antiga Beneficência Portuguesa perto da Casper Libero, a antiga lá na Rua da... Rua da Conceição, perto da Santa Efigênia, aí o inspetor deu um papelzinho pro diretor da escola.
P/1 – E aí todo sábado você estava liberado, né?
R – Eu estava liberado, como era escola particular, sabe, e eu era bom aluno, estava adiantado em anos, então, eu não paguei um tostão em cinco anos de escola, eu sempre tirava a primeira nota e o diretor me dava matrícula gratuita, professor (Pulcaro?) era o diretor da escola.
P/2 – Mas aqui no Brasil, o seu pai e sua mãe continuaram seguindo todas as tradições judaicas da Polônia?
R – Todas.
P/2 – Mas ainda exigiam, por exemplo, dos filhos, eles não permitiam que vocês não estudassem aos sábados, era possível isso aqui no Rio de Janeiro?
R – Veja bem, meu pai não gostava, mas eu comecei... Até os 13, eu seguia tudo 100%, ia toda manhã rezar, mas aos 14, 15 eu comecei me liberar, primeira vez que eu pequei foi... Cometi dois pecados, eu quebrei o jejum e quebrei o jejum com um pastel de carne (risos). Porque eu achava o seguinte, que a gente aprendia que Deus vê tudo, não adianta você se esconder, Deus está em toda parte, castiga, mas depois eu via gente que fazia pecado e não era castigado, eu comecei a colocar em dúvida essa história de castigo, etc.
P/1 – E os seus irmãos também?
R – Meus irmãos também. Nós respeitamos, vamos dizer, meu pai, todo sábado eu ia com meu pai na sinagoga até uma certa idade, depois não ia mais.
P/2 – Qual era sinagoga? Qual era sinagoga aqui em São Paulo?
R – Era uma sinagoga pequena na Rua Prates 105, número 105, número antigo, hoje deve ser número 700, 800. Era uma casa particular, onde tinha uma pensão kasher, e lá se reuniam judeus para rezar, eram judeus de duas cidades, do meu pai e do meu tio, eram gente do mesmo lugar e queriam rezar juntos, né? Então, eu nesta época, comecei a duvidar um pouco da...
P/1 – O que o senhor acha da manutenção desses costumes?
R – Veja bem, eu dou muito valor a tradição judaica, a identidade judaica, mas o mundo evoluiu, hoje em dia, vamos dizer, o número de porcentagem de judeus que aceita a religião no sentido ortodoxo, no mundo todo não deve ser mais que 10%, agora há judeus ortodoxos, há judeus que eles pertenceram a nação judaica, orgulho da tradição da tradição judaica, da história judaica e se sente judeu. Se ele não se sente muito judeu, os não judeus o fazem sentir, de qualquer jeito, não aqui, nesse caso, mas os não judeus faziam sempre... Eram um dos fatores mais fortes para os judeus se sentirem judeus, os não judeus faziam sempre lembrar.
P/2 – E como é que foi sua vida depois, você chegou a fazer universidade aqui em São Paulo?
R – Eu me formei no ginásio, fiz o colégio Anglo Latino, eu fazia de noite, o curso noturno muito cansativo porque durante o dia eu trabalhava em uma lapidação de brilhantes.
P/1 – Com quem? Quem era o dono?
R – Hoje é na Rua 24 de maio, os dois donos já faleceram, o terceiro chefe está vivo, seu Charles _____, ele me ensinou a cortar o brilhante, a serrar o brilhante, entrava as sete, ia até às cinco, seis e ia para casa depressa para ir na aula. Eu lembro que na terceira aula, eu já estava dormindo, não aguentava. Portanto, fui fazer vestibular e não passei. Foi em 1944.
P/1 – Para o que o senhor prestou vestibular?
R – A faculdade que prestei era Química, eu gostei do professor de Química, era o professor Simon _____, era uma figura conhecida que morreu faz pouco tempo, do Anglo Latino, ele foi um dos criadores do Anglo Latino, gostava muito de Química. Eu sabia que não ia passar porque não me preparei, foi assim só para aprender.
P/1 – Foi uma grande decepção.
R – Mas aí nas férias me ofereceram o trabalho de secretário no centro ____ brasileiro, para secretariar profissionalmente, e que me falaram que era meio dia, eu achei ótimo, trabalho meio dia, vou me preparar, mas aí o meio dia se transformou em dia, noite, domingo, eu fui de 44 até 47, eu fui um profissional de instituições judaicas, no centro ___ brasileiro, federações (rabit?), fui o primeiro secretário da federação (rabit?) do Estado de São Paulo. Em 47, se organizou um curso de (Madre Himnos?), curso de monitores, que é feito em Israel durante um ano. Eu fui nesse curso, éramos em dez do Brasil, então passei o ano de 48 todinho em Israel, eu cheguei em Israel, com passaporte polonês, com visto do consulado em inglês de São Paulo.
P/1 – Isso em 47? Um ano antes da fundação do estado de Israel?
R – Não, foi fim de 47, já era depois que a ONU, em novembro, tinha proclamado a divisão da palestina em dois estados, não havia ainda, era uma resolução da ONU, mas os ingleses ficaram até o dia 15 de maio em Israel. Nós saímos no dia 31 de dezembro, 31 de janeiro de 48, em 2 de fevereiro, meu aniversario foi na saída do Rio de Janeiro e chegamos em Israel, fizemos um passeio na Itália muito interessante, que o navio que ia nos levar de Genova para Israel, tinha começado a Guerra lá, não a Guerra oficial, mas ataques de terroristas, o navio italiano que ia partir, que ia nos levar não partiu de Genova, nós íamos partir no seguinte três semanas depois, aí ficamos três semanas passeando na Itália, foi maravilhoso, aí nós subimos no navio, no mesmo navio, no outro porto italiano subiram os guerrilheiros chetniks, chetniks eram os croatas nazistas, eles iam ser voluntários no exército dos árabes que iam nos atacar, eu sei que passei um pouco de medo com a turma lá no navio, o nosso navio parou em Alexandria, em Alexandria subiram 200, 300 universitários egípcios que ao polígono para atacar, haviam exército de voluntários árabes _____, no Libano, na Síria, nós passamos com eles um dia inteiro, de uma sexta feira, de noite o navio chegou tarde pra _____ e o capitão disse: “Nós vamos pra Beirut e amanhã a gente volta do Beirut pra ____), mas aí houve intervenção da agência judaica porque tinha sido morto um judeu em um judeu no navio italiano ou francês em Beirut, uma semana antes. Aí eles seguraram o navio em ____, então em uma sexta feira, dia 12 de março de 48, nós passamos a noite olhando para a cidade de ______ que é uma coisa maravilhosa vendo o mar, lindo o negócio, fiz a turma descer as cabines se fechar porque em cima tinha os chekits, e tinham os árabes, e no sábado nós descemos com guardar, a nossa guarda, nós fomos do porto ao meio da cidade nós fomos em um carro blindado. Passamos no bairro árabe ____, aí depois...
P/1 – Você chegou a fazer o curso? Trabalhou com Madrehim?
R – Sim, fizemos um curso de Madrehim.
P/1 – Você passou um ano? O ano da formação do Estado em 48?
R – O ano mais interessante da minha vida, assisti a proclamação do estado, assisti o juramento do exercito de Israel, não cheguei a participar da Guerra, mas aprendemos nos defender, mas não cheguei a tomar parte na Guerra, nós estudávamos hebraico, trabalhávamos em _____ e voltamos em maio de 1949 para cá. Eu continuei minha vida profissional na vida judaica, fui secretário da federação Israelita, depois fui secretário do consulado de Israel, em 56, quando abriu o consulado. Depois casei, entrei...
P/1 – Como é o nome da sua esposa?
R – Rosa.
P/1 – E o nome de solteira dela?
R – Rosa K, o, m.
P/1 - E hoje qual é sua profissão?
R – Hoje a minha profissão é diretor de uma empresa imobiliária, construtora, é isso, estou próximo de me aposentar, merecidamente.
P/1 – O que você acha do Brasil, da escolha de seu pai? Você acha que foi uma boa escolha?
R – Eu acho do Brasil, a mesma coisa que vocês acham, não precisa nem perguntar, eu acho que está em uma situação difícil, complicada, por culpa do Napoleão Bonaparte, sabe? Por quê? Porque o Napoleão Bonaparte (impediu?) ___ ibérica, obrigou Dom João VI deixar Portugal e vir para cá, Dom João VI veio com cinco, seis navios, trouxe toda a corte com ele, chegaram no Rio tinha que dar emprego para todo mundo, então ele criou cartórios, etc, desde aquela vez que o brasileiro ficou com essa ânsia cartorial, né?
P/1 – Pra gente finalizar, você acha que o fato de você ser polonês, você até hoje, mantém certas tradições, você acha que muita coisa da sua educação polonesa ainda está muito arraigada na sua vida?
R – A minha educação na Polônia era uma educação judaica, eu vivi do dia do meu nascimento até os 11 anos eu não sai de Stopnica, em Stopnica, eu era a maioria, os judeus eram 90% da população, então eu não conheci, quer dizer, conhecia os poloneses, o desfile de 3 de maio, que era o dia nacional da Polônia, a escola era polonesa, mas a minha vida, o meu cotidiano era judeu, meus amigos eram judeus, a língua era iídiche, eu falava polonês, mas depois de um ano ou dois, não sei mais.
P/1 – Mas hoje, seus filhos por exemplo, eles têm uma educação praticamente totalmente brasileira?
R – Sim, totalmente brasileira, minhas filhas fizeram tudo em escola judaica, mas a maioria dos judeus [fizeram], elas são brasileiras, nasceram no Brasil, viveram quatro anos em Israel, houve um período em que eu migrei para Israel e voltei para cá. Nós vivemos em Israel de 64 até 69.
P/1 – Você foi a trabalho?
R – Eu fui abrir uma firma, não deu certo, voltamos. Minhas filhas são brasileiras, mas tem muito forte em si o judaísmo delas, o pertencer ao povo judeu nelas é como eu gostaria que todo mundo fosse, elas são judias conscientes e são ótimas brasileiras.
P/1 – E da Polônia o senhor tem saudades?
R – Não, eu tinha vontade de voltar para ver, mas aí me contaram que a minha cidade não existe, não existe, não existe, desapareceu.
P/2 – Mas como? Por quê?
R – Houve uma batalha lá perto entre os russos e alemães e simplesmente passaram tanques em cima, depois passaram tratores e a cidade desapareceu. Eu tinha curiosidade de ir, depois eu achei que ia...
P/1 – Você nunca mais voltou para Polônia?
R – Nunca mais.
P/1 – Nem tem vontade?
R – Eu teria vontade, mas o fato de eu não saber polonês, tem uma historia de uma prima que foi, a filha de uma prima, que minha prima quando fugiu pro campo de concentração deixou a criança na porta da igreja e foi salva, foi criada como não judia por uma família cristã, nós descobrimos ela agora recentemente, a gente se escreve, uma coisa assim, coisa de cinema, não? Mas tinha vontade de ir, uma prima minha foi lá ver, uma prima de Israel, mas ela só fala polonês.
P/1 – Você esqueceu o polonês?
R – Completamente. Eu tenho uma _____ diz em hebraico, tenho uma reação contra, alguma coisa com a Polônia.
P/1 – Está bom.
R – Muito obrigada!
P/1 – Senhor , muito obrigada ao senhor.
P/2 – A sua contribuição ao Museu da Pessoa.
R – Eu espero uma cópia, tá bom?
Recolher