Ponto de Cultura: Museu Aberto
Depoimento de: Cássia Navas Alves de Castro
Entrevistada por: Claudia Leonor e Simone Alcântara
São Paulo, 12 de novembro de 2009
Realização Instituto Museu da Pessoa
Entrevista nº PC_MA_HV_205
Transcrita por Rodrigo Fonseca
Revisado por Fernanda Regina Ferreira dos Santos
P/1 – Cássia, pra começar a nossa entrevista, pedirei pra você falar o seu nome completo, o local e a data de nascimento.
R – Meu nome completo é Cássia Navas Alves de Castro, eu nasci em São Paulo capital, no dia 2 de julho de 1959.
P/1 – E o nome dos seus pais e a profissão deles?
R – Meu pai se chama Terto Alves de Castro, ele é advogado, e a minha mãe é Gilda Navas Alves de Castro, ela é professora especializada em latim. Minha mãe deu aulas de latim, durante muito tempo e português.
P/1 – Você estava falando que você tem uma origem da Bahia? E espanhola?
R – Eu tenho uma origem bastante brasileira, misturada. Eu tenho dois avós nascidos na Espanha - que são os pais da minha mãe - mais precisamente numa cidadezinha que se chama Barraco, que fica perto de Ávila, próximo de Madri, mas já não é a grande Madrid. Uma avó que é filha de espanhóis, mas nasceu em Ribeirão Preto, de outra região da Espanha, ela é mais pra baixo, Talavera de la Reina. Um avô que é do interior da Bahia, de Santa Maria da Vitória, que casou com essa minha avó descendente de espanhóis. Então, eu sou três quartos espanhola e um quarto brasileira, porque na família desse meu avô tem as três raças, as quais a gente denomina as raças formadoras da nossa brasilidade.
P/1 – E assim como você reconhece esse lado espanhol no seu dia a dia, na sua família, como é?
R – Olha, na minha família, particularmente no contato com as minhas tias - são mulheres muito longevas do lado da minha mãe; do lado do meu pai já não são tanto, tão longevas... Às vezes, eu me sinto no filme do Almodóvar. Então, isso eu vim descobrindo ao...
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Depoimento de: Cássia Navas Alves de Castro
Entrevistada por: Claudia Leonor e Simone Alcântara
São Paulo, 12 de novembro de 2009
Realização Instituto Museu da Pessoa
Entrevista nº PC_MA_HV_205
Transcrita por Rodrigo Fonseca
Revisado por Fernanda Regina Ferreira dos Santos
P/1 – Cássia, pra começar a nossa entrevista, pedirei pra você falar o seu nome completo, o local e a data de nascimento.
R – Meu nome completo é Cássia Navas Alves de Castro, eu nasci em São Paulo capital, no dia 2 de julho de 1959.
P/1 – E o nome dos seus pais e a profissão deles?
R – Meu pai se chama Terto Alves de Castro, ele é advogado, e a minha mãe é Gilda Navas Alves de Castro, ela é professora especializada em latim. Minha mãe deu aulas de latim, durante muito tempo e português.
P/1 – Você estava falando que você tem uma origem da Bahia? E espanhola?
R – Eu tenho uma origem bastante brasileira, misturada. Eu tenho dois avós nascidos na Espanha - que são os pais da minha mãe - mais precisamente numa cidadezinha que se chama Barraco, que fica perto de Ávila, próximo de Madri, mas já não é a grande Madrid. Uma avó que é filha de espanhóis, mas nasceu em Ribeirão Preto, de outra região da Espanha, ela é mais pra baixo, Talavera de la Reina. Um avô que é do interior da Bahia, de Santa Maria da Vitória, que casou com essa minha avó descendente de espanhóis. Então, eu sou três quartos espanhola e um quarto brasileira, porque na família desse meu avô tem as três raças, as quais a gente denomina as raças formadoras da nossa brasilidade.
P/1 – E assim como você reconhece esse lado espanhol no seu dia a dia, na sua família, como é?
R – Olha, na minha família, particularmente no contato com as minhas tias - são mulheres muito longevas do lado da minha mãe; do lado do meu pai já não são tanto, tão longevas... Às vezes, eu me sinto no filme do Almodóvar. Então, isso eu vim descobrindo ao longo do tempo, e depois do Almodóvar, evidentemente, porque eu convivi com a minha bisavó, a mãe da minha avó, convivi durante quase 100 anos com a mãe da minha mãe, a avó Teodora, com as minhas tias e com a dinâmica familiar. Então, tem falas da minha bisavó que eu reconheço em filmes do Almodóvar. Eu fui criada em espanhol e em português, dentro de casa; praticamente. A gente não fala espanhol, essa geração, mas se entende perfeitamente. Quando eu fui morar na Espanha - morei na Espanha durante um ano, um ano e pouco - eu cheguei e as pessoas pensavam que eu sabia falar espanhol. Na verdade, eu tinha aprendido espanhol, eu fui estudar gramática, mas durante pouco tempo, e eu sabia falar espanhol, sabia escrever espanhol. Então... Que dizem que é uma língua muito parecida com o português, mas não é tanto, Então, digamos assim que a minha família está mais pra Almodóvar [Pedro Almodóvar] e Grande Sertão Veredas do que pra Fellini [Federico Fellini], porque o meu avô é de uma região muito próxima do norte de Minas Gerais. Ele foi escritor, Osório Alves de Castro, pai do meu pai, ganhou um prêmio Jabuti por uma de suas obras, que se chama Porto Calendário, ele se correspondia com o autor do Grande Sertão Veredas, o Guimarães Rosa. E tem proximidade entre as literaturas e as regiões, então, é Almodóvar e Grande Sertão Veredas.
P/1 – E o jeito das mulheres assim? Como você descreveria essas Navas?
R – As Navas, da onde eu puxei o meu sobrenome, porque vem dessa época que eu morei na Espanha, porque lá o primeiro nome, que é o nome paterno, está colado no nome. Então, você perde quando você casa os últimos sobrenomes, todo mundo me chamava de Cássia Navas, Cássia Navas e veio pro Brasil e foi [tirado]. Na época, eu não pensei nisso, mas a família do meu pai, que é uma família muito afirmativa e muito orgulhosa do sobrenome, aliás, todas as famílias são e é assim que deve ser, achou um pouco estranho eu ter perdido o Alves de Castro; ainda que nos documentos oficiais eu assine - e ainda sou - Cássia Navas Alves de Castro. Mas eu achei, primeiro, o nome muito sonoro e eu vivi muito ligada durante mais tempo com essa parte da família, do que com a mulherada da parte do meu pai, que são muitas espanholas também. Tem uma coisa nas mulheres espanholas, tanto do lado da minha mãe, quanto do lado do meu pai, elas são muito rápidas, muito inteligentes e tem aquele acento no final. O Brasil tem um acento corporal e rítmico no meio. A Espanha é no um e no três; nós somos no dois, Então, assim, tá tá tá, quando você vê acabou. Tem brigas homéricas, mas acaba. E eu também só aprendi isso quando eu fui morar na Espanha. Era aquela brigalhada na rua e, de repente: “Bom, então, até logo.” Eu falava: “Mas como? Vai acabar assim essa briga? Não vai acontecer nada?”. Porque aqui tem sempre aquela coisa dos fluídos, do um, dois, três, um, dois, três. Lá é: um, dois, três, acaba. Aqui é o taconeio [sapateado espanhol]. Então, elas têm em comum essas coisas. Diferentemente, as minhas tias por parte de pai são muito inteligentes. Tem uma inteligência verbal muito rápida e muito fluída. As minhas tias por parte de mãe, e a minha mãe, são o afeto, as histórias, porque elas são todas professoras. A minha mãe, as Navas, e as minhas tias, fundaram um ensino municipal aqui na cidade de São Paulo. Não somente elas, várias professoras. Só tinha o estadual e o prefeito, que eu não me lembro do nome, resolveu fundar o ensino municipal e elas são dessa primeira leva. Elas e suas colegas davam aulas em igrejas, em quadra de escola de samba... Minha mãe deu muita aula em igreja e ela conta até hoje que os alunos sentavam ali onde a gente ajoelha pra rezar - que eu não sei falar essa palavra que é super complicada, genuflexório - e escreviam nos bancos. E sempre que a minha filha senta, assim, eu me lembro da história da minha mãe, que dava aula do lado contrário da igreja. Ao invés do altar ela dava aula pra lá. Eram todas as igrejas de madeira, então, tem toda uma história com as crianças e com a história da educação muito forte por parte da família da minha mãe. Agora, digamos, o traço é Almodóvar, é aquela coisa no sense, aquela coisa dramática, aquela coisa impulsiva de dizer coisas, por exemplo, minha mãe esse final de semana passou na minha casa, estavam os nossos carros lá em frente, ela tocou a campainha e ninguém abriu: “Saímos de táxi”. Ela ligou e falou: “Pensei que todo mundo tinha morrido.” Falei: “Mãe!”. É Almodóvar. “Como assim?! Pensou que todo mundo tinha morrido?!” Mas, enfim, eu devo ser um pouco assim também, apesar de não estar tão acostumada, tem uma coisa mais exacerbada. Agora, tem uma coisa do afeto e do meu avô paterno, que eu não conheci, a família do meu avô paterno não tem muitas mulheres, tem homens. Aí foi a história de outro tipo de ligação. Meu avô foi um dos fundadores do Partido Comunista no Estado de São Paulo, no interior. Durante a minha infância, eu vivi o começo da ditadura meio que escondida com o meu pai num sítio; não assim o tempo todo, mas tinha uma certa... Não que a gente foi morar lá, mas não era uma coisa muito fácil: ele perdeu o emprego, meu avô foi preso, novamente, e ele, nessa época, já era um escritor famoso e os policiais eram da cidade de Marília e não queriam prende-lo porque ele era uma celebridade; tinha ganhado o prêmio Jabuti, etc. etc. E aí tiveram que prender. Então, eu me lembro dele contando pra gente: “Pode vir, pode vir. Eu sei que vocês tem que me prender.” Porque era uma cidade micro, nessa época.
P/1 – Todo mundo se conhece.
R – Todo mundo se conhece. Ele sabia o que iria acontecer e a minha avó tinha uma grande revolta por isso, porque ela que segurou, durante muitos anos, a história da família que era muito extensa, e ele era escritor, mas pra ganhar a vida era alfaiate. Então, a minha avó teve que virar alfaiate junto com ele, porque ele ia pra cadeia e ela costurava, cuidava de uma família de cinco pessoas, que não é fácil, a gente sabe. E meu avô tinha uma coisa muito interessante, que eu tenho até hoje: nas etiquetas da alfaiataria, ele colocava poemas. Era muito gozado porque ele gostava muito de um trecho do poema do d'Annunzio [Gabriele d'Annunzio], que é um escritor, um poeta italiano, digamos assim, mais ligado com o conservadorismo, e os amigos dele comunistas falavam: “Mas você bota isso?” “Não, mas é arte.” Então, ele era um artista dentro do Partido Comunista. E como é que era isso... Mas é em italiano mesmo, esse poema, era: Tudo foi feito / Tudo foi tentado / O que eu não consegui fazer / Eu sonhei.
P/1 – Nossa, que lindo!
R – Lindo, né? E essas etiquetas foram as que sobraram dos ternos que o meu avô fazia; a gente tem várias. Nós chamávamos de Alfataria Rex, quer dizer, uma coisa bastante prosaica, numa cidade muito pequena. Minhas tias por parte de pai sofreram muito por causa dessa questão ambígua, que é ser filha de um artista comunista numa cidade tão pequena.
P/1 – Com certeza. E você falou que você passou grandes períodos, também numa fazenda, mas você cresceu em São Paulo? Como é que foi a sua infância?
R – A minha infância foi completamente urbana. Nós tínhamos um sítio - temos ainda - em Mairiporã, não é uma fazenda, mas pra mim, com sete, oito anos, era uma coisa de louco. E eu me lembro... Na verdade, não é que a gente passava tempos lá... No período da ditadura teve um determinado momento, quando começaram a ser feitas as prisões, que eu me lembro, não de ter ficado períodos, mas de ouvir o rádio no sitio - rádio a pilha porque não tinha luz - das prisões, porque davam as listas das pessoas que estavam sendo... E minha mãe falava: “O seu pai não está aqui porque ele está em outro lugar”. Não é que eu estava escondida com o meu pai... Eu me lembro desse sítio... Eu me lembro da ditadura nesse sítio. A vida nossa continuou normal. É que o meu pai era advogado do Sindicato dos Arrumadores, que são os estivadores no porto de Santos; ele era da construção civil, então, ele estava ligado a certas estruturas, digamos assim, visadas. Então, não é que ele ficou com a gente escondido no sítio e nós tivemos que fugir; não, não é isso! É que ele estava afastado e acho que a minha mãe contava: “Não, nós estamos aqui no sítio passando o fim de semana ou as férias...” Isso pra uma criança parece uma vida e eu me lembro do rádio dando a lista. Eu lembro da lista. Eu ficava ouvindo e falava: “Nossa, mas é muita gente!” E eu era muito pequena, eu estava no primário.
P/1 – Seis, sete anos?
R – Mais um pouco, uns oito anos. Eu estava no primário. Não sei. Datas, eu sou péssima, mas eu me lembro dessa questão, da gente não ter luz; por outro lado, esse sítio me traz lembranças fantásticas, tinha os grilos, tinha as histórias. Uma das Navas, a minha tia Justiniana, que é uma grande educadora, era uma grande contadora de história. Ela escreve bem, ela fala bem e ela tem um dom com criança e bichos... Os bichos a adoram; as crianças, até hoje - ela já está bisa – a adoram. Minha filha adora, eu adoro, sempre teve uma disputa por essa filha e as outras Navas meio ciumentas, minha mãe e a minha outra tia. Ela inventava histórias pra a gente no sítio. Então, ela era uma pessoa que olhava para os tomates e falava: “Bom, agora vamos contar a história dos tomates: Um tomatinho, tá tá tá tá tá tá...” Aí, um dia, eu estava na casa dela - que eles moravam no Brás - ela estava fazendo um vestido que era estampado com legumes, muito moderno. E eu assim: “Tia, conta outra história.” Então, ela começou a contar a história do vestido, da vagem que conversava com o tomate, que conversava... E eu nunca me esqueci, porque eu achava aquilo uma coisa. E aí eu falava: “E como acaba?” “Acaba assim mesmo.” (risos)
P/1 – Bem espanhol.
R – Histórias pós-modernas, não tem fim, não tem final feliz. “Não, agora acabou.” “Mas como acabou?” Então, ela acabava as histórias do nada e ela contava muitas histórias pra gente nesse sítio. E olhando o escuro. Porque essa minha tia ensinou pra gente a olhar o escuro, os vaga-lumes no escuro, porque era muito escuro sem eletricidade, quer dizer, era um escuro, escuro. E eu nunca tive medo do escuro. Não acho que só por isso, deve ter outras questões mais lá pra trás, mas eu me lembro dessa minha tia falando comigo: “Olha o escuro”. Depois eu vim saber que ela que tinha medo do escuro; então, ela vinha enfrentar o escuro junto com a gente na varanda (risos). Que aí ela confidenciou, eu já bem adulta: “Eu fico deprimida no escuro. Eu não gostava do sítio porque era escuro, não queria ficar... Mas eu estava cuidando de vocês e, então, eu tinha que dar um jeito de...” Então, eu acho que eu tive uma mulherada muito interessante: por um lado, do lado do meu pai, essa coisa rápida e pragmática: e por outro lado, do lado da minha mãe, essa coisa mais ligada mesmo com a questão da criação educativa. Eu tive esse privilégio, de estar no meio dessas Almodóvar, dessa questão almodovariana, mas super colocada, a questão. Elas tinham sido preparadas pra aquilo, pra educar crianças.
P/1 – Você comentou, você tem muitos irmãos?
R – Tinha uma família extensa. Porque na minha mãe são cinco e no meu pai também cinco. E eles nem se davam muito bem. A gente se encontrou e houve um problema em família com questões de dinheiro, de assinaturas. Então, a gente se dividiu por um tempo. Eu lembro muito das famílias juntas até um determinado momento, mas sempre em São Paulo, porque eles eram do interior, mas o meu pai e a minha mãe já vieram fazer faculdade em São Paulo: minha mãe fez Sedes e o meu pai fez São Francisco. E depois, a minha mãe passou pra PUC, porque estava abrindo a PUC, na faculdade de Letras. Então, eles vieram pra São Paulo, mas já namorando. E aí, as famílias foram vindo também, e se estruturando. Os últimos que vieram foram a minha avó e o meu avô, os pais do meu pai. Isso eu me lembro, eles vieram morar no Ipiranga.
P/1 – De Ribeirão?
R – De Marília, de Marília pra cá, minha mãe é de Avanhandava – nascida – e o meu pai é de Lins, mas aí eles rodaram, rodaram, rodaram e foram parar em Marília.
P/1 – E os seus irmãos também, você falou que tem vários irmãos?
R – Nós éramos cinco. Nós somos três moças, dois moços e um dos meus irmãos, o mais novo, morreu num acidente no mar, quando tinha 15 anos, foi uma violenta história na família, porque morte é muito violenta. Eu sou a mais velha, tem a Márcia que é a segunda, a Cecília que é a terceira... Eu sou mais velha, mas assim, eu sou um ano e meio mais velha que a segunda e a Cecília é quatro anos, o André que é o meu irmão mais novo agora tem dez anos a menos do que eu e é dentista. Então, eu tenho duas irmãs médicas e um dentista, completamente diferente das carreiras dos pais... Não sei, mudou. (risos)
P/1 – Completamente, e Cássia aqui em São Paulo, em que bairro que você cresceu?
R – Olha, meus pais mudaram! Eu nasci num apartamento do Bexiga. Depois minha mãe alugou uma casa que ela ainda ensinava, mas num determinado momento a minha mãe parou de ensinar, quando ela passou a ter muitos filhos. Minha mãe ensinava no Belém, então alugou uma casa no Belém, aonde eu me lembro do nascimento... Não da minha irmã de um ano e meio, mas eu me lembro de um gato, eu me lembro do quintal, chamava Marcos de Arruda, essa rua e não se ia pra pré-escola, nessa época. Eu não fiz nem pré-primário, já entrei direto no primeiro ano. E aí nós moramos lá no Brás, depois nós fomos pro Tucuruvi, perto do mercado municipal, que eu também me lembro... Lá eu tinha uns quatro anos.
P/1 – Você tem recordações?
R – Eu tenho. Eu tenho recordações bastante antigas na minha vida, se é que eu posso chamar de antigas, eu me lembro sentada num... Tinha uns pedreiros reformando uma casa em frente a minha casa e eu sentada num monte de areia, falando pelos cotovelos, da onde é a minha verve até hoje (risos). Mas nessa época, a minha irmã terceira tinha nascido. Então, a minha mãe com três bebês, falava: “Bom, tá falando ali com o pedreiro.”. Ela de olho na janela: “Tá bom.” Tinha babá, tinha tudo, mas tinha essa liberdade e foi muito legal, Tucuruvi, pra mim, porque era uma rua de um quarteirão, quase sem movimento e eu conheci todos os vizinhos, porque a minha mãe falou: “Bom, você é a filha mais velha, saia do berço e vá caminhar num quarto sozinha.”. Então, eu tive que sair. Tinha a Dona Nazaré, que era uma senhora portuguesa, que eu ia comer comidas diferentes na casa dela, Então, coisas assim que, provavelmente, não tinham na minha casa, brócolis, bacalhau, eu achava tudo o máximo. Depois tinha umas meninas que tinham dorminhocas na cama, e minha mãe não tinha essas delicadezas.
P/1 – O que, que é uma dorminhoca?
R – Dorminhoca é uma boneca que é da minha geração, mas um pouco anterior, que você punha na cama pra por camisola, mas minha mãe achava aquilo uma coisa... Minha mãe é uma moça muito espanhola nesse sentido, tinha boneca, pra que dorminhoca? (risos). Entendeu? Minha mãe, até hoje, não é uma moça de grandes maquiagens, de grandes enfeites, é muito austera. Ao mesmo tempo, ela podia ir com a gente numa loja que tinha Sears, Mappin [lojas] – a Mesbla já é mais recente – e comprar três vestidos de uma vez. Sabe uma coisa... Espanha! (risos) Então, assim... Fala: “Mas mãe?!” “Não, três, agora vamos usar os três.” Mas aí, saia de moda, a gente crescia... Então, ela tinha uma coisa... Ela teve três meninas, mas ela tinha sido filha caçula. Ela... Não sei... Ela também era uma menina no meio daquelas histórias, de vez em quando. E aí, nessa casa, nasceu essa minha irmã, a Cecília, que era alugada. Depois, meu pai comprou uma casa no Jardim São Paulo, aonde eu fui pro primeiro ano. Então, eu me lembro do dia que eu saí com o meu pai... Eu tenho uma lembrança do meu primeiro dia na escola que é o frescor da brisa batendo no meu rosto, dando a mão pro meu pai.
P/1 – Você ia a pé?
R – A pé. Que chamava República da Bolívia, meu grupo. E era uma ladeira... Agora, a gente faz em duas pernadas, pra mim era longe; não é tão perto, mas não é longe. A gente ia a pé e minha irmã ficando em casa... Aí depois a minha irmã entrou no pré-primário; já tinha ensino pré-escola, nessa escola, mas eu entrei no primeiro ano. Eu me lembro dessa história: “Agora, você vai pra escola...” A minha lancheira era de couro – que era uma beleza, a garrafinha de plástico – mas a lancheira de couro; e com uma pasta. Pasta mesmo, nada de mochila, uma pastinha de zíper que eu fui comprar. Eu me lembro dessa casa que eu já era, imagina, adulta, tinha seis, sete... Seis e meio, quando eu entrei no primeiro ano. Eu ia à padaria comprar leite, era leite de garrafa ainda. A minha mãe tinha uma leiteira que a gente colocava o leite... O dono da padaria colocava o leite, você vinha com a leiteira pra casa, quer dizer era uma vida... Era urbana, mas era um troço um pouco diferente do que é hoje em dia e eu comecei a fazer o... Eu só estudei em escola pública. Minha primeira escola privada, particular, foi na pós-graduação da PUC. Eu fui a única da família... Porque aí, os meus pais perceberam que não dava mais. Então, as minhas irmãs já foram pro Rio Branco, os meus irmãos, bem mais novos, já fizeram Vera Cruz [colégio particular], Equipe. Então, eu fui a única que fui do primeiro até o colegial, que se chamava assim, em escola pública. Depois do Tucuruvi, mudamos para o Ibirapuera, onde eu acho que eu fui até a segunda série ginasial. Tentei entrar na Escola Vocacional, não consegui, passei, tive notas altas, o imposto de renda do meu pai era muito alto, porque lá tinha essa história... Eu falava: “Pai! Mas porque o seu imposto de renda é tão alto? Você está me atrapalhando.” (risos)
P/1 – Você queria entrar no Vocacional?
R – Eu não queria nada! Meus pais que queriam que eu entrasse no Vocacional, mas pra mim foi uma frustração. Eu lembro que eu fui à reunião com a orientadora pedagógica com o meu pai e ela falou: “Olha, a sua filha tem notas maravilhosas... Mas aqui tem cotas, né?” Que eles misturavam as classes sociais e o crivo era o imposto de renda. Então, de certo na minha categoria do imposto de renda, tinha alguém com notas mais altas do que eu, sei lá. Eu lembro que eu olhava: “Mas imposto de renda?!”. Eu falei: “Bom, vamos para outra.”. Aí, eu fui pro Manoel de Paiva, que também era um colégio interessante, que tinha muito professor que tinha sido preso... Bom, a gente estava nessa história... E que tinha ainda canto orfeônico [coral], que eu amava. Eu senti muita falta do canto orfeônico quando acabou. Tinha música, tinha também uma educação meio vocacional, a gente trabalhava em equipes e tinha também assim – mas aí era por notas: os pretos eram os que tinham as notas mais altas, pra não ser branco por quê? Já tinha essa coisa de politicamente correto, olha que interessante! Aí tinha os vermelhos, os verdes, a gente tinha categorização e cada equipe tinha que ter um preto, um vermelho, um verde e um branco; eram cinco, pra não misturar só as turmas sabe? Os guetos. E era meio chato, porque eu chorava, porque eu falava: “Eu tenho que escrever pra essa gente que não sabe escrever”. Porque trabalho de equipe era difícil, nessa época. Então, a minha mãe falava: “Você está sendo muito arrogante, porque cada um sabe um pouco das coisas”. Era um período de pré-puberdade, então, a gente não queria ficar com aquele menino, você queria ficar com o preto da outra turma, da outra equipe. Não se sentava em filas; as carteiras eram agrupadas em cinco já, era física a organização e tinha essa estratificação, quer dizer, era uma outra coisa, já deveria estar ligada com Colégio Evolução, nunca fui atrás dessa história... Bom, aí mudamos, porque nessa casa nasceu o meu irmão, não deu certo o clima, digamos, do bairro, e aí nós mudamos pra uma casa no alto da Lapa. Depois pra outra casa no alto da Lapa, onde a minha mãe está até hoje. E onde eu moro desde que eu me casei porque eu falei: “Chega de mudar de bairro.” (risos)
P/1 – Mas por que, que vocês mudavam?
R – Porque a família foi crescendo, crescendo e o meu pai foi tendo meios de comprar casa. Eu acho que pra Zona Norte, a gente mudou porque as Navas estavam lá, minha avó... Que eram as Navas Toribio, Toribio Navas. Minha mãe, acho, que quis ficar perto da mãe. Pra Moema, era uma amiga do meu pai, de faculdade, que tinha uma casa lá, tia Zuleica, que é uma grande advogada, talvez tenha surgido essa oportunidade. A casa está lá até hoje; outro dia, fui mostrar pra minha filha, não foi derrubada, porque Moema tudo virou prédio, a casa que a gente morava não. Eu amava essa casa, mas teve que mudar porque o meu irmão mais velho – que hoje é dentista, tem filhos, mora em Campinas – tinha problemas de asma, de respiração e ali é um charco, tá afundado. Então, o médico virou pro meu pai e falou assim: “Olha, o senhor vai ter que mudar pra um lugar que seja ventilado ou então, mudar de São Paulo.” Aí, o meu pai comprou um terreno, que é um dos pontos mais altos, ali no alto da Lapa – que a gente enxerga a Cidade Universitária inteira – e ele sarou imediatamente. Não teve que mudar de cidade. Então, pra gente que era meio adolescente, foi difícil; essa mudança para o alto da Lapa foi terrível.
P/1 – Mudou muito?
R – Você perde os contatos na escola, num período que você tem que fazer relações, que você não se acha muito bonita e, provavelmente, não está. Que muda a professora de educação física, quando muda a professora de educação física é difícil. Tem que dar cambalhota, você não sabe. O colégio não era tão bom. Aí eu fui pra um, na Cerro Corá, que eu não sei como é que chama, e depois eu fui pra um muito bom, no centro da Lapa, chamado Anhanguera, aonde eu fiz o resto da formação até o colegial; que eu tive grandes professores nessa escola, mas o ensino público já estava esboroando.
P/1 – E como estudante teve algum professor assim que te marcou? Que você gostava mais?
R – Ah teve! Eu acho que, assim, a minha professora do primeiro ano, Dona Mariângela, era genial. E depois eu me lembro do nome da segunda, que se chamava Dona Venina, olha que nome diferente.
P/1 – Venina?
R – Venina. E um dia eu to na sala – isso tudo ainda no Jardim São Paulo... Um dia, eu era muito pequena e nessa época não usava óculos, talvez sempre necessitasse, então, eu me punha na primeira fila, e estava escrevendo umas coisas, a minha letra nunca foi boa, fazia cadernos de caligrafia pra chuchu, e aí eu tava escrevendo umas coisas, chega a Dona Mariângela, que foi a minha primeira professora. Dona Venina, orgulhosa de sua aluna, fala: “Olha Cássia...” Mariângela olha pra minha prova e falou: “Quando ela tava comigo, ela escrevia mais bonito.”. Eu fiquei arrasada, eu servindo de disputa entre as outras, mas pra uma menina de sete anos foi um fiasco porque eu adorava as duas. Eu falei: “Meu Deus, o que eu estou fazendo de errado?” Sabe uma coisa assim? “Na minha aula, ela escrevia melhor.”. Mariângela era terrível, ela era muito bonita, as duas eram muito bonitas. Depois, eu me lembro, já na oitava série, que já virou oitava, eu fiz o primeiro e segundo ano de ginásio, fiz...
P/1 – Admissão?
R – Fiz admissão no quarto ano pra entrar, formei no quarto ano, o meu primeiro diploma, eu tenho fotos segurando o canudinho do quarto ano e eu me lembro de dois professores, três professores, eu acho, já do Anhanguera: uma eu não me lembro o nome, que era uma professora de geografia que tinha ido pro Egito, que tinha ido pra Grécia, que tinha ido pra Europa, em vários lugares e tinha slides; então, era maravilhoso estudar geografia com uma pessoa que tinha ido nos lugares. Era uma coisa, assim, pra mim... Eu a via na frente das pirâmides, não era uma coisa abstrata, era uma coisa real, e ela era aquela geografia que números e datas não importam: “O que importa, depois, isso tem dicionário”, ela falava pra gente. Depois tinha uma professora de Português, que eu esqueci o nome dela, mas eu acho que era Cecília, e ela dava poesia concreta, ela dava Haroldo de Campos pra gente, no segundo ano colegial. Então: “Destrinche isso daí.” Mas o exemplo máximo da minha oitava série até o terceiro ano foi o professor Custódio, de matemática, porque eu não entendia matemática até a sétima série, sétima ou sexta, tinha reforço, a gente chamava assim, mas tinha aulas particulares, ia mal, ficava de recuperação. Segunda época eu nunca fiquei, mas era uma coisa muito complicada. Na sétima e na oitava série, eu acho que na oitava, entrou esse senhor, fumando, porque, naquela época, se fumava na sala de aula. Ele punha o cigarrinho assim na beirada da lousa, porque era lousa, ele entrava num silêncio que a gente parava de fazer tudo o que a gente estava fazendo, era uma autoridade silenciosa e ele me ensinou que matemática pode ser difícil, mas tem uma lógica e se você entende a lógica, não importa... Você faz erros, mas a lógica é preservada, coisas assim, regra de três, sabe coisas que ninguém ensina pras crianças ou pra algumas crianças, naquela época não se ensinava. Eu não sou contra decoreba de tabuada, mas decorar tudo é complicado e aí eu virei a primeira aluna da classe de matemática, num curso de humanas, porque a gente tinha essa coisa de separação. Então, só tirava nove, dez, eu que sempre adorei gramática, passei a gostar de como funcionava a matemática. Eu tirava notas altíssimas e eu tive geometria analítica e ele tinha aquelas questões muito precisas, a gente só usava caderno quadriculado, aquele já pra trabalhar com a questão da lógica da matemática, não era em linhas... Então, tinha umas coisas e eu tinha uma admiração, tenho até hoje. Ele morreu, outro dia eu fiquei sabendo, ele se aposentou como professor de matemática nesse colégio, ele era pai de uma aluna nossa, aliás linda, ruiva, que eu sempre quis ser ruiva, eu acho ruivo lindo. Então, eu olhava pro cabelo dela e falava: “Ela ainda é ruiva e é filha do professor Custódio”. Era demais e esse senhor me ensinou coisa que hoje eu não consigo, muitas vezes, como professora que eu sou, essa questão de assim, de um respeito que a gente não temia ele não; tinha muita gente que temia porque ele era bravo, mas tinha uma hora que, independente de ele fumar, de ele ser chato... Ele era assim, pelo saber e pelo conhecimento e quando isso se abre na frente de uma jovem ou de uma criança ou de qualquer um, é isso que vale a pena nesse momento. Tudo bem que tem as relações humanas, é maravilhoso a troca de conhecimento, mas tem uma hora que abre uma clareira na sua frente de entendimento e eu aprendi isso com o professor Custódio, nesse momento da minha formação. Outra pessoa com a qual eu tive o privilégio de vivenciar um momento semelhante foi com a minha orientadora, já de doutorado, que é a Maria Lúcia Santaella. Ela é capaz de parar uma aula inteira e te responder uma pergunta e você se sente como se você estivesse num solo de dança clássica, entendeu? Com ela. Num pas de deux [passo de dois] (risos), com aquele canhão em cima, que não importa nada, nem nenhuma coisa, é aquilo que está em jogo. E esse momento é um troço pra um aluno e pra um professor...
Em relação a questão da matemática, não quer dizer que eu sou um gênio de matemática, não sou! Eu sou péssima de contas, mas eu tenho uma coisa boa, a gestalt [teoria da forma] da conta eu sei. Eu vejo uma conta, eu digo assim: “Aqui tá faltando dinheiro”. Ou vejo outra conta: “Aqui falta, aqui sobra.” Em orçamento, eu bato o olho, prum. Aí as pessoas me olham: “Mas como você sabe?”. “Vai conferir”. Então, é outra lógica matemática que, provavelmente, ele soube valorizar em mim. E nós éramos todos de humanas, nós não estávamos preparando... Provavelmente, no curso das exatas ele puxasse mais por outras coisas porque havia necessidade, mas eu acho que eu tirei nove no vestibular de matemática, uma coisa assim absurda, o que não valia muito, porque pra fazer a faculdade de direito, a pontuação não valia muito.
P/1 – Isso que eu ia perguntar, você já tinha definido que era direito?
R – Pois é... Não.
P/1 – Porque você definiu que era humanas então?
R – Ah isso eu sabia. Eu gostava de geografia, eu gostava muito de literatura. Essa professora que dava Haroldo de Campos, imagina, a gente estudava os livros do Antonio Cândido, que era a história da literatura portuguesa brasileira. Então, eu fui desde os cantares de maldizer e de amor de Portugal até Mário de Andrade. Eu, na verdade, essa coleção, eu uso até hoje nas aulas que eu dou na Unicamp, quando eu ensino história da dança. Eu dou história da literatura pra algumas meninas que não tiveram isso, porque uma coisa é você sair da história geral e ir pra história da dança; outra coisa é sair da história da literatura, principalmente, a brasileira, que é muito bem feita, que é o Castelo que faz junto com o Cândido e é maravilhosa, é uma coisa simples, aquilo ali deve ter tido anos de elaboração; a gente sabe, hoje, que aquilo não é do nada que aparece, é um trabalho muito profundo. Então, eu uso até hoje. Aí, eu tinha essa coisa: “Bom, vamos escolher que faculdade você vai fazer.” Eu com o meu pai.
P/1 – Você era nova também?
R – Eu tinha 16 anos. 17 anos no último ano, 17 anos, eu completei no último colegial, meados do ano, em julho: “Ah, mas eu quero fazer ciências sociais, sociologia, antropologia.” Eu queria fazer mais antropologia, mas não sabia exatamente o que tinha atrás de cada nome. Meu pai falou: “Mas, minha filha, como é que você vai ganhar a vida? Sendo antropóloga?”. Ele mal sabia que um sociólogo ia ser presidente do Brasil e uma psicóloga, prefeita de São Paulo. É uma conquista no ponto do conhecimento. Estou falando dos graduados, sem desmerecer nada, nem ninguém. Ele falou assim: “Mas por que minha filha?”. Aí tem aquela coisa da sedução da carreira do pai, da estrutura... “Porque que você não faz, então, o direito, e quando você conseguir ter uma independência econômica...” Que eu acho justo que os pais pensem dessa maneira, acho bem justo... “Você faz ciências sociais também”. Na verdade, ele queria deixar, que eu herdasse a banca, eu era a filha mais velha, ele tinha esse sonho. Eu me lembro, no Equipe, com ele, preenchendo os dados pra fazer o vestibular, que eu fiz junto com o último semestre do colegial, que o último semestre do colegial, eu fiz de noite, que de certa forma eu me arrependi e ia pro cursinho de manhã, quer dizer estudava...
P/1 – No Equipe e a escola de noite continuou sendo o Anhanguera?
R – Também. O Equipe era na Frei Caneca já, mas quando a gente... E fazia União Cultural, de tarde, lá aonde é ainda, na Coronel Oscar Porto, quer dizer 17 anos vale tudo, a gente não cansa, é maravilhoso tudo. E aí, eu ia de ônibus pra cima e pra baixo. Eu demorei pra dirigir, eu não gosto muito de dirigir. Todo mundo, 18 anos, “vamos dirigir”. Eu achava chato, aliás, ainda acho, eu dirijo porque não tem outro jeito, mas não acho muito bom, enfim, meu pai falou assim: “O que você vai escolher?” Falei: “Ah, ta, então, eu faço Direito vai.” Sabe uma coisa meio assim? E também o jogo entre pai e filha, etc. Mas eu tinha essa coisa na cabeça, que eu ia fazer ciências sociais. Então, eu entrei na São Francisco, com 17 anos, quando eu fiz... Esperei um ano, entrei em Ciências Sociais da USP... Não, no segundo ano... Não porque eu entrei na PUC, nas ciências sociais, então, o trato já estava mais ou menos, porque eu fiz todos os vestibulares. Então, eu fiz... Não, eu entrei direto na faculdade de direito, na USP, depois entrei direto na PUC, no mesmo ano, mas eu falei assim: “Quer saber de uma coisa? Eu vou tentar a USP porque assim eu não pago.” E naquela época podia.
P/1 – Ter as duas faculdades?
R – Podia. Era permitido fazer. Então, eu entrei na São Francisco e foi, realmente, a questão do debú, da debutante no mundo. Aí, eu fiquei um ano meio zonza, sem saber o que fazer, porque aí eu entrei na política direto. Eu fui diretora do departamento feminino que tinha na São Francisco; logo no primeiro ano, já teve aquele embate absurdo porque tinha a direita organizada na São Francisco, essa época – imagino que até hoje – só que o trote da direita organizada, notadamente capitaneado pela atlética, era jogar bombas na sala dos calouros pelas janelas; choviam bombas, era uma coisa horrorosa. Eu falei: “Gente, o que tá acontecendo comigo aqui?” Eu fiquei muito assustada. E tinha professores, digamos assim, muito heterodoxos, por tudo aquilo que eu já tinha vivido; é uma educação muito centralizada no professor. Tinha um Alexandre Correia, de medicina legal, que eu tinha pavor, passei com dez e dez. Eu falei: “Eu vou passar porque eu nunca mais volto a ver esse monstro na minha frente”. Sabe pavor de um professor? Mas tinha o Goffredo da Silva Teles, tinha o Dalmo de Abreu Dallari, que tudo que eu acho que eu sei de Direito, até hoje, os fundamentos, são Goffredo e Dalmo. Goffredo dava Direito Romano e o Dalmo dava Teoria Geral do Estado, que era divino, mas o Dalmo dava aula e as bombas caindo. Eu falava: “Mas essas pessoas tão interessantes deixam que isso aconteça com a gente?” Porque é muito difícil e aquela gritaria, bom, não sei. E como eu já tinha uma família que vinha de uma tradição de política... Então, entravam já todos os veteranos mais a esquerda, porque, nessa época, a gente não tinha, não tinha ainda os partidos legalizados, mas lá dentro tinha PCB, PCdoB, tinha Val Palmares, tinha MR8, tudo já implantado. E tinha essa questão dos conservadores, tinha Social Democracia, tava tudo mapeado.
P/1 – Que época que a gente tá falando?
R – 77, 1977.
(PAUSA)
R – Eu tenho que retificar uma coisa: eu fiz cursinho no Etapa. Eu fiz cursinho no Etapa, não no Equipe, é na Frei Caneca; o Equipe não é lá. O Equipe é em outro lugar.
P/1 – Ele era nessa época na Caio Brato, que é uma travessa da...
R – É próximo,
P/1 – É próximo, mas o Etapa também...
R – Agora porque eu cheguei no Etapa, eu não sei, deve ter sido o meu pai que fez uma pesquisa, alguma coisa assim.
P/1 – Viu que era um bom cursinho.
R – Mas enfim...
P/1 – Você tava falando da faculdade de Direito.
R – Então, era um mundo muito interessante porque, assim, primeiro que eu saía do bairro. Então, era no centro e o centro sempre foi um lugar que eu gostei, gosto muito do centro, então... E o meu pai tinha escritório no centro, de advocacia, então, eu já freqüentava quando era pequena. Tinha uma época que tinha semana inglesa, meu pai trabalhava sábado de manhã, então, a gente ia pro escritório, brincava de secretária, tinha toda uma coisa, tomava sorvete no Santa Helena, logo depois derrubaram, porque eu não sou tão antiga assim, mas eu me lembro dessa sorveteria e quando o meu pai falou: “Aquela sorveteria era o Santa Helena.” Eu falei: Ah.” Porque a Praça da Sé existia, o prédio do meu pai foi um que restou, ele nem tem mais, os fundos dele ficou meio desencarnado com as demolições pra abertura da nova Praça da Sé, mas isso, a gente tava em casa estudando, não se dava conta. Eu adorava os interfones do escritório do meu pai, que você brincava de telefonar, que eram vários, era um grupo de colegas que abriu esse escritório, bom, enfim, a São Francisco. Então, é uma coisa assim, esses professores, tinha essa violência, mas também tinha a questão da política, que não era estudantil, da política em si, porque a São Francisco nos deu, pelo menos a nós que tivemos essa vivência, a possibilidade do embate, do embate entre os diferentes, entendeu? Não era uma coisa assim, tem a esquerda e a direita, tem vários tipos de esquerda e tem o centro e tem... Bom, tinha a turma da bucha, que é a turma ligada com as questões mais tradicionais, tem um túmulo dentro da São Francisco que eu não lembro de quem é. Então, tem toda uma história antiga, que a gente entra e aquilo e tem as trovas acadêmicas e tem o Centro Acadêmico 11 de Agosto, que não é só o centro, é o restaurante do 11, é a gráfica do 11, é a secretaria do 11. As bibliotecas são maravilhosas, na São Francisco. Tem o tal do departamento feminino que, assim, o centro, não sei se você sabe, mas o Centro Acadêmico 11 de Agosto tem dentro da universidade, uma sala que chama departamento feminino do Centro 11 de Agosto, onde só entra mulher, as advogadas vão se refrescar, é maravilhoso, é uma mega sala com poltronas de couro, com banheiro exclusivo. Hoje, eu não sei se tem, mas naquela época tinha. Então, precisava de uma pessoa que dirigisse o departamento feminino ou que abrisse o departamento feminino pros homens, enfim, eu não sei se eu fui diretora, mas eu estive muito próxima e nós demos uma festa para homens e mulheres nesse departamento feminino, isso tudo em 1977. Mas são questões interessantes porque, assim... E a gente queria, tinha professores que falavam: “Mas vocês vão abrir, as moças quando estão mais nervosas em um período do mês precisam de um lugar pra ficar”. Quer dizer é uma coisa muito arcaica, mas muito real e é a vida como ela é. Eu acho que eu tive uma experiência política dentro da São Francisco da vida como ela é, de intolerância por um lado, mas também de uma configuração, que isso é a vida universitária do mundo real, da questão da polis mesmo, porque a polis é a cidade, não é simplesmente os partidos, não simplesmente o que você acha; é a convivência entre diferentes e é muito difícil. Isso é muito difícil, mas é muito rico por um lado. Bom, aí estamos lá, isso é 77, e o Goffredo lança a Carta aos Brasileiros, já eu lá dentro.
P/1 – O que é a Carta aos Brasileiros?
R – A Carta aos Brasileiros foi o primeiro – nós estamos vivendo um período de flexibilização das estruturas não democráticas, ditatoriais – e o Goffredo lança uma carta em prol da democracia, pelo Estado de Direito que, na verdade, não é nem... É antes, é pelo Estado de Direito; essa Carta aos Brasileiros é pelo Estado de Direito. Ele que não é um cara, nunca foi, ligado diretamente a questão da esquerda, mas é do estado de direito, das liberdades democráticas, da construção, da reconstrução de um estado de direito e existe... Quando eu tava no colegial no último ano, tem a cassação de dois deputados que eu não me lembro do nome, foram os últimos que foram cassados. Então, isso já vem no bojo dessa história, quase uma resposta e ele lê essa carta, no pátio, nas arcadas, pra nós que estávamos lá e pra todos os colegas dele. É uma coisa muito forte e já existe um movimento na cidade de São Paulo como um todo. Nessa época, a gente não tem DCE [Diretório Central dos Estudantes] livre. Os centros acadêmicos... O 11 já era livre, mas era DCE, era DA, não era CA. Então, era Diretório Acadêmico e chamava DA. Então, às vezes, a gente falava: “Você é do DA ou do CA?” Pra saber de que lado a pessoa estava, Então, tinha o CA e tinha a questão do DCE livre – que chama DCE livre – durante muito tempo, pra se separar do DCE pelego, digamos assim. Então, a gente começa a participar dessas coisas, mas eu como primeiro-anista. E aí, tem um momento que eu acho que é 1977, mas eu acho que é, que vem gente da USP, porque, tinha assim, nós e a USP e a faculdade de medicina. Eu não me lembro se nessa época... A odontologia, acho que, já tava na USP, não era Três Rios. Então, tinha dois polos fora da Universidade de São Paulo: a São Francisco e a medicina. A Doutor Arnaldo e a São Francisco. Era assim que a gente chamava, pelas praças e pelas ruas. Então, vem gente de todos esses lugares para São Francisco e instaura o Largo de São Francisco, novamente, como território livre dos estudantes e ali a gente começa a tentar se espalhar pela cidade e uma das passeatas vai indo... Eu não fazia parte de comando nenhum, nessa época; depois eu vim a fazer, um pouco, porque eu tinha um pouco de medo dessa história e a gente vai indo, vai indo, vai indo... E para no Viaduto do Chá. Por quê? Porque está a polícia esperando a gente na porta do MASP.
P/1 – O Exército?
R – Eu nem me lembro, mas era uma gente uniformizada, entendeu? Com escudo... Não, é PM, é Choque, é PM, é o Choque. E aí, mas assim, e eu segurando a faixa, a primeira, eu com os meus colegas, porque a gente era da casa, chegamos primeiro, seguramos a faixa, o povo veio chegando depois e aí eu me lembro, eu não sei bem o que aconteceu, porque eu vi as lideranças, mas a gente... Escapavam-me aquelas histórias, nós éramos o que a gente podia chamar de massa de manobra, mas assim um pouco consciente, um pouco inconsciente; era isso. E, também, o que esperar de um povo de 17, 18 anos? Tinha aquelas lideranças estudantis, que a gente não chamava de lideranças, nós não nos chamávamos de companheiros, porque, hoje, na Unicamp, eu vejo estudante se chamar de companheiro. Nós éramos colegas, deu uma retrocedida aí nessa história, no meu entender. Então, nós éramos colegas e o que foi decidido: “Sentem-se e leiam a carta.” E a gente sentou, mas me passou pela cabeça, assim, falei: “Bom, polícia aqui, polícia atrás...” Eu nem sabia que tinha polícia atrás, não dava pra ver. Polícia na frente...
P/1 – Com cavalo e cachorro.
R – Tudo, né? O Choque completo. E aqui nós sentados, eu falei: “Ou a gente vai apanhar e vai pra cadeia, ou vai pra cadeia, ou a gente vai pular pelo Viaduto do Chá abaixo, tuf tuf tuf.” E, realmente, eu acho que ali houve uma negociação e o bom senso prevaleceu, diferentemente do ocorrido na invasão na PUC, onde realmente não foram só as palmeiras do jardinzinho do Tuca que pegaram fogo, teve gente que quase pega fogo, pessoas que tiveram ferimentos extensos, moças, principalmente, por conta de... Até hoje parece que... Bom, se sabe, mas eu não lembro dessas apurações de lança-chamas, bombas incendiárias; bom, enfim, pegou fogo, não sei como é que aquilo pegou fogo. Diferentemente disso, imperou o bom senso e algum tipo de conversa teve entre ou professores, etc., porque, naquela época, tinha os ratos também, tinha gente do Doi-Codi [Destacamento de Operações de Informação - Centro de Operações de Defesa Interna] infiltrada. Não sei se era Doi-Codi...
P/1 – Era Doi-Codi, nessa época deveria ser o Doi-Codi.
R – Não, mas como é que chama aquele prédio que agora é Pinacoteca? Esqueci.
P/1 – Do DOPS [Departamento de Ordem Política e Social]?
R – Do DOPS. Em cada sala de aula, provavelmente alguém... Tinha os ratos – que a gente chamava de ratos – e não sei se foram os ratos, não sei o que aconteceu, teve, graças a Deus, teve lá uma... E a gente foi levantando e saindo e voltando pra faculdade; e eu tava na primeira fila segurando a faixa e me deu, nessa hora, uma certa coisa, eu falei assim: “Mas quem que colocou a gente nessa situação?”. Porque é uma imaturidade; entrar com uma passeata de estudante num viaduto é uma armadilha. Aí, depois, houve várias passeatas que eu participei. Uma vez nós ficamos, eu fiquei junto com várias pessoas, eles cercaram a Faculdade de Medicina, não podia sair, aí vamos participar das comissões. Eu não sei como eu fui participar de uma comissão de segurança. Então, o papo era assim: “Não...” Porque tinha pouca gente: “Se o cachorro vier, você chuta aqui. Se o cavalo vier, você joga umas bolinhas de gude. Se o cachorro morder no braço, você não puxa porque ele vai te rasgar, você para”. Eu falei: “Gente eu vou embora (risos). Essa comissão, eu quero... Aqui, eu não vou ficar, não vou dar conta”. Como se diz em Minas Gerais: “Isso aqui não é pra mim, eu faço parte de outra comissão...”. Isso foi bem no começo porque, com o tempo, quando a gente ia se graduando, e eu fui estagiária do Departamento jurídico do Centro 11 de Agosto, a gente fazia parte das comissões de jurídicos pra tirar o povo da cadeia. Tinha alguns advogados que reuniam os estagiários de Direito. Então, você fazia parte de uma reunião de segurança, mas era mais à distância. Então, andava com um monte de ficha telefônica no bolso e eu tive uma sorte danada nesse sentido, por quê? Na invasão da PUC, eu já andava de tailleur, de uniforme de advogada, porque eu já estava fazendo estágio. Então, descemos – eu e um colega meu – na Cardoso, e aquele silêncio pra manifestação. E eu falei: “Mas tá faltando alguma coisa aqui, Marco Aurélio”. Esse meu amigo é promotor, deve até ter aposentado já, procurador do estado, acho que ele ainda atua, falei: “Marco Aurélio, tem alguma coisa estranha aqui. Tá muito silencioso”. “Não, vamos que vamos.” E ele de terno e eu de saia, sei lá. Aí, conforme a gente foi entrando por uma dessas travessas da Monte Alegre, vinha vindo polícia, choque mesmo, e nós assim: “Mas o que tá acontecendo?” “Não, não. Se vocês querem entrar, podem sair.” Eles já tinham cercado a PUC, antes do incêndio e um silêncio, sabe? Que tava tudo trancado e eu falei: “Marco Aurélio, nós vamos fazer o quê?”. Aí tentamos entrar num prédio, entramos num prédio, tinha umas pessoas olhando, subimos lá e ouvimos aquela barulhada, nem ouvi... Eu não me lembro, mas quando a gente viu que os carros começaram a circular, mas foi muito rápido isso, nós saímos e fomos pra GV, que era um dos quartéis generais, onde se reuniam os advogados. Quando nós chegamos lá, nós ficamos sabendo que já tinha pegado fogo, sim, porque não tinha celular. Isso tudo era por orelhão e fichinha, aquela fichinha cinzinha da Telesp. Então, quando nós chegamos lá, já tinha pegado fogo. Aí, eu liguei pra casa da minha mãe, porque a minha mãe tinha certeza que a gente tinha sido preso, era um ônibus de estudante pro Tobias de Aguiar. Porque eles puseram todo mundo no estacionamento dos professores e foram levando, os vivos e os não machucados. E nós escapamos por causa de nossas roupas, porque eles acharam que era um casal de namorados voltando do trabalho, porque era na hora da volta do trabalho. E aí, a partir... Teve um determinado momento, eu fui secretária do 11 de Agosto, tinha uma coisa muito violenta na Faculdade de Direito chamada Tomada, que assim, um dia antes das eleições do 11 de Agosto, a gente tirava todos os cartazes de todas as chapas. Sim, porque tinha chapas, três ou quatro, e ficava na porta segurando faixa, filipeta, cartãozinho, cola, escada e tomava a faculdade. E, olha, teve um dia que eu apanhei do outro partido, porque as meninas da direita, sei lá se elas eram isso, elas iam de tamanquinho, sabe da Doutor Scholls? Pra tamanquear as outras e eu fiquei cheia de roxo. Nesse dia, eu falei assim... Olha, eu já estava no quarto ano e eu comecei a fazer análise, que foi uma outra... Eu comecei a fazer terapia e análise quando foi muito cedo, eu tinha 20 anos. Então, eu falei assim: Eu tô achando que essa história aqui, eu vou flexibilizar o Muro de Berlim”. Hoje, pensando retrospectivamente. E nisso eu já tinha entrado na faculdade, nas Ciências Sociais e também estava vendo que não ia dar conta de fazer tanta coisa. Então, eu pensei assim: “Vou terminar a faculdade de Direito e vou fazer um pós-graduação em Antropologia e Arte, o mais rápido possível”. Eu fiz dois anos, fiz dois anos de Ciências Sociais. Só que aí eu já estava trabalhando, fazia direito de manhã, trabalhava à tarde, fazia Teatro, porque eu era uma das atrizes do teatro 11 de Agosto e fazia Ciências Sociais à noite. Era muito, mesmo, pra minha idade; era muito, quer dizer eu não ia em casa. E tinha namorados...
P/1 – Saía?
R – Nossa, tinha uma febre de chorinho, nessa época, a gente dançava chorinho loucamente no IAB. Era maravilhoso. E voltava de táxi depois de umas caipirinhas, quer dizer, anjo da guarda pra moças do Brasil, eles trabalham bastante; eu espero que eles continuem trabalhando até hoje, porque eles trabalham viu? É uma vida muito intensa. Depois, a gente que viveu esse período fica perguntando... Eu faço muitas coisas, até hoje, é treinamento, é gosto, mas é um treinamento de estar em vários lugares, fazer várias coisas, ter vários interesses ao mesmo tempo em que você incorpora isso na sua vida. Vamos ver até quando.
P/1 – E Cássia como é que você vai pra dança, você termina Direito?
R – Não, eu já quando tava na faculdade de Direito eu já... Na Ciências Sociais, eu comecei a escolher matérias, porque lá tinha essa coisa maravilhosa, que na faculdade não tinha, você compunha e pra mim isso é uma coisa que os meus alunos da Unicamp não tem a noção de quão importante isso é na vida de uma criatura, que tem as eletivas, tem as obrigatórias, mas você pode deixar de fazer, tem o sei lá... Tem a um, a dois e a três: “Vou fazer a um, não gostei, eu posso deixar a dois pra daqui a dois semestres”. Isso é uma coisa que muda uma vida de um estudante. Na de Direito, eu não tinha essa história, era a grade que baixava e você fazia, só no quinto ano – Direito são cinco anos – que você tem essa possibilidade. Eu costumo dizer que se eu tivesse feito o quinto ano antes do primeiro, eu seria advogada, porque eu adorei o último ano. Adorei! Eu fiz Direito Penal com professores maravilhosos, com cultura... Não que os outros não tivessem, mas era uma classe de dez pessoas, então, era quase aula particular, com livros especializados em várias línguas pra gente, à disposição. As secretárias já conheciam a gente, então, foi maravilhoso. O meu sexto ano foi maravilhoso, oposto do primeiro que foi aquele terror, principalmente, por causa do trote. O começo foi um terror por causa do trote, mas é uma coisa, muita gente desistia, de cursar a faculdade por causa desse trote. Eu não sei como que a direção da escola permitia uma coisa daquela; era uma violência. Hoje, eu não sei como é que está, mas era uma coisa absurda e tinha gente que amava se submeter àqueles trotes. Bom, então, eu lá na faculdade de Direito, nas Ciências Sociais, eu comecei a fazer Antropologia, várias matérias de Antropologia, eu tive uma grande professora que era filha do Florestan Fernandes.
P/1 – Heloísa Fernandes?
R – Heloísa Fernandes. Que ela, eu acho, que eu fiz Marx e Weber com ela ou Weber e Marx, não sei, porque tinha assim, um curso: “Você vai fazer o quê?” “Eu vou fazer Marx.” É uma coisa chique. Você vai fazer Weber, que não é o compositor, é aquele, o outro. Então: “O que você vai fazer?” Então, era uma coisa chiquérrima, mas era uma coisa muito difícil, tinha que estudar muito e eu me lembro que eu tinha um medo dela, danado. Ela que deu Weber a primeira vez e aí eu fiz um tal de um trabalho escrito sobre o Weber... E datilografado porque não tinha computador e eu falei: “Se eu tirar sete, eu estou assim, no sétimo céu”. Tirei dez. Aí, eu olhei pra ela e falei: “Você tem certeza?”. Porque eu estudava feito uma louca. Ela falou assim... Aí eu achei uma coisa interessante, isso que eu acho que é uma questão do professor: “Você pegou o que é Weber e deu a sua opinião.” Que é isso que a gente quer, que você pegue... E o conhecimento consolidado, que é a questão da graduação, ele se transforme, mas que o conhecimento consolidado não seja jogado pela janela, você não vai criar nada novo, agora tá na moda dizer assim: “Eu não ensino, os alunos é que aprendem”. Eu olho assim e falo: “Pois eu ensino porque eu ganho pra isso. Eu assinei um contrato pra ensinar, seja lá o que for isso”. Como você ensina já é outra história, mas é uma coisa um pouco populista, assim dizendo, mas está muito na moda. Então, esses professores... Ela foi uma professora importantíssima. Na Faculdade de Direito teve o Modesto Carvalhosa, também. Eu tive o Manoel Pires, que dava Direito Penal e Constitucional no sexto ano. Eu tive muita sorte com os meus professores. E tinha as moças da antropologia, a Sílvia era assim. A Sílvia Caiuby, que eu não me lembro o nome dela, que ela até já morreu. E aí eu comecei a fuçar a questão da dança com ela, danças indígenas, dança de batuques, por quê? Porque tem um lado da minha família, porque a minha família é uma família fortemente de cultura letrada, então, são professores, tem esse meu avô escritor, meu pai é advogado, mas eles gostam muito de música. A segunda coisa na minha família, sempre foi música, tem esse mundo da arte e da literatura, mas assim, exposições, a gente ia, desde pequenininha. Eu ia a teatro, muito menos do que atualmente, porque também a oferta não era tão grande, mas meu avô e meu pai amavam ir ao Municipal, nos concertos matutinos. Então, a gente ia muito e eu vi dança lá, provavelmente, muito pequena e eu achava aquilo uma coisa interessantérrima, e fiz dança clássica, nesse período de passagem entre colégios, de patinho feio, e até eu fiz com uma professora boa, na ACM da Lapa, que é no Shopping Center Lapa, perto do Anhanguera, por quê? A minha mãe me levou? Não, uma colega, que era enfermeira, que já foi diretora até da faculdade de enfermagem da USP, a Cristina. E ela, as irmãs todas faziam aula de dança e um dia eu fui ver: “Você não quer fazer?” “Mãe, eu acho que eu quero fazer isso.” E comecei a fazer. Era a Sônia Melo, que agora ensina em Milão – acho que ensina, não sei se ela se aposentou – foi a minha professora, mas eu fiz um ano e no final do ano, elas todas estavam na ponta já, e eu na meia ponta, mas eu achava aquilo uma coisa um pouco... Eu gostava, eu sei que eu nem me lembro direito, mas era tudo com coque, dança clássica mesmo, era uma grande professora e eu me lembro que começou a questão dos festivais, das festas de fim de ano, então, “Vamos ensaiar”. Eu acho que eu devo ter ficado uns dois anos, porque eu vi os espetáculos em um ano e no ano seguinte comecei talvez a participar. “Bom, ensaia”. Tinha que ensaiar, não sei o quê. Cheguei a comprar uma sapatilha de ponta, achava muito dolorido tudo aquilo, mas vamos em frente, mas tudo meninada, estávamos ensaiando o espetáculo e eu lembro dela conversando com o assistente, que, provavelmente, deve ser uma pessoa importantérrima, que talvez eu conheça, mas eu não sei quem é, atualmente, falava: “Não, porque a Cássia, ela não é boa de técnica, ela é boa para expressividade”. Eu não sabia o que significava aquilo. Então, tinha um balé que era com umas cadeiras e eu era das cadeiras e as outras eram da outra turma. Essa minha amiga, Cristina, imagino que era uma outra, boa bailarina, mais técnica, mas isso tudo, uma moçada e aí eles estavam ensaiando o espetáculo, eu com essa coisa de cadeiras que eu não me lembro o que era, e a Cristina... Tinha umas coisas modernas, desciam uns plásticos do teto, elas se enfiavam no plástico, mas isso não era pra mim, eram as mais graduadas no Clube Pinheiros e vai... Não sei quem me levou no Clube Pinheiros pra ensaiar, mas eu me lembro desses ensaios e eles discutindo nomes em francês e a gente lá “pititica” [novinha] de tudo, porque isso eu tinha... Isso é... Quer ver? Sétima série. Não tinha nem 15 anos e bem, assim, as adolescentes da minha época eram mais meninas do que elas são hoje. Aí eu sei que, um dia, essa moça vira pra mim, a gente ia pra praia, minha família e a tal apresentação do Pinheiros era em agosto ou era um feriado não sei, aí ela virou pra mim e falou: “Vê se você não toma muito sol, porque bailarina não pode ser morena e você já é morena”. E aí eu contei isso pro meu pai e o meu pai falou: “Mas isso é racismo, você vai sair dessa escola”. E eu já não estava muito entusiasmada, porque se eu tivesse essa vocação, quem iria me tirar do balé? Eu acho que eu queria experimentar essa coisa de dançar fora do que a gente já dançava em casa. Eu era louca pelo Barbeiro de Sevilha. Então, a gente dançava o Barbeiro de Sevilha com o meu avô, com a minha mãe em volta das cadeiras, sabe essa coisa das danças circulares? A gente fazia em casa, minha mãe cantava muito bem nessa época, então, ela cantava junto com o rádio, tinha uma cultura musical e o meu pai tinha os discos de música clássica que ele punha pra gente escutar e a minha mãe no rádio. Mas isso era uma coisa, assim, não era “especialmente especial”; era normal na vida da gente. Mas eu lembro do meu pai falando assim: “Mas essa moça é racista, você não vai mais pra essa escola”. E aí eu não fui mais, entendeu? Tem esse momento dança, formação e tem essa coisa de que eu, de alguma maneira, aí tem essa questão das adivinhações na vida da gente. Conforme eu fui me encaminhando pra antropologia, querendo estudar artes e movimento... Eu não queria dançar, eu não queria dançar, eu queria estudar gente que dançava, eu sabia que era isso. E aí tinha uma colega minha que fazia Ciências Sociais que já era emancipada, que morava com o namorado dela na Vila Madalena, na Purpurina – achava lindo o nome da rua dela, Purpurina – e ela era emancipada, morava lá numa edícula, mas eu achava tudo maravilhoso e ela era ligada com cinema. Então, eu comecei a frequentar muito o cinema com ela. Bom, aí durante a minha graduação teve os festivais de jazz, na Montreux São Paulo, que eu assisti tudo, absolutamente tudo; tinha as mostras de cinema, que eu assistia tudo que eu podia também. Então, teve esse pedaço, a gente fazia tudo isso. Essa minha amiga, que ela é até uma gorduchinha, virou pra mim: “Você quer estudar dança? Tem um lugar na prefeitura que se chama IDART [Departamento de Informação e Documentação Artísticas]...” – desse jeito – “que os pesquisadores são pagos pra estudar arte”. Eu falei: “Gente que é paga pra estudar arte? E o que precisa pra fazer isso?”. Ela falou: “Ah, não sei, vou ver, mas parece que não tem concurso”. Porque ela já era mais velha do que eu. “É uma coisa política”. Eu falei: “Ah, é uma nomeação política?”. Ela falou: “É, não sei o quê...” Bom, e eu lá na Ciências Sociais. Aí, o que eu fiz: abriu um concurso no último ano da faculdade de Direito... Não, no quarto ano, pra escriturária na prefeitura. Aí fui prestar, passei lógico, porque era uma coisa tranquila e aonde que eu fui trabalhar? Na Secretaria Municipal de Cultura, na unidade (____________?). Aí me lotaram no Patrimônio Histórico, porque... Não! Era antes do IDART, que sabia que eu queria trabalhar com cultura, então, já estava começando, tinha esse papo da minha amiga, mas eu achava que era um Olimpo. Aí me puseram no Patrimônio Histórico e eu achei interessante, e aí, eu comecei a trabalhar no Patrimônio Histórico e eu tive uma sorte danada, porque os meus supervisores, os meus chefes, porque não era estagiária, eu era escriturária, eu tinha que escrever ata, escrever memorando e etc. Mas continuava fazendo faculdade de Direito, continuava fazendo USP à noite, tudo, mas eu já dirigia, nessa época, era mais fácil. Eu tinha uma Brasília Ocre Marajó – chamava Ocre Marajó – ia pra praia nos fim de semana, que os meus pais tinham casa em Ubatuba, tudo. Bom, enfim. Aí, no Patrimônio Histórico, eu aprendi demais, porque eu já estava me formando em direito, mas o que é realmente aplicação na burocracia, como se abre um processo, como se numera; porque as senhoras que fundaram a Secretaria Municipal de Cultura, vieram da Secretaria de Educação e elas ainda estavam lá estruturando, se aposentando em cargos de chefia, elas me acolheram e falaram: “Bom, essa daqui vamos investir”. E eu fiquei lá, e aí fiz coisas, tipo assim, mostra de dança afro-brasileira, na Casa do Bandeirante porque tinha uma exposição do Pierre Verger e aí, eu fui atrás da Zezé Motta porque eu queria uma foto dela pra ilustrar o cartaz dos cursos de dança africanos, assim, então, eu produzi. Com 20 anos, eu produzi coisas de dança no circuito que se chamava Circuito Cultural e, ao mesmo tempo, quando eu conheci esse professor de dança africana, eu voltei a fazer dança com ele, fiz, fiz... Quase virei uma bailarina de dança africana, porque aí podia ser de qualquer cor, não é? Então, eu tentei essa questão. Eu tenho grande prazer em me movimentar e dançar e isso é uma coisa difícil de explicar pras pessoas, porque não é todo mundo que tem prazer, que vai ser profissional, e não é todo mundo que tem prazer que quer ser profissional é uma coisa difícil de explicar até pros pais das alunas de dança que vem perguntar: “Mas o que que a minha filha vai ser quando crescer?”. Bom, estou no departamento do Patrimônio Histórico, me formo na faculdade de Direito, já tinha trancado a Ciências Sociais porque eu falei: “Bom, eu vou terminar a faculdade de Direito e fazer um pós-graduação de qualquer coisa. Vou me largar no mundo, vou morar na Espanha”. Me formei na faculdade de Direito, não fiz colação de grau, porque eu achava que era uma coisa muito agressiva pra mim, eu não ia ser advogada, porque eu trabalhei em escritório de advocacia nessa época, logo no último ano de penal; no primeiro ano, eu já sabia que eu não ia ser advogada. Então, eu falei: “Pai, eu não vou pagar uma nota...” – que é muito caro, aquela questão da formatura, festa, não sei o quê e eu tenho uma coisa dolorosa – “Porque eu não vou seguir essa carreira”. E no dia da colação de grau, me dava vertigens, porque aí foi na São Francisco, a colação de grau de verdade, me arrependi, viu? Eu deveria ter feito esse rito de passagem.
P/1 – A formatura toda.
R – Ah, sim, a despedida de uma estrutura. Eu era muito intensa, sou um pouco intensa ainda, então, tinha que ser, aí baixou a Espanha, chega! Vamos pra colação que realmente significa alguma coisa e não essa coisa oca, que é um canudo oco que a gente recebe. Então, eu já tava na Prefeitura, mas o meu pai me arranjou uma possibilidade de trabalhar com a Zulaiê Cobra Ribeiro, que era uma grande penalista – ainda é – e aí, eu fiquei lá um pouco com ela, mas a primeira vez que eu tive que entrar na Penitenciária do Carandiru, pra atender um cliente dela e vi o que era o sistema carcerário, eu saí, porque eu não sabia aonde tinha estacionado o meu carro. Aliás, eu não sabia nem se eu tinha ido de carro, porque já tinha Metrô, naquela época. Eu tinha ido de táxi e voltava de Metrô, mas eu fiquei procurando o meu carro, quando eu saí, e eu falei: “Não. Isso aqui não vai dar certo. Eu não tenho estômago pra trabalhar nem com direito de família, nem com direito penal, porque eu vi o menino que tinha matado um pai... Era um feirante que ele tinha matado, o feirante e o filho do feirante, e era um menino que eu tinha visto ele na delegacia frágil, chorando... “Doutor eu preciso do meu pai...” Ele entrou na penitenciária, era outra pessoa, ele já queria cinco camisas, dois pacotes de cigarro, não sei quantos, não sei o quê... Eu falei: “Bom, tá na máfia”. Mas, assim, em dois, três dias. Eu falei assim: “Eu não vou aguentar essa história”. Bom, aí, “Tchau Zulaiê”. Eu falei: “Vou ficar no IDART e vou investir”. E aí, que eu falei pro meu pai: “Pai, eu vou ser pesquisadora de dança no IDART”. Ele falou: “Mas o que é isso?”. É um lugar que se pesquisa dança... Eu nunca tinha ido lá. Falei: “Mas eu quero entrar lá, por causa dessa minha amiga”. E aí, o meu pai que tinha... Conhecia o secretário de Cultura, nessa época, apresentou o meu currículo e ele me nomeou. Isso foi no final de uma gestão, que foi a gestão... Foi um ano e meio, sob a gestão do Mário Chamie e entrou uma leva de gente. Eu fui direto pra área de artes cênicas, que não tinha concurso, aliás, não tem até hoje, pra entrar lá; aliás, quase não existe mais, existe só o arquivo, mas não a pesquisa. E eu me lembro, no final de um ano e meio, as pessoas revoltadas, não querendo ser colocadas na rua “Porque nós somos bons”. Aí, eu virei, levantei o dedo e falei: “Pois, eu, pode me botar na rua, porque eu entrei aqui sabendo que eu podia sair daqui a um ano e meio”. Não saí. E o IDART foi a minha segunda graduação, de fato. Porque o IDART é um outro capítulo da minha vida, foi lá que se consolidou a minha vocação, o meu talento de pesquisadora, porque eu tive a oportunidade de conviver com grandes pesquisadores das artes cênicas desse país e é lá que se consolida. Porque talento eu tinha, – não sei se muito ou se pouco – mas eu tive essa oportunidade de trabalhar com gente vocacionada pra pesquisa e isso, em termos do que seja uma pós-graduação, uma graduação, não sei o que significa isso, exatamente, não tem preço. Os pesquisadores do IDART, dessa minha época, tem essa consciência também. O que a gente viveu lá, durante um período, dificilmente – não sei se dificilmente – mas ainda nenhum programa de pós-graduação, pelo menos os que eu conheço, de artes, conseguiu estabelecer. Eu escrevi um texto sobre isso, muito recentemente, faz dez dias, porque diferentemente de uma graduação em Artes, onde você tem a sua pesquisa – que, na verdade, a gente luta pra não ser assim – junto com os seus orientandos... Que, às vezes, tem pesquisas tão diferentes das suas, mas a gente luta pelos grupos de pesquisa, pelas pesquisas solidárias, pelos grupos de fato, lá, nós éramos um grupo, quer dizer não era a minha pesquisa, nem a da Maria Tereza Vargas, nem a da Mariângela Alves de Lima, nem do Lineu Dias, nem da Silvia Fernandes, nem da Lúcia Pereira, nem da Berenice Raulina, nem da Ana Marcondes, nem do Mauro Meiches. Nós tínhamos um compromisso, primeiro, com o dinheiro público e com a documentação do teatro e da dança da cidade de São Paulo. Então, uma vez por semana, a gente se reunia pra ver qual que seria o não documentado e era umas discussões bastante apaixonadas, mas as quais subjaziam teorias da arte da cena e de várias linhas. Então, era uma negociação de uma extrema qualidade profissional e a gente achava... Que eram reuniões de segunda-feira, às reuniões de segunda-feira, toda segunda-feira a gente tinha uma reunião, em que num programa de pós-graduação, a gente tem essa oportunidade atualmente? Eu não conheço.
P/1 – Pra quem não conhece o que quer dizer o IDART?
R – Informação e documentação artística.
P/1 – É da Prefeitura?
R – Da Prefeitura [de São Paulo] ligada à Secretaria Municipal de Cultura. Foi pensado por uma bibliotecária que o nome me escapa agora... Maria Eugênia, eu acho que é, e que como bibliotecária, ela sentia falta de uma documentação e permanência sobre as artes, porque ela era uma das bibliotecárias da Mário de Andrade, que fundou a biblioteca de arte e etc. Então, ela propõe o que hoje a gente chamaria de instituto, que juntasse pesquisadores de várias áreas. Não era só das Artes Cênicas; então, tinha Arquitetura, Música, Cinema, Fotografia. O que mais que tinha? Enfim, e ainda se trabalhava na interdisciplinaridade entre as áreas. Olha, que chique! Ah, Design tinha, Artes Cênicas tava junto, Dança e Teatro. Eu aprendi a estudar dança junto com teatro e até hoje eu acho que em termos de estudos pós-graduados é o que se necessita fazer, é o que é pra ser feito, porque o século 20 propõe o apagamento da fronteira entre as linguagens. Então, tudo bem que a gente especializou muito e pra isso teve que dividir em determinados momentos, mas em termos de estudos pós-graduados em pesquisa de ponta, separar é ir contra a história das vanguardas, entendeu? Do modernismo e do pós-modernismo, muito mais ainda, e do pós-pós-modernismo. E isso, o embate entre as áreas – que é embate – irmãs, me parece muito mais salutar do que a divisão.
P/1 – Foi um pouco depois que o IDART era no centro cultural você lançou o livro com o Lineu Dias?
R – O IDART nessa época era na Casa das Retortas.
P/1 – Depois foi pro Centro Cultural?
R – É porque ali tem aquela confusão dos projetos públicos que não se sustentam o tanto que a gente gostaria, nas gestões. Então, teve um momento que eu não sei porque a gente mudou da Casa das Retortas, mas mudamos... Ah, porque tinha que juntar todas as estruturas no Centro Cultural, que vocês sabem, era pra ser uma biblioteca. E, de repente, o Mário Chamie achou que era pra ser um centro cultural com teatro e não sei o quê. Por isso que chovia, os teatros não tem tratamento acústico, porque era pra ser um auditório que nem uma biblioteca chiquérrima tem que ter, não quatro teatros, sei lá. Mas, isso são questões históricas, eu não estou querendo dizer que o dado foi certo. Foi o que foi. Foi o que o momento e os atores históricos, naquela época, puderam fazer. Na inauguração do Centro Cultural chovia tanto que parecia uma catarata, aquelas rampas assim... E as bibliotecárias chorando porque os livros e os discos do Mário de Andrade, inclusive, estavam embaixo da catarata. Não gente! É dramático. Eu tenho extrema admiração por bibliotecária, respeito, não me dou tão bem, mas tenho respeito absoluto, quase tenho veneração republicana, pelo devotamento republicano delas, nem sempre tão republicano, porque é uma gente que guarda o que a gente tem de melhor ou de pior. Não importa. Eu tenho uma admiração e é muito gozado porque você fala com uma bibliotecária em São Paulo e elas falam igualzinho em São Paulo, em Nova York; falam igualzinho na Espanha e no México. É a mesma língua, é uma raça, que é lindo porque elas guardam, elas têm os mesmos princípios. É muito interessante. Choravam, no Centro Cultural. Então, aí, nós lançamos – que eu já tinha lançado outro – que é o “Imagens da Dança em São Paulo”, o primeiro.
P/1 – Mas só você, né?
R – É, mas com uma equipezinha que era eu, Lineu Dias e Simone Coelho. Naquela época estava no IDART; não era, mas estava.
P/1 – Memórias da Dança é parte do acervo do IDART?
R – É, é um álbum.
P/1 – É uma leitura do acervo do IDART?
R - É porque, na verdade, me foi proposto: “Faz um negócio de dança porque de teatro nós já fizemos.” E eu olhei, falei: “O que eu vou fazer?” Vou fazer uma coisa que começa em 1924, que parece que é o primeiro registro que a gente tem, que era da (____________?) (____________?), e vai até 89, na verdade 87, que eu parei um pouco antes. O livro foi lançado em 89. Ou eu tento amarrar isso de outro jeito, que aí eu fiz aquela, os prolegômenos de uma história de dança a partir das imagens. Mas isso eu falo agora, porque, na época, eu falo que aquilo tinha que ser mais interessante do que simplesmente uma coleção de fotos com textos enormes no meio, e aí eu inventei essa coisa de chamar de moderno, clássico e contemporâneo, que foi super combatido porque as pessoas falam: “Dança não se classifica. Você está classificando, isso é moderno, mas vai ser contemporâneo daqui a não sei quanto tempo.”
(PAUSA)
R – Uma coisa que eu esqueci de dizer, que eu não era estagiária, eu era escriturária no departamento de Patrimônios Históricos. Na divisão de museus, a diretora era Deise Ribeiro que era uma socióloga de grande visão do que fosse o museu e de como se faz um inventário. E sob a direção dela, estavam as casas sertanistas e os espaços históricos da Secretaria Municipal de Cultura. Então, Casa Marquesa [Solar da Marquesa de Santos], aquela casa número um que é o Pátio do Colégio. E ela viu... Eu entrei junto com os escriturários – que nem chama escriturário mais, porque vai mudando os nomes – que eram pessoas que já estavam fazendo faculdade. Então, tinha pelo menos três assim. Que era uma espécie de tropa de choque, mas ela poderia ter deixado a gente datilografando e máquinas IBM elétricas – que eram super chiques, que eu não tinha na minha casa, isso, então, já era máquina elétrica – datilografando memorando e levando livro de carga pra cima e pra baixo e não participando das reuniões. Ela botou a gente... Era uma educadora, ela dava aula... Era historiadora, no Mackenzie, tá muito ligada... Tava, deve estar ainda, com a estrutura de ensino das Universidades Mackenzie. Então, ela botou a gente pra fazer coisas, inclusive aquilo que eu falei, de fazer eventos nas Casas Sertanistas, de escrever roteiros de circuito cultural. Roteiros não, mas os textos dos roteiros do circuito cultural e o Júlio Abe Wakahara fala assim – eu não sei o nome dele certo. Tinha uma divisão de alguma coisa que ele dirigia dentro desse patrimônio e ele estava inventando um museu de rua. Então, a gente participava como escriturário das montagens do museu de rua, literalmente, primeiro, datilografando os textos, que aí que eu entendi o que que é bandeira, o que não é bandeira, o que é bold, toda a questão do design ligada com a editoração gráfica aprendi com o Júlio; mal, aliás, porque eu não sei fazer direito, mas ele tudo era super organizado. Então, assim, como se organiza um cartaz e etc, foi com o Júlio. E a gente colava as fotografias do museu de rua com cola branca, em tardes memoráveis, que era muito interessante esse trabalho que a gente fez, ou seja, eu aprendi sendo escriturária – que, na verdade, a gente era escriturária, mas trabalhava como estagiária desses grandes profissionais naquele momento. E isso eu passo pros meus estagiários, que não é um desdouro você colar a fotografia na placa do museu de rua, que não é um desdouro você estar nessa linha de montagem da produção cultural; é uma coisa fundamental porque faz parte você aprender a fazer isso pra depois fazer o resto. Então, nem todo mundo tem essa oportunidade que nós tivemos, de ir atrás de um show da Zezé Motta no Auditório Augusta, pra ver se ela doava uma foto dela. É uma coisa assim, como que a arte, que numa exposição de arte, o público vai ver, um espetáculo de dança, aquela coisa maravilhosa? Ela é construída de vários metiês, de várias pessoas e isso eu aprendi fazendo. E é uma coisa que eu acho que muitas pessoas que não tem essa oportunidade não sabem e, às vezes, tem que aprender às duras penas.
P/1 – E Cássia como é que surgiu a demanda de você fazer o Imagens da Dança? Como escriturária?
R – Não. Aí já é outra coisa. Eu já estava como pesquisadora de assuntos culturais, se chamava. O IDART tinha pesquisadora de assuntos culturais.
P/1 – Você foi promovida?
R – Eu fui promovida. Não, na verdade, não existiam promoções, foi uma oportunidade que eu tive de ter... Eram cargos em comissão, então, de ter sido nomeada. Eu era escriturária e fui nomeada pra um cargo de comissão. Eu e mais 20, porque foi uma leva que entrou uns dois anos antes, um pouco menos, do fim da gestão do Mário Chamie. Fui conversar com ele, ele falou: “Você quer trabalhar com dança? Então, vou colocar você na área de dança.” E eu já era formada em direito, porque uma das condições pra ser escriturária era ter terceiro grau, naquela época. A história do IDART é mais complicada do que isso e aí eu entrei na equipe, também tive a oportunidade da convivência com esses pesquisadores fantásticos e aí virei uma espécie de aprendiz de feiticeira do Lineu Dias.
P/1 – Lineu?
R – Lineu Dias.
P/1 – Então, assim, quem que é o Lineu?
R – Lineu Dias é um ator gaúcho, que foi casado com a Lilian Lemmertz, pai da Júlia Lemmertz, e que veio pra São Paulo. Ele trabalhou com o Abujamra lá em Porto Alegre e, num determinado momento, que eu não sei bem a história, ele veio trabalhar com o TBC, aqui em São Paulo. A mulher dele e ele... E aí, o Lineu tem toda a história de como começa a crítica de dança especializada em São Paulo, mas o que ele conta, e é fato, é que ele foi se formando como ator. Ele era advogado também, era advogado, Lineu é morto, já faz um tempo, e ele como advogado, ele não fez escola regular de teatro, não tinha isso, na época dele, ele foi fazer um pós-graduação, acho que em Yale, ele falava muito bem inglês, recebeu a bolsa e foi e lá entrou em contato com a dança moderna, que ele amava. Então, veio com um monte de livros, assim, um monte de livros eram assim, cinco, que era o que tinha na época. Então, veio com livros, veio com não sei o quê e o Sábato Magal, de quando era crítico de dança... Não, não é assim, de teatro, ele começou a fazer traduções pro [jornal] Estado de São Paulo, traduções literárias, traduções de artigos e o Sábato entrou pra fazer crítica de teatro, falou: “Lineu, você não quer fazer crítica de dança? Você gosta muito de dança, você viu muita dança”. E ele começou e aí quando fundou o IDART, que não é da minha fase, o Lineu foi incorporado à equipe como “o” pesquisador de dança. Eu fui “a” segunda, mas já com uma outra possibilidade. Então, o Lineu o que ele fez? Tem essa moça aí, sabe escrever relativamente bem, o IDART tem essa coisa dos fotogramas, então, a gente identificava. Tem Marika, Décio, tá, tá, tá, Marika Gidali, tá, tá, ta, cada fotograma... Bibliotecária, né, gente?! Eu falei que o IDART foi fundado por uma bibliotecária, então, tinha a questão dos formulários, mas de vez em quando, tinha umas coisas fantásticas: “Vamos fazer uma exposição de Mário a Mário.” Eu entrei nessa época: Mário de Andrade a Mário Chemie. Pesquisas de dança. Passei, sei lá, um mês, dois meses, enfurnada no arquivo do Estadão, pesquisando dança de Mário a Mário, em todos os jornais que o Estadão guarda, além de ele próprio. Olha que oportunidade! Tirando fotocópia de microfilme. Eu tenho esse material, pra montar uma exposição pequena. Mas aí, eu fiz uma varredura que começava de Mário a Mário e vamos que vamos. Eu aprendi muito, sempre com essa questão do Lineu Dias, que eu aprendi com ele, mas também da Maria Tereza Vargas e com os meus colegas, mas em dança, principalmente, com o Lineu Dias, que em dança você tem que ver dança pra entender de dança, então, não adianta... Quer dizer, pra mim, a minha formação no IDART, eu ia a todos os espetáculos de dança que existiam na cidade, quase. Hoje em dia, eu vou a 40% dos espetáculos de dança, por quê? Eu vou menos? Não, eu vejo mais, porque aumentou muito, graças a Deus, a quantidade, mas, na época, a gente cobria quase tudo, porque tinha que saber o que documentar ou não. Então, o trabalho que eu fiz desde o comecinho do IDART... E eu me lembro que eu falei, uma vez: “Bom, Lineu, eu sou pesquisadora de dança. O mínimo que eu posso fazer é ver espetáculo de dança.” Aí, ele virou pra mim e falou: “Não, é o máximo que você faz.” Não é o mínimo. Porque eu considero um espetáculo de dança, um livro que eu leio, a cada noite, às vezes, até uma enciclopédia, às vezes, um pequeno artigo, pequeno ensaio, às vezes, é uma orelha de um livro, mas, às vezes, você senta na frente de uma obra de dança e você tá na frente de uma enciclopédia e essa experiência é única. Só que depois a gente tem que decupar, traduzir em palavras, traduzir em cultura letrada, em cultura visual, em suporte visual, enfim, toda aquela discussão sobre memória, que você sabem muito melhor do que eu. Mas, enfim, isso é uma coisa que eu aprendi com o Lineu: “O máximo que você pode fazer.” Que é o máximo, é ver e estabelecer com aquele espetáculo e com aqueles artistas, uma atitude de profundo respeito. Não é fácil.
P/1 – Não sei se é uma pergunta ou só um comentário, mas na abertura do Imagens da Dança, você fala de fotografia e dança, coisas tão... Suportes tão... E como é que foi trabalhar com fotografia e dança essas coisas tão distantes, assim, aparentemente?
R – Olha, eu não escolhi. Eu cheguei lá, isso era um estado da arte, digamos assim, do IDART. Então, pra mim, foi uma oportunidade rara do espetáculo que é efêmero e que é um contínuo no tempo, no espaço diante dos nossos olhos, está sendo decupado. Então, pra quem quer estudar dança, isso é ouro em pó, porque para e... Depois, na pós-graduação, eu fui estudar o Grau Zero da Escritura, do Barthes, e que é isso que ele coloca: qual é o grau zero da escritura cinematográfica? A gente sabe que não é fotografia. Bom, depois das mídias digitais, não tem mais grau zero porque não existe mais fotograma, então, é outra história, mas naquele momento não tinha. Tinha o U-Matic, não se colocava a questão de filme; era muito caro, filme em U-Matic. Eu tive essa oportunidade por que da onde vem essa questão da documentação do teatro? Vem de uma experiência da Tereza... Francesa, que já estava sendo feita na França por pesquisadores. Então, ela traz e propõe pra Maria Eugênia, que é a fundadora do IDART, fazer isso em teatro e também em dança. Então, em dança era mais complicado ainda porque teatro a gente fazia foto, foto PB, foto cor e gravava o espetáculo. Então, tinha o registro da trilha sonora. Dança não se gravava porque ninguém falava nada. Você percebe? Se falava como? Por metáforas corporais que é a questão basal. Então, eu tive essa sorte de, primeiro, entender muito de fotografia, que eu entendo até hoje, que eu fui educada pra fazer o enquadramento; tudo isso ninguém me ensinou, eu fui aprendendo com os fotógrafos, que eram grandes fotógrafos que trabalhavam pra gente. O Djalma Limonge Batista, o João Caldas, o (Gaopido?), a Marinez Maravalhas Gomes, quer dizer, pessoas assim que... Agora, tinha uma coisa tão preciosa do começo do IDART, que davam pros pesquisadores: a Polaroid. A gente fotografava o espetáculo por Polaroid, depois dava na mão: “Nós queremos isso.” Acabou! Porque o filme Polaroid sumiu do mercado, sei lá. E também começou a se confiar nos fotógrafos, porque ou você delega ou você está preto, acredito, porque quando eu entrei as Polaroids já estavam aposentadas. Então, a questão da fotografia é uma relação que, pra mim, para além da questão do registro fotográfico em si, da dança, me proporciona um instrumento de estudo de dança e eu estudando aquilo ali, eu comecei a ver que o registro em si, quando você para aquele espetáculo através da fotografia, ali tem indícios do espetáculo como um todo e que é isso que eu tenho que fazer no Imagens da Dança, quer dizer, é uma forma de enxergar a história da dança dentro da obra de dança, no caso na Imagens da Dança em São Paulo, numa tradução da obra de dança que é o registro fotográfico. Eu fui estabelecendo uma metodologia de estudo da dança. O que me ajudou muito com isso foi uma professora, que agora é a minha colega, é uma pesquisadora com a quem eu tenho dois livros publicados, que ela é a Lenora Lobo, que num determinado momento, vindo do Laban Center, caiu no IDART como pesquisadora de assuntos culturais. Não foi só a Simone Coelho que passou por lá. Aí, a Mariângela Alves de Lima, que é uma grande... Era a coordenadora de artes cênicas, olhou pra Lenora e falou assim: “Mas você vai ser muito infeliz aqui, você tem que dar aula, você tem que dançar.” “Ah, mas eu tenho cargo de pesquisadora de assuntos culturais.” Ela falou: “Mas e daí?! Vai dar aula.” Ela propôs um curso de Laban, fundamentos de Laban, e eu fui fazer. E aí, eu entendi tudo que uma professora minha de dança, que eu já estava fazendo dança... Quando eu voltei da Espanha – foi uma história comprida – eu fui pra Espanha trabalhei com dança, etc... Quando eu voltei, eu fui cair na Maria Duschenes, porque... Não me lembro como que eu fui cair da Maria Duschenes... Ah, Lineu falou: “Vá fazer Maria Duschenes, que você gosta de dançar, mas não quer ser profissional. Lá tem uma coisa interessante.” Mas eu não entendia o que a Maria Duschenes falava. E quando a Lenora apresentou todos os diagramas, a estruturação – que ela vinha fresca pela Valerie Preston – eu falei assim: “Agora eu estou entendendo tudo que aquela mulher fala”. Tudo não, porque quem sou eu pra entender tudo que a Maria Duschenes fala? Que ela é outro gênio que eu tive a honra de conhecer e compartilhar de perto determinadas estruturas do ensino, da arte dela. Mas, aí, eu comecei a ver que a coisa é muito complicada, mas não é o bicho de sete cabeças e a partir dessa experiência com a Lenora, eu também apliquei... Eu fiz isso que eu chamo de prolegômenos de como estudar dança através da fotografia, que está no Imagens da Dança em São Paulo. Tinha esquecido da Maria Duschenes...
P/1 – Depois a gente retoma, na próxima.
(FIM DA ENTREVISTA)
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