Projeto Medley
Realização Museu da Pessoa
Entrevista de Ellen Cristhyanne Araújo da Silva Costa
Entrevistada por: Luiza / Lila
Local
Código PCSH_HV963
Transcrito por Camila Inês Schmitt Rossi
Revisado por Izadora Telles
Título: A gente nunca sabe a força que tem
Minibio: Ellen é formada em Técnica em Processamento de Dados, possui graduação em Marketing e mestrado em Engenharia de Produção. Trabalhou em instituições bancárias, de telecomunicações e no Sistema S nas áreas de marketing e comunicação.
Sinopse: Ellen, filha de cearense e amazonense, nasceu em Manaus. Recorda de sua infância, onde podia brincar na rua com os colegas. Sempre teve habilidade com escrita e comunicação, habilidades estas que, posteriormente, se transformaram em seu trabalho. Inspirada pelo pai, ingressou na área de telecomunicações e, tempos depois, iniciou o trabalho em instituições bancárias. No período em que ingressou em um novo emprego, passou por dificuldades na vida pessoal, em especial, relacionada à saúde. Após descobrir ser possuidora de uma doença degenerativa, com a ajuda de sua família e de seu filho com nome de anjo, Ellen conseguiu redescobrir um sentido para a vida, pois, em suas palavras, a gente nunca sabe a força que tem.
Tags: Comunicação. Marketing. Parkinson. Saúde. Filho. Família. Vida. Resiliência. Infância. Estudo.
P/1 – Ellen, eu queria que você começasse se apresentando, dizendo seu nome completo, data e loca de nascimento.
R – Certo. Eu me chamo Cristyanne Araújo da Silva Costa. Eu nasci dia 25 de novembro de 1980, em Manaus, Amazonas. E o que mais?
P/1 - Era isso mesmo! E quais são os nomes dos seus pais?
R – Meu pai se chama Francisco Romildo e minha mãe, Laíde.
P/1 – E qual é a atividade deles?
R – Meus pais são aposentados, né. Meu pai trabalhou muitos anos na área de telecomunicações. Minha mãe trabalhou na indústria, mas abdicou da profissão pra cuidar dos filhos. Tenho dois irmãos. E minha mãe continuou como dona de casa cuidando dos filhos. Hoje eles estão aposentados, moram em Fortaleza.
P/1 – E você sabe como eles se conheceram?
R – Sim, essa história eles contam sempre. Meus pais se conheceram na casa de uma tia do meu pai. A minha mãe trabalhava junto com essa tia do meu pai, e a primeira vez que ela o viu foi lá na casa dessa tia do meu pai, mas ela sempre depois encontrava com ele, reconheceu ele, que eles frequentavam uma casa de dança de salão na época, eles gostam muito. Eles têm 50 anos de casados e, até hoje, até antes da pandemia, todo final de semana eles saíam pra dançar dança de salão, bolero, então eles se conheceram, de fato, numa casa de dança de salão.
P/1 – E seus irmãos? Como era sua relação com eles?
R – O meu irmão Madson é meu irmão mais velho. Ele mora em Fortaleza também, e assim, uma relação de muita saudade, pois já tem mais de 20 anos que ele mora em Fortaleza, construiu família lá em Fortaleza. Meu pai é cearense, minha mãe amazonense. E a minha irmã Kelly é cinco anos mais velha que eu, somos de cinco em cinco, né, eu vou fazer 40, minha irmã 45 vai fazer esse ano, e meu irmão, 50. Então, minha irmã mora em Manaus, também fez mestrado em Engenharia de Produção, meu pai trabalhou na área tecnológica, de telecomunicações, meu irmão também é engenheiro de produção, aí eu brinco eu formei em Marketing, mas acabei fazendo mestrado em engenharia de produção pra poder ter assunto com eles!
P/1 – E você lembra da sua casa de infância?
R – Sim, eu lembro bem, meu pai ele possui esse móvel até hoje. Fica na rua de uma igreja que eu frequento até hoje, também num bairro próximo que eu moro atualmente. Era uma casa de dois quartos. Nós éramos três irmãos e minha mãe também adotou uma garotinha por um tempo, que foi minha irmã de criação, ela morou com a gente até os 16 anos, depois ela foi embora morar com os pais, e nós éramos quatro filhos no mesmo quarto e meu pai e minha mãe no outro quarto. Até hoje meu pai possui esse imóvel. Ele fez algumas adaptações, algumas modificações, e depois de casada, antes de morar aqui nessa casa que nós moramos atualmente, eu morei dois anos lá nesse imóvel pra gente se capitalizar, né, deixamos de pagar aluguel pra gente se capitalizar pra comprar o imóvel que nós moramos hoje.
P/1 – E você lembra da rua da época, do bairro, tem alguma lembrança?
R – Sim, a mudança principal pra mim aqui é nós brincávamos muito na rua, né. Naquela época, 20, 30 anos atrás, não, 30, 35 anos atrás era uma rua relativamente tranquila. Tinha as atividades da igreja com muitas crianças. Eu tive uma infância muito feliz, tive a oportunidade de ter contato com muitas crianças, minha rua era uma rua de muitas crianças, e a gente brincava de bola, de correr, pega-pega, essas brincadeiras que acho que hoje em dia é difícil... Nós vemos as crianças saírem do computador. Eu tenho um filho de 10 anos que brinca na rua, mas ele gosta mais de eletrônicos. Então, a minha infância foi muito ativa, assim, e uma recordação que eu guardo com muito carinho. Eu tenho amigos até hoje da época que nós brincávamos na rua jogando bola, era bem tranquilo. Hoje em dia não dá mais pra fazer isso. Até quando eu morei nessa última vez lá nessa rua, tem um trânsito de carros muito grande, então perdeu um pouco dessa liberdade de brincadeira de rua.
P/1 – E você lembra de alguma história marcante com seus irmãos, com seus amigos, nessa época?
R – Uma história marcante... Meu irmão... Posso contar da história dele. Eu tinha uma amiguinha que morava quase em frente da minha casa, na mesma rua, nós brincávamos muito, que é a Patrícia. Nós éramos amigas de infância, e ele começou a namorar a irmã dela. Elas eram cinco mulheres, e o pai tinha vindo de Fortaleza – coincidentemente, a terra do meu pai – transferido pra Manaus com cinco filhas mulheres e a esposa, e nós ficamos muito unidos, nossa família. E foi na ocasião que meu irmão começou o namoro com a irmã dela, e quando ela foi embora pra Fortaleza, eles namoraram mais de 10 anos, eles namoraram bastante tempo só por telefone, não tinha tanto recurso tecnológico como tem hoje, e ele acabou indo pra Fortaleza pra se casar com ela, e eles são casados há mais de 20 anos, e eu sou amiga da irmã dela até hoje.
P/1 – E nessa época você pensava que que você queria fazer quando crescesse?
R – Eu pensava em várias coisas. Eu queria ser professora, aí depois eu queria ser jornalista, não tinha uma profissão muito definida como meus irmãos, todos fizeram escola técnica, que é a escola de formação da área tecnológica, eletrônica, informática, essas coisas. Eu era caçula e eu via meu pai já trabalhando com telecomunicações, e meu irmão fazendo curso técnico em eletrônica, minha irmã também fazendo curso técnico em eletrônica, e eu via aquilo e eu não queria aquilo pra mim, assim, eu percebia e dizia: “Não, não é isso, eu posso não saber o que eu quero ainda, mas eu não quero trabalhar com essa área de exatas”, nunca fui muito boa em exatas, até hoje não sou, tive bastante dificuldade pra concluir o mestrado, minha irmã me ajudou muito, mas eu sou muito mais da área da comunicação, sempre gostei muito de escrever. Na escola os professores tomavam as minhas provas porque eu era a última a entregar; prova de geografia, prova de história, prova discursiva, eu sempre tive muito mais habilidade para essa área sem ser de exatas, pra área de humanas, mas não tinha nada muito certo em mente, não.
P/1 – E qual é a sua primeira lembrança da sua escola?
R – A primeira escola que eu estudei ficava na rua da minha casa, do lado dessa igreja, que eu frequento até hoje, quase em frente da minha casa. Foi a primeira escola que eu lembro que ela tinha um parquinho maravilhoso, de areia, muitos brinquedos, uma área de areia, uma área muito arejada, e me lembro que tinha de muitas escadas também. Nós brincávamos que tinha, como era de fundo pra igreja, uma área mal-assombrada, essas coisas de criança, tinha os corredores bem compridos. Eu lembro muito da sopa que servia nessa escola que a gente chamava... Que era uma sopa com macarrão bem pequenininho. Se eu sentir o cheiro, até hoje me traz a recordação da escola.
P/1 – Você lembra de algum professor marcante dessa época?
R – Dessa época eu não tenho lembrança de professores, assim, de nome, não tenho. Eu passei por vários professores. Como era uma escola muito grande, então tinha uma um pouco de rotatividade de professores. Eu não tenho memória de um professor, uma professora que tenha me marcado muito na infância, não.
P/1 – E aí você ficou nessa escola até que quantos anos? Você chegou a mudar de escola, depois?
R – Ah, sim. Eu fiquei nessa escola até, acho, 5 anos, 5, 6 anos, e eu fui pra uma outra escola que era próxima à minha, na rua principal, e estudei lá por nove anos, por oito anos. Fiz do primeiro ano que, nessa época, era de primeira à oitava série, que a gente chamava ainda. E eu estudei por oito anos nessa escola. Foi quando os meus irmãos já estavam formando, entrando pra faculdade, e meu pai conseguiu melhorar um pouco de vida ao longo dos anos. Como ele não precisava pagar a escola dos dois, porque um já tinha se formado no nível médio e já estava cursando faculdade, e a minha irmã estava na escola técnica, e eu tive oportunidade depois de ir pra uma escola particular, na qual eu fiz técnico em processamento de dados, acabei fazendo um curso técnico também, pra não quebrar o rito, digamos assim, da família, a tradição, mas eu vi que realmente não era aquilo que eu queria, mas cursei o segundo grau, nível médio, em processamento de dados. Eu passei por três escolas, na verdade, na vida, e depois a faculdade.
P/1 – E nessa época da segunda escola você lembra de alguma pessoa marcante? Ou amigo, ou de professor...
R – Sim, eu gostava muito de participar dos eventos culturais da escola. Em tudo eu estava envolvida: campeonato de leitura, feira de ciências. Eu lembro que nós fizemos uma feira de geografia do Amazonas na época que o meu tio me ajudou e nós construímos uma maquete, uma reprodução do teatro Amazonas, que é bem famoso aqui em Manaus. Eu estava na quinta/sexta série, e foi bem marcante essa feira, assim, que o nosso trabalho recebeu várias premiações na escola. Então tudo de diferente na escola eu queria estar envolvida. Então eu sempre fui muito comunicativa, eu sempre tive facilidade de fazer amigos, pelo menos, há muito tempo atrás, eu sempre fui assim, e essa parte cultural eu sempre gostei de participar.
P/1 – Você lembra qual que foi seu trabalho da feira de ciências?
R – Foi a feira de geografia do Amazonas. Foi uma maquete do teatro Amazonas, e nós contávamos, apresentávamos a maquete no stand da feira, e nós contávamos todo o histórico, tivemos que visitar o teatro várias vezes por conta desse trabalho. Foi uma experiência muito bacana. Até hoje quando eu tenho oportunidade de passar na frente do teatro ou ir ao teatro, eu lembro muito de tudo que eu estudei, de todo esse processo de aprendizagem.
P/1 – E nessa última escola, como que foi?
R - Essa última escola eu fiquei três anos, fiz o curso técnico processamento de dados. Foi uma experiência também muito boa. Eu tenho amigas, mais especificamente duas amigas que eu conheci nessa época, que são a Paula e a Lorena. Há dois dias atrás estávamos tomando um café aqui em casa e estávamos relembrando alguns fatos escolares. A gente sempre participou de muita coisa também na escola, foi uma época muito proveitosa, muito feliz da minha vida também.
P/1 – Você quer contar alguma lembrança que você tem?
R – Pode ser de um trabalho também que nós fizemos. Nós fizemos um trabalho que era pra uma feira de ciências e foi um trabalho que nós fizemos – eu não sei o nome exatamente que nós usamos – mas era... Na sala de aula nós construímos tipo um túnel do tempo, desde a época quando não existia tecnologia, nós reproduzimos uma área que era só trabalho manual que, inclusive o meu grupo estava responsável por essa área – se eu não me engano, foi sobre os séculos, século XVIII, XIX, XX, foi alguma coisa nesse sentido, não recordo muito bem o nome –, mas o contexto era que reproduzíamos três épocas na sala de aula, e o visitante passava por um túnel, e nós nos fantasiamos, eu, a Paula, a Lorena e a Lívia, que era minhas amigas na época (até hoje eu tenho algumas fotos, seria até bom mandar algumas dessas fotos), na qual estávamos caracterizadas de mulheres de época. Aí tinha depois o século seguinte, e a terceira parte do túnel era como se fosse alta tecnologia, então foi um trabalho bem marcante.
P/1 – E nessa época já da adolescência, que lugares você gostava de frequentar, como você se divertia?
R – Já tínhamos shopping na cidade nessa época. Em Manaus demorou um pouco a chegar, as outras cidades já tinham shopping, mas Manaus só foi chegar nessa época mesmo. Gostava de shopping, de cinema, casa de amigos, discoteca. Tinha uma discoteca aqui em Manaus, que era funcionava a tarde, matinê, e eu gostava bastante. Eu gosto muito de dançar, a minha família já tem essa tradição. Meus pais se conheceram numa casa de dança, meu irmão gosta de dançar, dança muito bem, a minha irmã, e eu sempre gostei de dançar também, gosto muito de música e de dança.
P/1 – E nessa época rolava flerte, como que eram as relações amorosas?
R – Ah, sim, vários, sempre tem, assim, tinha algumas paqueras. Na verdade, assim, meu primeiro namorado eu tinha 14 anos, e eu conheci nessa outra escola. Ele foi meu professor inclusive, de Geografia, ele era dez anos mais velho que eu, acabou que nós nos apaixonamos. Eu ia me casar super jovem, nós namoramos quatro anos e nós já pensávamos... Como minha mãe se casou muito cedo, 15 anos, minha mãe já teve meu irmão. Então as pessoas até se assustavam: “Ah, mas já vai se casar?”, minha mãe falava: “Ah, eu confio na maturidade, na educação, eu não acho que seja hora, mas se ela quiser se casar, não tenho nem como dizer não, porque eu me casei com 15 anos”. E nós namoramos quatro anos, foi quando eu mudei de escola, e eu fui percebendo, conhecendo outro mundo, outras pessoas, outros amigos, eu falei: “Acho que não é a hora ainda, tem todo um mundo aqui, toda uma vida pra viver”, e aí acabou que não deu certo mais. Eu namorei, né, tive pequenos namoros na escola, mas nada muito duradouro, não.
P/1 – E nessa época você conversava ou com suas amigas, com sua mãe, ou com seus irmãos, sobre preservação, ou doenças sexualmente transmissíveis? Era uma discussão que vocês tinham?
R – Sim, a minha mãe sempre foi muito aberta, sempre foi muito amiga minha, da minha irmã, do meu irmão, então, até hoje, a gente tem uma relação muito aberta. Eu sempre conversei sobre tudo com a minha mãe, ela sempre explicou, tirou todas as nossas dúvidas, né. Eu tinha amigas que tinham vergonha de perguntar pras suas mães e iam pra minha casa pra perguntar pra minha mãe sobre a vida sexual, sobre até a primeira menstruação e tudo. Então, assim, eu graças a Deus, sempre tive uma orientação muito boa nesse sentido, a minha mãe sempre foi muito tranquila, nunca tive problema.
P/1 – Você lembra de alguma conversa com ela específica? Ou sobre menstruação, qualquer coisa do tipo?
R – Não, eu lembro do dia que eu fiquei mocinha, que... Meus avós tinham um sítio no Janauacá, que é um município aqui próximo de Manaus, tinha que ir de barco e meus avós já tinham há muito tempo esse sítio, e eu nunca tinha ido – que meu pai não gosta, não gostava, até hoje, de sítio, de mato, de água porque ele não teve uma experiência muito boa. Meu avô, pai do meu pai, morreu afogado no Rio Negro, aqui em Manaus, no Amazonas, e meu pai não tem uma experiência muito boa, acho que ele ficou um pouco traumatizado. Então nós não tínhamos muito essa cultura, que as pessoas que mora aqui em Manaus têm até hoje de ir pra sítio – então lembro que foi bem marcante, porque foi a primeira vez, eu tinha 12 anos, foi a primeira vez que nós íamos a esse sítio. Nessa viagem eu acho que eu fiquei tão emocionada de fazer essa viagem pro sítio dos meus avós, que todos meus primos iam, todo mundo só falava nisso, e nessa viagem eu fiquei mocinha, aí a minha mãe, né: “Calma”, que eu lembro que eu não queria, porque eu não queria deixar de ser criança, eu ainda brincava de boneca ainda, depois tudo se encaixou.
P/1 – Você lembra de alguma dúvida que você tinha, que você perguntava pra sua mãe?
R – Não, a gente sempre falou tão claramente sobre tudo, não lembro de nada específico, não nesse aspecto.
P/1 – E você comentou que não queria deixar de ser criança, os seus hábitos mudaram? Você deixou de brincar de boneca ou ficou tudo meio parecido?
R – Não, eu continuei brincando por um tempo, mas aí, até vendo, porque a minha irmã é cinco anos mais velha do que eu e a gente sempre teve uma relação muito boa apesar da diferença de idade, e eu acho que eu comecei a entrar nesse mundo com as amigas da minha irmã, de sair sempre com ela, então acabou que aconteceu naturalmente essa maturidade e essa transição da vida de adolescente pra vida jovem e adulta.
P/1 – E como foi sair do colégio, se formar? Você entrou direto na faculdade ou você esperou um pouco?
R – Não, eu terminei o ensino médio e eu fiz e vestibular no final do ano, eu lembro que eu fiquei muito em dúvida em que fazer, eu fiz vários testes vocacionais, eu sabia que era alguma coisa na área de comunicação, mas não tinha isso muito sólido e acabei me inscrevendo pra jornalismo. Eu passei na primeira fase. Na época eram duas fases, eu passei na primeira fase pra jornalismo e não passei na segunda. Eu disse “Ah, não vou ficar “tentando a vida toda””, e meu pai falou: “Vamos colocar no cursinho”. Aí eu fiz um ano de cursinho, e depois, em seguida, na faculdade que eu fui me inscrever pra fazer vestibular, não tinha jornalismo, aí eu vi lá Administração e Marketing. Quando eu olhei a grade curricular, tinha Publicidade, Propaganda, essa parte mais da área da comunicação mesmo, daí eu optei e fiz, foram cinco anos, né, de formação. Eram cinco anos Administração com ênfase em Marketing, e foram cinco anos, assim, muito bons.
P/1 – Queria saber como que foi entrar na faculdade? O que você costumava fazer? Como foi esse período?
R – Ah, era um mundo novo. Até, queria voltar um pouco antes de entrar na faculdade. Quando eu estava cursando, eu acho que o segundo ano no nível médio, eu tinha uma matéria que era estágio curricular. Eu tinha que cumprir uma carga horária de estágio porque meu curso era técnico, e aí meu pai trabalhava, na época, na TelAmazon, que era Telecomunicações do Amazonas, empresa da área de telecomunicações daqui do Amazonas, e ia abrir um processo seletivo pra filhos de funcionários, pra fazer o que hoje chamam de jovem aprendiz, que era um estagiário. E eu fui fazer o teste e aí consegui ficar, eu entrei com 17 anos. Foi meu primeiro emprego nessa experiência profissional, digamos assim, e quando eu entrei na faculdade eu já trabalhava. Então, eu fiquei 17, 18 no estágio e, quando terminei meu estágio, eu já fui contratada, e eu fiquei nessa empresa por mais de cinco anos, uns quatro anos. Então quando eu estava na faculdade eu já tinha responsabilidade de trabalhar o dia inteiro. Quando saía do trabalho eu ia pra casa, comia alguma coisa rapidamente, ia pra faculdade e ficava até dez horas da noite. No início, acho que eu passei de um a dois anos, que meu pai ia me deixar e me buscar todo dia na faculdade, porque era noite e relativamente perigoso se eu viesse de transporte público. E quando eu tirei a minha carteira, minha habilitação, acho que no terceiro ano de faculdade, meu pai me deu um carro, não era novo, mas ele sempre se sacrificou pra tentar fazer o possível. Eu já comecei a cuidar da vida, trabalhar, estudar, dirigir, responsabilidade da vida adulta.
P/1 – E como foi nesse estágio depois você foi efetivada? Como foi essa sua primeira experiência profissional?
R – Foi bem marcante. Eu trabalhava com o público, no atendimento ao público. Foi uma época bem difícil, aprendi muita coisa. Porque foi bem no auge da privatização da empresa, ela era uma empresa pública, passou a ser uma empresa privada, então tinha muitos problemas, muita conta errada, foi no auge da transição de sistemas, e eu trabalhava na linha de frente no atendimento ao público. Então eu lembro de muitas histórias bem constrangedoras, que cliente chegava lá chateado com a empresa, e desabafava lá e a gente acabava meio que pagando o pato por isso. Foi um pouco sofrido, mas o aprendizado valeu a pena. E depois eu mudei de área, eu saí do atendimento, fui trabalhar com atendimento empresarial. Eu fiquei um ano e meio mais ou menos, só trabalhava atendendo empresas, mas sempre na área, na verdade, toda a minha carreira, o meu trabalho, foi sempre voltado numa área que eu tinha muito contato com pessoas.
P/1 – E voltando um pouquinho, você lembra o que você fez com seu primeiro salário?
R – Olha, eu não lembro, mas meu pai o nunca deixou a gente pagar conta em casa, ele falava: “Não, guarde o dinheiro de vocês pra comprar as coisinhas de vocês, eu dou conta ainda de pagar as contas em casa”, mas eu acho que eu comprei uma roupa, não sei, dentre algumas outras coisas, acho que comprei uma calça jeans que eu queria muito que era cara, de marca, aí meu pai “Não...”, como tinha três filhos pra vestir, não podia comprar roupa de marca, então acho que uma das coisas que eu fiz com um dos meus primeiros salários foi comprar uma calça jeans de marca.
P/1 – E depois dessa sua experiência na empresa, de atendimento empresarial, como que seguiu?
R – Aí eu fiquei mais um ano e meio só, ou dois, nesse atendimento empresarial. Depois eu saí dessa empresa, eu trabalhei numa outra empresa de telecomunicações, da parte de celular, parte de telefonia móvel, aí trabalhei acho que um ano lá e depois eu saí dessa empresa e fui trabalhar numa agência de turismo, onde trabalhei mais um ano e pouquinho também. Aí passei num processo seletivo, na época, do Unibanco e entrei pra área bancária. Acho que fiquei uns quatro anos mais ou menos da minha vida, aí trabalhei em dois bancos. Trabalhei no Unibanco e trabalhei num outro banco, mas não no atendimento direto, nesse primeiro banco eu trabalhei no caixa da tesouraria, aí no segundo banco que eu trabalhei vendendo previdência privada e seguro de vida, trabalhando com consultoria financeira.
P/1 – E como você entrou no banco?
R – Eu tinha uma amiga em comum que trabalhava no banco e ela comentou comigo – eu já queria sair dessa área de telecomunicações –que ia abrir um processo seletivo, aí eu me inscrevi, fiz as provas, passei, fiz a entrevista. Aí depois, esse contato de banco é um mundo onde todo mundo se conhece, e depois de dois anos que eu estava nesse banco, surgiu a oportunidade de mudar para outro banco pra uma área melhor, que tinha o salário melhor, benefícios melhores, e foi quando eu fui pra esse outro banco trabalhar com consultoria financeira, mas eu fiquei também mais uns dois anos só. Aí uma amiga minha que trabalhava no banco comigo disse: “Ah, Ellen, eu vejo que você trabalha assim...”, mas eu já tinha comentado com ela que eu já vinha de dois bancos, então tinha percebido que não era aquilo ainda que eu gostaria de fazer. Nós vamos ganhando conhecimento e ganhando outros anseios. E aí ela comentou que ia ter um processo seletivo na área de marketing, que eu estudava marketing e eu queria um trabalho focado na área que eu estudava, ia abrir um processo seletivo no Sistema S, mais especificamente no SESI [Serviço Social da Indústria] aqui do Amazonas, e eu participei do processo seletivo, eu fiquei em segundo lugar na prova escrita, e fiquei em primeiro lugar na entrevista, então como a entrevista tinha pontuação maior, acabei ficando com a vaga e por lá eu fiquei quase 10 anos. Aí lá realmente eu me encontrei profissionalmente. Eu vi que era aquilo que eu gostava de fazer. Entrei como técnica e saí somente por causa do meu problema de saúde.
P/1 – E como foi entrar e começar a trabalhar na área do estudo?
R – Foi maravilhoso a gente poder colocar em prática o que a gente vê ali na faculdade. Meio que a gente trabalhava, assim, como se fosse o trabalho uma oportunidade de você colocar em prática o que você tinha estudado. Na verdade, quando eu comecei a trabalhar no Sistema S, eu já tinha terminado a minha faculdade, já tinha feito pós-graduação também. A primeira pós-graduação eu já emendei, eu fiz cinco anos de faculdade e, em seguida, eu fiz uma pós-graduação em Serviços... Eu não lembro muito bem o nome, é um nome de um curso diferente... Foi muito bacana, eram várias áreas, assim, nós estudávamos área da qualidade, área de recursos humanos, área de marketing, de comunicação, era um apanhado, uma especialização no curso de Administração, então nós estudávamos um pouco de cada área administrativa da empresa. E eu emendei, eu já fiz um ano e meio de pós-graduação e depois, quando eu terminei essa pós, foi que eu entrei no Sistema S, aí eu disse: “Não, eu vou dar uma pausa, agora, vou me dedicar mais à minha carteira de trabalho”, até porque eu comecei a viajar muito a trabalho, e aí não dava pra conciliar. E eu acho que 2012 abriu um processo seletivo interno lá do Sesi, do Sistema S, na verdade, para os profissionais que quisessem fazer um MBA [Master in Business Administration] mais um mestrado em Engenharia de Produção. Então ia ter um MBA na área de Organização e Serviços e já um MBA com acesso direto ao mestrado em Engenharia de Produção. Agora, as pessoas vinham me perguntar: “Mas como Engenharia de Produção se você é formada e marketing?” É porque nós trabalhávamos focados no atendimento à indústria, então nós tínhamos que ter um conhecimento de como funciona esse mundo industrial, né, e a Engenharia de Produção é meio que uma administração das engenharias, você estuda um pouco de cada área industrial, e eu fiz o processo seletivo que eram 40 vagas, acho que se inscreveram mais de 100 pessoas, eu fui pulando as etapas, meio que sem obrigação, eu digo: “Vou tentar, bora ver o que que dá”. E aí deu certo, eu fui passando nas etapas, e ganhei a bolsa de acesso ao mestrado. Foram quase dois anos de MBA e mais uns quase quatro de mestrado, porque atrasou um pouco, eu consegui concluir, eu recebi o diagnóstico acho que eu estava no meio do meu mestrado.
P/1 – E nessa época você trabalhava ou você ficou afastada pra fazer o mestrado?
R - Eu trabalhava. Eu trabalhava o dia todo. Eu saia de casa 5h30 da manhã, seis horas eu já estava na academia, e com filho pequeno, né, meu filho nasceu em 2010, eu tinha um filho de dois anos. Eu ia pra academia, ficava mais dez horas por dia dentro da empresa que eu trabalhava, eu saía às 18h, ia pro mestrado, saía do mestrado 22h/22h30, aí que eu ia pra casa. Então foi uma rotina bem pesada, e hoje eu entendo, depois de tudo que eu passei, do meu diagnóstico, e das coisas que foram acontecendo depois, eu entendo assim que não vale muito a pena talvez essa entrega, assim, de você se exigir muito principalmente na sua área de trabalho. Não que você não tem que dedicar, mas você tem que lembrar que você é um ser humano e não uma máquina. Talvez se eu tivesse sido um pouco mais prudente, um descanso com a minha saúde, com alguns cuidados, eu não estaria sofrendo algumas consequências hoje.
P/1 – E você comentou que nessa época você já tinha um filho, é o Miguel? Como foi esse momento?
R – Sim, o Miguel Arcanjo. O Miguel é fruto do meu primeiro casamento. Eu me casei em 2005, então Miguel foi uma criança muito desejada, muito esperada. Eu fiquei cinco anos tentando engravidar, fiquei gravida do Miguel, mas assim, acho que uns dois anos, no máximo três anos depois do nascimento do Miguel, o casamento já não ia muito bem, então nós nos separamos e eu fiquei cuidando do Miguel. E hoje ele já está um rapazinho. Acho que quando eu me separei, um ano, pouco tempo depois que me separei, me aproximei, por conta da separação, minha separação foi um pouco traumática – pouco não, foi bastante – e é um assunto bem ruim, porque é uma coisa que eu não desejo pra ninguém, mas enfim, em meio às tantas dificuldades, tantos problemas, foi assim... Tudo aconteceu ao mesmo tempo: a minha separação, o meu diagnóstico, foi tudo em questão de meses. Então foi muita informação para administrar. Eu meio que surtei emocionalmente. Mas graças a Deus, hoje as coisas... Deus é tão maravilhoso que vai encaminhando tudo também. Eu conheci meu atual marido. Nós nos casamos, me divorciei, e ele é o pai do coração do meu filho, e depois de muitos percalços hoje a gente tem uma relação muito boa com o pai biológico do meu filho também, uma relação muito saudável e vivemos todos em paz.
P/1 – E Ellen, como foi esse período de separação, diagnóstico, sendo mãe e trabalhando muito?
R – Na verdade... A gente nunca sabe a força que a gente tem... Foi muito complicado pra mim, foi bem traumatizante, eu não sei nem... Assim, eu vou contar o contexto, resumidamente, mas eu não sei nem como é que vai ser o acesso à essas entrevistas, então tem coisas que eu não gostaria de expor. De repente na edição, até por conta que a gente já vive um outro momento. Mas, resumidamente pra entender, eu me separei porque eu descobri que o meu esposo tinha uma relação extraconjugal com uma pessoa que era nossa amiga, que frequentava nossa casa, que treinava comigo... Eu treinei jiu-jitsu por 10 anos, acabei nem contando essa parte, meu primeiro marido, pai do Miguel, é profissional de artes marciais, e eu sempre gostei muito. Nunca fui a menina do ballet. Gostei muito de atividades, eu fiz capoeira, eu treinei jiu-jitsu, treinei muay thai, fiz box, então acabou que eu o acompanhava em algumas aulas. E nós tínhamos uma academia, e essa pessoa que se ele se envolveu, era minha amiga (minha amiga entre aspas) e tinha muita proximidade na nossa família, cuidou do meu filho Miguel Arcanjo. Também a minha gravidez foi muito difícil, eu tive enjoo a minha gravidez toda, eu passei mal até oito meses, só não passei mal os nove meses porque o Miguel é prematuro, é de oito meses. O Miguel nasceu com alguns probleminhas de saúde, ele nasceu com um probleminha no intestino (porque ele não tinha os nove meses, a maturidade do corpo não acompanhou), ele tinha muitos refluxos, ele teve pneumonia aos dois meses, foi internado sete dias. E ele não dormia, ele era uma criança que não dormia bem, então foi um processo muito cansativo. Até o Miguel fazer um ano e nove meses, eu não soube o que era uma noite de sono, e eu o levei em todos os médicos, todos os neuropediatras, gastei muito dinheiro na época fazendo vários exames e ninguém diagnosticava o que o Miguel tinha, porque ele acordava várias vezes à noite chorando muito, gritando... E eu tinha certeza de que aquilo não era uma coisa normal, até por conta de minhas amigas terem filhos da mesma idade, é inevitável você fazer comparação. Tá certo que cada criança é uma criança, mas não era normal o fato de que ele acordava tantas vezes. E eu acabei indo pra São Paulo pra procurar ajuda médica, fui ao Instituto do Sono, ficamos lá dez dias, eu, a minha mãe e meu filho, e eu descobri que o Miguel tinha uma epilepsia rara, uma epilepsia relacionada ao sono. Ele tinha micro convulsões quando ele dormia. Toda vez que ele entrava em sono profundo, o cérebro dele dava umas micro convulsões, a olho nu você não dizia que era uma convulsão, mas ele acordava várias vezes chorando muito. Isso durava em torno de 10/15 minutos e depois passava. Só que essas crises, às vezes, aconteciam oito vezes à noite, dez vezes à noite, então era desesperador. Até eu conhecer essa médica que atendeu meu filho em São Paulo e nós começamos o tratamento, foram um ano e nove meses de bem difíceis. Tanto que eu só tive o Miguel, depois eu fiquei com medo de ter outros filhos, depois de tudo que eu passei. Na maior parte do tempo sozinha, mas minha mãe sempre me ajudou muito. E no meio desse tumulto todo, de não ter uma vida muito tranquila, eu meio que somatizei muita coisa: foi o problema de saúde do meu filho, depois em seguida foi a separação traumática que, quando eu descobri, já tinha um tempo que essa história estava acontecendo, da relação extraconjugal do meu ex-marido com a minha amiga, e aí veio o diagnóstico do Parkinson. Na verdade, os médicos falaram, alguns médicos com quem eu estava fazendo toda essa investigação, porque eu comecei os primeiros sintomas com, acho que com 30 anos. O meu braço começou a pesar um pouco. Quando eu estava fazendo mestrado ficou um pouco mais latente, na verdade, aos 30/32 anos. E eu ia escrever, copiar as coisas do quarto, a minha mão cansava, minha letra ia diminuindo... Os médicos falam que foi um surto emocional, porque eu não tenho histórico familiar de Parkinson. Talvez fosse uma doença que eu tinha predisposição para desenvolver, mas ela ia desenvolver, digamos, no momento normal, considerado normal, que é na idade... Na melhor idade, quando eu fosse idosa, mas acabou que tantos problemas emocionais anteciparam um pouco o aparecimento da doença. Então foi uma época muito difícil, assim... Deus colocou um anjo na minha vida, sério, que é o meu esposo, e ele abraçou a minha vida e a vida do Miguel. E foi muito bom pra gente.
P/1 – Eu queria saber como foi pra você esse período de ir percebendo alguns sintomas no corpo e ter que investigá-los.
R – Como eu te falei, o primeiro sintoma que eu acabei sentindo foi o peso. Na verdade quando eu trabalhava no banco, que eu ficava muitas horas digitando, eu sentia já esse peso do meu lado direito, mas assim, sempre achei que era a LER, lesão por esforço repetitivo, que eu ficava dez horas por dia, oito, na frente do computador, e se agravou muito, ficou mais latente, digamos assim, no mestrado (na faculdade eu não sentia muito), porque eu ia copiar e a minha letra sumia, diminuía até sumir, e eu comecei a ter uns espasmos, uns movimentos involuntários e o tremor. O meu tremor é mais sutil, digamos assim, muitas pessoas até falam: “Acho que você não tem Parkinson, que você não treme”. Então, até esclarecendo, que nem toda pessoa que treme tem Parkinson e nem todos que têm Parkinson apresentam tremores, há outros sintomas. Na verdade, são mais de vinte sintomas que a pessoa com Parkinson desenvolve. Os mais conhecidos são o tremor, a lentidão dos movimentos (você fazer as coisas em câmera lenta), a falta de equilíbrio, insônia – dá muito problema no sono, desde época que o Miguel não dormia,
meu sono já ficou bem prejudicado – então, até descobrir que era Parkinson foi bem difícil, porque eu fui pré-diagnosticada com síndrome do túnel do carpo, aí eu fiz a eletroneuromiografia, que é um exame muito ruim (eu não desejo pra ninguém), muito doloroso, e descobriram que não era. E aí fiz várias ressonâncias e descobri que eu tinha uma siringomielia na medula, que é um ‘nódulozinho’, e talvez os médicos acharam que eu estivesse perdendo os movimentos do braço do lado direito por conta dessa siringomielia. Depois de vários exames, viram que não era. Aí depois teve uma médica que supôs que eu estaria com esclerose lateral amiotrófica, que aí foi quando eu fiquei mais assustada. Foi quando eu fui pra Fortaleza, que meus pais moram lá, a minha mãe conseguiu uma vaga, fiz a inscrição no [Instituto] Sarah Kubitschek, e eu só fui fechar o meu diagnóstico em 2014/2015, que eu fechei mesmo um diagnóstico no Sara Kubitschek, confirmando já um pré-diagnostico de um dos médicos que eu passei aqui, que é o que hoje eu faço meu tratamento, mas na época ele me deu o diagnóstico, eu falei: “Não, esse médico tá louco, eu não posso ter doença de Parkinson, eu tenho 34 anos, como é que eu vou ter Parkinson? Isso não existe, Parkinson é doença de gente idosa”. Até quebrar esses paradigmas e entrar um pouco nesse mundo, conhecer um pouco esse mundo, demorou um bocado, fiz muitos exames. Aí nesse meio tempo passei por duas cirurgias de mama, passei por uma cirurgia de vesícula, foi bem complicado.
P/1 – Então teve um período que você achava que tinha resolvido e não tinha, é isso?
R – Isso. Foi um ano, não digo que se eu pudesse apagar, porque eu acho que tudo é experiência, mas hoje eu tenho outra visão, mas até eu chegar nesse estágio, eu tive depressão, eu tive fase da negação da doença, eu disse: “Não, eu não tenho Parkinson, eu não posso ter Parkinson”, eu tive vergonha de derrubar as coisas, de ir pra um restaurante, das pessoas ficarem me observando, então eu passei por um momento bem ruim em relação à aceitação, de dizer: “Não, eu vou levantar a cabeça, não sou única pessoa no mundo, isso não vai me matar, eu vou daqui pra frente”. E um ponto crucial, na verdade, teve alguns pontos que foram cruciais pra essa tomada de decisão, porque tudo é uma tomada de decisão, a pessoa tem que querer sair daquela situação ruim. Então o meu esposo, Célio, muito companheiro, foi essencial, meus pais, o amor dos meus pais, dos meus irmãos, o apoio. E eu lembro que quando eu peguei o diagnóstico final, que eu saí com o diagnóstico do Instituto Sarah Kubitschek, estava lá ‘doença de Parkinson’, eu digo: “E agora, né? Eu com 35 anos, e agora? Como é que vai ser minha vida daqui pra frente?” Foi quando eu conheci o projeto que faço parte hoje. Eu fiquei procurando na internet. A minha mãe viu uma entrevista uma vez de uma moça, que hoje é minha amiga pessoal, a Danielle Lanzer, e ela contou a história dela, que apresentou os primeiros sintomas aos 30 anos. Ela era cientista, foi contando um pouco da história. Eu peguei o nome do endereço das redes sociais, do site, fui entrando, então foi uma oportunidade de conhecer um mundo que, pra mim, nem fazia ideia que existia. Foi o lugar que me acolheu e que me deu informações de qualidade, porque hoje na internet você pega tudo quanto é tipo de informação. Se você não souber filtrar é bem complicado. O Vibrar com Parkinson me ajudou bastante, me ajuda bastante até hoje, com informações de qualidade. E aí eu fui conhecendo outras e outras e outras pessoas na mesma situação. E como é bom, assim, não que você não queira estar no problema sozinho: “Ah, poxa, eu queria que todo mundo tivesse nessa mesma situação”, não é isso, mas que bom que existem outras pessoas que entendem de verdade o que a gente passa.
P/1 – Vai construindo uma rede de apoio, né?
R – Sim. Exatamente. Uma rede de apoio e um vai trocando informações com o outro. Tive oportunidade de participar de vários eventos, de várias palestras. Tive oportunidade através do Vibra de participar de uma feira, de um encontro na área de neurologia, só com vários médicos neurologistas, que hoje o médico que eu faço tratamento aqui em Manaus também sempre participa desses eventos. Então o conhecimento é libertador, em todos os aspectos da vida, né. Eu acho que eu estaria muito pior ou então sabe Deus como eu estaria, se eu não tivesse o conhecimento que eu tenho da doença hoje. Isso tranquiliza, isso assusta um pouco, porque mesmo que a gente vai sabendo como é que as coisas vão caminhando, mas também tranquiliza porque a informação de qualidade ajuda, dá um norte pra gente. E nós vamos conhecendo profissionais e vamos sabendo que não é o fim do mundo, que dá pra gente continuar a caminhada, um pouco mais difícil, mas dá.
P/1 – E como foi contar pros seus familiares, pro seu companheiro, pro seu filho, amigos?
R – Assim, meus pais sempre me acompanharam bastante, minha mãe participou de todos os processos de investigação, foi um processo mesmo que investigaram do fio do meu cabelo à ponta do pé. Eu fiz muitos exames, a minha mãe sempre ali comigo. Quando eu tive depressão a minha mãe saiu de Fortaleza, veio cuidar de mim. O meu esposo Celio sempre me deu muito apoio: “Vamos lá, a gente não vai desistir”. O meu filho eu tive que explicar um pouco, de uma forma um pouco mais didática, digamos assim, mas hoje ele é bem consciente, ele fala: “Minha mãe tem Parkinson”. E assim, eu explico pra ele que eu tenho algumas limitações. O diagnóstico não é muito fácil de lidar, porque meio que os médicos acham que pra eles é mais um paciente. Eu lembro bem quando eu recebi o diagnóstico. Eu estava com uma junta médica, eram 4 ou 5 médicos e tinha uma fisioterapeuta, uma psicóloga, e a médica falou pra mim: “Olha, Ellen, você tem uma doença degenerativa, progressiva, e sem cura. Você não vai melhorar ao longo dos anos, você vai piorar um pouco a cada ano, a cada tempo, vai depender muito de você”. E ela foi falando de alguns pilares, que eu tinha que introduzir na minha rotina uma atividade física frequente, tomar medicação da forma correta, fazer fisioterapia, ter o descanso, o descanso é muito importante porque se você toma o remédio e não tem o repouso, não dorme bem, não tira um tempo pra tentar ficar tranquila, a medicação não faz efeito. A primeira vez, eu recebi o diagnostico 2015, eu fiquei dez meses afastada do meu trabalho fazendo reabilitação no Sarah Kubitschek, tentando recuperar os movimentos, porque eu já não escrevia mais e, como eu trabalhava com computador, eu destra, o meu Parkinson é do lado direito, e que bom que o remédio agora tá fazendo efeito e eu consigo movimentar minha mão, mas tem hora que eu fico bem travada. Então é uma doença que até você entender esse mundo do Parkinson, é complicada, porque ela tem muitos altos e baixos, tem muitos sintomas. E aí no meu trabalho, quando eu voltei a trabalhar depois de dez meses de reabilitação, aquilo pra mim foi maravilhoso. Eu queria meu trabalho de volta, queria minha vida de volta. Eu sempre amei o que eu fazia lá no Sistema S, trabalhar nessa área de marketing, de comunicação, foi muito bom. Só que, por outro lado, eu não conseguia mais continuar com a minha rotina de tratamento como deveria ser. Eu não conseguia fazer minha fisioterapia com frequência, que acaba que tinha algum compromisso de trabalho, e aí eu piorei bastante. Depois de 10 meses que me afastei e voltei, ainda fiquei um ano e meio ainda tentando conciliar minha atividade trabalho com meu tratamento, mas realmente eu fui piorando bastante, já de chegar e não conseguir mexer no computador, e aí a minha autocobrança foi pior do que a cobrança de qualquer pessoa. Eu sempre fui muito exigente com qualquer tipo de atividade que eu realizo, eu sempre gostei de fazer o meu melhor.
Quando eu percebi que eu não conseguia mais fazer o meu melhor, foi bem difícil (desculpa, fico um pouco emocionada), porque é muito ruim você de repente não conseguir fazer um trabalho rápido, a quantidade do que eu produzia, digamos assim, começou a ficar muito aquém da capacidade que eu sabia que eu tinha. Então aquilo foi acabando que foi me minando aos poucos. Eu já tinha vergonha de falar na frente das pessoas, porque acabava que ficava ansiosa e tremia bastante. O Parkinson é uma doença que tem muita relação com a tua parte emocional, então eu posso fazer tudo certinho, tomar meu remédio direitinho, mas se eu ficar ansiosa, se eu ficar eu nervosa, se eu me aborrecer com alguma coisa, aí o remédio já não faz efeito, já não consigo ter meus movimentos normais... Então essa exigência que eu sempre tinha com a qualidade do que eu fazia começou a me maltratar muito.
Eu não aceitava que eu não fosse mais aquela profissional que produzia muito, que estava sempre ali dedicada, que participava de eventos, que viajava a trabalho, já comecei a ter dificuldade nas viagens, já não conseguia fazer muitas coisas sozinha. Hoje eu considero que eu sou uma pessoa... Eu não consigo mais ter a mesma independência, entendeu? Eu não sou 100%, eu dependo de ajuda pra fazer muita coisa, coisas básicas.
P/1 – Você comentou que foi difícil entender como era esse mundo do Parkinson. Como é esse mundo?
R – Exatamente por conta desse rótulo que as pessoas construíram ao longo dos anos, e não é culpa de ninguém. Acabou sendo uma coisa natural, de que portador de Parkinson geralmente são pessoas idosas, e que o Parkinson é aquela doença que treme. Então meio que existe esses rótulos, e quando a gente vive a doença, a gente vê que é algo muito mais abrangente: “Ah, você sente uma dor aqui” / “Ah, é do Parkinson”, você tá com falta de equilíbrio: “É do ParKinson”, você tem prisão de ventre, “É do Parkinson”, você não dorme bem “É por conta do Parkinson”. Então é um mundo, infelizmente, muito desconhecido como tantas outras doenças que são rotuladas de uma forma que, na verdade, quando você vive, é muito mais abrangente do que as pessoas falam. Então eu já passei por algumas situações constrangedoras, em restaurante, fila de supermercado. O portador de Parkinson não deixa de ser uma pessoa com deficiência, uma pessoa que tem algumas necessidades especiais. Tem dia que é maravilhoso, que às vezes eu até esqueço que eu tenho Parkinson, eu lembro porque dá a hora de tomar o remédio, já tô ficando... Que a gente chama de off, né, tem o on e o off, como se fosse um disjuntor mesmo que você ta ligado, e quando a tua dopamina vai baixando, né. O Parkinson é uma doença no sistema nervoso central que é ocasionada pela falta de produção da dopamina, a dopamina é uma substância no cérebro que é responsável por várias coisas, é responsável pelos teus movimentos, é responsável pelo teu sono, pelo teu humor, enfim, são ‘n’ situações, e quando você não tá produzindo a dopamina da forma correta, aparece a doença de Parkinson. Então, situações de como: a gente tem prioridade no atendimento das filas de banco, na fila do supermercado, até porque a gente não consegue por causa do equilíbrio ficar muito tempo em pé. No estacionamento eu tenho meu cartãozinho do estacionamento da doença que me dá alguns direitos, mas as pessoas não entendem, algumas pessoas. Já passei situações constrangedoras: “Ah, a moça toda arrumada, toda bem-vestida”, quer dizer, acham que uma deficiência tem que ser uma cadeira de rodas. Eu acho que até o próprio símbolo da pessoa com deficiência, é até um debate que nós temos, que o símbolo da pessoa com deficiência nos estacionamentos, nas filas, é a cadeira, um cadeirante, mas nem todo deficiente é cadeirante. Tem algumas deficiências que aos olhos das pessoas são invisíveis, mas a gente tem que saber respeitar. É uma tecla que nós sempre batemos, quer seja no projeto, quer seja na nossa vida diária, nunca julgue uma pessoa pela aparência, porque eu gosto de maquiagem, eu gosto de fazer o cabelo, eu gosto de andar arrumada, de ter essa vaidade da mulher, que eu acho que isso é importante também, porque não é porque eu estou com diagnóstico de uma doença que não tem cura é que eu tenho que deixar isso transparecer na minha cara. Acho que isso nem me ajuda né, mas pra sociedade você tem que ter cara de doente, pro INSS [Instituto nacional do Seguro Social] você tem que ter cara de doente, senão você não consegue o teu benefício, o teu direito de se aposentar por invalidez, porque você não consegue realizar tua atividade de trabalho. Então as pessoas rotulam muito, por isso que eu digo que é um mundo desconhecido, não só o Parkinson, várias outras doenças. Eu tenho uma amiga também que tem uma doença rara, mitocondrial, cunho neurológico também. Quando a gente entra nesse mundo de doenças raras, de pessoas que têm uma realidade diferente da nossa, da que a gente tinha, nós vamos quebrando alguns paradigmas. Eu costumo dizer que foi muito difícil aceitar o Parkinson, mas ele me ajudou muito como ser humano, de parar de olhar só pra minha vida e tentar ver o que acontece ao redor.
P/1 – E aí eu imagino que tenha um tratamento bem individualizado. Como é o seu tratamento?
R – Sim. Realmente não tem uma receita de bolo. Como eu te falei, a doença de Parkinson, eu não posso falar por outras doenças, mas do Parkinson eu posso falar porque eu vivo, e cada pessoa apresenta de uma forma diferente. E tem que ser um tratamento bem individualizado mesmo. O tipo de fisioterapia que eu faço nem sempre é o que o outro portador de Parkinson faz, os lugares das dores que eu sinto, porque essa é uma informação também que muitas pessoas não conhecem: a doença de Parkinson dói, você sente dores musculares constantes, eu sinto muita dor, no meu caso, sinto muita dor na área da cervical, dos braços, desenvolvi uma bursite no quadril por conta da doença... Então, como a gente costuma dizer: “É o meu Parkinson”. Tem algumas coisas que são pontos comuns entre os pacientes? Sim. Mas o tratamento é bem individualizado, dose de medicamento, até os tipos de medicamento. Esse tratamento medicamentoso é diferente de paciente para paciente.
P/1 – E esse medicamento você recebe pelo SUS [Sistema Único de Saúde]? Ele é caro?
R – É. Teoricamente, sim. Vou dizer o porquê: a medicação base da doença de Parkinson, que geralmente os pacientes utilizam, é a levodopa, à base de levodopa. A levodopa tem alguns nomes de marcas, né, algumas marcas, e tem a levodopa que sim, por lei, é para ser distribuído nos postos de saúde, que é a medicação base, a medicação principal do Parkinson. Há alguns outros medicamentos que são auxiliares nessa levodopa, mas que eles não têm obrigatoriedade de serem distribuídos. Não é um medicamento barato, é um medicamento relativamente caro, principalmente quando você chegar no estágio mais avançado da doença. Hoje eu tomo por volta de 14, 12, entre 12 e 14 pílulas por dia. Então não é um uma caixa de comprimido com 30 que vai me ajudar um mês inteiro, então um vidro de levodopa, pra mim, dura 15 dias, tem paciente que dura 10 dias, depende muito de como é que tá o estágio da doença. Então isso tem um custo bem alto. Agora, inclusive nessa época de pandemia, aqui em Manaus nós estávamos com problema. No Amazonas, na verdade, e conversando com os outros amigos ‘parksonianos’ de outros estados também, estávamos com problema: que a medicação não estava sendo distribuída, falaram que por conta da pandemia, mas enfim, o covid está aí, mas o Parkinson também, então tem que tratar as duas. Eu tive um custo bem elevado agora, justamente num momento complicado econômico. Meu esposo trabalha por conta própria, ele é músico, então não tinha evento, né... Eu recebo uma aposentadoria por invalidez, que é muito aquém do que eu recebia trabalhando, porque a gente perde um monte de benefícios, e foi um período bem complicado. A gente fazia sacrifício aqui, ali, cortava uma coisa aqui, ali, e conseguimos manter a medicação, graças a Deus, mas muita gente não teve acesso à medicação. E sem o medicamento não tem como conviver com a doença, fica muito mais complicado. Com medicamento já não é fácil, sem esse auxílio medicamentoso é bem mais complicado. Então acho que voltou a distribuição. Nós fizemos carta pra prefeitura, passamos e-mail, conhecemos algumas pessoas que trabalham em órgãos públicos e fomos tentando fazer esse acesso, mas é muito difícil hoje em dia você tratar uma doença degenerativa, ter o direito ao medicamento (porque nós pagamos nossos impostos) e no final das contas você chegar lá no posto de saúde e não ter o medicamento pra você tomar, e cada um que se vire pra dar um jeito de comprar... Mas foi bem difícil. E vez ou outra acontece. Nós tivemos alguns problemas também, logo que eu entrei no projeto, no Vibrar com Parkinson, nós conseguimos; Danielle através de muitos contatos, o Marcelo teve uma ajuda muito grande, o Fábio, são pessoas que... Marcelo é do Rio de Janeiro, a Danielle, na época, morava em Goiânia e hoje mora em São Paulo. O Fábio morava em Brasília, então nós tivemos acesso à Câmara Federal e mandamos um documento informando, porque esse medicamento também, caso você não consiga nos postos de saúde, você pode tentar comprar nas farmácias pelo programa Farmácia Popular do Brasil. E o que que estava acontecendo: na Farmácia Popular, quando você chegava com a receita, eles só aceitavam a receita de pacientes que tinha acima de 50 anos, porque eles falavam que foi decidido – não sei de que forma, não sei como – que o Ministério da Saúde, na época, tinha decidido que o Parkinson era uma doença de idoso. Então nós entramos com um abaixo-assinado, um documento, fomos lá na Câmera Federal para conseguirmos ter voz e mostrar que não, Parkinson não é doença de idoso. É uma doença que acomete hoje mais de 200.000 pessoas no Brasil, isso uma estatística bem antiga, hoje deve estar muito maior, e tem muito jovem desenvolvendo doença de Parkinson e outras doenças degenerativas, até por conta da vida estressante que a gente leva hoje em dia, né, muita correria, muita falta de qualidade de vida, e meio que essas doenças degenerativas estão sendo antecipadas. Mas conseguimos mudar, reverter essa situação. Faz um tempo que eu não compro pelo programa Farmácia Popular, eles dificultam bastante pra você ter acesso, e acaba que você desiste um pouco, ou acaba comprando pelo preço normal, mas é um medicamento que o governo sim deveria oferecer gratuitamente para os pacientes.
P/1 – E quais são as maiores transformações e dificuldades que você enfrenta no dia a dia?
R – Olha, a maior dificuldade pra mim é a dependência. Eu sempre fui uma pessoa muito independente, eu sempre fiz tudo na minha casa, se precisasse trocar uma lâmpada eu subia e trocava, eu pegava meu carro e saía, eu viajava sozinha a trabalho, sempre fui uma pessoa muito independente e sempre gostei muito de ser independente. E o mais difícil pra mim é aceitar que eu preciso de ajuda, pode até parecer meio... Como é que se diz, assim... Não me vem a palavra agora, mas o mais difícil pra mim é aceitar que eu preciso, que eu não consigo fazer sozinha, não é nem que eu preciso de ajuda, é aceitar que eu não consigo realizar sozinha atividades que pra mim... Coisas básicas. Eu sempre gostei de maquiagem, então eu aprendi, desenvolvi habilidade de me maquiar com a mão esquerda, que eu sempre fui destra e hoje eu consigo fazer essa maquiagem pra me deixar um pouco mais satisfeita com a minha aparência, digamos assim, sozinha. Mas tem coisas que, quando eu tô no off mesmo, que é esse período que a meditação não está fazendo efeito, ou então quando já está baixando o efeito da medicação, quando está chegando próximo do horário de tomar outra dose, eu não consigo calçar meu sapato, eu não consigo vestir minha roupa sozinha, tomar banho, eu fico meio que paralisada mesmo, né, o meu lado direito é como se... Lembra que eu falei do disjuntor: como se eu desligasse o disjuntor e plow, e parou, eu não consigo levantar meu braço, minha perna trava. Então hoje pra dirigir é um carro automático, ele tem uma manopla adaptada, mas essa parte é a parte mais difícil pra mim, da independência, sabe, de coisas... Escovar meu dente: eu tive que aprender a escovar os dentes com a mão esquerda. Se eu for no restaurante comer uma pizza, se eu estiver no off eu não consigo cortar, meu esposo tem que cortar a pizza, cortar a carne, enfim, meio que a gente fica bem dependente. Assim, se hoje o esposo sair pra trabalhar, se for preciso sair pra trabalhar a noite, por isso que eu não consigo ter uma rotina de trabalho normal, eu não consigo. Eu tento fazer alguma coisa em casa, não ficar parada, ocupar minha mente com as coisas de casa, mas hoje eu não consigo. Tem uma pessoa que me ajuda, tem uma secretária aqui em casa que nos ajuda com o serviço doméstico. Eu já me cortei, já derramei água quente em mim, então até pra não acontecer coisas piores. Hoje dificilmente eu fico sozinha em casa, ou fico só eu e meu filho. Hoje em dia ele tem 10 anos e já me ajuda bastante, então eu falo: “Filho, a mamãe precisa ir ao banheiro”, ele já me ajuda, mas essas coisas que tem que lidar com cozinha, água quente, faca, essas coisas assim... Tem horas que eu preciso de ajuda pra tudo, então acho que essa parte é mais difícil, e o aprendizado maior é realmente ter a humildade de reconhecer que ninguém é autossuficiente, que a gente precisa de alguém em algum momento da vida. Hoje eu tenho essa limitação física, então eu preciso, eu tenho consciência de que eu realmente preciso, mas algum tempo atrás, isso pra mim: “Ah, não vou precisar de alguém pra me ajudar a calçar meu chinelo, não vou precisar de alguém pra escrever alguma coisa pra mim que eu não consigo anotar, pra dirigir”. Então foi um trabalho de uma lição de humildade, posso dizer assim.
R – E nesses momentos que você tá off, quais são as recomendações e o que você percebe que pode te ajudar?
P/1 – Nos momentos que eu estou off, o que ajuda muito, primeiro, é tentar manter a calma, porque a gente fica ansiosa. Quando eu tô no off eu saio derrubando as coisas, assim, hoje a gente tenta deixar menos objetos em casa, ter espaço pra circular... Manter a calma e ter paciência, tomar a medicação, esperar começar a fazer o efeito da medicação, esse é o melhor caminho. E é também aceitar que tem dia que ela não vai fazer efeito, não tem jeito, tem dia que eu fico o dia inteiro sem a medicação fazer efeito. Normal não é, isso acontece principalmente quando eu tô tendo um dia estressante, com muita coisa, muita atividade. Parkisoniano é bem complicado porque tem muita oscilação de humor, então tem que ter muita paciência também, a família tem que, como eu falei, entrar um pouco nesse mundo também. Não adianta só o paciente conhecer a doença, é muito importante as pessoas que convivem com o paciente conhecerem a doença. Quando a gente está no off a expressão muda, a expressão facial meio que dá uma fechada, a gente fica com a expressão facial um pouco fechada. Isso é uma característica do Parkinson, então pessoas que não me conhecem, e de repente me veem mais séria, acostumados a me ver sorrindo, porque eu sou uma pessoa bem expressiva, então quando não sabem que eu tenho a doença e me veem um pouco de cara fechada, não imaginam que eu seja por uma condição fisiológica, entendeu. Então eu acho que esse seria o principal conselho pra quem passa por isso: ter humildade, aceitar, ter paciência e calma, e saber que uma hora as coisas vão se ajustar, alguma lição de vida com certeza isso vai deixar na gente.
P/1 – Você comentou que contou pro seu filho de uma maneira bem específica. Queria saber como que foi contar pro seu filho e se ele consegue perceber essas diferenças.
R – Sim, sim. Eu tive que explicar primeiro pra ele o que era o Parkinson, eu tive que falar pouco do tremor, um pouco dos sintomas, eu mostrei alguns vídeos pra ele, tentei selecionar bastante, que geralmente os vídeos que a gente tem disponível na internet não são muito didáticos, já são vídeos que mostram pessoas em fase muito avançada.
E pra uma criança é complicado. Várias vezes ele viu alguma coisa, ou alguém falou alguma coisa, ele já veio me perguntar: “Mamãe você vai morrer?” ou “Vou você vai parar de andar?” ou “Você vai ficar tremendo desse forma?”, e aí eu fui explicando pra ele: “Olha filho, é uma doença que é na cabeça, dentro da cabeça da mamãe, uma substância”, aí ele: “O que é substância?” A gente vai explicando: “É uma massinha preta que tem dentro da cabeça que produz uma substância chamada dopamina”. Aí eu fui tentando explicar, mostrando alguns livros de ciências, enfim, site de ciências, e tentando mostrar pra ele que, a partir daquele momento, ele seria fundamental, ele seria meu companheiro e meu ajudante. Hoje a medicação é toda controlada por horário, e quando dá a hora, toca a musiquinha no celular e sai apitando o celular de todo mundo, pra eu não esquecer, porque quando passa o horário da medicação a gente fica muito ruim. E hoje ele é o primeiro, quando toca o meu celular, apitando, e ele: “Mãe, a sua ‘prolopa’”, ele fala: “Vou pegar seu remédio”, aí ele pega meu remédio, pega água, e ele já consegue perceber, acho que pela minha falta de equilíbrio, por eu ficar quietinha às vezes não conseguir andar ou não conseguir pegar as coisas, quando eu tento pegar uma coisa que eu derrubo, às vezes cai copo na mão, às vezes, quando eu tô com dificuldade na marcha, também na caminhada, ele já percebe, ele fala: “Mãe, você tá no off, né, senta aqui, eu vou pegar teu remédio, você vai já ficar melhor”. Então... E eu tentei também mostrar pra ele, na verdade, o lado bom. As pessoas me perguntam: “Mas não tem lado bom de doença”, tem, por incrível que pareça, tem. Eu era uma pessoa totalmente workaholic, eu trabalhava dez horas por dia, eu não via quase meu filho, eu saía de manhã pra trabalhar e o Miguel Arcanjo tava dormindo. Eu chegava do mestrado 10h30 da noite ele já recolhido também, às vezes ficava acordada com ele só quando ele tinha aquelas crises de ficar se acordando, ele nunca teve o sono muito tranquilo, depois que ele completou sete anos, graças a Deus, ele melhorou bastante a questão do sono. Eu tentei mostrar pra ele qual lado bom disso tudo. Eu falei: “Filho, você lembra quando você era bebê quando a mamãe trabalhava o dia todo, depois eu ia pra aula estudar ainda, eu chegava em casa já dez horas da noite você estava dormindo.” Então os primeiros dois anos de vida, dois anos e meio de vida do Miguel, ele era cuidado pela minha mãe e pela babá, porque eu priorizava o meu trabalho e meu mestrado. E quando você desenvolve uma doença, assim, que essa doença me paralisou nesse sentido que me colocou um freio realmente, pra dizer: “Não, aqui é o teu limite, daqui você não consegue”, você começar a reavaliar a sua vida. Você começa a priorizar outras coisas. Aí ele falou: “Poxa mãe, então o Parkinson foi bom porque agora você tem mais tempo pra ficar comigo.” [choro] Então você ouvir isso de uma criança, de alguma forma, eu trato de mostrar isso pra ele, o lado bom que agora tinha mais tempo de ficar com ele. E eu sempre tentei não passar pra ele essa sensação de fracasso que eu carreguei por muito tempo por conta de ter uma doença. Ninguém escolhe ter uma doença que vai te paralisar aos 35 anos, vai paralisar tua carreira, teu trabalho, tua vida, teu cotidiano, mas se, de alguma forma, isso aconteceu, a gente tem que tentar adaptar as coisas. E então hoje eu tenho mais tempo pra acompanhar a rotina de estudos do meu filho. Eu não consigo fazer muitas atividades com ele de correr, brincar, essas coisas, mas ele entende as minhas limitações. Ele fala até: “Ai mãe, eu vou ficar forte. Mãe, a senhora vai ficar numa cadeira de rodas?”, eu não digo nem que sim nem que não, pode ser que sim, mas qualquer pessoa pode precisar, e não é demérito nenhum estar numa cadeira de rodas. Então ele: “Vou ficar forte então se a senhora precisar eu vou empurrar sua cadeira de rodas”, ele fala pra mim. Então ele é o primeiro a correr pra me ajudar quando eu preciso, ele e o meu esposo são sensacionais. Eu gostaria que todas as pessoas tivessem anjos na vida, como eu os tenho.
P/1 – Como e quando foi o momento que você virou a chavinha e passou a olhar pra si mesma com outros olhos, não mais com esse olhar de fracasso que você comentou?
R – O projeto que eu conheci, o Vibrar com Parkinson, foi muito importante pra que isso acontecesse, porque eu consegui enxergar pessoas como a Dani, a Danielle Lanzer, idealizadora do Vibrar com Parkinson. Eu consegui enxergar nela um exemplo de força, de superação. Comecei a pensar: “Eu não to sozinha nesse barco, há outras pessoas que compartilham do mesmo problema, das mesmas dificuldades, e nem por isso estão se entregando, nem por isso desistiram de viver”. É um luto né, eu aprendi com a Dani, com o projeto, que nós vivemos esse luto, é normal passar por essa fase de negação, por essa fase de não aceitar, muitas vezes se vitimizar com a doença: “Oh, não, tô doente, tenho uma doença degenerativa, o mundo vai acabar, oh céus”, não, né. Aprendi que é importante você querer sair desse processo. Um processo de barganha também com Deus, dizer: “Ai meu Deus, por que isso comigo? Por que que aconteceu comigo, dentre tantas pessoas, por que comigo?” E eu aprendi muito isso com a Dani e com o Célio também, meu esposo. Meu esposo é músico da igreja católica há mais de 20 anos, então eu digo por experiência própria que independente da sua religião, longe de mim levantar bandeira de religião, cada um vai aonde se sente melhor, onde encontra sua paz, onde encontra Deus. Eu fiquei muito tempo afastada da igreja, eu cresci dentro da igreja católica, eu cantava na igreja, participava de coral, de grupo de jovens, e tudo, mas durante muito tempo eu fiquei afastada, por conta de trabalho, de tudo, enfim, a gente arruma um monte de desculpa, na verdade. Mas, quando eu comecei a passar por muitas dificuldades, eu ouvia os CDs do Célio, e ele nem me conhecia. Eu ouvia muito, ele tem seis CDs gravados, e eu ouvia aqueles CDs e eu me desabava de chorar. Eu comecei a voltar a frequentar as missas, e toda terça-feira eu ia pra missa com o coração apertado, angustiado, e era ele que cantava na missa. Até hoje ele canta nessa missa carismática toda terça-feira. E aquela música que eu ouvia, eu chorava e saía da igreja leve, pronta pra recomeçar. E foi quando eu me aproximei mais do Célio. Ele é uma pessoa de uma fé, bem inexplicável mesmo. Então ele me ajudou muito, ele falava pra mim – até hoje ele fala – não se pergunte por que você tá passando por isso, pergunte-se sempre pra que você tá passando por isso. Porque tudo tem uma causa, tudo tem uma razão, e hoje, como eu já até tinha comentado, eu consigo ver que o Parkinson, a dificuldade, a doença, todo esse processo que eu passei, me tornou uma pessoa melhor. Me tornou uma pessoa mais humana, me tornou uma pessoa que hoje consegue olhar pra dificuldade dos outros, consegue parar pra dar importância pra algumas coisas que eu não dava importância, então esse processo de superação... A minha mãe sempre me deu muita força, meu pai, meus irmãos, tem alguns amigos que acompanharam desde o início e não me deixaram desistir nunca. Então hoje eu sou extremamente grata a cada um deles que me ajudaram, me deram a mão e me fizeram ter a consciência de que eu sou muito mais forte do que eu imaginava que eu fosse.
P/1 – E como que você cuida da sua cabeça? Seu emocional, sua saúde mental... Você falou que tá tudo relacionado, né.
R – Sim. É, eu sou uma pessoa bem ansiosa, acho que como todo bom parkisoniano, convivendo com alguns, eu tive a oportunidade de saber, de conhecer esse lado. Eu sou uma pessoa muito ansiosa, eu gosto de tudo organizado, eu gosto de tudo, é... Organizado em vários sentidos, assim: “Ah, amanhã, amanhã eu vou fazer tal coisa”, ter a minha agenda direitinho, ter as coisas em casa organizadas, muito perfeccionista, me cobro muito das coisas... Então, às vezes, meu lado emocional não ajuda muito, no dia a dia da doença pra gente lidar com a doença, o médico sempre fala pra mim, meu médico, dr. Marcos, neurologista sensacional aqui de Manaus, ele fala: “Ellen, eu não posso te colocar dentro de uma bolha, mas, às vezes, tem que fingir que você tá dentro duma bolha, deixa os problemas lá fora, deixa o mundo, você fica zen aí, senão a medicação não faz efeito”. Eu falo: “Ai, doutor...”. Meu marido diz: “Ela é muito ansiosa, o problema vai acontecer amanhã ainda e ela já tá imaginado, nem aconteceu e ela já tá se preocupando.” Então essa é uma parte, muito mais do que a dificuldade motora, eu acho que essa parte de trabalhar essa ansiedade, e essa mania de controlar tudo, de você achar que tem o controle de tudo na sua vida, pra mim é bem difícil. É mais fácil aceitar que eu não tô conseguindo andar, que eu não tô conseguindo cortar uma pizza hoje, do que eu conseguir controlar essa ansiedade que atrapalha bastante.
P/1 – E como foi se aposentar? Como você se sentiu?
R – Não foi algo muito fácil de aceitar, não. Sobretudo porque, como eu contei ao longo da entrevista, eu trabalho desde os meus 17 anos. Aos 17 anos tive o meu primeiro emprego, comecei a estagiar, comecei a ganhar meu dinheiro, comecei a ter uma rotina de trabalho. Então foram muitos anos. Tinha ano que eu nem conseguia tirar férias, enfim, foram muitos anos nessa rotina. Então você aceitar que você tem que parar e ficar com esse rotulo, às vezes, quando alguém pergunta – eu tenho até hoje dificuldade de falar –: “Profissão?”, preenche alguns cadastros numa loja, alguma coisa, eu digo: “Eu falo o que?”, eu falo Administradora, que é a minha formação. Porque você trocar o posto de administradora por aposentada por invalidez não é muito fácil, mas às vezes eu brinco: “Eu sou funcionária do INSS”. [risos] Mas não foi muito fácil lidar com essa nova realidade. Quando a gente tem tempo a gente tenta explicar, até o Célio diz: “Amor, você não tem que explicar essas coisas”, mas eu quero explicar pra pessoa entender, porque eu tinha orgulho do que eu fazia. Eu tinha orgulho da minha profissão, e eu tinha uma carreira pela frente, eu estava indo bem, eu tenho consciência de que eu estava indo bem, eu consegui ser promovida, aí vinham outras promoções, você acaba que cria uma expectativa sobre onde você quer chegar, né. E eu sempre, como uma pessoa bem planejada, tinha uma perspectiva de onde eu queria chegar nessa empresa e eu estava traçando e me dedicando pra isso. E, de repente, aquilo ali que era seu dia a dia, sua rotina, que fazia parte dos seus objetivos de vida, você ter que tirar não é fácil. Você fica com a sensação de fracasso, você fica se culpando: “Poxa, por que eu deixei chegar nessa situação?” Mas hoje eu entendo que não foi uma escolha, aconteceu comigo, poderia acontecer com qualquer outra pessoa, mas a troca dessa rotina, hoje eu consegui adaptar a minha vida de uma forma que eu não consigo mais me ver trabalhando fora tendo uma atividade de trabalho rotineira. Eu tento ocupar minha mente o máximo possível. Eu acompanho meu filho na atividade escolar, eu tenho uma rotina de fisioterapia três vezes por semana, eu vou ao fonoaudiólogo uma vez por semana, eu tento fazer uma caminhada, uma atividade física acrescentando ao tratamento da fisioterapia, eu tenho as coisas de casa pra organizar, o trabalho que a gente faz hoje na igreja, né, um trabalho voluntário, um trabalho com a música. Meu marido é músico profissional, eu tento ajudar ele na agenda, enfim, dar o meu melhor mesmo com as minhas limitações, e ocupar meu espaço de tempo. Às vezes eu não tenho tempo. Hoje em dia eu não sei como eu encaixaria essa rotina que eu tenho hoje - que eu acho que até é uma rotina bem pesada – com agenda de trabalho de sair pra ter uma atividade de trabalhos fora. Eu já consegui me adaptar, mas essa transição não foi muito fácil.
P/1 – E Ellen, você comentou que você fez duas cirurgias na mama, se não me engano. Tem alguma coisa a ver com o Parkinson?
R – Não. Na verdade, eu tive um nódulo mamário e eu fiz a cirurgia pra retirar o nódulo. Eu queria fazer uma cirurgia estética de mama, porque depois que eu tive Miguel eu engordei, e quando eu tive depressão depois da minha separação, eu emagreci muito e eu queria fazer uma cirurgia estética de mama. Quando eu estava fazendo os exames, eu descobri que eu tinha um nódulo mamário benigno, graças a Deus, mas eu tinha que tirar. Então eu fiz uma cirurgia só pra tirar o nódulo e fazer a reconstrução da mama, né. Só que depois de quatro meses eu tive um problema com a prótese, eu tive que refazer. Então eu fiz duas cirurgias da mama no mesmo ano, mas, graças a Deus, eu tirei o nódulo. Hoje eu acompanho com frequência, todos os anos eu faço meus exames. Não foi nada mais grave. E não teve também nenhuma correlação com o Parkinson. E eu tirei a vesícula também. Tudo no mesmo ano, e fiz um tratamento duma siringomielia na medula também, que é um nódulo na medula, mas que também não teve ligação com o Parkinson, foram coisas diferentes.
P/1 – Tudo no mesmo ano?
R – Tudo em 2015. Quando virou o ano, eu lembro bem dessa virada de 2015 pra 2016, foi assim, nossa, parece que tirou um peso das minhas costas. Apesar de 2016 não ter sido um ano muito fácil também essa rotina de voltar pro trabalho, depois ter que afastar de novo, e tentar explicar para as pessoas, às vezes, o que é mais cansativo é você tentar fazer com que as pessoas entendam o que tu tá passando. Até meu esposo fala: “Você não tem que se importar com os que as pessoas pensam, né, as pessoas que te amam, que convivem, nós, seus pais, sua família, seus amigos de verdade, entendem o que você tá passando”. Mas eu sempre tive meio que essa necessidade, não de falar sobre minha vida pra todo mundo, mas de dar uma explicação: “Pô, como é que ela sumiu do trabalho? Como é que, de repente, de uma hora pra outra?” E até hoje, quando a medicação tá fazendo efeito, que eu estou no on, digamos assim, eu consigo gesticular, eu consigo comer num restaurante, me sentar num restaurante pra comer normalmente, eu consigo andar, eu consigo dirigir normalmente, aí de uma hora pra outra, pluft, desligou o disjuntor, acabou a dopamina, eu não consigo mais fazer nada. As pessoas ficam: “Ué, mas agorinha ela tava andando...”, as pessoas não entendem. E no ambiente de trabalho isso ficou meio complicado pra administrar: “Poxa, como é que ela tava boazinha aqui, digitando no computador, agora tá paralisada?” Então é muito mais cansativo lidar com a ignorância, no sentido de desconhecimento das pessoas, é muito mais difícil lidar com o preconceito, exatamente no sentido próprio da palavra, de ter um conceito sobre aquilo que você não sabe, você não entende, do que as vezes lidar com as próprias limitações da doença. É muito mais desgastante, porque aí tenho que explicar. Várias situações eu tenho que passar, pra conseguir dar entrada na documentação pra conseguir comprar o meu carro com direito pra PcD [Pessoa com Deficiência] (tem um desconto de dois impostos). Chega até ser humilhante você fazer valer seus direitos o Brasil. Várias perícias do INSS é muito desgastante. Esse processo de que eu estava afastava por invalidez por uma doença degenerativa, progressiva e sem cura, mas de três em três meses eu tinha que estar na frente de um perito do INSS pra provar pra ele que eu estava doente. É uma coisa até que a gente não consegue explicar, algumas leis, alguns benefícios, entre aspas (ó o braço, já foi, já paralisou aqui), que o governo te dá, mas que é tão humilhante você utilizar que você acaba desistindo, quer seja do direito que você tem de comprar um carro com isenção de alguns impostos, quer seja do direito que você tem de estacionar numa vaga pra PcD... Se estaciona numa vaga pra PcD, mas você sai do carro andando, a pessoa já te olha de cara feia: “Essa vaga é pra cadeirante”, não, essa vaga não é pra cadeirante, essa vaga é pra portador de necessidade especial, pra Pessoa com Deficiência, que é o termo mais utilizado hoje em dia: PcD. A deficiência não tá numa cadeira de rodas. Pode ser uma deficiência que você não tá vendo. Então eu já passei várias situações: fila de banco pra assinar documento, eu tinha uma letra, uma caligrafia linda, eu sempre gostei de escrever e eu tinha muito capricho na minha caligrafia, né, já escrevi em convite de casamento, tudo, e uma coisa que eu sinto muita falta hoje é escrever. Hoje eu vou num banco assinar meu nome, eles olham, olham pra minha identidade, manda eu assinar de novo, e isso já vai criando uma ansiedade... Tem ambientes, como banco, às vezes, fila de supermercado, algum tipo de perícia que tem que fazer, já acaba contigo só pela situação do constrangimento e da ansiedade que você tem que passar. Então essa é a parte mais difícil de lidar com a doença, e a parte que você não tem controle, né, é a parte da outra pessoa, de como a outra pessoa vai te ver.
P/1 – E Ellen, como foi o seu casamento com o Célio?
R – Ah, meu casamento com o Célio, como eu falei, eu o conheci na igreja. Eu já conhecia o trabalho dele há mais de dez anos. Só ouvia. Eu o conhecia de escutar as músicas que ele cantava, até porque eu ia nas missas que ele tocava, mas sempre muito cheias. Eu só conseguia ir depois do trabalho. Eu nunca pegava lugar pra entrar na igreja, ficava na porta da igreja ouvindo. E quando a gente teve oportunidade de nos conhecermos na igreja, a gente ficou próximo, ficou amigo, eu até brinco com ele, eu falo: “Você podia ter casado com qualquer outra pessoa, por que que você não se casou com uma pessoa saudável e mais jovem?” E ele: “Não, porque eu queria você, o que é mais difícil é o melhor”, ele fala. Assim, a gente é muito parceiro, a gente é muito amigo, cúmplice, a gente adora conversar, a gente fica até tarde da noite conversando. Quando eu conheci o Célio eu já estava separada há algum tempo, mas não tava divorciada, e foi a primeira coisa que, quando eu assinei o divórcio, ele disse: “A gente vai se casar”, eu digo: “Não, pelo amor de Deus, não quero me casar de novo, não”, falava pra ele brincando: “Besteira a gente só faz uma vez na vida!” Aí ele: “Não, a gente tem que se casar”. E assim, Miguel se apegou a ele de uma forma muito especial. Hoje chama ele de pai, respeitando sempre a presença do pai biológico, né, que é presente na vida dele também. Nós conseguimos ao longo do tempo ajustar as coisas, separar, eu sempre procurei separar muito bem a questão do meu casamento e da minha separação com a questão do pai do meu filho. Foram coisas que, por mais difícil que sejam, eu sempre tentei separar bastante. O Célio me ajudou muito nesse processo. Eu acho que isso é uma questão de maturidade e de amor também pelo seu filho. Eu vejo hoje em dia muitas mães, e até amigas, conhecidas, que falam assim: “Ah, se eu fosse você eu deixaria ele ver o Miguel, da forma como ele fez não foi certo.” Hoje em dia eu penso que quem sou eu pra julgar? Cada um colhe o que planta e as coisas nem sempre acontecem da forma que a gente gostaria, mas não é porque eu tive uma decepção que eu tenho que ser amargurada a minha vida toda. Não é porque a gente se desentendeu por uma coisa que ele acabou fazendo que não era certo, que ele tem que ser meu inimigo a vida toda, até porque a gente tem um filho, então não é esse o ensinamento que eu quero que o Miguel aprenda. E hoje a gente tem uma relação super saudável, do pai do Miguel, do Mateus, com o Célio também, tem uma relação tranquila, cordial. A gente sempre procura colocar o Miguel em primeiro lugar: como ele se sentiria se tivesse pai e mãe brigando, brigando na justiça, acho que é uma coisa que não vale a pena. Depois, com o tempo, ajusta-se todas as coisas. E assim, me casar com o Célio foi uma das melhores decisões que eu tomei. Hoje em dia meu filho tem... Costumo dizer que amor não se divide, se multiplica. Muita gente pergunta: “Ah, como tu divide o Miguel? Como é que o Miguel se divide entre os dois pais?” Eu digo que o Miguel não se divide entre dois pais, ele multiplica. Ele tem dois pais, e o Matheus também aceita de forma tranquila, porque o Célio faz o papel de pai também, os dois fazem papel de pai. Ele fala: “Meu pai biológico e meu pai do coração”. E essa questão de o Miguel chamar o Célio de pai foi uma escolha dele também, eu nunca ensinei, o Célio nunca ensinou, foi uma coisa que aconteceu naturalmente. Numa das nossas férias, nós não éramos nem casados ainda, na verdade, eu tinha ido pra Fortaleza pra fazer meu tratamento, e o Célio tinha tirado férias, me acompanhou. Fomos nós três pra casa dos meus pais, e a gente foi na praia, e o Miguel brincando com o Célio na praia, viu um garotinho brincando com o pai, e ele chamava: “Papai, papai, papai”, e aí o Miguel mesmo (Miguel tinha 4 anos). Miguel olhou pro Célio e falou: “Tio Célio, posso te chamar de ‘papai tio Célio’?” Aí o Célio olhou pra mim... O Célio não tem filho biológico, né, ele olhou pra mim e começou a chorar, abraçou o Miguel e ficamos nós três chorando, emocionados: “Claro, meu filho, claro que pode”. Então ficou ‘papai tio Célio’, aí ficou ‘papai’ e pronto. E é um xodó, assim, ele diz que é um presente que ele ganhou de Deus, ambos, né, ele fala: “Papai, você é um presente que Deus mandou pra mim e pra minha mãe, pra cuidar da gente.” E hoje o pai biológico do Miguel sempre fala que tem muita gratidão, porque no dia a dia, como ele tem a vida dele, tem as outras coisas, nem sempre ele pode estar com o Miguel Arcanjo diariamente, e é o Célio que leva pra escola, faz tarefa, bota pra dormir, me ajuda, sobretudo nas horas que eu mais preciso, nas horas que eu não tô conseguindo, faz a janta, faz um mingau, brinca de videogame... Então, enfim, somos uma família muito feliz, apesar das dificuldades do dia a dia, nas pequenas coisas a gente tenta achar essa felicidade.
P/1 – E como é o seu dia a dia?
R – Ah, minha rotina... Eu não consigo acordar muito cedo porque eu tenho muita insônia por causa do Parkinson. Eu só durmo com medicamento, eu não consigo... É difícil você ver um parkisoniano que não tome medicação pra dormir. E o sono é fundamental no processo do tratamento. Pra você tentar ter uma qualidade de vida, você tem que ter o descanso, tem que dormir. Então eu tomo remédio pra dormir e, geralmente, eu não consigo dormir cedo. Meu turno é meio trocado, eu consigo dormir duas, três da manhã, então eu só consigo levantar... Se eu não tiver um compromisso muito sério que eu não posso colocar num outro horário, aí eu acabo me levantando um pouco mais cedo, mas eu não fico muito bem, porque acabo não tendo uma noite de sono muito proveitosa. Então minha rotina é acordar, acompanhar o Miguel na atividade escolar dele, ver as coisas de casa, organizar a agenda do Célio, a agenda de música, responder e-mails, fazer algumas... Eu contribuo, eu tenho um trabalho voluntario no projeto Vibrar com Parkinson, então, como eu trabalhei muito tempo com marketing, eu dou um apoio na área de marketing, nessa área de mídias sociais, então sempre tem alguém pra responder, tem uma arte pra fazer, pra ser publicada, e acaba que o dia passa tão rápido... Eu acompanho duas sobrinhas maravilhosas que moram em Manaus, filhas da minha irmã, uma tem 19, a outra tem 14, e eu tento ser mais presente na vida delas, pelo menos uma vez por semana nós almoçamos juntas. Então... Algumas coisas que tento fazer e não consigo por conta da dificuldade motora, mas eu não desisto, eu vou fazendo no meu tempo. Eu gosto muito de trabalhar com aplicativos de celular, trabalhar com alguns programas de computador pra fazer layout, arte, alguma coisa, e por conta do meu problema de coordenação motora, eu acabei não conseguindo mais trabalhar com mouse. Hoje eu tenho muita dificuldade pra trabalhar com mouse no computador, então eu trabalho tudo em dispositivo móvel. Eu fico tentando aprender coisas novas que sejam possíveis de fazer no meu dia a dia. Tem a minha fisioterapia, tenho fisioterapeuta que me acompanha três vezes por semana, faço fono, também uma vez por semana tenho aula de canto, canto na igreja com meu esposo às quintas-feiras à noite, terça-feira o acompanho no Ministério de Música na missa também, e é isso, tento ser feliz e dar o meu melhor em cada miniprojeto de vida que eu tenho pra fazer.
P/1 – E Ellen, como que o coronavírus e essa pandemia maluca afetou a sua vida, o seu dia a dia, a vida das pessoas que te acompanham, vivem com você?
R – O auge da pandemia aqui em Manaus foi em abril. Começou em março. Meus pais tavam até aqui em Manaus que vieram passar o Natal com a gente. Eles só iam embora em abril, depois do aniversário do meu filho, que fez dez anos, a gente ia fazer uma festinha pra ele dia cinco de abril. Não pudemos fazer porque já estávamos na pandemia. E sempre com muito medo. Tivemos que cancelar todos nossos compromissos, a agenda do meu esposo foi toda comprometida porque ele trabalhava com eventos, ele é músico e trabalha cantando em casamentos, batizados, nas missas, enfim, então acabou que a gente teve agendas, tanto social quanto de trabalho, comprometidas. Vivemos realmente no isolamento social, ficamos em casa, o Miguel parou de ir pra escola, e foi uma fase muito difícil porque eu não conseguia administrar tudo. E o esposo da pessoa que me ajuda, da minha secretária, teve covid bem no auge da pandemia, ele ficou com a saúde bem comprometida. E eu tive que afastá-la do trabalho por conta da transmissão, ela ficou 21 dias afastada e quando ela voltou a trabalhar ela apresentou os sintomas... O Célio pegou covid, eu tive covid também, Miguel teve alguns sintomas, mas, graças à Deus, nossos sintomas foram muito sutis, principalmente quando comparados à muitas pessoas, muitos amigos, muitos conhecidos, da família não teve ninguém de muito perto, mas perdemos muitos amigos queridos pra pandemia. E se não fosse o nosso lado espiritual, a nossa fé que nós temos de que Deus cuida de tudo pra gente, não sei nem como teria sido. Mas foi muito difícil, principalmente administrar. Eu tinha que tentar cuidar da casa de alguma forma, Célio me ajudando, que tentar dar conta das atividades da escola do Miguel, essa questão da aula online que foi bem difícil. Então a adaptação de uma rotina não foi nada fácil. Quando eu estava conseguindo colocar a nossa rotina em ordem, mesmo com as minhas limitações, aí veio a covid pra mais uma vez mostrar que nem tudo que tá ruim não pode ser piorado. Então foi uma fase bem ruim, mas foi um período eu nós conseguimos levar a palavra de Deus e o conforto pra muitas famílias. Meu marido sempre trabalhou com música, e como nós não podíamos ir aos eventos, nós começamos a fazer algumas lives aqui de casa. Ele colocava aqui nesse computador mesmo, ele pegava o violão e cantava. E as vezes nós tínhamos 300, 400 pessoas online conosco. Então foi uma experiência muito importante, gratificante, que nós tivemos em meio às tantas pessoas que precisavam, nós conseguimos levar um pouco de paz, de conforto, um pouco do amor de Deus, da misericórdia, um pouco de esperança de que dias melhores iam vir. E a gente sabe que a pandemia ainda não passou, que tem muita coisa que a gente ainda precisa fazer o isolamento social, tomar todos os cuidados, mas que tá bem menos pior. O Amazonas foi um estado que foi muito maltratado pela covid. Como eu falei, nós perdemos muitas pessoas conhecidas, muitos amigos do Célio, da área da música, infelizmente. Mas que também costumo dizer que todo mal traz uma lição, e eu acho que a principal lição da pandemia, exatamente a lição que eu tive alguns anos atrás, quando eu me deparei com o diagnóstico da doença de Parkinson, o mundo estava muito... As pessoas estavam muito aceleradas de trabalho, tinha família que não fazia nenhuma refeição junta, tinha família que não se via, que era o marido trabalhando de dia, a mulher trabalhando de noite, ou vice-versa, e o filho estudava em tempo integral... Tem mãe que não sabia nem o que o filho almoçava, enfim, as pessoas não tinham o tempo que foram forçadas a ter por conta da pandemia e do isolamento social. Foi muito ruim? Foi. Mas como eu já tinha essa experiência: “é ruim?” / “é ruim”, né, você de repente ter que se isolar, não poder ir a um supermercado, não poder ir a um lazer com sua família, sim, mas vamos aproveitar a família dentro de casa. Vamos tentar fazer alguma coisa juntos. Quantas famílias que não assistiam um filme juntos, não tomavam um café da manhã, não conversavam, era cada um vivendo sua vida. Então de alguma forma eu acredito que muita gente tirou uma lição disso tudo.
P/1 – E quais são seus maiores sonhos agora para o futuro?
R – Ah, eu não tenho muitos sonhos, e quando eu penso em sonhos, assim, eu penso numa coisa tão grande, sabe, eu acho que a primeira coisa que a gente pensa hoje em dia é a cura dessa pandemia. Eu acho que a primeira coisa que devastou tantas famílias e uma coisa tão difícil de lidar, que eu acho que o grande sonho de toda humanidade hoje é ver, de repente um remédio, uma cura, uma vacina, que tem muita especulação em torno disso, mas eu acho que é ver realmente as pessoas não perdendo mais seus pais, seus filhos, seus irmãos, seus amigos, por um vírus tão devastador. É... ‘Puxando a brasa pra minha sardinha’, digamos assim, pros meus irmãos do Parkinson também, acho que a cura do Parkinson também. Meu filho até fala: “Mãe, quando eu crescer eu vou ser cientista pra inventar a cura do Parkinson”, aí eu falo: “Meu filho, mas você vai descobrir?” “Não, eu não vou descobrir, eu vou inventar”. Então eu sonho um dia, não só o Parkinson, mas muitas doenças sem cura, o próprio câncer que é uma doença muito devastadora. Quando a gente entrar num processo de uma doença degenerativa ou de um processo de tratamento de saúde mais grave, eu acho que a gente para de sonhar com viagem, coisas materiais, graças a Deus, eu tinha um sonho de ter uma casa nossa, uma casa própria, nós conseguimos realizar esse sonho. Eu tinha o sonho de quitar o meu carro, nós conseguimos quitar o nosso carro. Mas quando você compara com coisas tão maiores, a gente percebe que tudo que o dinheiro pode comprar não é sonho, e não é caro, né, a gente começa a avaliar que a nossa saúde é uma das nossas principais riquezas. Você viver com um problema de saúde é bem mais difícil. Então os meus sonhos hoje em dia são meio que imateriais. Eu sonho com uma na vida política mais justa para as pessoas, que as pessoas tenham mais oportunidade. Eu sonho em não ver tantas pessoas uma fila de hospital precisando de apoio, de acolhimento. Eu sonho uma sociedade que não julgue tanto o problema do outro sem conhecer. Eu acho que esses são meus principais sonhos. Ver o meu filho crescer saudável e ver ele se tornar uma pessoa de bem, d’ele fazer uma faculdade que ele goste, ou ter uma profissão que ele se sinta feliz. E eu sonho em ver meus pais envelhecerem de forma digna, com saúde. Enfim, eu sonho com uma vida melhor para muita gente. A gente acaba conhecendo muitas realidades bem mais difíceis que a nossa. Um dos gatilhos – que você até perguntou e eu acabei nem comentando – que me fez parar pra pensar de que forma eu podia tentar superar tudo que eu passei, e também a minha passagem pelo instituto Sarah Kubitschek foi uma coisa que foi divisora de águas também pra mim. Porque apesar de todas as minhas limitações, dos meus problemas, das minhas dores, enfim, eu chegava lá com as minhas próprias pernas, eu entrava andando, eu me alimentava sozinha, enquanto muitas pessoas chegavam lá sem conseguir andar, sem conseguir se mexer, sem conseguir fazer e a fisioterapia. Então meio que quando a gente entende a dor do outro, a gente meio que coloca a nossa no bolso e vê: “Poxa, eu tenho muito mais coisa do que eu preciso”. Então porque que eu tô aqui reclamando enquanto a outra pessoa tá tentando fazer um movimento, levantar o braço, levantar a pena, mexer a cabeça.
Então, não que você tem que ficar numa guerra de coisas ruins, assim fazendo: “Ah, não, eu tô pior, pior que você”, não é isso, mas eu acho que a partir do momento que você deixa de olhar só pro seu problema e começa a olhar pro problema das outras pessoas que, muitas vezes, têm problemas bem piores que o seu, às vezes eu tinha vergonha de reclamar, eu dizia: “Eu não vou reclamar, porque eu ainda consigo fazer coisas que muita gente daria a vida pra fazer e não consegue”. Então a gente ser feliz dentro das nossas possibilidades, dentro das nossas limitações. A gente tentar administrar nossos traumas, nossos medos, nossas frustrações. Não é tarefa fácil, mas se a gente se esforçar um pouquinho, a gente consegue.
P/1 – Você gostaria de acrescentar alguma coisa, falar alguma coisa, fazer algum comentário, contar alguma história que eu não tenha instigado?
R – Que eu me lembre, não, eu acho que eu falei até demais. Eu só tenho gratidão por todas as pessoas que passaram na minha vida durante esse processo de aprendizagem, porque eu costumo dizer que eu estou num processo de aprendizagem. Se a gente começar a olhar para os nossos problemas como aprendizagem: “Não, o que que eu vou tirar de bom disso? Como é que eu posso agir daqui pra frente?”. Agradecer meu esposo, meu filho, pelo apoio de sempre, meus pais, são dois guerreiros que eu admiro muito. Minha irmã, meu irmão, minha família, meus amigos. Eu acho que no fundo mesmo passando por tudo, não que eu não sei se eu escolheria passar por tudo de novo, sabe, é meio difícil dizer bem assim: “Ah, não, passaria por tudo de novo”, mas, de alguma forma, que bom que eu passei pra me tornar a pessoa que eu sou hoje. Não sou a pessoa mais perfeita, tenho meus momentos de estresse como toda pessoa normal, ou até mais, que a própria doença já deixa a gente meio nervosa, meio ansiosa às vezes, mas a consciência que eu tenho hoje de tentar ser uma pessoa melhor, talvez eu não tivesse se eu não tivesse passado por todo esse processo de aprendizagem.
P/1 – Eu tenho mais duas perguntas e a gente encerra, pode ser?
R – Pode.
P/1 – A primeira é o que você acha da proposta de mulheres serem convidadas a contar sua história de vida e falarem da saúde da mulher através de um projeto de memória?
R – Ah, esse processo da mulher falar histórias de vida, isso é fundamental. Foi por causa desse processo que eu conheci o projeto Vibrar com Parkinson, que eu fui ter acesso às informações de qualidade sobre a doença de Parkinson, porque, como eu falei, foi por conta da entrevista da Danielle, quando ela falou do que ela passava - não foi uma entrevista que você fala sobre a doença, ela falou da vida dela, falou do que ela sentia, do que ela passava, da experiência dela com a doença de Parkinson. Eu já tinha visto entrevista de vários médicos, mas quando você vê um médico falando, é importante? É. Mas é uma coisa que não vive em primeira pessoa. Quando você vê uma pessoa falando a realidade que vive, do exemplo, a pessoa sabe o que você tá sentindo, sabe o que você tá passando, é bem diferente. Então eu acho isso sim projeto maravilhoso das mulheres terem mais voz. Das mulheres falarem mais das dificuldades. Eu sempre falo pro meu filho, sempre tento ensinar pra ele: “Olhe, meu filho, vida da mulher não é fácil”, porque ele fala: “Ai, mãe, você tem que fazer um monte de coisa ao mesmo tempo”. Pois é, vida da mulher não é fácil. A mulher é muito cobrada, a mulher tem que ser boa mãe, boa profissional, boa dona de casa, boa administradora do lar, tem que ficar bonita, tem que ter paciência... Não que o homem não tenha as dificuldades, mas eu acho que a mulher já nasce com uma sobrecarga muito grande. Eu até brincando: “Ai, se eu fosse nascer de novo, eu gostaria de ter nascido homem”. Eu acho que pro homem – não sendo feminista, nada assim –, mas eu acho que pro homem é um pouco menos difícil, pra não dizer que é mais fácil, porque a vida não é fácil pra ninguém, mas um pouco menos difícil. A mulher ainda é muito cobrada e muitas vezes nós não temos as mesmas oportunidades. Você olhar mesmo na política hoje em dia, se for fazer uma comparação de quantas mulheres nós temos representantes da política e quantos homens, chega a ser irrisória essa representatividade. Então mulher tem que passar por muita coisa. E eu acho que a oportunidade que a gente tem de falar... Eu tinha receio antes de falar, e eu não sou... Por incrível que pareça, eu falo bastante, mas Danielle até sabe, as pessoas do projeto sabem, mesmo meu marido sabe: “Vai falar num vídeo?”, porque eu não gosto de câmera, eu sou de trabalhar por trás das câmeras. Quando eu trabalhava com comunicação, com a área de comunicação, com marketing, eu sempre trabalhei por trás das câmeras. Eu sempre era quem produzia os eventos, tava por trás da produção dos materiais de publicidade, tudo, eu sempre fui muito boa em trabalhar por trás das câmeras, nunca gostei muito das câmeras. Depois do Parkinson isso piorou bastante, por conta da vergonha que a gente vai criando, por conta da nossa fala não ser mais a mesma, a gente acaba tendo dificuldade pra falar – graças à Deus eu não estou com tanta dificuldade porque eu estou fazendo exercício, fono, enfim –, às vezes a gente esquece um pouco as palavras no meio das frases, então gente acaba tendo uma retração. Mas eu decidi, quando eu recebi a mensagem da Lila e eu vi a grandiosidade do projeto, e vi que, de repente, eu podia ajudar outra pessoa falando da minha história de vida, da minha dificuldade, da minha doença, eu decidi: “Não, poxa, eu vou colocar minha vergonha de lado, porque se eu pensar na vergonha eu vou estar pensando só em mim. Se eu pensar que essa história de vida, de alguma forma, pode ajudar alguém, já vai valer a pena passar vergonha.” [risos] Então eu acho muito importante, o exemplo, a história de vida, as histórias de superação, que nós temos de muitas mulheres aí guerreiras, são fundamentais para ajudarmos outras guerreiras.
P/1 – E, por fim, eu queria, talvez você já tenha respondido um pouco, mas eu queria saber o que você achou de ter participado da entrevista, de ter contado a sua história aqui.
R – Olha, eu pensei que eu não ia conseguir falar quase nada, apesar de ser bem tagarela no meu dia a dia com os meus amigos, com minha família, sou conhecida por falar bastante. Mas quando a gente fica de frente com a câmera, eu meio que congelo, mas foi um bate-papo muito bacana. Obrigada pelo acolhimento, viu, você foi bem importante nesse processo, as coisas aconteceram de forma bem natural. Eu agradeço a oportunidade de estar levando um pouco dessa minha história. E, poxa, que bom seria de muitas outras pessoas tivessem a oportunidade. Meio que passou um filme na minha cabeça. Você foi perguntando um pouco da minha infância, eu relembrei algumas coisas que eu nem lembrava mais, então foi muito legal fazer esse processo de volta ao tempo e pra eu nunca esquecer, pra eu nunca esquecer porque que eu cheguei até aqui, como que eu cheguei aqui, e se eu cheguei até aqui eu posso ir muito mais além.
P/1 – Até o cheiro da sopa, né?!
R – Ah, sim! Até o cheiro da sopa da escola! Nossa, me levou a momentos, assim, que bom eu poder recordar que eu tive uma infância feliz, uma infância saudável, uma adolescência boa, que eu sempre tive amizade, o apoio dos meus pais, meus irmãos, da minha família. Quantas pessoas não queriam poder contar uma história com boas recordações?!
FINAL DA ENTREVISTA
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