P/1 – Maneto, boa tarde.
R – Boa tarde.
P1 – Eu queria começar a entrevista perguntando o seu nome completo, data e local de nascimento.
R – É Valdemar de Oliveira Neto, dez de junho de 59. Nasci em Recife, Pernambuco.
P/1 – Maneto, você tem muitas recordações dessa sua infância no Recife... Você passou sua infância lá?
R – Toda infância lá, e “Maneto”, que é meu apelido, meu elemento mais forte de identidade, que é o meu nome, vem dos quintais do Recife, das brincadeiras com os irmãos. Meu avô era Valdemar de Oliveira, e eu Valdemar Neto, e o Valdemar Neto nos quintais virou Maneto, esse é o nome que eu trago comigo dos quintais do Recife, como parte da minha vida.
P/1 – E como era o Recife naquela época, anos 60?
R – Já era uma cidade de contrastes profundos. Depois ela foi crescendo e deteriorando, mas é uma cidade que ainda era possível você, vindo de uma família de elite, de classe média, conseguir viver na cidade sem ter consciência da pobreza. Eu acho que hoje isso não é possível no Recife de 53% de população abaixo da linha de pobreza, e com a violência transbordando, invadindo a casa das pessoas. Na época em que eu fui educado, era possível, sim, ser parte de uma elite, e foi assim que a gente foi educado, absolutamente protegidos, que vivia da casa pra escola, pro clube, pra casa da praia, pra chácara, pra granja, e você viver completamente inconsciente da situação da pobreza, mas ao mesmo tempo a pobreza estava ali, presente nos mangues, nas favelas, mas ela se dá de maneira muito menos conflitada como ela é hoje. É uma cidade, enfim, que tinha uma história cultural muito rica, e uma elite cultural muito produtiva, muito criativa. Eu tive uma infância de classe média, classe média alta, muito parte daquela elite, de uma elite cultural bastante criativa, interessante, e ao mesmo tempo no lugar em que tinha uma elite...
Continuar leituraP/1 – Maneto, boa tarde.
R – Boa tarde.
P1 – Eu queria começar a entrevista perguntando o seu nome completo, data e local de nascimento.
R – É Valdemar de Oliveira Neto, dez de junho de 59. Nasci em Recife, Pernambuco.
P/1 – Maneto, você tem muitas recordações dessa sua infância no Recife... Você passou sua infância lá?
R – Toda infância lá, e “Maneto”, que é meu apelido, meu elemento mais forte de identidade, que é o meu nome, vem dos quintais do Recife, das brincadeiras com os irmãos. Meu avô era Valdemar de Oliveira, e eu Valdemar Neto, e o Valdemar Neto nos quintais virou Maneto, esse é o nome que eu trago comigo dos quintais do Recife, como parte da minha vida.
P/1 – E como era o Recife naquela época, anos 60?
R – Já era uma cidade de contrastes profundos. Depois ela foi crescendo e deteriorando, mas é uma cidade que ainda era possível você, vindo de uma família de elite, de classe média, conseguir viver na cidade sem ter consciência da pobreza. Eu acho que hoje isso não é possível no Recife de 53% de população abaixo da linha de pobreza, e com a violência transbordando, invadindo a casa das pessoas. Na época em que eu fui educado, era possível, sim, ser parte de uma elite, e foi assim que a gente foi educado, absolutamente protegidos, que vivia da casa pra escola, pro clube, pra casa da praia, pra chácara, pra granja, e você viver completamente inconsciente da situação da pobreza, mas ao mesmo tempo a pobreza estava ali, presente nos mangues, nas favelas, mas ela se dá de maneira muito menos conflitada como ela é hoje. É uma cidade, enfim, que tinha uma história cultural muito rica, e uma elite cultural muito produtiva, muito criativa. Eu tive uma infância de classe média, classe média alta, muito parte daquela elite, de uma elite cultural bastante criativa, interessante, e ao mesmo tempo no lugar em que tinha uma elite econômica que acabou gerando o tipo de sociedade que a gente tem hoje.
P/1 – Teve algum marco, a primeira vez que você se deparou com uma situação de injustiça, de injustiça social que você percebe isso mais fortemente?
R – Eu sempre fui ligado na convivência com os empregados, coma as famílias mais pobres do bairro, então sempre tive uma curiosidade e sempre fui, dos irmãos todos, o que mais se metia nas conversas e convivia. Tentava conviver com as pessoas mais pobres, isso era algo que se destacava, mas não era o que tinha marcado. Um momento que marcou foi uma pelada de rua, jogar bola no meio da rua, e que a gente convidou uns meninos que pediam esmola pra jogar com a gente e, no meio da partida, um dos meninos desmaiou. Aí deu aquele pânico, a gente correu pra casa, trouxe a minha babá que veio, que ajudou, levou pra casa, deu um suco; enfim, o menino se recuperou e estava tudo bem. Aí, eles muito constrangidos, os dos dois meninos, não querendo ir embora pra casa... Mas aí, fazendo perguntas, eu aprendi que o menino tinha desmaiado porque ele tinha, de manhã, doado sangue... Doado sangue não, vendido sangue. Era uma família de pessoas que viviam da mendicância, que batiam na casa das pessoas, que recebiam comida, e também, pra gerar renda, de quando em quando vendia sangue. Pra [mim] aquele foi um momento de realmente dar um curto circuito, não conseguir entender esse mundo. E essa história, na vida de um menino de 11, 12 anos isso passa, mas volta muitos anos depois. Muito marcante esse momento que antes tinha passado despercebido, mas que tem muito a ver com a carreira e a trajetória que a gente foi construindo no campo dos direitos humanos, na área social...
P/1 – E Maneto, uma pessoa que te marcou, que foi uma pessoa que influenciou ali nas suas escolhas; pai, tio, professor: tem um personagem encarnado nisso?
R – Tem um personagem muito forte que é o meu avô, o Valdemar de Oliveira, que era uma das grandes lideranças intelectuais do estado de Pernambuco. Ele era um pouco de quase tudo. Ele era médico, diretor da Faculdade de Medicina, escritor, jornalista, teatrólogo, advogado... Era um pouco um homem do iluminismo, com grande capacidade de criação de empreendedorismo, e ele criou e fundou um grupo de teatro amador, que é o grupo de teatro amador mais antigo que existe no país, funciona há 65 anos de forma ininterrupta e de forma totalmente abandona. É o Teatro de Amadores de Pernambuco, tem obra publicada...
P/1 – Foi o seu avô que fundou?
R – Foi meu avô fundou. Tem um teatro com o nome dele no Recife, e é uma associação sem fins lucrativos, até hoje... E a minha família era toda envolvida em torno do teatro e do fazer teatro por amor, do fazer teatro como uma atividade de natureza cívica, pública, cidadã. Uma coisa que era feita pra cidade, que não era pra benefício próprio, e isso claro que era um exemplo muito grande. Então, a ideia de dedicar a vida a servir, dedicar a vida à comunidade era algo que tinha exemplo muito forte dentro de casa.
P/1 – Em que momento surge, na sua vida, como projeto, esse caminho de trilhar pelo social? É na escola, na faculdade...
R – Na escola eu era muito empreendedor, estava sempre coordenando grupos, montando grupos e criando projetos, estava sempre... Mas sem nenhuma consciência social mais profunda. Foi a entrada na universidade e o contato com o movimento estudantil que foi o grande momento de abrir consciência, de começar a pensar e a entender um pouco da sociedade brasileira, começar a me meter na política de reconstrução da UNE [União Nacional dos Estudantes], e também foi um período, nessa época de faculdade ou pré faculdade, de viagens, de mochileiro, de botar a mochila e fazer grandes viagens pelo mundo. Eu, com 17 anos de idade, de mochila, passei três meses viajando pela Índia, Nepal, Afeganistão, Irã, Paquistão, Afeganistão, Irã, Turquia. Eu fiz uma viagem sem contato com a família e...
P/1 – Sozinho?
R – Com dois amigos brasileiros, um de 19 e outro de 21, e lá... Depois, quando eu voltei ao Brasil, já na faculdade, fiz todo o interior do nordeste no ônibus pra Belém, e fazer Belém... Manaus de navio gaiola, viagem pelo Pantanal... Quando eu conheci minha esposa, na universidade, a gente se conheceu num mês, três [meses] depois estávamos de mochila indo para a Bolívia. Então teve uma fase de grandes viagens, né, o grande descobrir. Nessas viagens eu descobri o mundo, porque eu tive acesso à possibilidade de fazer isso, porque eu vim de uma família estruturada de classe média que sempre, com reticências e com medo, estimulava este tipo de aventura. E na universidade foi o contato com a realidade política, então, com as viagens eu conheci o mundo e na universidade conhecer as dinâmicas do processo político, as demandas, as bandeiras, a luta pela anistia, depois a luta pela constituinte e aí eu entrei muito na atividade política. Mas chegou um momento, já perto de eu me formar, que eu achei que tinha que fazer uma opção: ou entrava de cabeça na política, mesmo, que era o que chamava... Na época tinha uma militância partidária num partido clandestino, no partidão, o PCB [Partido Comunista Brasileiro], e esse era o chamado, entrar de cabeça na atividade partidária, na atividade política. Eu terminei fazendo uma opção bem radical que foi: “não, eu quero ir para as favelas, quero trabalhar com os pobres, quero me meter no meio dessa população que está sofrendo.” Daí, com um grupo de estudantes, criamos uma... Na época não tinha ONG, não tinha nome mesmo, mas foi criar um coletivo de estudantes para criar um trabalho de assessoria jurídica popular. Esse foi o projeto, e criamos um trabalho nesse ramo e fundamos o GAJOP, que é uma entidade: Gabinete de Assessoria Jurídica às Organizações Populares; um nome enorme, mas que era um projeto de criar uma alternativa, opção de assistência aos pobres que a faculdade de direito trazia, que era o modelo da assistência judiciária tradicional que lida com o pobre como uma vítima que necessita de algum tipo de proteção e que é atendido de forma limitada, baixa qualidade na sua necessidade individual. E a gente via que tinha uma luta por direitos, uma luta por justiça que estava acontecendo na sociedade e que a universidade não respondia, que era a luta pela terra, a luta pela habitação, a luta pelo acesso à educação, pelo acesso aos serviços de saúde, enfim, a luta de uma população que, naquela época, final dos anos 70 e começo dos anos 80, foi a época das grandes invasões urbanas, uma época de grande crescimento das cidades, grande fluxo de migração do campo para as cidades e com muitos conflitos pela posse da terra no contexto urbano. Foi a época da multiplicação das favelas, e sempre envolvendo conflitos em relação à posse da terra. Uma parte dos favelados até hoje vivem em situação ilegal do ponto de vista da propriedade da terra. Então a gente resolveu montar um projeto para trabalhar com o direito coletivo, e aí a universidade não aceitava isso como um projeto alternativo de assistência aos pobres. A gente saiu e foi para a luta construir um espaço, construir uma entidade que pudesse abrigar um trabalho alternativo ao modelo da faculdade, e aí começou uma trajetória no campo dos direitos humanos, no campo das organizações na sociedade civil, aí que defini um pouco o meu caminho.
P/1 – Isso foi em que ano?
R – A militância de movimento estudantil foi mais intensa em 79 a 81. Em 79 vem a [Lei da] Anistia, depois a reconstrução da UNE, daí foi a época da militância, e em 81 a gente partiu pra criar o GAJOP com um grupo de colegas. Enfim, alguns que ainda seguem à frente dessa entidade.
P/1 – Ah, ainda existe?
R – Existe, existe e é uma das grandes entidades de direitos humanos no Brasil. O GAJOP é uma entidade, hoje, que tem uma equipe de 70 pessoas, é uma das grandes ONG’s do nordeste que atua no campo dos direitos humanos.
P/1 – Então quer dizer que pessoas do grupo que o fundaram continuam lá?
R – Continuam lá.
P/1 – Interessante...
R – E hoje em dia, num determinado momento... No primeiro momento o trabalho era muito nas coisas da favela, na luta pela posse da terra, que envolvia desde você planejar o processo de ocupação, apoiar os movimentos sociais e a igreja de Dom Hélder, no caso do Recife, na realização das invasões. Então tinha essa dimensão um pouco contestante, subversiva, de assessorar um processo de ocupação ilegal de terras, assistir o movimento nesse processo e depois ajudar a comunidade a garantir a sua permanência e garantir acesso a uma série de serviços, à educação... E essa ONG, que inicialmente começou com uma perspectiva de assessoria jurídica, depois foi virando um grande guarda-chuva, foram entrando outros projetos de comunicação popular, de educação popular, de escola comunitária. Enfim, aí virou um grande projeto social, articulava vários grupos com toda experiência do Centro de Cultura Luiz Freire – que era o grande guarda-chuva em que estava o GAJOP e outros projetos sociais –, a TV Viva, na área da comunicação popular...
P/1 – TV Viva?
R – TV Viva, que é uma televisão de bairro; em 84, 85 fiz um trabalho nas escolas comunitárias, uma rede de 200 escolas primárias, pré-escolas e escolas primárias dentro das favelas do Recife, atendendo cerca de 20 mil alunos, um movimento autônomo da sociedade civil [à] escolas vinculadas a associações de moradores e que o Centro Luiz Freire dava apoio pedagógico, apoio técnico, apoio político. Então começou ali, na favela, numa perspectiva muito jurídica, depois virou, na verdade, um trabalho de cidadania, de desenvolvimento, de construção de alternativas pra população.
P/1 – Bem, e aí? Quer dizer, você está nesse período todo, nessa movimentação em Recife. Vocês saem de lá quando?
R – Em 86 a gente estava nesse processo de construir uma entidade com várias frentes de trabalho: trabalho jurídico, direitos humanos, stricto sensu, trabalho com escolas comunitárias... Enfim, começava a crescer, começa a vir demanda de todo o estado para trabalhar com atingidos de barragens lá em Itaparica, pra trabalhar com vários movimentos sociais do estado. A gente, começando a ter consciência de que éramos parte do movimento nacional de direitos humanos, em 86 a gente ajuda a criar o Movimento Nacional de Defesa dos Direitos Humanos, um grande encontro de entidades de defesa dos direitos humanos que a gente ajudou a organizar em Olinda.
P/1 – Você queria ________ exatamente isso?
R –...Então tinha essa coisa, de estar começando a tomar consciência dos temas de movimentos sociais, das redes de ONG’s, a gente começando a se reconhecer na sociedade e construir alianças, redes e parcerias, então esse foi um momento. Foi nesse momento que eu conheci uma pessoa muito especial, que é outra grande influência na minha vida, que foi Willian Drayton, o Bill Drayton, da Ashoka.
P1 – Ah, você conhece ele em 86?
R – 85, quando ele vem ao Brasil ainda para estudar, para criar o programa da Ashoka. Ele me procura como advogado, veio me procurar porque tinham indicado meu nome como um advogado que mexia com esse tema das fundações internacionais, tinha relação com várias fundações e poderia ajudar na abertura de um escritório, de um programa, da Ashoka Internacional no Brasil. A nossa primeira uma hora de conversa foi sobre esse tema, tema de aspecto jurídico, da criação de uma filial de entidade internacional no Brasil, e eu ajudei a Aschoka nesse processo. Mas aí a conversa não terminava, não terminava, quatro horas de conversa, aí o Bill pergunta se eu estou livre para depois jantar, e depois me pergunta... Depois de quatro horas de jantar me pergunta se eu estou livre pra almoçar no outro dia, e eu fascinado com aquela figura muito especial. Alguns meses depois ele me convida para participar do processo de seleção da Ashoka, e eu participo do primeiro processo de seleção que teve no Brasil. Essa conversa, esse conjunto de conversas e essa convivência com o Bill foi muito importante, porque abriu a cabeça para uma série de temáticas, de ter a consciência mais clara de que aquilo que a gente via como uma militância ainda, quase como uma extensão da militância política e da militância estudantil, aquele ato de criação de uma organização cidadã que estava ali defendendo direitos, se comprometendo dentro de uma lógica cívica e cidadã própria, não vinculado à coisa do partido, que aquilo não era uma coisa isolada, mas um fenômeno global, e que a gente estava assistindo ao nascimento de uma nova sociedade civil planetária. Aquilo pra mim foi um momento de revelação, e muito da minha trajetória posterior está vinculado à ideia de... Eu me sinto, hoje, uma pessoa que dedica a sua vida a fortalecer a sociedade civil, a fortalecer essa rede e as várias redes, a essa trama de organização de vida cidadã. Isso aí ajudou a me definir um pouco, tanto que a coisa do direito, a coisa dos direitos humanos estrito senso, obviamente é superimportante, fundamental, mas não foi algo... Eu terminei me reposicionando enquanto perspectiva profissional mesmo, de futuro, pensando o fortalecimento desse campo de exercício de cidadania que são as organizações da sociedade civil. E a outra coisa foi a discussão sobre o perfil empreendedor, sobre o empreendedor social, que traz todo o tema da discussão da liderança e do coletivo, o indivíduo e o coletivo. A gente, no começo, tinha muita resistência (para ser um exemplo de empreendedor social?), e eu olhava o meu empreendimento como um espaço de construção coletivo, a gente vinha de uma dinâmica e tinha muita dificuldade em aceitar essa singularização de dizer: “você é diferente ou você é a porta de uma (fama?) diferente.” Então abriu toda uma reflexão sobre a questão do empreendedorismo, dos vários perfis da questão da liderança e da contribuição que cada um pode dar para o processo de transformação social. E aí foi outro tema que me apaixonei imediatamente. Já no segundo processo de seleção eu já participei como panelista e me tornei um nominator, que é o termo que a Ashoka usa, mas aquele que indica novos nomes, novas pessoas. Eu virei um militante de trazer gente pra Ashoka, de indicar, de sugerir nomes, de estar circulando pelo Brasil e identificando o perfil do empreendedor em vários campos, trabalhando essa diversidade de temas e...
P/1 – Uma curiosidade: quais as pessoas que você indicou e que acabaram fellow?
R – Ah, é muita gente, se eu começar eu vou esquecer de alguns que vão ficar chateados, então eu prefiro não falar. Mas eu participei de muitos momentos de seleção, então, independentemente das pessoas, dos nomes que eu indiquei, tem as pessoas que eu convivi no momento da entrada delas, eu fiz parte e participei das entrevistas, participei do painel de seleção, e isso foi... É uma experiência de vida maravilhosa, você conhecer e reconhecer essas pessoas com quem você compartilha uma série de características de inovação, de criatividade, de obstinação de luta, de vontade de mudar o mundo, que é muito...
P/1 – Nesse período você ainda está no Recife?
R – Estava no Recife e continuei no Recife até consolidar a transição no Centro, até o final de 91 eu continuei no Recife. Em 89 já era uma das maiores ONG’s da região nordeste, já tinha mais de 16 financiadores internacionais, era uma ONG grande, com grandes projetos, com equipe. Era uma estrutura grande. A gente também tinha entrado numa nova temática, que foi a questão da segurança pública e a questão da violência dentro das favelas, e o GAJOP, hoje, o grande trabalho que faz é nesse campo da violência, da segurança pública.
P/1 – Maneto, voltando a esse início do GAJOP, quais foram os fatores fundamentais que vocês colocaram ______ para vocês conseguirem colocar as ideias em prática?
R – Bom, aí são vários fatores. Eu acho que o primeiro fator fundamental era o compromisso visceral e profundo com transformação social, mudar uma realidade que é claramente inaceitável, inviável, desumana, injusta, que é o que a gente tem dentro das nossas cidades, nas ruas, nas favelas. Então a primeira coisa era esse compromisso profundo e um conjunto de valores associados à esse compromisso, e esse eu acho que é o cimento fundamental que dá consistência a essa rede, que dá sentido a todo esse trabalho, que é esse compromisso mesmo com a população marginalizada, com população excluída, e essa dimensão quase épica de transformar a realidade, de realmente dedicar a vida a mudar o mundo, então esse nível de compromisso é muito visceral que no empreendedor social é o grande motor da obstinação do não desistir nunca, do ir em frente, dedicar a tua vida àquilo ali. Essa motivação vem muito desse compromisso com a transformação, então eu acho que isso é o ingrediente básico, fundamental das entidades da sociedade civil que não são reprodutoras dos esquemas centenários ou milenares de dominação, mas que de fato procuram contribuir para transformar o mundo. Outro elemento que eu acho fundamental é a criatividade prática, trabalhar o “como”, dar respostas ao “como”. Você não pode só ficar no discurso político, só na visão, na indignação com a exclusão, você precisa ter criatividade de encontrar os caminhos e de viabilizar o trabalho, e aí é onde a coisa pega para muitos empreendedores, porque isso obriga... Você era um advogado? Vai ter que aprender contabilidade, prestação de contas, onde é que busca dinheiro, onde é que corre atrás, como é que segura a folha de pagamento da ONG, como é que vende projeto, como é que faz projeto; enfim, aí é que é o inferno da vida de todo empreendedor, é ter que não perder o foco no “como”, como você faz, porque só a indignação, só o diagnóstico da realidade que precisa ser mudada não move o mundo. Você precisa encontrar respostas criativas, precisa mobilizar recursos, mobilizar vontade, construir um processo de trabalho que de fato consiga ter impacto na realidade, e isso não é uma coisa banal, é um trabalho realmente de gerenciamento, que é a outra dimensão do trabalho do empreendedor. Aí não tem jeito, tem que meter a cara mesmo, tem que trabalhar muito bem, tanto processo de captação como a gestão de poucos recursos que a gente dispõe.
P/1 – Dos poucos recursos...
R – É, são sempre limitados, a gente está sempre esperando aquele momento mágico em que alguém vai vir adotar a gente, e não tem isso, a ONG é como uma bicicleta, essa entidades sociais são pequenas bicicletas, se você parar de pedalar você vai ao chão, então você tem de estar sempre batalhando, fazendo projeto, começa um projeto já pensando no próximo, já correndo atrás, isso é um dos dilemas que consome muita energia, mas é, ao mesmo tempo, o que garante a possibilidade do resultado.
P/1 – Da existência e da independência...
R – Da existência, exatamente, e da independência do seu trabalho.
P/1 – Ótimo, já esclareceu bem. Então nós estamos na sua linha do tempo, você, então, em 91, é o ano da...
R – Olha, 89 é o ano que eu disse, depois de muito tempo dirigindo essa ONG, já uma ONG grande, com vários financiadores, eu digo: “olha, está na hora de fazer a transição.” E levei dois anos para fazer a transição. Também você não faz uma transição da noite pro dia, você tem de preparar as pessoas, trabalhar os financiadores, viabilizar certa folga nos recursos pra você poder fazer essa saída.
Nesse momento, outra vez momentos maravilhosos de interação e aprendizagem com o Bill, da Ashoka, que me convidou para ir trabalhar com ele nos Estados Unidos, e a Aschoka era... Eu me sentia totalmente um empreendedor social ajudando a construir a Ashoka no Brasil, e sentia... Sempre sentia a Ashoka como uma coisa nossa, como a coisa que a gente estava construindo junto com o Bill, essa rede no Brasil. O Bill insistiu muito, me convidou mais uma vez, muito tentador, enfim, trabalhar com o Bill nos Estados Unidos. Mas aí eu fiquei com medo de ir e não voltar pro Brasil. Sair do Recife, ir para os Estados Unidos e não voltar. Aí eu disse pro Bill: “olha, eu vou, mas antes eu preciso passar por São Paulo. Eu quero ter uma experiência de São Paulo, Rio, eu quero ter uma experiência fora do Recife trabalhando com...” Na época a gente já vinha empenhado, desde 86 tinha começado o processo que levou à criação da ABONG [Associação Brasileira de Organizações Não Governamentais], e esse período entre 89 e 91 foram os anos de formação da proposta da ABONG, eu estava muito envolvido com isso, eu achei que não dava pra sair de Recife e direto ir pra Washington, passar cinco, sete anos. E depois, como é que volto para o Brasil? Aí eu estava nesse momento todo acontecendo, era pós constituinte, você já tinha aí um novo momento, tinha tido a eleição do Collor no Brasil num processo de mudança que exigia um reposicionamento das ONG’s, e uma das discussões que era bastante acalorada era sobre a necessidade das ONG’s abrirem um canal de interlocução com o empresariado, essa é uma discussão que vem nesse período, 89, 90: estar se discutindo como é que o terceiro setor – na época não se usava essa expressão – mas, como é que esse setor cidadão vai se sustentar? Quais são as bases de financiamento? Nós vamos continuar dependentes da cooperação internacional? Dependentes de uma caridade do pessoal mais beneficente, de um tipo de caridade que tem uma dimensão assistencialista? Quais são as novas bases de financiamento... Essa era a discussão, e um dos elementos da discussão era a interlocução com o empresariado, e particularmente um empresariado progressista que começava a emergir no Brasil, particularmente em São Paulo, com o PNBE [Programa Nacional Biblioteca da Escola]. E aí eu decidi que eu queria vir pra São Paulo, e vim mal intencionado, no sentido de que eu vim com essa intenção de conhecer essa liderança nova do empresariado e criar uma interlocução, criar uma ponte. Eu já tinha o nome do Oded Grajew, do Emerson Kapáz, o Hélio Matta, como lideranças que começavam... Sérgio Mindli, que começavam a aparece na mídia, começavam ________ determinado _________, com a visão progressista do empresariado, digo: “tem algo novo aí...”, fazia a ponte com as ONG’s. Aí vim pra São Paulo, trabalhei dois anos numa fundação que tem um vínculo com o empresariado, que foi a Fundação Vitae. Ajudamos a montar um trabalho interessante na Vitae, mas o mais importante pra mim era estar em São Paulo, era estar conectando com novas redes e abrindo interlocução com esse empresariado. Fiquei dois anos na Vitae, e um dia eu liguei pro Bill e disse: “Bill, estou pronto pra agora dar um salto, eu acho que aqui já tem...” E esse momento que eu vivi em São Paulo, foi um momento riquíssimo, porque foi o momento que estourou o escândalo do Collor e todo o processo de impeachment, e se tem... Uma da coisas que eu tenho orgulho por ter feito muito pouco... Sabe aquelas situações que você não fez nada mas você tem muito orgulho desse pouquinho que você fez? Foi quando começou o processo do impeachment. Eu sempre tive um dos outros gurus na minha vida, foi o Betinho, sempre tive uma interlocução muito grande com o Betinho, tinha um carinho, uma amizade pessoal muito, muito próxima, muito... Ele realmente foi uma das grandes influências na minha vida, e ter aproximado o Oded do Betinho, ter facilitado um processo de diálogo do PNBE com a ABONG, que ao PNBE participar ativamente da campanha do impeachment, pela primeira vez você tem empresariado junto com ONG’s, uma campanha de dimensão cívica. Esse simples conectar dali, dar um telefonema, ajeitar, armar uma reunião, envolver várias pessoas... O Hélio Matta, que estava à frente do PNBE, o Miguel Dárci de Oliveira, que estava na diretoria da ABONG, colocar essas duas turma juntas, pra mim, eu acho uma contribuição que eu levo dentro do coração como... Se tem que algo que eu posso dizer: aqui você deu uma contribuição relevante, essa aproximação dos dois mundos foi uma.
P/1 – Sem dúvida...
R – Aí chegou o momento de ganhar o mundo, aí eu fui morar nos Estados Unidos e trabalhar com a Ashoka, isso já depois do impeachment , já lançada no Brasil a campanha contra a fome, que foi uma outra grande polêmica que o Betinho provocou no mundo das ONG’s. Esse negócio de trabalhar a questão da fome, distribuir sopa, era um modelo assistencial, não é, enfim, toda essa... É essa aliança com o empresariado, “que história é essa...”, enfim, isso provocou muitas discussões acaloradas dentro do âmbito da ABONG, mas foi um momento muito rico, e foi nesse momento, em 94... 93 que já comecei a trabalhar na Ashoka, e em 94 finalmente eu fui morar nos Estados Unidos e trabalhar com o Bill Drayton, como um guru ali, ao vivo, do seu lado, ajudando, ensino a você, então aí tem uma trajetória de vários anos de trabalho com o Bill, ajudando a construir a Ashoka a nível mundial, e fui vice-presidente do Globo Fellowship, da rede mundial da Ashoka, e tive aí... Enfim, rodei o mundo várias vezes: Ásia, África, Europa do Leste, Europa Central, América Latina toda. Quando eu entrei na Ashoka, em 93, a Ashoka na América Latina só estava no Brasil e no México, e em 94 se conseguiu a doação de uma fundação que estava surgindo naquela época, que era a Fundação Avina. A gente nunca tinha ouvido falar de acessar recursos bastante significativos para ampliar a Ashoka na América Latina, e eu participei da elaboração do projeto, da construção dessa relação da Ashoka com a Avina, e aí conseguimos, com esse apoio da Avina, em 94, expandir a Ashoka pra toda a América Latina, e logo depois saiu outra doação que a Aschoka recebeu pra começar um programa no Leste europeu, na Polônia, Hungria, República Tcheca, na Eslováquia... Foi um outro processo que eu me meti, e aí fortalecer e desenvolver os programas na África, na Ásia... Passei uns bons cinco anos na minha vida...
P/1 – Cinco anos?
R –... É, viajando o mundo, ajudando a fortalecer a rede da Ashoka e trabalhando as várias dimensões, e tendo essa oportunidade de estar convivendo ali com o Bill.
P/1 – Rapaz, eu vou à Curitiba só pra gravar uma seção disso...
R – Só disso? (risos). É, aí tem muita história.
P/1 – Tá, então você contou de todas essas andanças aí pelo mundo, ajudando a fortalecer a rede Ashoka. E você retorna ao Brasil em?
R – No dia 31 de dezembro de 98, começo de 99. Cheguei para o réveillon para encarar o ano de 99 na implementação de um projeto que a gente já vinha com um grupo de empresários daqui de São Paulo tramando já há alguns anos, não foi algo que nasceu assim... Foi algo que nasceu entre 96 e 97, que foi a criação do Instituto Ethos, de empresas de responsabilidade social.
No período em que eu estava trabalhando na Ashoka, eu terminei me metendo na coisa da sustentabilidade da Ashoka, captação de recursos para a sobrevivência da Ashoka... A Aschoka é uma grande bicicleta de vários milhões de dólares por ano que são captados, e um esforço muito grande na instituição. E eu estava diretamente envolvido, cheguei a coordenar essa área de captação de recursos da Ashoka durante um período, e aqui no Brasil tinha ajudado a criar os primeiros grupos... Apoios locais do empresariado, no envolvimento do empresariado com a Ashoka, com o Guilherme Leal, da Natura, e depois dele outras várias possibilidades e portas que a gente foi ajudando a abrir quando eu ainda estava no Brasil, em 93. Em 94 eu termino indo para os Estados Unidos, aí comecei a descobrir todo mundo do empresariado progressista americano, e o que estava acontecendo nos Estados Unidos, qual era o estado do debate, como é a agenda dessa discussão da sustentabilidade empresarial, na participação dos empresários, nas relações dos empresários com as entidades e com as causas sociais. Então eu comecei a ter a possibilidade de fazer a ponte entre os empresários que eu tinha uma relação aqui e, Oded Grajew, Guilherme Leal, da Natura, o Sérgio Mindli... Enfim, essa turma aí, Ricardo Young, Emerson Kapáz, Hélio Matta, essa turma, conectar com esse processo, com essa outra turma que eu estava começando a conhecer nos Estados Unidos através da Ashoka e num determinado momento, em 97, o Oded tira um sabático e vem pra Washington, e a gente monta um programa, e juntos fazemos um recorrido nos Estados Unidos, uma viagem para conhecer, e começamos a articular a conexão desse grupo aqui, que tinha experiência da Fundação Abrinq [Associação Brasileira dos Fabricantes de Brinquedos], que tinha experiência do PNBE com a nova agenda que estava sendo discutida no mundo, do mundo empresarial, que era a discussão da sustentabilidade, a coisa do triple bottom line, a necessidade das empresas conciliarem a dimensão econômica com a dimensão social e a dimensão ambiental, a discussão da responsabilidade social corporativa. E a Ashoka também atuava na Europa, a gente tinha todo o programa do Leste europeu, e viajava com frequência à Europa. Tinha os grupos de apoio da Aschoka em Londres, em Paris, aí eu comecei também a conectar com esse debate do outro lado do Atlântico, lá na Europa, e conectar os empresários daqui com essa discussão. Simplesmente colocar em contato, passar um material, passar um livro, passar um contato. Ao longo dos anos foi nascendo a ideia desses grupos de empresários daqui, de criar uma nova entidade no Brasil para promover o tema da responsabilidade social, e a decisão de criar essa entidade foi tomada num encontro que nós ajudamos a organizar. Eu participei do processo de organização desse evento, foi um evento que houve em Miami, organizado pelo Business _______ Responsability _________, que é uma entidade que promove o tema da responsabilidade social nos Estados Unidos, que organizou em Miami um encontro com empresários latino-americanos. Esse grupo do Brasil foi e, lá, [em] novembro de 97, decidem criar o Instituto Ethos ao longo de 98 para, em 99, realizar uma conferência latino-americana com empresários de toda a América Latina sobre responsabilidade social de empresas, e nesse jantar eles dizem: “você vai, se prepare; você vai voltar para o Brasil para dirigir essa entidade.” E aí, a possibilidade de voltar para um projeto no Brasil com a significação, com a importância que já tem hoje o Instituto Ethos. E aí foi um ano de transição na Ashoka, a primeira pessoa com quem eu falei foi com o próprio Bill sobre essa possibilidade, e o meu desejo de, depois de alguns anos, voltar ao Brasil... Aí fizemos uma transição muito bonita, de um ano de muito trabalho, de deixar as coisas organizadas na Ashoka, de lançar alguns projetos novos, buscar novos financiadores, deixar a coisa um pouco organizada e voltar para o Brasil para criar uma entidade nova. Quando eu cheguei, o Edson ainda não tinha um escritório permanente, estava terminando de montar um escritório e tinha onze associados...
P/1 – Onze?
R – Onze. Foram vários anos de pauleira mesmo, pra ajudar a construir, trabalhando junto com outro guru na minha vida, que é o Oded, amigo pessoal e guru mesmo, e com essa turma muito incrível de empresários que tem outra leitura, outra visão de Brasil e outro nível de compromisso com o processo de transformação social. Foi um grande projeto de construção dessa instituição, e os resultados estão aí, são mais de mil empresas associadas ao Edson (Estaide?), que tem uma... Que colocou a agenda da responsabilidade social nos conselhos de administração das empresas, que conseguiu impactar a vida de muita gente dentro das empresas, das pessoas que trabalham, que fazem o dia-a-dia das empresas, que tem tido uma influência cultural e uma influência política muito importante, tem criado espaços de diálogo de empresas com a sociedade bastante relevantes, e que agora começa a dar seus primeiros frutos. Ainda tem aí uma longa vida, uma longa trajetória para frente desse trabalho do Instituto Ethos. Eu fiquei à frente do Ethos nos seus primeiros cinco anos de existência, mais apareceu outra oportunidade, um outro sonho que eu estava esperando há muito tempo, que é em algum momento voltar pro campo do movimento social, porque na verdade eu dirigi o Ethos sem nunca ter trabalhado em empresa (risos). Nunca trabalhei em empresa, e foi uma experiência fantástica estar trabalhando, ajudando as empresas, mas no fundo... Pra mim todo esse processo era um processo muito rico de aprendizagem, e muito generoso por parte das empresas, dos empresários, de abrir portas, de permitir um aprendizado fantástico como que eu tive no Ethos. Mas chega o momento que você quer estar de volta na sociedade civil, atuando a partir da sociedade civil, fazendo a ponte com o empresariado. Porque hoje eu posso fazer de forma muito mais fácil do que antes, agora eu tenho toda uma experiência e contatos. No Brasil a gente tem essa riqueza, tem instituições como a Ethos e como várias outras gentes que estão surgindo dos núcleos de ação para a cidadania das empresas e várias iniciativas novas que estão surgindo no Brasil, que faz com que esse trabalho hoje seja muito mais possível de você fazer aproximação. É o mundo empresarial, é o mundo das ONG’s, não só porque essa colaboração pode representar um dos elementos importantes de sustentabilidade das ONG’s, mas porque essa colaboração tem uma contribuição muito poderosa para dar para o processo de transformação social, porque os empresários não trazem só recursos financeiros para as mesmas, eles trazem influência, poder político, capacidade de articulação, redes de distribuição, redes de produção. O potencial dessa colaboração vai muito além de captar recursos junto a empresários. E aí eu volto através da Fundação Avina, que estava lá atrás na história da Ashoka. É um parceiro estratégico da Ashoka até hoje. Eu volto pra sociedade civil com a Avina, sendo representante da Avina no Brasil, tendo ajudado a montar o programa da Avina no Brasil para continuar essa trajetória de estar apoiando o fortalecimento da sociedade civil, das redes, das várias redes, nas várias temáticas sociais que são relevantes: a questão ambiental, a questão da inclusão social, a questão da responsabilidade social das empresas, da educação, da juventude, a questão racial no Brasil, a questão de gênero, de direitos humanos, enfim, todo esse conjunto de questões. A minha vida é ajudar a fortalecer esse tramado de organizações, de lideranças, fortalecer as lideranças, fortalecer as organizações a partir não só do trabalho daquilo que a Avina pode fazer, mas do que a gente pode fazer em termos de colaboração como membros dessa rede, dessa trama. E por outro lado, atuar de forma ainda mais efetiva nesse encontro, nesse espaço de diálogo do mundo empresarial com o mundo da sociedade civil.
P/1 – Maneto, estamos chegando ao fim da entrevista. Conseguimos, mais ou menos, desenhar um pouco da sua trajetória. E hoje, qual é o seu sonho?
R – Olha, o sonho de hoje é o mesmo sonho que está naquela entrevista do Bill, em 86, que é o sonho de ver essa vida cidadã, essa trama de organizações da sociedade civil, o terceiro setor no Brasil liderando o processo de transformação social. Eu acho que [é] de onde vem inovação que vai mudar o Brasil, que vai mudar as políticas públicas e influenciar as políticas públicas na direção correta, que vai pautar e influenciar as empresas, vem da sociedade civil e da sua capacidade de estar conectada com esse povo marginalizado e excluído. E é esse povo marginalizado e excluído articulado por essa trama de organizações que vai mudar o Brasil, e o meu sonho é não ter nenhum sonho, de ver o Brasil completamente mudado, de ver a realidade de um determinado segmento... As pequenas transformações são fundamentais, mas o meu sonho é essa grande construção coletiva de a gente conseguir no Brasil criar uma sociedade civil que é de fato solidária, que é capaz de cooperar, que não é preconceituosa e que tem um profundo compromisso com a transformação social. Se a gente conseguir fazer com que a nossa sociedade civil não seja um apêndice dos partidos políticos, um espaço de pilantropia – como dizia o Betinho –, que a gente consiga, de fato, construir um setor cidadão que integre esse processo de integração. Eu acho que a gente vai... É meu sonho ver isso se realizando. E isso não é um sonho que se sonha sozinho, é um sonho que tem que ser o sonho de todos, é um sonho pra ser construído coletivamente. Acho que é isso que a gente está aí batalhando, esperando que aconteça nessa janela da oportunidade que o Bill diz que a gente tem. Eu acho que o Brasil já perdeu algumas janelas de oportunidade no passado, mas o que eu vejo hoje na sociedade brasileira me dá muita esperança de que a gente faz parte de um processo muito importante de mudança social que se constrói no dia-a-dia dessas lideranças tantas, dessas organizações que estão espalhadas pelo Brasil e principalmente pelo escolhido lá na ponta, quem é quem está no fundo: é a luta dele que vai mudar esse país. Se você perguntar, no mais curto prazo, quais são as coisas que estão me mobilizando mais, eu poderia dizer que, onde pra mim hoje está sendo a maior fonte de aprendizagem é o trabalho com essa população que vive da catação. Bom... Vocês têm feito também um trabalho muito legal. Tem sido uma fonte de aprendizado muito importante de renovação daquela... Eu vou usar... Tesão, né...
P1 – É como eles dizem: “o que pra gente é lixo, pra eles é trabalho e renda”, né?
R – É a opção, uma opção quase desesperada pelo trabalho, uma opção de ser cidadão catando lixo. Isso é o que mais me impressiona e me mobiliza. Ao mesmo tempo, como a viabilização disso aí depende de uma articulação com um conjunto de cadeias produtivas altamente sofisticadas, alguns que envolvem investimentos internacionais, toda a economia da reciclagem, o que ela significa do ponto de vista da construção de um paradigma de desenvolvimento sustentável e como é que essa economia da reciclagem em qualquer cenário de sustentabilidade futura tem que ser uma economia muito forte, bem desenvolvida, como é que o catador, que é esse resíduo do processo de deteriorização da vida em sociedade, o resíduo da exclusão, faz lá a opção desesperada para trabalhar no lixo e se insere numa cadeia. Ele passa a ser um elo fundamental dessa economia de ponta da sustentabilidade que é a economia da reciclagem. Então esse é, acho que um case bem emblemático, e o meu sonho é ver essa realidade transformada, é ver o catador como parte, o catador organizado, ocupando o seu espaço, garantindo o seu espaço dentro da cadeia produtiva e com isso garantindo um trabalho decente, um trabalho com salubridade e garantindo o sustendo das suas famílias e uma cidadania plena. Essa aqui é uma situação de uma população específica, onde a gente pode vivenciar todo esse processo de mudança que a gente pretende que não seja só com os catadores, mas com os milhões de brasileiros excluídos que estão aí nas cidades, que estão aí no campo, nas matas desse país.
P/1 – Maneto, a última pergunta aqui pra você. É o seguinte: a Ashoka está começando essa campanha de coleta de histórias dos fellows. Que serventia podem ter essas histórias? Pra quem essas histórias devem servir?
R – Olha, eu acho que toda história de vida, independente de quem seja, o resgate dessa história de vida serve pra gente se reconectar com o humano, para a gente perceber o humano em toda a sua riqueza e complexidade, e você se perceber humano através da história do outro. Eu acho que esse papel, esse trabalho de resgate de memória é extremamente importante, e cada história conta a história da nossa época, conta a história da humanidade. Eu acho que é super importante ela ser preservada. Agora, quando você está trabalhando uma comunidade, um setor da sociedade, uma comunidade que tem um grupo de liderança bastante específico, com trajetórias absolutamente incríveis, de grande compromisso social, eu acho que esse trabalho de resgate ajuda a construção de uma identidade coletiva desse novo tipo de ator na sociedade brasileira, que é o empreendedor social. Acho que é afirmar esse novo espaço de realização pessoal, profissional, o espaço do empreendedor social, dar legitimidade, ajudar a sociedade a reconhecer essa nova profissão, esse novo espaço de realização pessoal e profissional e valorizar essa opção. Então eu acho que esse esforço da Ashoka junto com o Museu da Pessoa pode cumprir esse papel de reforçar esse processo de reconstrução da identidade desse conjunto de lideranças sociais, e pode, ao mesmo tempo, servir de fonte de inspiração. Menos do que fonte de informação de resgate de memória específica de um processo, é servir de inspiração para toda uma geração de pessoas que estão aí procurando um espaço de contribuição pra sociedade, um espaço de militância, e de repente essas falas dos empreendedores podem terminar tendo o efeito “click” que a conversa que eu tive com o Bill Drayton teve pra mim há 20 anos.
P/1 – Então está ótimo, eu te agradeço esse prazeroso papo...
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