P/1 – Boa tarde, Seu Cícero.
R – Boa tarde.
P/1 - Eu queria que, para início de conversa, você dissesse o seu nome completo, a sua data de nascimento e o local do seu nascimento.
R – Cícero Domingos Penha, nascido doze de agosto de 1956, em Loanda, que não é na África. É no estado do Paraná, no Brasil.
P/1 – Qual o nome do seu pai e da sua mãe?
R – Meu pai se chama Raimundo da Penha e minha mãe Maria Concebida Penha.
P/1 – Qual era a atividade do seu pai?
R – Meu pai já fez de tudo um pouco. Meu pai foi lavrador, sapateiro, motorista de táxi e comerciante.
P/1 – Lá no mesmo local?
R – No Paraná, e comerciante em Uberlândia.
P/1 – E sua mãe?
R – Minha mãe sempre dedicada ao lar.
P/1 – Seus avós você conheceu?
R – Conheci os avós paternos.
P/1 – Os nomes deles?
R – Manoel Domingos Penha e Eliza Leite Penha.
P/1 – Da parte de sua mãe?
R – Da parte de minha mãe eu conheci somente a minha avó. Minha avó eu conheci já quase no leito de morte, próxima de morrer.
P/1 – Seu avô materno?
R – Não conheci.
P/1 – Sabe da origem dos seus avós? De onde eles vieram?
R – Meus avós são... Parodiando aquela música do Chico Buarque: eu sou o tipo do brasileiro que meu avô era pernambucano, minha avó alagoana, outra avó era cearense, meu pai cearense e eu nasci no Paraná.
P/1 – Você sabe da história da vinda deles para o sul?
R – Meus pais vieram para o sul atraídos pelo Eldorado brasileiro da época, que era o estado do Paraná, terras praticamente de graça, onde se dizia que em se plantando, tudo dava. E eles então foram ser uns desbravadores do estado do Paraná, parte dos desbravadores do estado do Paraná. E atuaram como plantadores de café durante muitos anos.
P/1 – Seu pai contava, chegava a lembrar com você como é que foi essa...
Continuar leituraP/1 – Boa tarde, Seu Cícero.
R – Boa tarde.
P/1 - Eu queria que, para início de conversa, você dissesse o seu nome completo, a sua data de nascimento e o local do seu nascimento.
R – Cícero Domingos Penha, nascido doze de agosto de 1956, em Loanda, que não é na África. É no estado do Paraná, no Brasil.
P/1 – Qual o nome do seu pai e da sua mãe?
R – Meu pai se chama Raimundo da Penha e minha mãe Maria Concebida Penha.
P/1 – Qual era a atividade do seu pai?
R – Meu pai já fez de tudo um pouco. Meu pai foi lavrador, sapateiro, motorista de táxi e comerciante.
P/1 – Lá no mesmo local?
R – No Paraná, e comerciante em Uberlândia.
P/1 – E sua mãe?
R – Minha mãe sempre dedicada ao lar.
P/1 – Seus avós você conheceu?
R – Conheci os avós paternos.
P/1 – Os nomes deles?
R – Manoel Domingos Penha e Eliza Leite Penha.
P/1 – Da parte de sua mãe?
R – Da parte de minha mãe eu conheci somente a minha avó. Minha avó eu conheci já quase no leito de morte, próxima de morrer.
P/1 – Seu avô materno?
R – Não conheci.
P/1 – Sabe da origem dos seus avós? De onde eles vieram?
R – Meus avós são... Parodiando aquela música do Chico Buarque: eu sou o tipo do brasileiro que meu avô era pernambucano, minha avó alagoana, outra avó era cearense, meu pai cearense e eu nasci no Paraná.
P/1 – Você sabe da história da vinda deles para o sul?
R – Meus pais vieram para o sul atraídos pelo Eldorado brasileiro da época, que era o estado do Paraná, terras praticamente de graça, onde se dizia que em se plantando, tudo dava. E eles então foram ser uns desbravadores do estado do Paraná, parte dos desbravadores do estado do Paraná. E atuaram como plantadores de café durante muitos anos.
P/1 – Seu pai contava, chegava a lembrar com você como é que foi essa viagem do nordeste para o Sul?
R – Como era a viagem de todo imigrante nordestino naquela época e, felizmente, hoje já não é bem assim: era no pau de arara, depois de trem, passando todas as agruras que você pode imaginar numa viagem de aproximadamente 3000 quilômetros, saindo do Ceará e indo para o extremo, que era o estado do Paraná.
P/1 – Essa cidade de Loanda?
R – Nessa cidade de Loanda. O nordestino é ave, que se costuma chamar de ave de arribaçã. É uma ave que tem no nordeste, que migra de acordo com o tempo, de acordo com o interesse. Então o nordestino normalmente sai pelo país procurando um local que ele ache bom para ele viver, ganhar dinheiro. E, naquela época, atraídos por informações, chegaram nessa cidadezinha onde já tinham parentes que tinham chegado primeiro e lá começaram a viver.
P/1 – Onde ela fica no Estado?
R – É no norte do Paraná.
P/1 – Você lembra da casa da sua infância como era?
R – Uma casa de taipa, feita de madeira, toda barreada por fora para não entrar frio dentro. O Estado do Paraná é um Estado em que a temperatura oscila muito. Na época de inverno, o inverno rigoroso. E a nossa família muito pobre, a nossa condição econômica muito precária, fomos morar numa casa paupérrima. O piso de chão coberta de tábuas, com madeiras, no meio do mato e minha família desbravando, lavrando a terra, derrubando o mato e plantando. Sujeito a todos os tipos de doença que você pode imaginar.
P/1 – Você já tinha irmãos nessa época?
R – Já tinha uma irmã, depois vieram mais meus dois irmãos.
P/1 – Nascidos lá?
R – Nascidos lá.
P/1 – Como é que era o cotidiano da família até onde você se lembra?
R – Até os oito anos de idade, a vida na roça como ela é. Não é diferente em lugar nenhum. Depois dos oito anos eu fui pra cidade, saí da roça pra cidade pra estudar e fiquei na casa dos meus tios. Aí comecei uma vida de estudante numa cidadezinha do Paraná. Estudando e depois, mais à frente, trabalhando.
P/1 – Como é que era essa primeira escola sua?
R – A primeira escola foi um colégio de freiras. Foi o primeiro contato com a maravilha do conhecimento. A primeira caixa de lápis de cor, o primeiro caderno pautado, as primeiras broncas da madre superiora. Isso teve uma grande influência na minha formação. Naquela época o clero, o padre, a freira, eles tinham uma influência muito grande na formação, na educação das pessoas, principalmente numa cidade pequena. Então isso foi marcante.
P/1 – Ali você aprendeu as suas primeiras letras?
R – Ali as primeiras letras, os primeiros números, as primeiras contas. Ali recebi o primeiro catecismo, as primeiras aulas de religião. Ali, aprendendo a diferença entre estudar e brincar.
P/1 – E como era o seu dia-a-dia? Você morava na casa dos tios, estudava um parte do dia?
R – Na casa dos tios. Morava na casa dos tios noite e dia, evidentemente, e uma vez por mês ia à roça pra ver os pais. Meu pai vinha mais à cidade, minha mãe sempre reclamando. A mãe sempre mais grudada com os filhos, no entanto a relação era ao contrário naquela época, pelas condições da vida.
P/1 – Você ia a pé para a escola?
R – Sim, sim.
P/1 – Lembra de algum professor que tivesse te marcado especialmente? Ou professora?
R – Não. No colégio interno, no colégio de freira, mais no colégio religioso, depois numa outra escola algum já tempo a frente, escola estadual. Lembro de um professor que o aluno estava fazendo bagunça e ele pegou uma baqueta de bater em zabumba e bateu nesse aluno dentro da sala de aula, nas costas. E aquilo foi uma das primeiras lições minhas de que o ser humano, a educação dele vai até um certo limite ele aí torna-se irreconhecível, depende sempre das circunstâncias que o cercam. Era o educador dando um demonstração de falta de educação, mau exemplo pra toda uma sala de aula.
P/1 – Quer dizer, a sua trajetória, digamos educacional, nessa primeira fase foi desse colégio de freiras, como é o nome desse do colégio?
R – Não me recordo, não me recordo. Era o Colégio das Irmãs Salesianas.
P/1 – Você estudou lá até quando?
R – Não me lembro. A passagem pelo colégio de freiras foi curta, foi coisa de uma ano, um ano e meio. Depois a escola tradicional, estadual, na mesma cidade, depois o ginásio e do ginásio eu já estava na idade de vir embora pra Uberlândia.
P/1 – Você se lembra os nomes dessas escolas? Desse lugar onde você terminou o primário, o ginásio?
R – Colégio Estadual de Pérola, a primeira parte, depois Ginásio Estadual Nestor Victor, que era já na área ginasial. Me lembro do meu exame de admissão do primário para o ginásio. Nessa época eu estava morando numa chácara nos arredores dessa cidadezinha chamada Pérola. E com muito sacrifício comprei um livro para estudar para fazer o exame de admissão para o ginásio. Eu me lembro que eu consegui um feito que foi fazer um ano em dois anos. Eu consegui o que nós podemos chamar em inglês de upgrade na escola, então consegui encurtar um ano de estudos no primário e já indo direto para o ginásio na época. Foi um outro mundo, assim como foi um outro mundo depois entrar na universidade.
P/1 – Quer dizer, afora o estudo e essa vida, como é que o garoto Cícero se divertia?
R – A minha infância não foi um infância que os meus filhos têm hoje, por exemplo. Muito sofrido, trabalhando, tendo que estudar e sem muita diversão a não ser o cinema da pequena cidade. A gente tinha o desejo de ir todos os dias mas nem sempre podia. Então, não tive muito tempo para grandes ilusões e grandes divertimentos como às vezes a juventude, a moçada de hoje tem. Mesmo o período de adolescência foi um período muito duro, muito difícil, pelas condições econômicas.
P/1 – Começou a trabalhar cedo portanto?
R – Aos doze anos.
P/1 – O que você começou a fazer aos doze anos?
R – Entregador de jornal.
P/1 – Lá em Pérola?
R – Sim. Entregador de jornal para o Jornal Estado do Paraná.
P/1 – E como era esse teu trabalho? Você começava a que horas, deixava a que horas?
R – Chegava do ginásio e tinha que colocar o pé na rua pra entregar o jornal para os assinantes. E vender o que sobrava, que era o meu ganho. O meu ganho era com o jornal que sobrava. Então o jornal mandava algumas edições passando e eu tinha que vender aquilo lá. Aquele era o meu ganho em troca do jornal para os assinantes. Quer dizer, eu comecei trabalhando com remuneração variável.
P/1 – Tinha alguma técnica especial pra vender jornal?
R – Às vezes a gente apelava pra emoção, né? Para que as pessoas comprassem jornal, para não sobrar. Mas era para o tempo passar e para iniciar uma vida profissional. Depois do jornal eu fui trabalhar num escritório de advocacia e ali veio a primeira paixão pelo direito. Trabalhava com um japonês, recém formado, chamava-se Doutor Sussumo Sakai e ali eu trabalhei cerca de um ano, mais ou menos. Nesse curto espaço de tempo que passei nesse escritório eu me apaixonava pelas causas que apareciam, pelas histórias. Eu ficava observando como é que ele ia agir em determinadas situações que os clientes contavam, os clientes narrando os casos. Às vezes eu ficava com raiva pelo advogado, pela pessoa, tinha vontade de resolver o problema eu mesmo. Então, ali, veio a primeira paixão pelo direito. Depois eu fui trabalhar... Depois dali eu fui pra um banco. No banco, eu comecei lavando banheiro, foi o primeiro trabalho, era como boy. Tinha que lavar o banheiro, pia, tinha que fazer entrega na rua, tinha que se submeter aos caprichos. Às vezes os funcionários graduados do banco, que às vezes abusavam da boa vontade, da inocência às vezes, daquilo que chamavam de contínuo. Então começou assim: uma vez me mandaram reformar carbono, Isso era uma maneira de fazer uma brincadeira de mal gosto com as pessoas novatas. E eu fui lá, peguei os carbonos velhos, comecei a passar tinta e botei pra secar, obedecendo o que era determinado. E o pessoal lá fora, esborrachando de dar risada. Era assim. Depois eu me vinguei, mas...
P/1 – A vingança é um prato que se come frio. E a continuação dessa trajetória profissional? Digamos assim.
R – Bom , três meses depois de ter começado lavando banheiro o subgerente do banco me chamou e falou assim, que era o Alemão, foi meu primeiro chefe, digamos assim. E em um Domingo me chamou em casa e disse: “Agora você senta aqui e vai escrever um texto pra mim.” Aí eu escrevi um texto na máquina. “Faz uma redação.” Fiz uma redação. Olhou para o contador do banco, olhou para mim e falou assim: “A partir de amanhã você vai sentar aqui nessa cadeira, nessa mesa e vai ser o meu assistente, você vai ser responsável pelo cadastro do banco, aqui da agência.” Talvez tenha começado aí o meu espírito de carreira profissional, né? Foi muito interessante porque ele era uma pessoa muito exigente.
P/1 – Como era o nome dele?
R – Nelson, de quê não me pergunte, porque não me lembro mais. Nelson. Era um descendente de alemão, rígido, gostava das coisas certas. Aprendi muito com ele, foi meu primeiro cult.
P/1 – E seu trabalho junto a ele era funcionar como datilógrafo de cadastro, era isso?
R – Mais do que datilógrafo de cadastro, porque estava chegando num ponto que ele só aprovava qualquer empréstimo, por exemplo, bancário pra área rural, com a minha aprovação. Porque eu passei a fazer o cadastro e fazer avaliações. Então, com o passar dos tempos, eu mesmo já estava assinando as chamadas cédulas rurais pignoratícias.
P/1 – Como que isso bateu no garoto? Porque isso deve ter sido uma surpresa para você, não é?
R – Eu sempre fui uma pessoa que almejei, desejei fazer carreira e ser reconhecido profissionalmente, desde a época de entregar jornal. A questão do trabalho sempre bateu muito forte dentro de mim. E, ali, então, aquela primeira promoção, digamos assim, ela foi algo bastante representativo. Agora, a minha vida no banco, nessa cidade, ela não foi muito longa, foi cerca de um ano e meio dois anos e aí eu fui surpreendido com a decisão do meu pai de mudar do Paraná e vir para Uberlândia. Para Uberlândia não me pergunte por quê, sei dizer pouco. Mais umas das loucuras que os nordestinos fazem de sair procurando lugar pra ficar, e ouviram falar que Uberlândia era um lugar bom, que Uberaba era outro lugar muito bom, que aqui se ganhava muito dinheiro, que aqui era uma cidade progressista. Juntou-se com meu tio, vieram olhar, chegaram aqui e gostaram. Meu tio veio na frente, depois meu pai veio atrás com cinco filhos, uma mala e uma mulher atrás, minha mãe, e pouco dinheiro no bolso. E eu vim junto. Pedi as contas e vim junto.
P-2 – Você tinha quantos anos?
R – Tinha dezesseis anos. E aqui cheguei num dia, no outro dia já estava empregado na Casa Alô Brasil. Casa Alô Brasil naquela época era uma empresa, que talvez fosse o Grupo Algar da época. Tinha o supermercado Alô Brasil, que mandava as cartas, as Casas Alô Brasil, depois tinhas outras fazendas, essas coisas. Eu vim trabalhar como auxiliar de faturamento nessa empresa. E ali fiquei um ano, um ano e meio, mais ou menos.
P/1 – Eu queria que você voltasse um pouquinho e contasse como é que foi essa viagem do Paraná para cá, para Uberlândia. Como é que foi?
R – Bom, foi uma viagem de ônibus, como qualquer outra. Nós vendemos tudo, as pequenas coisas que tínhamos. É importante ressaltar que meu pai até então trabalhava como motorista de táxi. Meu pai foi taxista de jeep durante quatro ou cinco anos. Depois de ser sapateiro, vendeu o jeep e a gente veio com o dinheiro. Aliás, depois do jeep ele comprou um corcel, e foi com o dinheiro desse corcel que ele vendeu que a gente veio embora pra cá. E uma viagem... Um adolescente de dezesseis anos largando a namorada para trás, na época namoradinha, coisa da inocência, da vida. Sem saber o que vinha encontrar pela frente, totalmente a mercê do que os pais iam determinar. A única coisa que tinha na cabeça é que precisava trabalhar. Precisa trabalhar pelo desejo de ter um futuro, pela garra que eu sempre tive pelo trabalho e pela necessidade de ajudar a família.
P/1 – E o que esse garoto encontrou aqui? [O que] Esse adolescente encontrou em Uberlândia?
R – Um mundo complicado, porque o paranaense, principalmente no interior, é um povo muito dado a amizade, a conversar, mais expansivo, e aqui encontramos uma sociedade muito fechada, então durante dois meses chorei muito, chorei muito porque o entrosamento era difícil. Ser aceito, muito difícil. Uberlândia ainda é uma cidade socialmente muito fechada. Aqui você tem que se fazer mesmo. O que é mais difícil.
P/1 – Mas, nesse aspecto, você diria que identificou algum tipo de discriminação mesmo pelo fato de ser um estrangeiro?
R – Não, não, não. Nenhum um tipo de discriminação pelo fato de ser um estrangeiro, entre aspas, aqui. É o jeito mineiro de ser que é um pouco mais retraído, é mais fechado. Não é tão expansivo quanto outros povos, pessoas de outros Estados. Uma característica cultural, digamos assim, do povo mineiro, com que hoje eu já aprendi a conviver muito bem. Acho que já posso até dar um pouco de aula sobre isso. (risos)
P/1 – Da mineirice e da mineiridade, né?
R – Das duas coisas.
P/1 – Bom, aí estamos aqui no afã do trabalho, porque vieram pra isso e você foi para Casa Alô Brasil.
R – Viemos pra isso e para Casa Alô Brasil morando de favor na casa de tios, não é?
P/1 – Onde era essa casa?
R – Na Floriano Peixoto. Na Floriano Peixoto, número 2100, ali onde tem hoje um mercadão, o mercado varejão.
P/1 – O seu trabalho na Alô Brasil, como é que era?
R – Mexendo com faturamento, era um trabalho de escriturário normal.
P/1 – E a escola?
R – E a escola foi difícil porque... O meu currículo escolar ele é bastante curioso, eu não posso falar só da escola aqui. Eu preciso falar de falar um pouquinho do todo agora para poder entender a minha formação escolar. Eu fui uma pessoa que sempre adorei história e geografia. Sempre fui apaixonado pela área de ciências humanas e sempre fui um desastre na área de exatas. Então as aulas de matemática, as aulas de física para mim sempre foram pesadelos. Eu não sei fazer uma raiz quadrada. A não ser a raiz de sete que é a única que eu sei. Sei fazer uma conta de juros, com muito sacrifício faço. Mas por outro lado sempre tive uma facilidade incrível pra redação. Sempre uma paixão por história. E sempre uma paixão maior ainda por casos. Isso explica a minha carreira na área de humanas. E, aqui em Uberlândia, sofri muito porque a entrada no ginásio, pra terminar o ginásio aqui em Uberlândia... Depois o colegial, enfrentando aulas de química, física, matemática, biologia... Puxa vida! Foi terrível. Então sempre passei arranhando, passava “na gata” — como diziam os estudantes na época — nessas matérias. E sempre um bom aluno em português, em geografia, história, conhecimentos gerais. Até depois vir a chance do vestibular.
P/1 – Como é que foi se consolidando na sua cabeça o projeto de uma profissão? A escolha de uma carreira no vestibular?
R – A escolha de uma carreira já vinha da infância com o desejo de ter uma profissão impactante, uma profissão admirável, e o gosto pelas ciências humanas me levou a escolher o caminho do Direito. Sempre tinha aquilo na cabeça. Na chegada ao Grupo Algar, que aconteceu em 1977, eu percebi que o crescimento meu dentro do grupo passava inexoravelmente por ter um curso superior. Mesmo tendo uma boa redação, mesmo sendo uma pessoa que tinha já uma boa bagagem, em termos de conhecimentos práticos. Mas eu percebi que eu não iria longe sem um curso superior. Prestei vestibular quatro vezes, passei na quinta. Eu acho que eu passei porque alguém lá na Universidade deve ter misturado as notas, alguma coisa, e me deu alguma pontuação de graça, porque até hoje eu não consegui entender como que eu passei no vestibular. Agora, o mais incrível é que, depois que eu passei no vestibular e entrei na Universidade, eu nunca tirei uma nota menos de sete. Não fiquei em recuperação em nenhuma matéria eu fui o segundo aluno da turma no exame da Ordem, da OAB [Ordem dos Advogados do Brasil].
P/1 – Faltando esse patamar para deslanchar?
R – É. Alguma coisa é. Mas por quê? Não precisava de ver matemática, não precisava de ver física, não precisava ver biologia, não precisava de ver química. Então o gosto era pela área de ciências humanas, por comportamento humano. Então isso torna bem claro para mim, isso me deixa convicto que o modelo brasileiro de educação tem que ser repensado. Eu poderia estar tentando vestibular até hoje se não houvesse algum critério, alguma coisa que pudesse eliminar essas matérias de exatas para uma carreira que era para área de humanas.
P/1 – Na verdade você estava consumando aquele sonho do garoto auxiliar do escritório de advocacia do Doutor Sussumo?
R – Sussumo Sakai.
P/1 – E se encantou pela profissão da mesma forma como os seus sonhos desenhavam até então?
R – O encanto durou pouco tempo porque, na primeira vez que eu tive que ir numa delegacia pra pleitear como advogado de um preso, o delegado jogou meu sonho por terra abaixo em poucos minutos. Foi decepcionante. Foi decepcionante.
P/1 – Como é que foi esse episódio?
R – Na delegacia, não tenho bem todo o cenário aqui nesse momento, mas era para soltar um colega de trabalho que tinha sido preso acusado de ter furtado. E o delegado virou para mim e falou assim: “Você se sente bem vindo soltar um ladrão?” Depois de me fazer esperar quase duas horas sentado num banco por ele. Então a recepção foi essa. Eu comecei fazendo uma reflexão se isso valia a pena, se esse era o mundo que eu queria e tal. Aí percebi que o meu nicho de trabalho, o meu nicho profissional era muito mais voltado para empresas, porque na empresa você tem um outro mundo. O meio empresarial é um outro mundo. Então eu resolvi me dedicar com bastante entusiasmo ao ramo do Direito que é o Direito Trabalhista, que eu já tinha um certo gosto por ele. Tinha prática. Mas não como advogado, não nas lides forenses, mas muito mais na área administrativa do direito do trabalho. Aí me especializei em Direito Coletivo do Trabalho e virei internamente uma espécie de autoridade, entre aspas, de Direito Coletivo do Trabalho, porque lidei com muitos sindicatos, as brigas foram enormes e o Brasil passou na década de 1980 por muitas turbulências na área do trabalho, na área sindical. Foi uma convivência de aprendizagem muito interessante. Eu conheço um pouco da história do Direito do Trabalho da década de... Temos que voltar porque tem a história do meu começo na CTBC.
P/1 – Eu queria exatamente voltar, nós estamos falando já você atuando.
R – Vamos voltar lá atrás.
P/1 – Você em 1977, você acabou chegando na CTBC.
R – Em 1976 aconteceu um fato engraçado, porque foi quando eu conheci a minha mulher e me casei, antes de chegar na CTBC.
P/1 – Como é o nome dela?
R – Regina Mara.
P/1 – Como é que você a conheceu?
R – Conheci numa noite chuvosa, sentado na garupa de uma lambreta indo na casa dela pra pegar o irmão dela, que era outro lambreteiro, para irmos pescar no Sábado à noite. Ali eu conheci ela e me encantei. Em nove meses nós namoramos, noivamos e casamos. O casamento foi algo complicado porque meu sogro ia separar da minha sogra e, depois de várias brigas, um dia ele ameaçou se juntar com ela de novo e ir embora daqui para São Paulo. E aí nós decidimos que nós devíamos fugir e casar. Então, um dia de tarde, eu me encontrei com ela no trabalho dela, saímos, pegamos um ônibus para Araguari e ficamos três dias fugidos de todo mundo. Três dias em Araguari fugidos, namorando. E toda a família louca aqui. Não sabiam onde a gente estava. E no retorno nos casaram. Para a gente se casar, tivemos que ter a aprovação do juiz, porque eu tinha dezenove anos, ela tinha catorze. Aos quinze anos, antes de completar dezesseis anos ela ficou grávida do nosso primeiro filho. Eu fui pai aos vinte anos. Estamos juntos até hoje.
P/1 – Como é o nome do seu primeiro filho?
R – Luciano.
P/1 – É o único que vocês tiveram?
R – Não, depois veio o Juliano. O Luciano está fazendo 23 anos e o Juliano está fazendo 22 anos. Eu completo esse ano, dia 25 de setembro, agora, eu completo 25 anos de casado, é bodas de prata já. Então, nós fomos morar com os meus pais porque nós não tínhamos dinheiro. Eu lembro que o primeiro fogão que eu comprei, isso aqui em Uberlândia já, antes de trabalhar no Grupo Algar, o primeiro fogão eu pintei com pincel, estava todo estragado, tive que fazer uma pintura nele. A primeira geladeira era uma Frigidaire daquelas de mil novecentos e nada, que as paredes eram coisa de trinta centímetros e pra você fechar tinha que dar um coice na porta. Depois de um tempo meu pai teve que se mudar uma casa mais apertada e eu tive que buscar uma casa de aluguel e pagar o primeiro aluguel, e a Mara grávida. Nasce o Luciano e então eu fui despedido do emprego, do Arroz Carrijo, porque teve uma crise no arroz, a empresa se viu em situação complicada, teve que mandar um punhado de gente embora e eu vim no meio. Mas antes de fazer o meu acerto eu já estava trabalhando na CTBC. Fiz um teste na CTBC com o, na época, chamava Geraldo, o antigo chefe do departamento pessoal na CTBC. O Geraldo era o chefe e o Cleyton era o, digamos assim, subgerente ou o subchefe do departamento de Recursos Humanos. Naquela época chamava Departamento de Pessoal. Então, eu cheguei à CTBC de bicicleta, com vergonha das pessoas me verem andando de bicicleta porque estava na atividade administrativa. Então, no prédio da CTBC, lá na João Pinheiro, tinha uma oficina, oficina do Sebastião, que fazia os concertos. O Sebastião é famoso, você vai ouvir muitas histórias dele aqui. Então eu guardava a bicicleta lá. E comecei, então, fazendo folha de pagamento. Naquela época, a CTBC era a holding do Grupo, atuava como holding do Grupo, não oficialmente, mas na prática ela atuava como holding do Grupo. E cuidava das fazendas, então nós tomávamos conta da área de pessoal das fazendas, da Gráfica SABE, da CTBC propriamente dita, das Companhias Telefônicas que eram ligadas a CTBC — Etusa, Etisa, Ibisa —, e várias outras. Então começou assim. Aí, aconteceu um fato engraçado porque um ano e meio depois, mais ou menos, o chefe de departamento pessoal foi mandado embora, aí o que era o substituto ocupou o lugar dele, o Reyton. Era Reyton, não Cleyton. O Reyton ocupou o lugar dele e eu fui aprendendo. Depois o Reyton resolveu cuidar dos negócios próprios dele, da família dele e a área de pessoal da Telefônica, digamos assim que na época era grande, mas não era como o grupo hoje, ficou vaga. E aquela época tinha chegado o Seu Wilson Luiz da Costa, que era o superintendente do grupo na época. Ele me chamou e falou: “Seu Cícero, a partir de hoje o senhor é o chefe do departamento pessoal.”
P/1 – Quantos anos você tinha na época?
R – Vinte e dois anos, mais ou menos.
P/1 – Não tinha se formado ainda?
R – Não. Eram 22 anos. Aí eu fui sentar na cadeira do chefe de departamento pessoal. Dois dias depois chega o Doutor Luiz com uma outra pessoa, e combinou com a outra pessoa que ela iria ser o chefe do departamento pessoal, que era o Seu Agostinho. E eu fiquei então sem entender o que estava acontecendo. Aí o Sr. Wilson me chamou, falou: “Olha, Seu Cícero, o senhor vai me desculpar mas o Luiz achou que o senhor é muito novo e o Luiz já tinha feito um compromisso com uma outra pessoa, então o chefe do departamento pessoal é o Seu Agostinho. Mas o senhor não fique aborrecido porque o senhor é muito novo e vai ter muita oportunidade aqui dentro ainda. O senhor fique calmo, faça o seu trabalho.” Tudo bem, minha primeira experiência de rebaixamento. Aí eu voltei para minha antiga mesa, trabalhei e sofri pra burro na mão desse Agostinho porque ele era muito severo, cheio de manias e muitas vezes eu tinha que botar panos quentes em cima dos atos que ele praticava para não explodir isso lá na diretoria.
P/1 – Que tipo de atitudes que ele tomava que causava tantos problemas?
R – Cantava todo mundo que chegava na frente dele. As coisas tinham que ser feitas dentro das manias dele. Então foi uma época difícil.
P/1 – E como é que você mantinha uma relação profícua com ele?
R – Eu sempre tive um respeito muito grande pela hierarquia. Para mim hierarquia você discute até um ponto, depois você respeita, obedece. Por que? Porque eu aprendi que a hierarquia é um nível de responsabilidade acima do seu. Então se é um nível de responsabilidade maior, se ele é teu chefe, é porque ele tem uma responsabilidade que lhe foi delegada superior a sua. Então cabe a você entender e respeitar isso. Nas horas que precisava, eu recuava. Ia às escusas e me corrigia. Mas eu me lembro quando estava construindo a primeira casa, ele um dia me pegou no telefone fazendo uma cotação de material, virou para mim e falou assim: “Se eu te pegar outra vez no telefone tratando de um assunto particular, você está na rua.” Então era assim. Naquela época acreditava-se que uma pessoa, quando ela vem para empresa, ela deveria deixar os seus sentimentos, os seus desejos, as suas ilusões na portaria. Aquilo que se chama de problemas pessoais. No começo eu até acreditava que isso era possível, depois fui aprendendo que não. É impossível separar a psique humana do indivíduo, da pessoa. Então eu aprendi logo depois que o ser humano carrega dentro dele, para onde ele for, os sentimentos que tem, por mais que ele finja. Então eu aprendi que é preciso dar o respeito pelas pessoas que têm necessidade de, dentro do trabalho, extravasar os seus sentimentos de alguma maneira. Poucas pessoas entendem isso. Poucos gerentes conseguem entender isso. Eu acho que um dos maiores... Talvez a maior responsabilidade de uma pessoa que exerce uma função gerencial, seja ele gerente ou diretor ou supervisor, seja entender as diferenças existentes no ser humano. Eu estou escrevendo um livro e estou colocando isso. Eu acho que o sucesso da gestão de pessoas está em saber compreender as diferenças humanas existentes entre uma pessoas e outra. Nós somos todos semelhantes mas somos desiguais. Não existe uma pessoa igual a outra. Isso eu custei a aprender. Bom, então, voltando ainda à época do começo na CTBC. Como tudo nesse mundo um dia é descoberto e não se engana a todos o tempo todo, um belo dia o Doutor Luiz mandou o Agostinho embora. Mandou o Agostinho embora e eu pensei comigo: “Agora eu vou.” Mas aí eu não fui o escolhido, o escolhido foi o Seu Walter Fonseca, que era uma pessoa muito querida na época. Uma pessoa dócil, uma pessoa humana. E com o Sr. Walter eu aprendi muita coisa sobre o relacionamento humano. Aprendi que a gente precisa controlar um pouco o ímpeto, que existem muitas maneiras de dizer não e que, dependendo da maneira de você dizer não, você pode até ganhar um amigo ou um inimigo. Então essa foi uma das lições que eu aprendi com ele. Como é que ele dizia não. Ele dizia não muitas vezes brincando, rindo com as pessoas e as pessoas não ficavam com raiva dele. Pelo contrário, gostavam dele. Ali eu fui aprendendo.
P/1 – É uma arte.
R – É uma arte, é. Nessa época, pouco depois, o Seu Walter se transformou em um diretor. Foi promovido a diretor de Recursos Humanos. A área foi elevada à condição de Recursos Humanos, que até então era Departamento Pessoal. Seu Walter [foi] promovido a diretor de Recursos Humanos e eu fui ser gerente de Recursos Humanos, fui gerente dele. Bom, eu levava uma vantagem porque eu Dominava muito bem a área do Direito do Trabalho. Dentro do Direito do Trabalho, junto do Direito do Trabalho, a área de Direito Previdenciário e Direito Coletivo do Trabalho, como na época houve muita confusão no Brasil com sindicatos, eu era pivô de todas as encrencas com sindicatos ligados às nossas empresas aqui em Uberlândia. Estava sempre no meio da confusão. E sempre no meio da confusão buscando não defender o lado empresarial, mas mostrar para as pessoas que as coisas não podiam ser nem tanto ao céu, nem tanto à terra, nem tanto ao mar. Tinha que se buscar um equilíbrio nas relações de trabalho. Houve muitas deturpações e muitos exageros por parte de sindicalistas e muita inocência da nossa parte porque aprender a lidar com o mundo sindical foi muito difícil, não é fácil. No movimento sindical existem duas caras: uma que se apresenta para a classe trabalhadora e uma outra que corre atrás dos bastidores, que não é nada inocente. Mas não é objeto da nossa conversa aqui. Então, na CTBC, na minha carreira no Grupo, pra você entender melhor... Quando foi um tempo depois, o Seu Walter foi desligado e eu então fui convidado pelo Doutor Luiz para assumir a Diretoria de Recursos Humanos. E dois meses depois chega o Seu Mário Grossi. Aí aconteceu um fato gozado, o Seu Mário virou pra mim e disse: “Cícero, o Luiz acabou de te nomear diretor de Recursos Humanos. Eu estou chegando, eu que vou mandar no Grupo agora. E o diretor de Recursos Humanos verdadeiro vai ser eu. Você fica aí, você vai me ajudar. Estamos combinados?” “Estamos combinados.” E assim foi. Foi duro porque, nessa época, o Grupo passou por uma revolução. E eu fiquei doente mais de dois anos, tamanho foi o choque cultural que foi dado no Grupo na época. Foi terrível. Eu não sei se a gente pode continuar falando sobre isso.
P/1 – Eu gostaria apenas de retomar um pouquinho.
R – Se querem voltar a alguma coisa lá.
P/1 – Eu queria que você falasse do Seu Alexandrino, que você certamente o conheceu e conviveu com ele.
R – Isso é incrível, eu não posso esquecer isso de maneira nenhuma. Seu Alexandrino teve uma influência na minha vida profissional incrível. Depois do Alemão, o segundo foi o Seu Alexandrino. Depois do Seu Alexandrino veio o Doutor Luiz e depois o Seu Mário Grossi. As quatro pessoas que influenciaram muito na minha formação profissional. Pessoas a quem eu devo muito conhecimento, a quem eu devo muito da minha carreira, muito do que eu aprendi. Todos os quatro foram grandes mestres para mim. Mas eu trabalhei dez anos com o Seu Alexandrino.
P/1 – Como ele era?
R – Engraçado que, quando eu comecei na Companhia Telefônica, no Departamento Pessoal, o Sr. Alexandrino era encrencado com o chefe do Departamento Pessoal. Os dois não se arranhavam muito bem. Não se davam muito bem, por alguma razão. E o que acontecia é que quando o Seu Alexandrino precisava de alguma coisa, ele me chamava. Então ele dizia para secretária dele: “Maria José, chama o baianinho lá do Departamento Pessoal que eu quero falar com ele.” Eu não sei por que razão ele me chamava de baiano porque eu nunca passei, não nasci na Bahia, não morei na Bahia, não tem ninguém, mas ele me chamava de Baiano. Certamente tenho cara de baiano. Essa era a maneira dele enxergar. Aí eu botei uma coisa na minha cabeça, eu acho que aí começou o meu crescimento no Grupo, porque eu tracei uma estratégia com o Seu Alexandrino que era a seguinte: aquilo que o Seu Alexandrino me pedia, eu largava qualquer coisa que eu estivesse fazendo para atendê-lo. E ele ficava impressionado. O Seu Alexandrino era uma pessoa que gostava das pessoas ágeis, astutas, rápidas, que batalharam, lutaram, que trabalhavam pra caramba. O Seu Alexandrino tem uma paixão pelo trabalho que é uma coisa que é indescritível. E, chegou ao ponto que o Seu Alexandrino me colocou pra cuidar das coisas privadas dele, quando se falava na Área de Pessoal. Então, por exemplo, os peões da fazenda dele, o pessoal que cuidava dos córregos lá, de limpeza de córrego, de construção de mata burro, de cerca, tratorista, o pessoal que mexia com gado... No final eu que estava cuidando de tudo. Aí teve uma passagem muito engraçada, falando do Seu Alexandrino, para você entender como que o Seu Alexandrino dava lições nas pessoas e as pessoas não conseguiam entender. Um dia eu chego na granja, vou lá para frente de obras, estava sendo feita a canalização dos córregos e tinha um carpinteiro que o Seu Alexandrino gostava muito, era o Osvaldo. Um moreno, um preto. E o Seu Alexandrino adorava esse preto. E esse rapaz, percebendo que o Seu Alexandrino gostava muito dele, começou a abusar. Ele abusava. Mas o Seu Alexandrino gostava muito dele, eu não sei por que razão mas talvez pela qualidade do trabalho dele, que a qualidade do trabalho dele era exemplar. Quando ele queria ele fazia a coisa bem feita e o Seu Alexandrino adorava. Eu chego lá na frente do trabalho, está lá o Osvaldo sentado debaixo de uma aroeira com uma tábua nas pernas, de um lado estava uma lata de pregos, cheia de pregos desentortados e no outro tinha um monte de prego tudo enferrujado, tudo torto. E o Osvaldo pegava o prego, botava em cima da tábua, desentortava e jogava dentro da lata. Eu olhei aquilo... “Mas que diabo!” “Ô, Osvaldo, o que você está fazendo?” “Você não está vendo que eu estou desentortando prego?” “Mas por que você está fazendo isso?” “O veínho que mandou.” E o diálogo parou ali. Voltei pra empresa, fui falar com Seu Alexandrino: “Acabei de vir da granja.” “Está tudo bem lá?” “Está tudo bem. Achei uma coisa estranha lá. Cheguei lá, todo mundo está trabalhando, o Osvaldo está sentado debaixo de uma aroeira desentortando prego enferrujado. Não entendi aquilo. Com o salário que o Osvaldo tem, que ele ganha por hora.” Ele coçou a cabeça, olhou para mim e falou: “É.” Fez assim com as mãos. “O Seu Osvaldo estava sem serviço.” Então, que lição que eu tirei daí? Se você está à toa você tem que procurar alguma coisa para você fazer, mesmo que seja desentortar prego, para não ficar pensando bobagem e não dar mau exemplo para os outros que estavam lá. Isso foi a primeira lição que eu tirei. Noutra ocasião, conversando com ele, tinha um diretor do Grupo, que dirigia uma empresa de tecnologia, e essa pessoa, não vou citar nomes aqui, essa pessoa muito esperta, pós-graduada em telecomunicações, ele tomava conta de um conjunto de empresas e essas empresas iam mal. E um dia ele chegou para o Seu Alexandrino e disse: “Olha, Seu Alexandrino...” Sr. Alexandrino perguntou pra ele: “Como é que vão as coisas, tal?” Ele disse: “Olha, vai indo tudo bem.” “Como vai indo tudo bem se os resultados daquela empresa não têm sido bons. Eu estou vendo aqui o balanços com prejuízo.” “Ah, não, Seu Alexandrino. Mas esses últimos meses agora as coisas têm melhorado, está acontecendo isso, está acontecendo aquilo. Nós estamos vendo uma luz no fundo do túnel.” Aí ele esfregou a mão olhou e falou assim: “É, Seu Nelson, bom será se não for uma locomotiva de marcha ré.” Depois ele me contava isso e dava risada. O Seu Alexandrino dava risada. Então era uma maneira de dar um recado para pessoa para dizer assim: “Cuidado que esse resultado que você está achando que está vindo aí pode ser um desastre pior ainda.” Então eram coisas que eu fui convivendo com Seu Alexandrino. O Seu Alexandrino tinha... Eu tive a oportunidade, uma rara oportunidade, que muitos não tiveram de presenciar fatos, coisas que ele fazia. As pessoas que não tinham inteligência ou que não conseguiam desenvolver a inteligência, achavam aquilo errado ou censuravam ele, e eu tirava aquilo como lição. Esses dois casos. Esses dois casos.
P/1 – Ele tinha uma preocupação muito grande com o serviço público, não é? Embora fosse um negócio privado, mas ele tinha.
R – Seu Alexandrino tinha tanta ânsia pelo serviço público, tinha tanta vontade, tinha um ideal tão grande que ele chegava a sacrificar as pessoas que trabalhavam com ele em prol do bem público. Sacrificava. Não era fácil trabalhar com Seu Alexandrino.
P/1 – Por quê? Ele exigia muito?
R – Muito exigente. Muito exigente. E já na década de 1980, o mundo já passando por transformação nessa área trabalhista, o jeito de se relacionar com as pessoas estava mudando. O jeito de tratar as pessoas estava mudando, então ele ficava indignado com alguns direitos, com algumas reivindicações, novas coisas, que para o mundo dele aquilo é o jeito dele, pelo jeito que ele foi criado, pelo resultado que enxergava na frente, que era muito maior do que essas coisas e tal. Ele se indignava, não gostava. E aquilo acabava explodindo em mim, né? Eu era uma espécie de mortadela do sanduíche, tomava mordida de cima e de baixo. Então essa foi uma época difícil. Foram dez anos. Os últimos trabalhos com ele foram construindo a Sede da Granja Marileuza. Na construção da Sede Marileuza, um dia eu cheguei lá e encontrei o Seu Alexandrino ensinando um pedreiro como é que ele assentava azulejo. Então era uma pessoa que entendia de quase tudo. Caixa d’água que tem lá na Granja hoje, todo o sistema hidráulico que tem hoje, ele ensinou o engenheiro a fazer, ele que ensinou.
P/1 – Agora, do ponto de vista profissional, ali do cotidiano da empresa, esse era um momento de profunda radicalização das relações trabalhistas de um lado e esse conflito com o mundo do Seu Alexandrino.
R – Era um mundo diferente, porque o mundo do Seu Alexandrino era o mundo do “manda quem pode, obedece quem tem juízo”, literalmente. Era um mundo centralizador e existia medo. Existia muito medo. E veio o choque. E o choque veio com o sindicato das telecomunicações, com outra cabeça. E que veio decorrente de uma onda de mudanças nas relações de trabalho coincidindo também com o fim do militarismo no Brasil. Então foi uma época complicada pra gente entender isso, para nossa cabeça entender isso foi terrível. Uma vez o Seu Alexandrino pegou um sindicalista pelos colarinhos e teve um monte de gente que entrar na frente para tirar ele. Os sindicalistas vieram muito agressivos. E essa agressividade chegava ao ponto de se dirigir com palavras ofensivas, aí foi um choque duro. Agora, conhecendo o Seu Alexandrino no jeitão dele, ele não queria assustar ninguém, ele não queria meter medo em ninguém, ele não queria ser dono de ninguém, ele não queria ser algoz de ninguém. Ele queria a coisas certas, na hora certa. Achava que o tempo estava curto, tinha que andar rápido. E, dentro desse modelo, era um modelo diferente, né? Esse modelo nós fomos criados dentro do Grupo. Depois tivemos que fazer mudança. Mas para a época do Seu Alexandrino esse mundo deu certo, depois tiveram mudanças. Eu acho que ele foi sábio em morrer, porque se ele não tivesse morrido, estivesse aqui até hoje, eu sei não como é que ia estar a cabeça dele com o que aconteceu com o mundo lá fora, ia sofrer muito. Nós tivemos que aprender a trabalhar num mundo diferente, um país abrindo as portas para o mundo, caindo as barreiras sociais no mundo inteiro, as porteiras sendo abertas e a gente tendo que procurar se enquadrar dentro da nova era. Então não foi à toa que eu, meu caso, por exemplo, fiquei mais de dois anos em tratamento, porque minha cabeça deu um nó.
P/1 – Vamos falar disso, por favor, só preciso trocar a fita. Portanto, esse momento de efervescência, de mudança, que você acaba de relatar, vai te encontrar fazendo um meio de campo entre um sindicalismo novo, emergente, e uma estrutura que tinha que se retemperar para poder encarar esse meio ambiente. Como é que você operou?
R – Foi terrível. Uma pauta sindical com mais de cem reivindicações num ambiente de trabalho em que nada daquilo era normal para época, não é? Você imagina o que era chegar para o Seu Alexandrino e dizer: “Olha, o sindicato está pedindo isso tudo aqui. Como é que nós vamos fazer?” O Seu Alexandrino gostava muito de mim, tenho certeza disso. Pelo respeito que eu tinha com ele, pelo trabalho que eu tinha com ele, consegui desenvolver um pacto de confiança, isso me ajudou muito. Consegui muitas coisas, muitas melhorias, porque ele confiava. Ele sabia que o que eu estava fazendo era para o bem do Grupo, mas era difícil, era muito difícil. Teve um outro episódio, eu me lembro... Em dia, pra amenizar essa questão sindical e tal, na época estavam batendo muito sobre essa questão de segurança no trabalho, essas coisas, estudei sobre segurança do trabalho, sobre CIPA [Comissão Interna de Prevenção de Acidentes], essas coisas, tal. E entre um monte de coisa que o sindicato pediu, eu resolvi defender a ideia de criar uma caixa de primeiros socorros em todos os locais de trabalho. Aí fiz um pedido de materiais, caixas de primeiros socorros e o Seu Alexandrino, por incrível que pareça, naquela época o almoxarifado era centralizado e ele via tudo. Todas as ordens do que tinha que comprar, passava tudo na mão dele. Chegou a hora de pôr lá aquele monte de remédio, aí ele mandou me chamar. Sentei na frente dele, ele olhou para mim e falou assim: “Cícero, você está querendo montar uma farmácia?” “Não...” Aí fui contar a história pra ele. “Se eu aprovar metade está bom?” Para quem pensou que não ia ser aprovado nada: “Está ótimo, manda brasa.” Então a coisa era assim. Um dia teve um entrevero entre o Seu o Alexandrino e o Doutor Luiz na minha frente e eu era o pivô da confusão. O Doutor Luiz me deu uma orientação, eu fui depois falar com o Seu Alexandrino que eu tinha recebido aquela orientação e que eu ia proceder daquela forma, e o Seu Alexandrino era contra aquilo. Nessa hora entra o Doutor Luiz dentro da sala, quando estava eu e o Seu Alexandrino. E o Seu Alexandrino aproveitou e falou: “Ô, Luiz, foi bom você estar aqui. Isso assim, assim, assim, que você está querendo não, pode ser desse jeito, meu filho.” “Ah, papai, por que não pode?” Começaram a discutir os dois. E eu fiquei ali sentado petrificado. Eu não sabia como é que eu saía daquela situação. Numa certa altura o Doutor Luiz virou para mim e falou assim: Ô, Cícero, para quê você veio trazer isso para o papai?” Então ali eu comecei a aprender e sofrer com a sensação de dois comandantes no mesmo barco. Terrível. Trabalhar para dois comandantes não é fácil. É quase impossível, quase impossível. Mas foram poucas as vezes em que eu estive metido em situações como esta.
P/1 – Depois eles próprios começaram a se dar conta dessa dualidade de poder.
R – Sim, depois, sim. Falando um pouquinho sobre o conceito de poder. O poder em uma empresa é algo impressionante. Primeiro: todo mundo quer poder, diz que não. A maioria diz que não quer poder, todo mundo quer. Todo mundo quer e gosta. Quando alguém tem um poder, por menor que seja, ele gosta e não quer perder. E quando perde a sensação que tem, é como se perdesse um pedaço dele. E essa foi uma coisa com que nós tivemos que aprender a lidar dentro do Grupo. Na implantação do conceito de empresa rede, o grande dificultador foi trabalhar no executivo do Grupo o conceito de poder por responsabilidade e não por hierarquia simplesmente. Terrível. E eu sempre estive perto do poder na empresa, ou ligado diretamente ao primeiro homem ou ligado ao segundo homem. Sempre estive bem perto do poder, então conheço um pouco. Você tem que aprender a lidar com isso. E aprender a lidar com isso significa, muitas horas, você ter que escolher o momento certo, você ter que proteger o outro para não jogar um contra o outro. Falando das pessoas que têm poder, quando você tem duas pessoas que têm poder na empresa, você tem que tomar muito cuidado para não jogar um contra o outro, porque se você jogar um contra o outro, o marisco vai ser você na briga do rochedo contra o mar. Então, nesse aspecto, eu sempre andei no fio da navalha. Na função de primeiro executivo de RH no Grupo eu sempre tive na minha cabeça que eu sempre poderia e posso ser mandado embora a qualquer momento, porque trabalho numa área extremamente melindrosa, uma área que mexe com sentimentos, e sentimentos vão desde de raiva até euforia, então é perigoso. É muito perigoso. Então, até hoje, eu não sei porque eu consegui me manter até agora.
P/1 – Eu queria que você refletisse um pouco, Cícero, por favor, nesse momento que foi delicado, tanto de mudança cultural... Quer dizer, a velha concepção de empresa do Seu Alexandrino, depois o grande crescimento e expansão da empresa, que passou a se constituir um Grupo e começou a descobrir que estava com atividades meio demais, não é?
R – Em 1982 criou-se a holding, chamada Empar, que depois se transformou em Algar. O primeiro nome foi Empar. Eu fui uma das primeiras pessoas a ser convidada para a holding. Então minha carreira na CTBC foi curta. Minha carreira na CTBC foi coisa de quatro, cinco anos. Então, dos 24 anos de empresa, 19 anos é em holding. E a gente teve que aprender a ser uma holding porque não existia benchmarking no Brasil, tivemos que aprender. Uma holding de um Grupo tão complicado como o nosso por causa de diferenças de negócios e tamanho etc. Então, de 1982, eu diria até 1989, o grupo inchou. Em 1989 éramos 84 CGCs [Cadastro Geral de Contribuintes], mais de trinta atividades, quase quarenta atividades. E 13500 pessoas trabalhando para o Grupo. Era uma grande ilusão porque o resultado começou a definhar e isso coincidiu também com a doença do Seu Alexandrino. Foi ficando doente porque esse mundo novo era algo que deixava ele extremamente preocupado, estressado. Essa área de tecnologia, abertura dessas novas empresas na área de tecnologia. Ele sabia fazer telefonia muito bem. Para mim o Seu Alexandrino era o rei da telefonia no Brasil. E esse outro lado da informática, cruzamento da informática com a mecânica, com a eletrônica, esses negócios aí... Esse negócio ficou complicado para cabeça dele. E os compromissos que o Grupo assumiu... O Grupo se endividou na época, então isso deixou ele doente. Deixou ele doente. Então em 1989 veio a grande reestruturação. Eu poderia dizer o que aconteceu antes da chegada do Seu Mário, antes de 1989, antes do Doutor Luiz virar a mesa? Porque em 1989 eu considero que o Doutor Luiz virou a mesa, ele deu uma virada na mesa. Mas antes de ele virar a mesa, ainda falando desse tempo, coincidindo com a doença do Seu Alexandrino, o Seu Wilson também ficou doente, que era o superintendente. O Seu Wilson entrou em depressão, eu era muito próximo ao Seu Wilson e pude perceber o quanto ele sofreu. E depressão é algo terrível porque desaba toda estrutura psicológica da pessoa, e a partir daí ele passa a ter medo da própria sombra. E acabou que o Seu Wilson também se afastou. Então nós tivemos que deixar ele afastado por doença e o Seu Wilson também. Então o Doutor Luiz assumiu o comando. O Doutor Luiz assumiu o comando, criou o comitê executivo. O comitê executivo foi criado pelo Doutor Luiz. Criou o comitê executivo e foi tocando. O Doutor Luiz tem uma grande vantagem, o Doutor Luiz delegou. Então, ao contrário do Seu Alexandrino, que era muito centralizador, o Doutor Luiz era descentralizador. Então o Doutor Luiz delegou. Delegou e cobrava. Sempre foi uma pessoa que confiou muito nas pessoas, então ele escolheu o time e delegou. Nós éramos profissionais mas não tínhamos a formação gerencial que um grupo empresarial, do tamanho que o nosso estava ficando, precisava. O mundo dos negócios não é o mundo dos inocentes. O mundo dos negócios é um mundo cruel, muito cruel, não perdoa. E nós éramos, até certo ponto, inocentes, de boa fé. Trabalhadores, porém inocentes, de boa fé. E o Doutor Luiz percebendo isso, resolveu, então, contratar um profissional de nível internacional para dar uma mudada no Grupo. Aí chegou o Seu Mário Grossi, que coincidiu com a minha promoção há dois meses atrás, à diretor de Recursos Humanos. E, então, com a chegada do Seu Mário Grossi, nós começamos uma mudança dentro do grupo sem perceber, que eu posso narrar ela de agora para frente se você não tiver mais alguma coisa para perguntar sobre essa época anterior.
P/1 – Nós estamos chegando exatamente no ponto em que, você estava ali, nesse momento, em uma posição extremamente delicada, porque é na tua área que a maioria das tensões explodiu. Conta como é que foi esse processo.
R – Bom, deixa eu concluir a parte do Seu Alexandrino. Quando o Seu Alexandrino morreu, eu me senti um pouco meio órfão. Tenho pai, tenho mãe e tudo, mas pela influência que ele teve na minha formação profissional, fiquei meio órfão profissional. O Seu Alexandrino era uma pessoa de tanta garra que, mesmo com a doença que ele teve, que deixou ele paralisado e tal, quando a enfermeira empurrava ele na cadeira de rodas, o Seu Alexandrino grudava nessa cadeira assim com as mãos e os dedos dele chegavam a roxear. Aquilo era para se sentir seguro que, mesmo que a enfermeira derrubasse a cadeira, ele não ia se machucar ou se desgrudar daquilo ali. Eu acompanhei a agonia dele no quarto dele, na casa dele, até que ele faleceu. Ele poderia estar vivo até hoje, pela garra que ele tinha. Então foi duro. Nessa época, a chegada do Seu Mário, o movimento sindical estava no auge. Estava mais amadurecido e o movimento sindical estava usando outras armas para tirar das empresas aquilo que eles queriam e tal. É importante falar um pouquinho do movimento sindical. O movimento sindical ensinou as empresas um outro mundo. O movimento sindical marca de 1978 para cá e depois toda a década de 1980, marcou uma transformação no comportamento, na relação de trabalho no Brasil, mostrando aos empregadores que a classe trabalhadora, que os empregados, representavam algo mais do simplesmente a produção. O engraçado é que depois do movimento sindical, depois dessa década, o mundo empresarial passou a perceber o valor de um talento não por causa da pressão sindical mas por causa da competitividade. Hoje não precisa do sindicato para dizer para o empregador a importância que um talento tem em uma empresa, hoje não precisa. Não precisa porque o empregador que não tem consciência disso, hoje, não tem muita vida profissional pela frente, está com os dias contados, ou com os meses, ou mesmo com os anos contados. Hoje existe uma guerra por talentos e não precisa de sindicato para dizer por que. Mas a chegada do Seu Mário foi interessante porque o Seu Mário fez uma revolução no Grupo com as mesmas pessoas que ele encontrou. Trouxe muita pouca gente de fora, muita pouca gente. Na chegada do Seu Mário, o Grupo com 64 CGCs, mais de trinta empresas e com uma população de executivos mal educados. Eu falo mal educados assim, sem formação gerencial, sem conceito de lucro, sem conceito de resultado, sem sensibilidade orçamentária, sem compromisso com o resultado. Nós tivemos que fazer um trabalho, e aí foi quando eu comecei a aprender, não é? Que o Seu Mário foi ensinando, eu fui trabalhando como facilitador. Eu passei uns quatro anos atuando muito mais como facilitador do que propriamente como um gerador de ideias novas, um estrategista na gestão de talentos humanos e tal. Depois foi que eu consegui adquirir mais maturidade, mais poder de análise, mais visão de longo prazo, e aí a gente conseguia. Eu acho que de lá para cá eu tenho conseguido dar uma grande ajuda para o Grupo nesse aspecto mas, até então, foi muito mais como facilitador. E no começo foi uma época muito dura porque os primeiros meses... O Seu Mário, sabendo da situação de perigo do Grupo, veio obstinado. E ele já trazia várias fichas na mão de pessoas que não podiam continuar mais no Grupo. Ele me chamava e dizia assim: “Cícero, eu preciso mandar o fulano de tal embora. Eu quero que você me arranje um motivo. Me ajuda a arranjar um motivo. Eu sei que ele está roubando, você tem que me ajudar a encontrar a prova. Eu sei que ele é incompetente e, além de incompetente, é atrevido e, além de atrevido, não é de confiança. Então você tem que me ajudar a tirar essa pessoa porque ele não ajuda o Grupo.” E eu dizia assim: “Mas não é o caso de a gente preparar essa pessoa? Dar um tempo?” “Não. Nós não temos tempo pra isso.” E aí eu aprendi uma coisa com ele. Olha, quando você tem tempo, então você pode investir, preparar as pessoas, tentar recuperar as pessoas que aparentemente são irrecuperáveis. Você tendo tempo, você pode investir nisso. Quando você não tem tempo, você tem que fazer uma cirurgia rápida naqueles que são os piores e aqueles que, por questão de comportamento, de índole, demorariam muito tempo para poder reverter. E, aquelas pessoas de boa fé, aquelas pessoas honestas, aquelas pessoas boas em termos de comportamento, essas pessoas... Você investe nelas, em pouco tempo você consegue reverter. Então nós pegamos uma população de executivos no Grupo que não tinha formação gerencial. Nunca tinham participado de cursos além da universidade, muito poucos, a não ser cursos técnicos. Mas cursos na área comportamental, pouquíssimos. Curso de Formação Gerencial, quase ninguém, inclusive esse que vos fala aqui. Eu fui nomeado diretor de RH, na época, sem formação gerencial. Fui nomeado por questão de confiança talvez, ou de conhecimento técnico, porque quando me perguntavam alguma coisa, eu tinha na ponta da língua. Mas formação gerencial eu vim aprender depois. Sorte minha, porque se eu não tivesse aprendido, se eu não tivesse conseguido uma formação gerencial, eu não podia ter ficado no Grupo, assim como não posso ficar no Grupo se não falar inglês fluente em pouco tempo e se não aprender outras técnicas, outros conceitos e abertura de visão para o mundo dos negócio como o Grupo hoje requer. Então eu sempre tive na cabeça que o mundo empresarial não é um colégio de freiras, não é uma casa de caridade, não é um local para se fazer caridade, porque se assim for, quebra. Mas também aprendi que é possível ser humano, é possível ter um ambiente humano mesmo num mundo de negócios tão louco como é esse. Então o que eu tenho feito é tentado ajudar nisso. A dar esse equilíbrio. Mas falando da chegada do Seu Mário... Foi um choque. Na época, eu sei o seguinte: que muita gente foi para o divã. Os consultórios aqui dos psicanalistas, dos psicólogos ficaram cheios de gente do Grupo que iam pedir ajuda para entender o que estava acontecendo. Para a sociedade de Uberlândia foi um choque louco. Foi um choque louco porque tinha pessoas que estavam no Grupo como dirigentes, que a sociedade jamais imaginava que aquelas pessoas pudessem ser desligadas algum dia. Para uma sociedade como a nossa, aqui em Uberlândia, região nossa, a influência do Grupo é muito grande, então as pessoas têm como sobrenome o Grupo. Fulano do Grupo, Ciclano do Grupo, Mário do Grupo Algar, o Sebastião do Grupo Algar, José Abreu do Grupo Algar e tal. Então o sobrenome da empresa no nome das pessoas na nossa região pesa muito. Pesava para caramba e ainda pesa. Então, cada dia que caía um, na sauna do Praia tinha uma assembleia dentro para comentar o assunto.
P/1 – O senhor disse que chegou a ficar doente nessa época?
R – Fiquei doente. Porque, você imagina, eu tendo que ajudar a montar um dossiê pra dispensar um colega de tantos anos. Pessoas que eu, à época, julgava que era o supra sumo da área, da função, e ter que ajudar a fazer isso.
P/1 – O diretor efetivo do RH era de fato o Seu Mário Grossi?
R – No começo, sim, na verdade era ele. O meu papel foi de facilitador. Até que eu fui me impondo, consegui ir me impondo. Eu comecei ter ideias porque ele dava abertura, e eu comecei a criar, comecei a imaginar um punhado de coisas, foi junto. O livro Empresa Rede foi escrito em pouquíssimo tempo, em cerca de dois meses eu escrevi o livro Empresa Rede, foi escrito entre uma confusão e outra. E foi escrito baseado na afinação de ideias minhas e dele, porque ele tinha uma série de ideias, eu tinha uma série de outras ideias e eu comecei a exercitar no papel, dentro do português simples, como é que aquilo poderia ser transmitido às pessoas. Foi um trabalho importante porque foi pegar as ideias, os pensamentos, as estratégias, aqueles pensamentos de modernidade sobre conceitos de gestão de pessoas, conceito de administração, de cliente, de qualidade, e jogar isso dentro de uma linguagem simples para que todo mundo pudesse entender.
P/1 – Como era o seu método? Você anotava as conversas com ele, fazia…?
R – Não, era tudo na cabeça. Depois, quando eu estava escrevendo o livro, ele era escrito no sábado e domingo em casa, normalmente.
P/1 – Ele sabia disso?
R – Não. O Seu Mário se surpreendeu porque um dia eu cheguei pra ele e disse: “Olha, está aqui. Eu queria que o senhor desse uma olhada.”
P/1 – De onde é que nasceu essa sua vontade de sistematizar essas ideias?
R – Nasceu da percepção da dificuldade que as pessoas no Grupo tinham por entender a Filosofia da Empresa Rede. Havia muita deturpação. Não sei se entenderam até hoje, muitos não entenderam ainda, mas...
P/1 – O conceito de Empresa Rede era uma coisa do Seu Mário Grossi...
R – O conceito Empresa Rede, sim.
P/1 – Me conta a história disso.
R – O conceito era, ele dizia: “Olha, eu penso assim, penso assado.” Eu dizia: “Para isso que o senhor está pensando o melhor é fazer assim.” Então eu trabalhei como coadjuvante na montagem dessa filosofia pegando das ideias de um estrategista, de um executivo estrategista e transformando aquilo no português comum que as pessoas pudessem entender. E o principal, que aí eu acho que foi minha grande contribuição, ordenando isso dentro de uma lógica.
P/1 – Que perpassava desde do alto executivo até a base?
R – Até a base. Então isso foi uma contribuição muito interessante. Antes do livro eu estruturei uma palestra. Comecei a fazer essa palestra para todo mundo nas empresas pra explicar essas mudanças e tal. Aí eu via que as pessoas assistiam a palestra e gostavam e tal, porque eu usava um português bem simples. Mas, muitas pessoas, quando atravessavam a porta, já esqueciam o que foi falado, então eu disse: “Eu preciso de algum instrumento mais simples para comunicação para as pessoas entenderem.” Então, papel. Aí fizemos um livrinho. Não sei se você já chegou a ver ele, é um livrinho muito simples com figuras, com charges, puxando para o lado do humor e com trechos curtos. Numa linguagem bem simples que todo mundo entende. Engraçado que esse livro teve uma repercussão que eu não imaginava porque foi objeto de estudo, de análise de várias faculdades no Brasil, de comunicação. Muitos alunos, muitos professores usaram o livro Empresa Rede como modelo de comunicação simples e eficaz dentro de uma organização.
P/1 – Ponto para ele.
R – Ponto para ele.
P/1 – Como o Seu Mário recebeu esse trabalho?
R – O Sr. Mário me chamou. Primeiro, eu acho que ele achou que eu queria ganhar dinheiro com o livro, então ele recomendou: “Olha, esse livro é para dentro do Grupo e você tem que... Você não pode ter nenhum tipo de ganho com isso e tal.” Em outras palavras: ele me deu esse recado. Eu cedi os direitos autorais. Primeiro, que eu não tinha intenção de ganhar dinheiro com o livro, que eu acho que ninguém fica rico com livro, dinheiro de livro não te leva nem pra frente nem pra trás, a não ser os escritores profissionais. E eu cedi os direitos autorais todos para a empresa, com muito prazer. Para mim a satisfação foi poder estar ajudando, dar algum tipo de contribuição. Agora eu estou escrevendo outro por prazer, é outra coisa. Também não é para vender, mas por puro prazer, para a sociedade em geral, não vai ser só para dentro do Grupo. Nesse livro eu quero falar um pouco sobre... Pouco, não. Esse livro é todo falando sobre relacionamento humano.
P/1 – Quer dizer... Na verdade, o que você fez? Você, convivendo com uma mudança estrutural muito funda dentro de uma organização... Estou supondo o que você fez. Você, por favor, confirme ou desminta. Você, nesse ambiente, começa a sistematizar as ideias que rolavam nesse cenário, que estavam sendo aplicadas, e o resultado disso redundou no Empresa Rede, certo? E como é que ele se disseminou? Quer dizer... Ficou mais fácil para as pessoas entenderem o que de fato estava acontecendo?
R – Eu acho que ele deu uma grande contribuição, porque a primeira coisa que nós fizemos foi enviar um exemplar pra todo mundo. Depois nós recomendamos às áreas de Talentos Humanos que elas pudessem estar promovendo palestras, debates e discussões sobre o livro. Então é assim que você vai disseminando a comunicação e a compreensão de conceitos, e vai criando uma cultura. Foi a primeira tarefa que nós fizemos, no sentido de trabalhar a criação de uma cultura comum, aliando a isso às idas minhas, do Seu Mário e do próprio Doutor Luiz às empresas para fazer debates com as pessoas. Debater com as pessoas sobre aqueles conceitos. Então isso foi muito importante. O Seu Mário tinha uma metodologia que era a seguinte, ele ligava para um superintendente e dizia: “Olha, eu quero marcar com você, que no dia tal quero ir na tua empresa. E, por favor, nesse dia reúna o pessoal que eu quero bater um papo.” Aí me chamava, eu ia com ele e lá ele mandava reunir todo mundo. Quando não cabia todo mundo, fazia duas, três turmas, mas ele queria falar com todo mundo. E era engraçado porque no começo ele chegava e perguntava para as pessoas, todo mundo reunido, mecânico, a menina do PABX, o diretor superintendente, o gerente, todo mundo ali... Ele perguntava: “Escuta, está tudo bem?” “Está tudo bem Seu Mário.” “Não acredito que está tudo bem. Eu tenho aqui comigo o balancete do mês passado e o balancete dessa empresa não está indo muito bem. O que está acontecendo?” Começava. Às vezes as pessoas ficavam com medo de se manifestar, ele começou a puxar a língua das pessoas: “E você, Fulano, o que está acontecendo? Você trabalha em que?” “Tal lugar.” “O que está acontecendo lá?” É incrível porque, às vezes, a gente imaginava uma hora de debate, dava quatro, cinco horas. As pessoas iam falando aí, às vezes, um acusava o outro e começava a descobrir coisas ali que aconteciam na empresa, que às vezes a maioria não sabia. Então iam se corrigindo muitas coisas. E era uma espécie de prova de fogo para o superintendente porque terminava a reunião e ele saía correndo para catar os cacos e consertar as coisas que foram colocadas para fora. É incrível que as pessoas, quando você vai dando liberdade, elas vão sentindo uma certa segurança, elas expõem o verbo, falam. Elas precisam de um incentivo, não é? Agora, o grande desafio meu era ficar vigilante para que as pessoas não fossem mandadas embora por causa daquilo, que de vez em quando um era. E aí era duro. Era duro porque tinha um confronto meu com o superintendente. E, às vezes, eu era obrigado a pegar o nome do superintendente e levar para o vice presidente por ter feito aquilo. Então foi duro, muito duro. Alguns não aguentaram e deixaram o Grupo. Outros se enquadraram. Então, a história do Seu Mário é uma história muito interessante.
P/1 – Quando você disse que ficou doente, você somatizou mesmo, de fato?
R – Sim, eu tive depressão. Eu tive depressão e ela veio decorrente do medo de não dar conta, do medo do desconhecido, de não conseguir fazer acontecer aquilo. Porque nessa época, com a chegada do Sr. Mário, a cobrança foi muito grande. Quando se falava dos problemas que estavam acontecendo na área de Talentos Humanos das empresas, as pessoas olhavam pra mim. E eu me sentia como alguém que estava sentado no banco dos réus com um punhado de gente botando o dedo nele, acusando ele por algum crime que ele cometeu. Então todos os problemas que tinham de gestão de pessoas, de remuneração, de sindicato, da falta de formação de gente, de gente mal preparada e tudo, eu comecei a incorporar como se fosse culpa minha. Foi terrível e adoeci. Adoeci, mas na hora que eu fiquei bom, aí foi igual um foguete.
P/1 – Cícero, de fato, esse processo representou, mal comparando, um choque de transparências, não é? A empresa passa a ser uma coisa mais horizontalizada, digamos assim, no sentido da sua gestão.
R – Eu te diria que foi um choque pra todo mundo, se não tivesse vindo o Seu Mário Grossi, tinha que vir uma outra pessoa. Foi um choque para todo mundo, inclusive para o presidente nosso, que sofreu para burro. Talvez ele não tivesse aguentado a metade do que aguentou. Você ser dono de um império e depois alguém chegar e dizer: “Você fica quieto no seu lugar que aqui quem manda sou eu.” É terrível, é terrível. Aí você começa a ser vigiado, os seus passos, tudo o que você vai fazer é censurado. Teve essa fase, foi difícil. O Seu Mário não deu colher de chá não.
P/1 – Era a condição dele, não é?
R – A condição dele. Tinha uma carta de A a Z, fazer isso. Então foi terrível. E o cuidado que a gente tinha que ter pra não complicar mais as coisas, não é?
P/1 – E o resultado?
R – Bom, o resultado foi espetacular. O resultado foi espetacular pelo seguinte: o Grupo passou a ser mais conhecido, mais respeitado. O Grupo começou a se sinônimo de grupo profissional, passou a ser sinônimo de grupo competente, passou a ser sinônimo de grupo voltado para a alta tecnologia, moderno nas suas ações, nos seus conceitos. O Grupo passou a aplicar conceitos modernos de gestão, sintonizado com o mundo. Então os conceitos de reengenharia, conceitos de downsizing, conceito de gestão compartilhada, tudo isso são conceitos moderníssimos da década passada. E o Grupo Algar mandou ver nisso tudo. Quer dizer, o Grupo estava passando por um processo implantando isso tudo. Isso tudo acontecendo ao mesmo tempo. Então o Grupo ganhou muito com isso. O grupo passou a benchmarking de uma série de coisas.
P/1 – Paradoxalmente, uma mudança que exigia um Grupo mais conhecedor do seu negócio, mais educado do ponto de vista tanto das relações humanas quanto das relações gerenciais. Como é que isso foi suprido, essa falha que até então havia?
R – Esta é uma boa pergunta. Porque o processo de reestruturação do Grupo começou com o desligamento de pessoas que se percebeu claramente que iriam demorar muito para poder mudar. Em seguida, a fusão de empresas dentro de alguns negócios e, em seguida, rapidamente, um plano de formação, um plano de treinamento, que lá nós chamamos de PEF, Programa Estratégico de Formação, um plano de treinamento onde nós passamos a pegar as pessoas e botar na sala de aula. Foi uma época dura porque o Grupo estava pegando dinheiro em banco, assinando para papagaio, pagando juros e mandando as pessoas para os hoteis, para as cidades de fora para poder fazer treinamento. Você consegue imaginar isso na cabeça de um acionista? Quando eu digo que o presidente nosso sofreu muito porque, puxa vida, ele teve que aceitar isso. Mais do que aceitar, tentar entender. É duro, foi duro. Mas graças à Deus ele teve força, resistência para compreender isso, tolerar, aceitar depois e tocar, não é? Hoje ele é... Acho que o aluno número um da Universidade Algar é o Doutor Luiz. Eu costumo dizer que o Doutor Luiz lê bula de remédio se não tiver outra coisa para ler. É um aluno aplicado e eu diria que é um entusiasta. É um exemplo para todos nós. Eu tenho nele um exemplo de persistência, de garra, de interesse pela aprendizagem. Então eu tenho nele esse exemplo. Primeiro começou com os diretores. Os diretores vinham fazer treinamento para a sala de aula, aprendendo sobre comportamento, sobre delegação, sobre planejamento, sobre orçamento, sobre lidar com pessoas, sobre a visão externa ao Grupo, o mundo, o que é que o mundo está fazendo, o exemplo dos grandes gestores. Depois os coordenadores, depois todo mundo do Grupo. Então vem em cascata, a chegar em um ponto em que o Grupo conseguiu adotar um coisa muito importante. O Grupo adotou o conceito de organização que aprende o conceito de learning organization, muito antes de estar se falando no learning organization, porque há dez anos atrás não se falava nisso. Isso veio depois. Então, há dez ano atrás, o Grupo já estava praticando o conceito de learning organization, com a visão de que a aprendizagem tem que ir a todos os níveis e que tem que ser algo contínuo. Eu entendo que esse foi o divisor de águas por quê? Porque aqueles que eram inocentes, deixaram de ser inocentes, passaram a enxergar o mundo de outra maneira. O Grupo, a gente passou a fazer os tours internacionais, visitar outros países, visitar outras empresas. Então isso ajuda muito na educação das pessoas, na preparação das pessoas. Ver o que está acontecendo lá fora, como é que funciona e tal. Nesse aspecto, por exemplo, a influência na minha formação desse tipo de vento foi uma coisa fantástica. Até chegar o ponto do Grupo criar a Universidade Algar.
P/1 – Como foi esse processo?
R – A Universidade de Algar nasceu de um evento ousado do Grupo chamado Algar 2100.
P/1 – Está falando de que ano isso aí?
R – Nós estamos falando de 1996, mais ou menos. Então, no final de 1996, nós estivemos em São Paulo num evento chamado Algar 2100, e lá discutimos sobre o futuro do Grupo, discutimos sobre para onde caminham os negócios, fazendo um exercício de futurologia. Então chegamos a conclusão de que investir em educação seria um grande negócio no futuro. Se tinha uma das coisas que no futuro iria continuar existindo seria a educação. A gente não tem certeza se daqui a cem anos vai existir celular, mas educação a gente tem certeza. Então surgiu primeiro uma ideia: por que não investir em uma faculdade, em Universidade? Aí discutimos em um comitê e tal a ideia de criar uma Universidade, e nisso chegamos a pensar na Universidade como negócio, ganhar dinheiro coisa e tal, ser mais um negócio. Depois discutimos. Aí eu tive a oportunidade de ter alguns debates fora e aprendi o conceito de Universidade Corporativa. E o conceito de Universidade Corporativa é diferente do conceito da Universidade Tradicional, porque a Universidade Corporativa significa você estabelecer um processo de aprendizagem. A aprendizagem dentro da empresa como um processo. É transformar a empresa numa escola, é você destinar um tempo, gente, dinheiro para investir na formação contínua das pessoas, com critérios bem definidos, com destino certo.
P/1 – Preocupados com a estratégia dos negócios.
R – Dos negócios e das necessidade dos profissionais. Eu pedi autorização ao comitê para estudar melhor o assunto e para desenvolver a ideia, e o comitê me deu uma ideia. Falou que era para eu estudar, aí eu peguei uma meia dúzia de colegas e fomos para os Estados Unidos. Aí eu caí das pernas porque lá tem mais de 2000 universidades corporativas, e cada uma de um jeito. Aprendi que a universidade é um processo e que a maioria dessas empresas criaram as suas universidades corporativas tendo como semente a necessidade de desenvolver a cultura da empresa, de fazer com que os valores se perpetuem e a cultura seja algo preservada, não seja desenvolvida. Então eu pensei: “Meu Deus, está aí. Olha, a gente vem se preocupando tanto em como é que a gente vai dar continuidade a esse modelo cultural do Grupo e tal, eu acho que aqui a gente vai encaixar isso.” Aí parei o estudo, preparei um trabalho e trouxe a proposta de implementar a universidade corporativa tendo como um dos seus primeiros cursos o PCC, que é o Programa de Cidadania Corporativa, que visa levar todo mundo a discussões sobre os princípios e valores do Grupo. Trabalhar as pessoas, educar dentro dessa filosofia chamada Empresa Rede. Então está dando certo. A Universidade Algar hoje é benchmarking, nós somos benchmarking no Brasil hoje quando se fala de educação corporativa.
P/1 – Quem frequenta a Universidade Algar?
R – Primeiro, os executivos em cursos de formação gerencial. Depois todas as pessoas em dois cursos, que são dois cursos que são de natureza corporativa. Então são cursos que o Grupo tem por interesse que todo mundo faça, que é o Cidadania Corporativa e o de Qualidade. São formações que, independentemente da função que qualquer pessoa exerça dentro da empresa, é importante que ele tenha esse tipo de formação.
P/1 – Como as pessoas podem frequentar esses cursos? Ela são escolhidas…?
R – Bom, aí é uma longa conversa, tem um processo, não é? Porque o que diferencia uma Universidade Corporativa de um departamento de treinamento é exatamente o processo. E o que é o processo? É uma metodologia, um método que você tem pra levantar a necessidade de formação de acordo com os skills que essa pessoa precisa de ter. Analisado do ponto de vista do cargo dela, da missão do cargo dela, da missão da empresa dela, da avaliação de desempenho que essa pessoa vem tendo dentro da empresa. Quer dizer, como é que tem sido ela? O que falta nela? Onde ela está tendo mais dificuldade? Que tipo de habilidade, que tipo de competência essa pessoa precisa adquirir? Então esse conjunto de ferramentas dá condição ao aluno chegar à sua necessidade de formação. E a Universidade Algar atua como um facilitador para que a pessoa alcance essa formação. Seja através de cursos que ela mesma desenvolve, seja através de cursos abertos, onde ela encaminha a pessoa para poder fazer o curso. E, mais importante, definindo estratégias, definindo políticas de formação para que as demais empresas do Grupo possam estar investindo corretamente na educação das pessoas. Então você tem pessoas hoje fazendo o curso lá na Universidade Algar e tem pessoas fazendo curso pela empresa dela fora do Brasil, em qualquer Estado da Federação, qualquer outro lugar. Por quê? Porque a responsabilidade pela educação não é somente da Universidade Algar. Ela é da Universidade Algar, da empresa, da chefia e da pessoa. No meio disso tudo tem a questão orçamentária, que tem ser devidamente ajustada. Então a ideia é assim: fazer a formação certa, com as pessoas certas, no tempo certo, com a maior economia possível para não jogar dinheiro fora, para customizar bem o investimento. O investimento em educação é caro.
P/1 – Mas ele tem retorno?
R – Ele tem o retorno.
P/1 – Quer dizer, com toda essa trajetória da Universidade Algar já é possível aquilatar, avaliar esse tipo retorno gerado a partir da melhoria e da qualidade do conhecimento?
R – Muitas pessoas me perguntam: “Como é que você sabe que o treinamento dá resultado? Como é que você mede o resultado do treinamento?” Toda apresentação, toda palestra, qualquer lugar do Brasil que você vai é a mesma pergunta. Sempre surge essa danada dessa pergunta. Eu aprendi a responder de uma maneira muito simples. Primeiro, eu não sei medir o resultado, não tem ferramenta de medição, não para isso. Em lugar nenhum que eu já fui consultor, nenhum. Já tentaram fazer mas não tem como, é difícil. Por quê? Porque tem muita subjetividade. Como é que eu vou medir em números o resultado de um treinamento comportamental que você foi fazer? Não tem como. A outra coisa é que... Preste atenção nisso que é algo chave para esse conceito, que é assim: o ser humano, o cérebro humano tem uma capacidade incrível de acumular conhecimento. Esse conhecimento, às vezes, fica acumulado na memória dele por anos e anos, sem ele usá-lo. Um dia sem mais nem menos, aquilo que está armazenado lá no fundinho, de oito, dez anos atrás, de repente aflora para resolver uma situação inesperada ou um problema que a pessoa não sabe resolver. A geração de ideias depende do grau de conhecimento acumulado que você tem. Então eu estou hoje debaixo do chuveiro, tomando meu banho, pensando em um problema e, de repente, vem uma ideia que é a solução do problema. As pessoas pergunta: “Como é que surgiu essa ideia? Como é que você teve essa ideia?” “Não sei, surgiu.” De repente é algo que está acumulado de um aprendizado que eu tive lá atrás, que eu nem lembro mais agora, mas o cérebro trabalha isso. Aí eu te faço a pergunta: se eu fosse medir o resultado desse treinamento um anos depois que eu fiz, eu tinha o resultado dele? Não tinha o resultado. Não tinha como medir o verdadeiro resultado. Então eu meço resultado de investimento na educação dentro da empresa observando o crescimento da capacidade do Grupo de fazer negócios, o crescimento da capacidade das pessoas de resolver problemas, o crescimento da capacidade das pessoas de obter novas ideias e que, no final, vai se traduzindo em números, vai se traduzindo em dados que nem sempre são matemáticos. Então investir em educação, antes de tudo, é uma questão de acreditar. Tem uma comparação muito simples. Você como pai, você como mãe… Um pai, uma mãe... Por que ele separa uma parte do orçamento dele, o casal, no caso, para investir na escola do filho? Será que é porque três anos depois ele vai ver que ele ganhou tanto decorrente daquilo? Quatro ou cinco anos depois, o pai e mãe vai cobrar quantos por cento de lucro teve em cima daquele dinheiro? Não consegue. Não é isso. Mas ele sabe que aquilo vai dar um resultado. Ele sabe que, se ele não fizer aquilo, o prejuízo vai ser muito maior depois, quando ele tiver algum ignorante ali dentro, porque o preço da ignorância é muito maior. Mas por que o pai e a mãe fazem isso? Porque eles acreditam. Eles têm visão de que isso é bom, vai ter resultado, eu não sei quanto que vai ser, não dá para medir com régua, não tem como medir em juros, mas eu tenho certeza de que tem resultado e que o resultado é positivo, e se eu não fizer isso, vai ser um desastre, eu vou ter um filho burro aqui dentro, analfabeto. Burro, não, mas vou ter um filho analfabeto, um filho aqui dentro sem educação escolar, sem formação, por mais inteligente que seja, a falta da educação escolar, da formação sistematizada, faz com que ele não tenha o êxito que poderia ter. Então, para mim, é a mesma coisa. Então se, em uma empresa, a empresa não fizer investimento no talento e o talento também não se dedicar, não fizer o próprio investimento que ele precisa fazer nele, porque não se tem certeza do resultado econômico e numérico daí pouco tempo, é um desastre. Então é acreditar mesmo, é investir por acreditar porque o resultado vem, e o resultado tem que ser medido com outro tipo de régua.
P/1 – Tem que ser considerado também que há resultados intangíveis, não é?
R – A maioria dos resultados são intangíveis. Veja você o seguinte: quando você pega uma pessoa que não sabe fazer uma apresentação, por mais que ele seja um bom técnico, não sabe fazer uma apresentação; você dá uma formação para ele, prepara ele para saber fazer uma boa apresentação e essa pessoa vai representar a empresa num ambiente de negócios, onde você está discutindo um contrato, onde você está discutindo um trabalho, alguma coisa assim; e essa pessoa vai lá, entra e dá um show, quer dizer, apresenta muito bem, consegue apresentar as ideias, consegue êxito na negociação. Como é que você mede o resultado? E isso acontece demais, apenas para citar um exemplo.
P/1 – Você diria que toda essa mudança cultural e essa presença mais ofensiva da necessidade de conhecimento, da educação... O Grupo de fato consegue hoje vislumbrar uma forma de encarar os desafios de modo muito mais alicerçado? Quer dizer, está pronto, está na ponta dos cascos?
R – É difícil afirmar se está tudo pronto, se está na ponta dos cascos. Eu diria assim: nosso nível de preparação hoje em relação a uma década atrás é incomparável. A preparação das pessoas, de conhecimento... Não se pode comparar. Depois, eu acho que nós estamos sintonizados na modernidade. As pessoas viajam, as pessoas se comunicam, as pessoas lêem, as pessoas aprendem, com seus cursos de formação, troca, fazem feedback, benchmarking. Então eu diria que eu acho que as pessoas hoje sabem onde buscar. Sabem onde buscar o conhecimento, existe uma autodisciplina para a questão de procurar melhorias nas pessoas. Existe uma consciência, hoje, de que é preciso modernizar, de que a mudança é eterna e de que não dá pra ficar esperando por protecionismo e nem que as coisas caiam do céu. Então eu acho que esse nível de consciência, hoje, ele é generalizado, com raríssimas exceções. Então quando você me pergunta: “Vocês estão preparados?” Nesse aspecto, sim, estamos preparados.
P/1 – Você constata que houve uma mudança cultural para melhor?
R – Muito, muito. O desafio agora é desenvolver isso.
P/1 – Queria insistir nesse assunto, aproveitar e trocar a fita. _____________________________ uma função e não como um projeto? E quero juntar talentos humanos nessa história. Quer dizer, como é que é essa área exatamente depois que você assume a área na holding? Como é que isso se reverte no seu trabalho? Depois partimos para o futuro. Então, Cícero, eu queria uma reflexão sua em torno desse aspecto, do conhecimento generalizado, da mudança cultural que efetivamente ocorreu conforme o seu relato e sua constatação, e como é que a sua área específica de atuação dentro do grupo, que é Talentos Humanos, concorre para disseminar essa cultura e essa necessidade de conhecimento?
R – Depois eu poderia conseguir uma cópia dessa gravação ou não?
P/1 – Sim.
R - Eu acho que eu nunca sentei num lugar para sentar essa história completa, como eu estou contando aqui. Bom, conceito de Talentos Humanos. O Grupo conseguiu desenvolver uma linha de pensamento em que buscou colocar a área de Talentos Humanos no mesmo grau de importância que têm os outros assuntos estratégicos do Grupo, no mínimo. Então quando você vê a área de Talentos Humanos tendo um assento na cadeira do Grupo, significa que essa empresa tem mais do que uma visão de Recursos Humanos: tem uma visão estratégica de que pessoas são o ponto fundamental do início e do fim de qualquer negócio. Início, meio e fim de qualquer negócio. Então o Grupo, desde que criou o seu comitê executivo, ou seja, lá em 1989, já botou o homem do Talentos Humanos na cadeira. Isso em uma época em que as empresas nem falavam direito em RH ainda. Quem falava em RH [eram] só as multinacionais. Então esse é um mérito do nosso presidente, uma visão do nosso presidente muito importante. Depois, a evolução do conceito de RH para Talentos Humanos foi em uma discussão com Seu Mário, onde nós começamos a analisar que a palavra recurso era uma palavra que poderia dar um significado deturpado para conseguir gente de inteligência. Foi aí que surgiu a palavra talento. Por que talento? Porque talento é conceito de inteligência, sinônimo de inteligência, então Talentos Humanos, ao invés de Recursos Humanos. Para não dar às pessoas o mesmo conceito que se dá, por exemplo, à matéria prima, prego, pedra, cadeira. Então daí o conceito de talentos humanos. E, dentro do conceito de Talentos Humanos, nós temos trabalhado para que as políticas de Talentos Humanos do Grupo sejam feitas levando em consideração esse conceito maior de que gente não é bicho e nem é matéria, simplesmente, não é? Não é coisa e tem inteligência, e que o que nós fazemos pode ser questionado a qualquer momento e é questionado. Então, por trás dos conceitos de talentos humanos vem os valores e os princípios. Então é assim, transparência decorre disso, hierarquia pela responsabilidade decorre disso, comunicação eficaz decorre disso, dedicação e carinho pelo o que se faz decorre disso, do conceito de Talento e Inteligência. Então o que nós temos feito ao longo desses anos é trabalhar para que haja coerência nisso, o que é um negócio complicado. Por quê? Eu costumo dizer que ninguém, nenhum gerente de RH, nenhum diretor de RH consegue fazer nada dentro de uma empresa, primeiro, se ele não tiver o primeiro homem da empresa como homem que comprou a ideia e apoia; segundo, se ele não conseguir levar esse conceito, essa visão para as hierarquias, para os diretores, os coordenadores. Se não conseguir é um desastre porque sozinho não faz nada. Se o cara for dar uma de arrogante, ele se estrepa. Então o nosso trabalho tem sido de educar. Agora, uma coisa incrível, porque isso é contagiante, o que acontece é que no começo as pessoas às vezes duvidam, como duvidaram. Começaram a ficar com o pé atrás e tal, porque tinha incoerências e um monte de coisa. Mas, à medida que isso começa a funcionar, as pessoas vão experimentando, vão gostando, e as pessoas passam a cobrar, passam a ser guardiões. Quantas cartas anônimas nós recebemos de pessoas relatando gente que se comportava mal. Chefe, gerente ou diretor que procedia errado, contra as políticas, contra os valores. E aí tinha um trabalho educativo forte, e tem até hoje para poder ajustar isso. Olha, vou te dizer uma coisa, não é uma tarefa simples, não, é muito complexa. É muito complexa. Mas é fascinante, tem que gostar. Existe uma frase de um americano, eu não me lembro o nome dele, mas isso me marca muito isso. Porque você tem que gostar do que faz. Essa frase diz o seguinte: se você gosta do que você faz você... Quem faz o que gosta, gosta do que faz. E é assim a frase. A frase em inglês eu vou traduzir para o português: “Encontre algo que você gosta de fazer e você nunca trabalhará na sua vida.” Então a Gestão de Talentos Humanos tem que gostar. Se você gosta, os problemas, as ambiguidades que existem, tudo isso você vai superando. Por quê? Porque na Gestão de Pessoas você convive com muitas ambiguidades, sabe? Você está gerenciando uma situação ali, como é que você justifica para uma pessoa que você não pode fazer uma aumento de cem reais no salário dela naquele mês e, no entanto, está comprando um carro de sessenta mil para um diretor que está entrando na empresa que você teve que contratar e tal? Como você justifica? Quer dizer, isso é uma ambiguidade. Porque você dizer: “Eu não posso fazer um aumento de cem reais porque eu não tenho orçamento.” E o cara fala: “Mas você está admitindo uma pessoa e comprando um carro novo para ele.” Como é que você justifica? Você convive com ambiguidades. Ou seja, você fazer a pessoa entender que naquele momento a contratação daquela pessoa é chave para empresa, ou você faz aquilo ou ele não vem, para essa pessoa que está esperando um aumento de cem reais é incompreensível, terrível, muito difícil. Então são ambiguidades dessa forma com que você tem que lidar. E tem as exceções que às vezes você tem que abrir. Eu tenho aprendido na minha vida que, na Gestão de Talentos Humanos, dois mais dois nem sempre é quatro, pode ser três, ou pode ser cinco. Quer dizer, não existe matemática. A gestão da emoção, que é a pessoa chegar para você às vezes com uma situação pessoal terrível, chegar pra você pra ouvir alguma palavra de conforto sua, alguma orientação... Então você fazer o papel de consultor e orientador, de conselheiro. É muito forte. Então a área de Talentos Humanos de uma empresa serve para isso. Se não for para isso, joga fora. Quer dizer, ajudar as pessoas na educação, ajudar a evolução cultural da empresa, ajudar a tratar as incoerências, ajudar para que haja um ponto de compensação decente adequado, ajudar a amenizar as injustiças que podem acontecer. Nós estamos falando de relações humanas, ajudar a trabalhar o conceito de poder dentro da empresa e tentar criar um clima positivo dentro da empresa, onde as pessoas tenham a visão voltada para uma visão do futuro. Para isso que serve a área de Talentos Humanos. Então, no Grupo, nós temos tentado fazer isso. Não é fácil.
P/1 – Como é que foi, como é que isso se articula, com essa sua passagem para vice-presidência de TH já do Grupo como um todo? Como isso se deu?
R – Primeiro que a minha atuação em talentos humanos sempre foi cooperativa. Depois da CTBC já foi a nível de holding, já era cooperativa. Então, desde 1984, a minha atuação já foi representando o Grupo nesse aspecto. Fazendo política, emitindo procedimento, normas etc. A passagem agora para vice-presidência não mudou nada. É uma mudança de nomenclatura, porque houve uma mudança do conceito de estrutura do Grupo, mas a atividade é a mesma, a função é a mesma.
P/1 – Como é que você avalia todo esse processo que vem já desde de algum tempo? Como você avalia o futuro desse Grupo com essa base que foi construída a custa de tanto sacrifício, tanto estudo?
R – Eu acho que a base cultural nós temos, eu acho que inteligência nós temos, acho que nós temos muita gente preparada já, tem muita coisa para fazer, tem muita gente preparada. Acho que o Grupo atingiu um nível de maturidade muito grande, acho que existe nas pessoas uma consciência hoje e as pessoas sabem que elas precisam de estudar mais, elas estão procurando fazer isso. Precisam se reciclar, precisam de tomar um pouco mais de cuidado com tratamento ao cliente. Tudo isso eu acho que, dentro do Grupo, hoje é uma realidade, está cada vez mais... A tendência é melhorar cada vez mais. O que eu acho que nós precisamos é ter juízo com os negócios, fazer negócios, as transações de compra, de venda, de fusão, de incorporação, de entrada em novos negócios, de sair de negócios não rentável etc. Aí que nós temos que ter juízo, muito cuidado. Você pode perder ou ganhar muito dinheiro numa transação, principalmente com o tamanho que o Grupo está ficando, com os números com os quais o Grupo lida, então a gente precisa ter juízo é nisso. Tendo juízo nisso eu vejo um futuro brilhante. Futuro Brilhante porque a maioria dos negócios em que o Grupo está são negócios da era moderna, são negócios que estão aí na chamada nova economia, não é? Então, se você tem gestão, se você tem profissionais, se você tem gente preparada, se você tem uma cultura já homogeneizada, você tem já uma grande vantagem, uma grande vantagem.
P/1 – Cícero, de onde surgiu esse conceito de associados? Quando as pessoas deixaram de ser consideradas funcionários e passaram a ser associados?
R – Isso foi na criação do conceito de Talentos Humanos onde nós também já passamos para o conceito de associados. Por quê? É muito simples. É uma analogia com o que de fato acontece numa relação social. A relação do trabalho é uma relação social, assim como o casamento é uma relação social. E como toda relação social, o comportamento das pessoas precisa de ser um comportamento de sócio. O mundo das relações de trabalho no Brasil, desde a década de 1940, que é quando eu conheço alguma coisa, não é porque eu já era nascido na época, não era, é daquilo que eu estudo. Desde a década de 1940 o mundo das relações de trabalho no Brasil é calcado em cima de um poder do Estado, o poder do Estado como paternalista, o modelo paternal. A maior parte da legislação trabalhista é baseada em cima da carta do labor do Mussolini, quer dizer, da época do fascismo, e também atendendo uma série de pretensões eleitoreiras, políticas da época e que, para época que foi criado, era extremamente avançado. Quer dizer, nós estamos de um modelo trabalhista da época em que o Brasil, a tecnologia de ponta no Brasil, a indústria do Brasil fabricava machado, foice, facão, galocha e penico. Era a tecnologia de ponta do Brasil em fabricação. Em sessenta anos o mundo mudou, virou de cabeça para baixo, as relações sociais mudaram completamente, casamento, pai e filho, o clube, o vizinho... Mudou tudo, os negócios, cidadania, mudou tudo. Ninguém é bobo mais. Quer dizer, foi criada a legislação em uma época a partir do princípio de que todo mundo era inocente, precisava da proteção do Estado etc. Na época, o obreiro não tinha capacidade de decidir sozinho o que queria. Hoje todo mundo entende de direito hoje. Com os meios de comunicação, com imprensa, tudo. Todo mundo sabe tudo. Então é preciso acabar com esse paternalismo, porque senão não cresce. Quando você cria um sistema muito paternalista o sujeito fica sem vergonha. A verdade é essa mesma, fica sem vergonha. Ele não tem vergonha de se submeter àquilo porque, qualquer coisa, ele corre para o grande pai ou pede para ele ajudar. Então, Meu Deus, como é que nós vamos ser um país moderno, como é que nós vamos crescer, como é que nós vamos enfrentar essa concorrência, como é que nós vamos melhorar a nossa produtividade se nós continuarmos tendo essa grande massa de trabalhadores com um modelo jurídico trabalhista extremamente paternalista, onde o empregado com o empregador não podem combinar nada, muito pouca coisa, porque o Estado não deixa. O Estado é quem diz qual é o direito. E com isso desencorajando novos empreendedores, desencorajando novas empresas e gerando uma massa de pessoas desempregadas em um país rico em direitos e pobre em termos de conhecimento, tecnologia, condição social e trabalho, principalmente, para as pessoas. Então eu não sei como é que isso vai se resolver porque quando se fala em fazer mudança em direito trabalhista todo mundo passa a mão nas armas e vai à guerra, parece que o mundo vai acabar.
P/1 – A Argentina.
R – Exato.
P/1 - E as pessoas, os legisladores, não conseguem enxergar o outro lado da moeda, que é: “O que isto está causando?” Experimenta montar um empresa hoje e admite meia dúzias de pessoas para trabalharem com você que você vai entender o que eu estou falando. E também o fato de que nós somos criados, nós somos educados para um mundo de emprego e não um mundo de trabalho. O mundo do trabalho é muito maior do que o mundo do emprego, muito maior. O universo do trabalho é maior do que o universo do emprego. As formas de relação do trabalho não pode ser só emprego. Emprego é uma delas, existem várias outras. E quando você pega um país como os Estados Unidos, que hoje dá trabalho para o mundo inteiro, distribui trabalho para o mundo inteiro, a relação de emprego lá é bem diferente. A relação de emprego no modelo deles é uma coisa pequena, a relação de trabalho é grande. Então tem que trabalhar, e não tem paternalismo. Então esse modelo paternalista tem que ser mudado, tem que ser mudado. Então, eu vejo assim. Isso para o Grupo é uma necessidade, que haja modernização da legislação. Apesar do Grupo estar fazendo a parte dele, para o país ela é fundamental. Eu não sei quanto tempo vai demorar isso, quanto tempo o país aguenta ainda.
P/1 – Boa pergunta. De todo modo, me parece que algumas organizações têm dado o exemplo. A velha cultura do exemplo.
R – Exato, exato. Foi bom você falar nisso. O que nós fizemos no Grupo? Nós ousamos. Nós enfrentamos a legislação, enfrentamos algumas instituições para quebrar paradigmas, enfrentamos preconceitos, enfrentamos a cultura arraigada do raio do emprego, um monte de coisa para criar, terceirizar. Quando foi feito o processo de terceirização do Grupo foi um Deus nos acuda. Parecia que o mundo ia acabar. Uma coisa horrorosa. As pessoas iam na casa do presidente, faziam fila lá para reclamar. Uma coisa terrível. Até descobrir que ele ia ganhar mais dinheiro prestando serviço como dono do seu próprio negócio do que como empregado, como estava. Foi terrível. Então esse é um ponto que eu acho que tem que ser considerado.
P/1 – Cícero, caminhando já para a nossa finalização, o que você seria capaz de dizer para um pessoa que estivesse agora chegando no Grupo? O que ele vai encontrar? O que o espera?
R – Quem está chegando ao Grupo hoje vai encontrar um Grupo moderno, um Grupo que já passou por uma fase de amadurecimento muito grande, que já conseguiu superar a barreira do paternalismo, conseguiu ir de encontro a modernidade, que tem um comitê executivo que pensa moderno, que tem um presidente que pensa moderno, que vem buscando desenvolver parcerias, que acha que as parcerias são inevitáveis, e através de parcerias vai agregar valor do Grupo de conhecimento, de novos talentos etc. Um Grupo que é exigente com as pessoas porque elas vão precisar principalmente se dedicar, estudar, se preparar. Um Grupo que vai exigir dessas pessoas um comportamento ético, um comportamento adequado com aquilo que o mundo moderno, hoje, das relações em negócios, exige. E um Grupo que vai investir nessa pessoa, um Grupo que vai dar oportunidades de crescimento. Entendendo que por oportunidade não significa ter um plano de carreira individual para cada um. Plano de carreira, o Grupo tem um uma estrutura de carreira onde as oportunidades são criadas e cada um corre atrás, cada um faz sua carreira. Cada um faz o seu plano de vôo. Cada pessoas que chega ao Grupo tem que entender o seguinte: por mais que ele pense que ele não está sendo avaliado, ele está sendo avaliado. Por ter mecanismo de avaliação de pessoas. E, aquelas pessoas que se destacam não tem como não crescer, não tem como.
P/1 – O que te pareceu ter dado esta entrevista?
R – Engraçado, parecia que eu estou no Roda Viva. Não sei se vai servir para muita coisa, não, mas eu acho que pelo menos me fez passar uma tarde recordando algumas coisas que eu já passei na minha vida profissional.
P/1 – Aí você se dá conta de que elas são recordações muito úteis para as pessoas?
R – Eu imagino que posso ajudar.
P/1 – Pode ter certeza disso.
R - Está bom.
P/1 – Alguma coisa que você gostaria de dizer e que não disse por algum motivo?
R – Não. Só se for por esquecimento, mas que eu tenho vontade de dizer, não.
P/1 - Muito obrigado.
R – Disponha.
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