Entrevista de Rogerio Sottili
Entrevistado por Rosana Miziara e Lupity Pleké
São Paulo, 18 de maio de 2023
Projeto Conte Sua História
Entrevista número PCSH_HV1387
Transcrita via Transcriptor
Revisor Nicolau da Conceição
P/2 - Entrevista de Rogério Sottili, entrevistado por Rosana Miziara e Lupity. São Paulo 18/05/2023. Entrevista Conte sua História PCSH_HV1387. Ação.
P/1- Rogério, bom dia, obrigado aí por aceitar o nosso convite. A gente começa da maneira mais tradicional possível: você pode falar seu nome, data e local de nascimento?
R - Bom, Rogério Sottili. É, 07/01/1959. Eu nasci na cidade de Veranópolis, nunca morei em Veranópolis, só nasci lá. E... fui criado em uma cidade vizinha a Veranópolis, chamado Nova Prata.
P/1- Seus pais são dessa cidade de Veranópolis?
R - Não, minha mãe, ela era....
P/1- Fica no Rio Grande do Sul.
R - No Rio Grande do Sul, isso. A minha mãe, ela era de uma cidade próxima a Nova prata e Veranópolis, mas para o tempo, para a época, não era tão próxima. Minha mãe nasceu em 1914, né? Teria hoje 100 e... quanto? 120 anos, eu acho, quase, né? E... E ela nasceu numa cidade chamada Serafina Correia, né? E o meu pai nasceu em uma outra localidade chamado Fagundes Varela, que pertencia a Veranópolis, que era esse município onde eu nasci, né? E que era próximo a Nova Prata, né? E eles se conheceram, não sei como. Mas as lembranças que eu tenho é de que meu pai gostava muito de festa e onde tinha bailes, essas coisas, ele ia. E ele deve ter conhecido a minha mãe em uma dessas festas, né? E aí, casaram.
P/1- É, vamos falar um pouco do da história da sua mãe. Seus avós são dessa mesma cidade, eram do sul?
R - Então, minha mãe. A história da minha mãe, é... embora seja bastante longe, assim, ela é uma história que eu tenho uma lembrança não muito grande, mas ela é interessante assim: a minha mãe, o pai dela, ele era um militar, né? Existe uma discussão...
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Entrevistado por Rosana Miziara e Lupity Pleké
São Paulo, 18 de maio de 2023
Projeto Conte Sua História
Entrevista número PCSH_HV1387
Transcrita via Transcriptor
Revisor Nicolau da Conceição
P/2 - Entrevista de Rogério Sottili, entrevistado por Rosana Miziara e Lupity. São Paulo 18/05/2023. Entrevista Conte sua História PCSH_HV1387. Ação.
P/1- Rogério, bom dia, obrigado aí por aceitar o nosso convite. A gente começa da maneira mais tradicional possível: você pode falar seu nome, data e local de nascimento?
R - Bom, Rogério Sottili. É, 07/01/1959. Eu nasci na cidade de Veranópolis, nunca morei em Veranópolis, só nasci lá. E... fui criado em uma cidade vizinha a Veranópolis, chamado Nova Prata.
P/1- Seus pais são dessa cidade de Veranópolis?
R - Não, minha mãe, ela era....
P/1- Fica no Rio Grande do Sul.
R - No Rio Grande do Sul, isso. A minha mãe, ela era de uma cidade próxima a Nova prata e Veranópolis, mas para o tempo, para a época, não era tão próxima. Minha mãe nasceu em 1914, né? Teria hoje 100 e... quanto? 120 anos, eu acho, quase, né? E... E ela nasceu numa cidade chamada Serafina Correia, né? E o meu pai nasceu em uma outra localidade chamado Fagundes Varela, que pertencia a Veranópolis, que era esse município onde eu nasci, né? E que era próximo a Nova Prata, né? E eles se conheceram, não sei como. Mas as lembranças que eu tenho é de que meu pai gostava muito de festa e onde tinha bailes, essas coisas, ele ia. E ele deve ter conhecido a minha mãe em uma dessas festas, né? E aí, casaram.
P/1- É, vamos falar um pouco do da história da sua mãe. Seus avós são dessa mesma cidade, eram do sul?
R - Então, minha mãe. A história da minha mãe, é... embora seja bastante longe, assim, ela é uma história que eu tenho uma lembrança não muito grande, mas ela é interessante assim: a minha mãe, o pai dela, ele era um militar, né? Existe uma discussão familiar sobre se ele era de origem francesa ou espanhola. Porque na árvore foram buscar e tal, e não se tem... se tinha uma lembrança de que seria de origem francesa, mas tudo indica que poderia ser espanhol também. E ele era o militar numa região completamente distante dessa aí, que era a região da fronteira do Rio Grande do Sul, fronteira com a Argentina Uruguai. E... naquela época, né, os intendentes, que eram os prefeitos da época, eram nomeados, e ele foi nomeado para ser intendente de uma dessa cidade: Serafina Correia. E ele foi para aquela região. E o meu avô, ele já tinha sido casado e era viúvo, né? E tinha alguns filhos. E ele foi pra essa cidade e conheceu a minha avó, que também era viúva, que também já tinha filhos. E aí eles casaram e tiveram 2 filhos, né? Que era, foi a minha mãe, né? E o meu tio João, que era os únicos irmãos, né... pai e mãe. E o meu avô era uma pessoa muito interessante pelas memórias que traziam, né? Meu avô era uma pessoa que tinha um respeito muito grande com os filhos, né? Eu lembro que a minha mãe conta uma vez de que ela, com 14 anos, ela era professora de matemática, porque era uma das poucas letradas na região. E quem era letrado já dava aula, era professora e. E a minha mãe, ela foi desrespeitada, né, por um por uma pessoa, por um homem, né? Que era pai de algum aluno, alguma coisa assim, mas desrespeitado no sentido de desqualificando ela pela idade e pelo fato de ser mulher, né? E Minha mãe contava que o meu, meu... ela contou para o meu pai, para o meu avô, e o meu avô pegou ela na mão e disse: “vamos, vem comigo”. E ela atravessou, eu lembro até hoje assim, aquela imagem, eu imaginando uma estradinha no meio de um, né, de árvores e Capoeiras e tal. Atravessaram aquilo e chegou, e ele pediu para ele confirmar o que ele ficou sabendo e exigiu o que ele pedisse desculpa para minha mãe. E aí, eu sei que a minha mãe contava isso de uma forma muito emocionada, né? De que ele falou alguma coisa de que, não era o fato de ela ser uma pessoa de 14 anos e ser mulher, que ele tinha que desrespeitar, alguma coisa assim. E eu sempre imaginei que aquilo fazia muito sentido, né? Porque a minha mãe era uma pessoa muito fora da curva pela época. Ela sempre trabalhou, né? Ela era professora, depois ela, logo que ela casou... antes de casar, ela já trabalhava, ela virou... ela era a gerente do correio da época, era funcionária pública. E se aposentou como funcionário público, né, como funcionário dos Correios. Então, assim, ela era uma pessoa que, naquela época as mulheres, né, trabalhava na cozinha, trabalhavam em casa, trabalhavam cuidando de criança, né? E a minha mãe sempre teve uma... E eu acho que ela fazia muito, fazia muito sentido, assim, ao contrário da minha avó, que eu sempre...
P/1- Sua avó, a mãe dela
R - A mãe dela. Eu não conheci meu avô porque ele morreu. Muito cedo também. Eu acho que a minha mãe devia ter... talvez 20 anos, ou nem isso, não sei. Mas a minha avó eu conheci e eu nunca tive uma boa impressão da minha avó, assim. Sempre vi a minha avó carrancuda, atrás de uma máquina de costura e nem pouco carinhosa, nem comigo, nem com ninguém, né? Então assim, eu tenho uma lembrança da mulher completamente diferente de que... do que foi minha mãe e do que teria sido meu avô do ponto de vista dessa questão.
P/1- E quando o seu avô e o seu avô foram casar, e cada um já tinha seus filhos, moravam todos juntos, quantos eram os irmãos que sua mãe tinha?
R - Então, eu não... A minha mãe, eu não sei contar agora, mas a minha mãe, assim, eu tenho... Um, dois, três, quatro... Eu acho que considerando... O meu avô devia ter 2 filhos ou 3, e a minha avó devia ter uns 2 filhos, então eles deviam ser uns seis, sete filhos e tal, né? Eu não sei se eles tiveram o momento que moraram todos juntos, eu não tenho essa lembrança e nem esse relato, né? Mas a minha mãe era muito próxima de todas eles, de todos os irmãos. Porque, inclusive eu fiquei sabendo muito tempo depois, que essas minhas tias com quem eu tinha uma relação, elas se visitavam, passavam assim, eram irmãs só de mãe ou só de pai, sabe? E eu nem sei quem era só de pai e quem era só de mãe, né? Mas, então, elas eram muito próximas, muito, muito amorosas, assim, muito irmãs mesmo, né? Mas eu não sei se elas chegaram a morar junto. O irmão da minha mãe, que era o mais jovem, que era o mais novo, que era o tio João, esse sim, eles eram muito... moravam próximos. Ele era o único que continuou morando na cidade, aquela de Serafina Correia, em Nova Prata, que é onde a minha mãe morou depois de todo esse tempo. Depois com asfalto e com carros mais velozes, né? É uma cidade que fica a uns 30, 40 km, né? Mas na época, era uma distância absurda, né? Porque não tinha nem carro e tal, né? Então era essa lembrança que eu tenho. Agora... Bom, é isso, né?
P/1- E a família do seu pai?
R - Então, é, eu ia entrar aí, né? A família do meu pai, ela é uma família, italianos, né? Meu pai, o meu avô é italiano e a minha avó também, né? São do norte da Itália, de uma cidade chamada cremona, que fica a 60 km de Milão. E eu descobri recentemente que é a Terra dos estradivários, né? Porque eu fui lá e vi que tinha escolas de violino. Aí eu fui atrás. Mas, enfim, e... O meu pai veio, o meu avô veio, né, para o Brasil no final do século retrasado, no final dos anos 80, 1800 e pouco, né, 1880 e tal. E eles devem ter vindo naquela, naquele processo de da colonização italiana, da última leva de colonizadores italianos. É... que que vieram para o Rio Grande do Sul, que eram famílias muito pobres da Itália, e que acabaram recebendo terras em lugares bem impróprios para agricultura, morros, aquela coisa toda. Agora, de uma forma muito estranha, e que eu não consigo identificar, a memória que eu tenho do meu avô não era uma pessoa da agricultura. O meu avô era um grande comerciante para região, né? Então, eu não sei como é que ele veio para cá, como é que ele veio para o Brasil. E não se tem essa memória de que, se ele era de uma daquelas famílias, né, pobres que foram, né, expulsos da Europa pela fome e acabaram tentando encontrar uma nova, uma vida. A época é a mesma, mas ele veio e era um grande comerciante, né? E nessa, e nesse comércio, era aqueles comércios... eu conhecia a casa, era uma casa de um quarteirão inteiro, de madeira, era uma casa que devia ter uns 20 quartos, né? E embaixo era o comércio e se vendia prego, tecido, carne, ferramentas, galinha, então era um grande comércio. E era Oo maior comércio da região. E era, assim, no centro. Vinha gente de toda colônia para comprar nessa, nessa terra, na, na, nesse comércio do meu avô. E eu sei que as famílias, né, todas moravam nessa casa. Os filhos do meu, do meu avô, que casavam com os filhos, por isso que ela era uma casa imensa, né? Mas uma questão, muito... as mulheres casavam e trabalhavam na loja e os homens trabalhavam em outros negócios, né? Que provavelmente era de, de.... Eu falo os homens, e na verdade eu não sei por que eu lembro que só tinha um tio meu, que era o tio João, né, que era conhecido como Joaninho. Que era... também comprava, fazia compras para, mas não atendia na loja. E todo mundo trabalhava lá. E a minha mãe quando casou, né, ela foi trabalhar na loja também, né? E não ficou muito tempo, porque depois ela foi para para os correios e tal, mas eles moravam...
P/1- Mas ela chegou a morar nessa casa?
R - Ela chegou a morar nessa casa, ela morou nessa casa, na casa do meu avô e tal. E tinha uma coisa muito, muito interessante, porque a minha avó, né, que chamava Vitória, né? A outra avó chamava Virgínia, né? E a minha avó chamava Vitória, e o meu avô, chamava Amílcare, né? E minha avó ficava... contava para minha mãe que ela, que assim: “Ó, vocês ficam espertas, né, que o Joaninho, que era irmão do meu pai, está passando para trás o teu pai, né?” E, porque esse meu tio foi morar em Santa Catarina e ele carregava da loja caminhões, né, Carregava o caminhão de coisas assim e ele ia para Santa Catarina e vendia lá, né? E com a venda ele comprava terras, comprava, né? Então assim, na verdade, ele estava, né? E o meu pai não era uma pessoa, ele não, o meu pai não gostava de trabalhar na loja, não gostava. O meu pai era uma pessoa que tinha outra, né? Ele era diferente, ele não gostava de de tocar um negócio da loja, ele... Ele sempre foi uma pessoa que gostava muito de carro, né? Naquela época, então, o primeiro carro de lá que existia na região, foi ele que acabou comprando o carro. Então ele... não chamava de táxi na época, né? Mas ele, como era o único carro que tinha, as pessoas socorriam ele para levar para a cidade, hospital, para babá e ele cobrava disso. Ele ficava, né? E é uma pessoa que vivia, né, dessa forma. E a minha mãe ajudava na loja, né? E depois minha mãe foi para os Correios e tal. Então tinha essa coisa, né, do, do, desse meu tio que não trabalhava lá, mas vivia dos negócios do meu avô.
P/1- E você chegou a conhecer essa casa?
R - Conheci essa casa, né? E em duas oportunidades: a primeira delas, eu imagino que ela era completa, né, porque ela era muito grande assim, né? E ela tomava uma... e ela ficava na frente da igreja da catedral, né? E até tem uma do lado da catedral, tem um caminho, assim, de, de terra que vai para uma Gruta, tá? E a Gruta, do lado da Gruta tem uma Capela. Uma Capela grande e... com talvez, pra umas 30/40 pessoas, né? E tem um altar super bonito. E me disseram que aquela foi a primeira, a capela foi a primeira da cidade, depois que a catedral foi construída. E no altar estava escrito, sei lá, doação de Amílcar Sottili que o meu avô teria doado para, para, para Capela e tal. A construção da Capela. E essa casa era muito grande. Mas eu fui recentemente e eles já tinham destruído, né? Ficava em uma esquina, então acho que eles devem ter vendido parte, só ficou um pedaço da esquina, né? Então... E teve uma coisa muito bem interessante, porque quando eu fui para a faculdade, eu fiz história na PUC de Porto Alegre, e a professora, que a gente chegou até a comentar, ela, ela era minha professora de história, história do Rio Grande do Sul e que ela fazia doutorado aqui em São Paulo com, com Adélia Fenelon, né? E aí, essa professora gostava muito de mim, né? Então, eu era um pelado de grana, aquela coisa de estudante e tal. Então ela assim: “ó, você não quer trabalho de pesquisa comigo pro? Eu preciso fazer pesquisa para o meu doutorado e tal”. E eu fui, né? Na na, na, na catedral, né, de Porto Alegre, pesquisar sobre uso um recorte histórico que ela me deu, né? E eu estou pesquisando e eu encontro documentos, um documento, né, que falava do meu avô, né? De que que naquela época, e eu estou falando isso do final dos anos de 1800, né? O Rio Grande do Sul estava passando por uma, né? Um turbilhão político, né? A revolução e tal. E que o meu avô estava sendo acusado de dar cobertura a alguns revoltosos, que eu não sei agora dizer se eram, né, de, né? De quem eram, se eram chimangos, colorados, ou o quê? E que, então, tinha uma denúncia contra o meu avô e estavam pedindo informações sobre o meu avô, né? Então encontrei um documento sobre esse. E na época, eu como início da da faculdade, né, A cabeça em 1000 lugares, aquilo me chamou a atenção mais por um aspeto afetivo e de curiosidade, e não do ponto de vista histórico, de tentar saber. Aí nunca mais localizei aquilo, né? E aquele documento não interessava para que a minha professora precisava para a tese dela.
P/1- O Rogério, e aí seu pai e sua mãe se conheceram, e vocês, você nasceu nessa cidade só e mudou para outra. Então essa primeira cidade que você nasceu, você ficou quanto tempo?
R - Não. Aí o que aconteceu, minha mãe, ela abriu a agência de Correios, em Fagundes Varela. E era só ela funcionária, ela atendia.
P/1- Ela abriu? E passou concurso?
R - Ela passou por concurso. Eu não sei como é que era, mas ela passou o concurso, né? E ela abriu a agência ou delegaram para ela abrir a agência nesse local e tal. E o meu pai ajudava ela, né, o meu pai fazia os negócios dele e ajudava ela, aquela coisa toda. E o meu pai... E aí a minha mãe teria sido transferida para a Nova Prata, pra ela trabalhar na agência de Nova Prata, que era uma cidade maior, já tinha alguns funcionários e tal. E aí a minha mãe se mudou pra Nova Prata, né? E o meu pai ficou um tempo só ele segurando a agência em de Correios, naquela cidade chamada Fagundes Varela.
P/1- Então, seu pai era concursado também?
R - Não, não, ele era o marido da minha mãe (risos) que ajudava ela, né? E... É legal isso porque eu não tenho nenhuma lembrança diferente da minha mãe se dirigir ao meu pai de uma forma que não seja carinhosa, de que era muito parceiro, sabe? Então, eu fico imaginando ele, assim... Ela teve que ir para lá, ele ficou ajudando porque teria que chegar a um novo funcionário para que então... Ela não podia ficar nos dois, né? Então ele ficou. E aí a minha mãe estava grávida de mim, né? E o médico dela era de da cidade de Veranópolis, que era do lado, era 20 km de Nova Prata, então eu nasci na cidade de Veranópolis, né? Fui registrado lá, mas nunca morei nem Veranópolis, nem Fagundes Varela. Eu fui, né, já morar em Nova Prata.
P/1- E você é o primeiro filho?
R - Eu sou o último. Temporão. Todos os meus, eu sou, somos em 5 irmãos, né, 2 irmãs e 3 irmãos. E o meu irmão, mais novo depois de mim, tem quase 10 anos de diferença, né? Então eu nasci, a minha mãe tinha 45 anos quando eu nasci, né? Isso em 1959, né? E o que é um, é algo bem, bem difícil, assim, principalmente para aquela época.
P/1- E seu irmão mais velho? Como que é o nome dele?
R - Então, a minha irmã mais velha Heloísa, né? Depois é Helena e depois é Valmor. Depois é Sérgio e depois sou eu, né? E a minha irmã mais velha deve ter 80. Eu não sei exatamente se 82/83, acho que é 83, porque é uma escada, assim. A outra, minha irmã deve estar com 80, o outro, meu irmão deve estar com. 78/76, o outro meu irmão deve estar com 74 e eu estou com 64.
P/1- O Rogério, e aí como é que era essa casa que você morou de infância? Ficou quanto tempo nessa casa?
R - Então, nessa casa é, como eu era temporão, eu não lembro de ter convivido com meus irmãos na minha casa, porque quando eu lembro desse momento meus irmãos tinham saído para estudar fora, né? E só lembro deles irem visitar, assim, mas era uma era uma casa de... Com lembranças muito boas, porque eu vivia a vida inteira. Minha mãe morreu nessa casa, né? E era uma casa de quatro quartos, né? Ela Tinha uma sala, né? Uma sala de de visitas, assim, depois tinha uma outra sala que com o tempo virou uma sala de TV. E aí depois tinha uma, um lugar de, de, de jantar, de, né, de alimentação, que com a reforma ela abriu, que depois vinha a cozinha, né? Mas depois, com a reforma, essa cozinha ficou uma cozinha grande, de que junto com, né, a sala de jantar e tal, e... E tinha um corredor imenso, né? Que ligava todos os quartos, assim, e que era uma coisa gostosa, porque era... o piso era de madeira, né? E era muito lustro assim, né? Então, eu adorava jogar bola naquele corredor de meia, porque eu escorregava, caía. Então é uma, é uma lembrança, mas essa é uma lembrança que eu fazia disso meio só sozinho, porque os meus irmãos estavam lá. Ou às vezes quando vinha algum irmão, né, brincavam comigo e tal. Então é essa a lembrança que eu tenho de uma coisa. E, uma coisa que é muito legal, assim. Ao lado de fora e a casa na frente, então tinha uma varanda, né? Uma varanda que era o lugar que tinha um muro, assim, que era uma delícia de sentar no muro. E a minha mãe e o meu pai, eles sentavam aí na varanda, né, pra tomar chimarrão. Então quando vinha os meus irmãos, meus parentes, todo mundo sentava aí fora, porque, para ver movimento, ver as pessoas passarem, tomar chimarrão, conversar e etecetera, né? E na parte de trás descia uma escada, e aí tinha um lugar que que era meio garagem, mas o teto era de parreiral de uva, né, todo assim, bem... E tinha na parte de trás, não era um terreno muito grande não, mas era muito, tinha muitas frutas assim, né? Lembro que tinham dois pés de caqui, né, que morreram de velhice, né? Eles foram, até destruírem a casa quando se vendeu a casa, eles estavam quase todo ele podre lá, com uns galinhos e com um caqui só, sabe? Aí tinha um pé de Pêra enorme, uma pêra deliciosa, chamado pêra ferro. Aí tinha um pé de ameixa, né? Aí tinha um pé de figo da Índia, né? E devia ter mais alguma coisa que eu não lembro. Agora, né? E aí, tinha um lugar fechado, que era, que era onde se fazia churrasco, né? Tinha churrasqueira que ficava ali atrás também, né? E o mais legal que indo por trás, assim, ou pela frente, você descia uma escada, né? Toda a parte de cima tinha a mesma em baixo, tinha uma outra casa embaixo, né? Que nunca foi feita casa. Então tinha o quê? Era o porão, mas tinha 4 quartos, tinha uma sala imensa, tinha um lugar, tudo, tudo igual, né? Então a parte dela era, o piso era de Pedra e a outra parte era de piso de terra batida, assim. E que eu lembro que o meu pai guardava lá bebida, vinho, salame, queijo, né? E era um lugar onde se brincava, né? Eu tinha uma época que eu, que eu imaginava que eu ia ser um engenheiro mecânico, né? Então eu preparava uma mesa lá, eu ficava desenhando carros, né? Inventando, juntando à frente de um carro com outro de carro, né? Que devia ser uma influência do meu pai que ele era pirado por carro, essa coisa toda. E era isso. E voltando lá para os parreirais, ah, tinha outro parreiral atrás, né? E voltando para o outro parreiral, então caminhava assim, então vinha a casa da minha tia, que era para outra rua, só que tinha ligação. Então a minha tia morava numa casa com um terreno maior que o nosso, né? E que ela tinha uma parte só de frutas atrás assim, e a casa na frente. Então a minha tia, a minha mãe, viviam cruzando a fronteira aí, para tomar mate, conversar... e então foi uma relação muito, né? Muito, muito familiar. Parentes assim.
P/1- Você tinha primos da cidade? Eles também eram mais, mais velhos?
R - Não, eu tinha um primo que era, não sei, devia ser um ano, dois, mais novo que eu. Uma prima, que é a irmã desse meu primo, que devia ter um ano ou 2 mais que eu. E um outro irmão que era mais, que era a idade do meu irmão. A gente se dava super bem, mas nunca fomos da mesma turma assim, sabe? Então brincava junto de criança e tal, mas não... Talvez pela diferença de idade meus amigos eram outros assim, né? Mas é... dava... Tinha espaço de proximidade para a gente brigar, né... quer dizer, né. Eu lembro que uma vez eu briguei com esse meu primo e ele saiu atrás de mim para me pegar, para me bater e tal. E ele foi atrás de mim e eu cruzei aqui, tinha um, tinha um muro na frente da minha casa, um muro baixinho assim né? E o portão era aqui, e eu dei a volta aqui e fiz... Quando eu cheguei aqui, ele estava ainda vindo aqui, eu peguei uma pedra, joguei nele, né? Não deu tempo, machuquei ele. Enfim, essa era, essa era a minha casa. E do lado da minha casa, do outro lado, tinha um uns vizinhos que também viveram a vida inteira lá, até morrerem todo mundo. Que tinha uma filha que era a minha idade. A gente estudava junto a mesma classe e tal que era minha amiga e tal. É... mas também não era a minha muito próxima era. Era mais vizinha, amiga vizinha, né? Mas a gente sempre se deu super bem e a gente se dava, minha mãe se dava muito bem com, com... nunca teve problema, né? De vizinho de, né? Essa coisa. E do lado dele assim, um terreno imenso vazio, que tinha um, né, uma pilha de tijolos, né? E eu gostava de brincar lá na pilha de tijolos. E eu construí, né, uma casa, né? Um absurdo o perigo hoje, assim, eu ia cavando, indo com os tijolos, ia botando madeira e botava tijolo em cima, e eu fiz uma casa enterrada nos tijolos. Assim, era uma pilha, um, sei lá, uns dois caminhões de tijolos deixaram para alguma obra que não saiu, né? E ficou lá. Então ficava ficou anos lá. A pilha de uns 2 metros de altura de tijolos, 2/3 m de altura. E eu escondi as coisas na minha casa lá, né?
P/1- E amigos, assim, de escolas, você lembra das brincadeiras que você tinha? Quer dizer, teve essa, fazia lá escorregar de meia no corredor...
R - Era bicicleta, futebol, né, uma delícia assim. Era uma cidade pequena, então tinha a igreja que ficava, sei lá, uns 300 m da minha casa. E todo, toda a tarde, às 6 da tarde, tinha uma pelada de futebol do lado da igreja, porque tinha um espaço grande e a gente jogava lá. Então tinha clubes, times de futebol. Então, era, era muito isso: futebol, bicicleta, corridas. De menor, com menos idade, assim, eu não lembro direito. Tinha um outro amigo que morava na rua de trás, então. Ele vivia lá em casa, vivia lá na casa dele. Mas não tinha... Na praça, a gente ia na praça, a praça era bem próxima, né? Então a gente ia bater bola na praça, né? Olhar as pessoas. Cidade pequena o maior divertimento é parar para ver movimento, né? Ver pessoas chegando, quando vinha pessoas de fora, carro de fora era uma brincadeira, assim. Mas eu lembro de uma situação: do lado dessa casa do meu tio tinha um terreno, hoje é praça, é uma praça, né? Tinha assim ó: do lado da nossa casa e do lado da casa do meu tio, que tinha um terreno, tinha um terreno grande que não poderia construir nada porque passavam um rio. Quando, eu lembro, esse Rio era canalizado, né? E esse Rio, na verdade, ele virou o vale, um canal que passa por baixo de toda a cidade que depois virou esgoto, né? Só que então ali do lado de casa ele ia atravessava por baixo da rua, né? E ele ia para o lado de lá do, da, da rua, de, da frente, de casa. Do lado de lá, da rua, da frente de casa morava a Eva, né? E a Eva era muito conhecida porque ela era a única prostituta de Nova Prata e ela morava numa num Barracão, né? E ela criava patos, né? Do lado do riacho, né? E a gente ia roubar patos da Eva, né? E então, assim, sempre tinha um espírito meio italiano, meio de sacanagem, sabe, por trás. Nesse terreno os colonos, né? Os agricultores vinham da do interior a cavalo para fazer compra na cidade, então eles, como era um terreno que tinha árvore, eles amarravam cavalo na árvore e ele saiu para a cidade a pé, fazia compras e tal, né? Ah, a gente cortava o rabo de cavalo, né? E eu lembro que uma vez a gente fez uma, né? A gente pegou uns litros de Coca-Cola e botou num balde e deu para o cavalo, para o cavalo beber, e a gente sentava esperando ele arrotar, né? Claro que não devia ter arroto nenhum (risos). Não sei, são essa era as brincadeiras de que eu lembro da minha infância.
P/1- Rogério e se falava de política na sua casa?
R - Então, o... O meu pai. A minha mãe dizia, tá, que o meu pai, ele era anti-brisolista. Ele não gostava, não gostava do Brizola, né? O que para mim, para entender não gostar do Brizola, né, era gostar da direita na época, né? E que o meu pai gostava muito de política, que ele adorava comício, né? Mas eu não lembro, tá? Porque como eu era o filho temporão, essas coisas eram coisas do passado, né? E a política começa a chegar na minha casa, né? Ou reaparece, porque depois eu percebo, né, como essas coisas vêm à tona, vem muito comigo, né? E isso acontece, quando eu estou em Nova Prata, em... Eu estava no, sei lá, eu estava, eu devia estar no primeiro ano, não é do ensino fundamental, mas do ensino médio, né? Na época era científico e tal, né? E eu tive um professor... e eu era completamente despolitizado até aí, sabe, até a quarta série ginasial, por aí. Eu acho que eu. Eu era totalmente despolitizado, assim, não sabia nada. Minha vida era brincadeira, festa, adorava namorar, sabe, né? E aí, vem um professor, né? Ele era natural da minha cidade, mas ele tinha estudado em Curitiba, um professor de história. E aí o cara vem com uma visão, e isso isso ainda ditadura, né? Nós estamos falando de 1974, por aí, né? E aí, e ele vem com uma visão supercrítica sobre a questão militar, movimento estudantil e aquela coisa toda. E aí eu começo a me dar conta de algumas coisas. Eu tive uma experiência um pouco anterior a essa, que eu já começo a despertar por uma questão social. E aí é antes disso, porque eu tinha um amigo, tem um amigo até hoje, o Tadeu, que o pai dele trabalhava na prefeitura e ele, esse meu amigo Tadeu lia muito e tal, né? E o Tadeu resolveu, ele fez um treinamento de liderança cristã, né? E vivia que, né? Parece que ele saiu com uma tarefa de que eu fizesse também esse que chamava TLC, treinamento de liderança cristã. Eu disse: “não quero disso, não gosto disso, não gosto de padre”, né? Aquela coisa toda. E me encheu tanto, sabe, porque várias pessoas, amigos meus, foram fazer e eu resolvi fazer, né? E de fato, esse curso, ele te dá uma pegada mais social, um olhar mais social, né? Mas me incomodava muito, sabe? A parte da igreja, dos padres, aquela coisa toda e tal, né? E eu fiquei, eu acho, com um ativismo ligado à igreja, né, talvez de um ano, um ano e pouco, mas não era uma coisa que me sentia confortável, mas me abriu por esse olhar social para essa outra perspectiva. E quando chega esse professor, né, aí eu faço uma articulação mais política. E aí o que é que acontece? Eu começo a fazer um, né, com apoio desse meu, desse meu professor, fica um amigo e tal, eu começo a fazer ativismo político meio solitário, né? O que que eu fazia, né? Eu fazia documentos, com a ajuda do professor, e eu chegava, por exemplo, né, eu estudo estudava tarde, né? A aula terminava 18 horas às 19 horas começava o turno da noite, né? E eu calculava assim: das 18 às 19, né, entrava o pessoal da limpeza para limpar sala, ele saiam 15 para as 19, aí começava a chegar. Quando eles terminavam a limpeza eu ia botar os documentos em todas as classes, deixava um documento, que era, né, a crítica da ditadura militar, criticando, né? Algumas agendas da época, né? Começava a fazer pichação de muro, né? E aí eu comecei a ter algumas pessoas que começavam a fazer comigo isso, né? E teve uma época, que lhe isso levou na, de, que o prefeito da cidade, né? A minha vizinha trabalhava, era secretária do prefeito, né? Aí a minha vizinha chegou lá em casa e falou para minha mãe dizendo assim: “olha, dona Olga”, o prefeito era João Carlos, né, “o prefeito pediu para avisar a senhora de que o terceiro batalhão teve aqui em Nova Prata”, o terceiro batalhão era a sede do exército na região, que ficava em Bento Gonçalves, “então, o terceiro batalhão esteve aqui conversando com ele, né?”. E levantou o meu nome que eu estava fazendo algumas coisas, assim, que pediu, e que era legal a minha mãe ficar atenta comigo. Pedi para eu parar e pá, tatata e tal. Eu fui falar com o prefeito, né? E eu não lembro se a minha mãe foi junto, né?
P/1- Quantos anos você tinha?
R - Eu devia ter uns 14 anos. 15, né? Se foi, se foi em 74 isso, eu devia ter 15 anos, né? E aí ele, e o prefeito, tá, ele era de oposição a ditadura. Era um cara, né? E que tinha alguma relação com a minha lá, todo mundo tinha relação, né? E então ele disse, olha, cuidado, os caras estão de olho em você, estão fazendo, não sei o que, dizendo que você e bláblá e tal. Mas na minha cabeça não passava menor possibilidade de qualquer risco nenhum, né? Hoje eu olhando, pensando: gente, gente, por muito menos, né, foi assassinada, né? Sofreu tortura, uma coisa assim. Eu, mas eu não tinha achava que... imagina se vão fazer um moleque de 15 anos de idade, 14/15 anos de idade pichando o muro, né? Então, eu não dei importância a isso aí. Aí a minha mãe pirou, né, muito. Pirou: “para com isso para com isso e não sei o quê”. E aí ela disse, “ó, teu pai também era muito metido em política, né? Nunca foi legal. Eu não gosto de política”. Então minha mãe sempre... mas eu olhava que eu era um processo de, de medo, sabe? De proteção, né, coisa assim. Os meus irmãos já tinham saído de casa para estudar e eu lembro que o meu irmão, um deles, ele era presidente do do grêmio estudantil, coisa parecida. Mas... O que eu penso dele era a carteirinha... Eu lembro dele, era a carteira estudante de festa, não tinha uma visão politizada nenhuma, né? O outro meu irmão já tinha também saído, né? E eles... Bom, aí vem um processo, né? Esse, esse pequeno movimento em Nova Prata, ele vai dar origem a um ano depois ao que, né? Tem um cara de Nova Prata que já estava na faculdade em Porto Alegre. Na faculdade de economia. Tava no primeiro ano. E ele veio com uma tarefa de organizar um pessoal em Nova Prata para a política, né? E eu era um dos nomes, né, que ele conhecia, porque a prima dele era minha amiga e tal, e nós começamos a fazer reunião com ele. E nós criamos um grupo chamado Grupo Cultural Ruptura, né? Com a pegada da cultura, né? Mas para fazer debate político, ler documento. E o irmão dele estava exilado no México. E o irmão dele era o João Pedro Stédile, né? Que também é dessa região. Então, o João Pedro começava a mandar documentos para nós ler e estudar, né? E o irmão dele era o Zé Luís, né, que depois foi deputado federal, foi prefeito, foi deputado federal pelo PT, saiu do PT, foi pro PSB, né? E nós criamos esse grupo cultural rutura. E eu era a principal liderança desse grupo, né? E esse grupo foi lindo, né? A gente fazia, provocava discussão, debate, mas a gente numa pegada cultural. Então nós organizamos uma semana, semana, semana de culturas de Nova Prata, né? Cara, a cidade parou assim. A gente fez 4 eixos, era: teatro, música, cinema e literatura. Então, sem dinheiro nenhum assim, né? A gente... Porto Alegre, grupo de cinema, então a gente descobriu lá que tinha um grupo de cinema chamado Humberto Mauro, né, que fazia cinema, tinha clube de cinema, a gente entrou em contacto com eles, então eles levaram o cinema para Nova Prata, né? Depois da exibição do filme, tinha debates e etecetera. A gente pegou uns escritores de Porto Alegre, né? Levou para Nova Prata. Lançamento do livro fala sobre literatura, música, teatro, grupos de teatro de Porto Alegre de Novo Hamburgo. Então, assim, a cidade parou. Era uma semana inteira, a cidade estava vivendo um clima cultural, assim, absurdo. Nas praças, a gente... aí vinha gente do né, do interior do interior, assim, né, escolas, né, e era o dia inteiro. Era debate de manhã, de tarde, de noite e era uma coisa muito legal, né? E isso criou um grupo de maior ainda em torno da gente, né? Para começar esse processo todo. Em 1977... e aí eu começo a ter uma pegada de teatro, porque eu fiz relação com os grupos de teatro, né, amizade, trocando algumas ideias e tal. E em 1977 eu vou para Porto Alegre, né? para me preparar para o vestibular, fazer o vestibular. E aí, quando eu saio, eu fico pensando de que era legal deixar o grupo alguém, então a gente articula de outras, outra moçada começar a ficar tocando o grupo cultural, né, o grupo ruptura e etecetera. E aí em Porto Alegre, eu... Eu vou me preparar para o vestibular. E eu acabo fazendo, entrando em uma escola de teatro, né?
P/1- Mas aí você estava com seus pais, para Porto Alegre você foi...
R - Fui. Morava com meus pais em Nova Prata e eu fui estudar em Porto Alegre e aí fui morar, dividi apartamento com uns amigos, né? Eu cheguei em Porto Alegre, fui morar, tinha uns amigos que moravam num apartamento. Na verdade, um apartamento não, era uma mulher que alugava um quarto, né, no apartamento dela, né? Alugava 2 quartos, né? Um ela tinha alugado para uma para uma menina e outro quarto ela tinha alugado para dois amigos meu que estavam lá, mas dava para ser mais um, né? Então, eu também fui para lá, né? Tinha 3 camas no quarto. E aí eu vou me preparar para o vestibular, só que tinha uma escola de teatro, e eu estava muito ligado no teatro, porque uma das pessoas que quando tinha no grupo cultural ruptura, né? Tinha um cara chamado Ricardo Leuzin, que morava em Porto Alegre, e o Ricardo era casado com uma mulher de Nova Prata. E o Ricardo chegou... ia todo final de semana para Nova Prata, e ele era um cara da cultura, assim, então ele viu que tinha uma moçada lidando com cultura. Ele começou a se aproximar da gente. Então, ele começou a ser a ponte nossa em Porto Alegre, para fazer os contatos com os grupos de teatro e tal. E eu fiquei muito amigo dele, assim, né? E ele escrevia. Escrevia música, escrevia teatro, né? Ele era um cara maravilhoso assim, né? E então eu comecei a me aproximar com essa coisa de teatro e tal. Aí, quando eu cheguei em Porto Alegre, assim, eu vou fazer uma escola de teatro. E tinha uma escola super boa em Porto Alegre, que eu acho que não existe mais, chamava-se Clube dos Flautistas, era uma escola de teatro. E eu fui lá e comecei a estudar, fazer teatro lá, esperando chegar o momento do vestibular também, porque eu ia fazer o vestibular. Porque eu não precisava fazer vestibular, era um era uma escola de teatro. E eu estava fazendo teatro... Um, eu estava alguns meses, uns 2 meses, aí o que que aconteceu? Aconteceu que um diretor importante de teatro de Porto Alegre, um produtor chamado Newton Negri. Ele estava com uma peça infantil, né, já em profissional e teve um problema com o ator. E aí ele procurou a escola e falou com o Sérgio (inaudível), que era um diretor importante de teatro, que era o professor de teatro, e disse: “olha, eu estou precisando de um ator assim, assim, assado. E o Sérgio (inaudível), disse: “ah, pega o Rogério, né? Ele está há pouco tempo aqui, mas eu acho que ele é um cara que tem esse perfil e tal”. E nunca vou esquecer, era em Porto Alegre à tarde, né? Frio para caramba, mas com sol. E ele diz o seguinte: olha, você quer conversar comigo? Tem um, né? Eu preciso substituir um ator, né?” E eu topo conversar e tal. “Então, então você vai lá no meu teatro, né? Porque a peça, o pessoal tá apresentando a peça numa cidade próxima daqui e eles devem chegar lá pelas 19/20 horas da noite, então vai pelas 18 horas e aí a gente conversa e aí você já conhece o pessoal. E aí eu fui para lá, né? Na rua Polônia, assim. E aí eu cheguei lá. Aí ele conversa: “ó, substituiu o cara e tal, levar”. Sete papéis o cara fazia dentro dessa peça. E eu não, tudo bem, eu estava superfeliz, né? De boa e tal, né? Bom e mais, e aí? Os ensaios, né? Como é que vai ser? Quando é que eu tenho que entrar? “Não, amanhã já tem apresentação, né? Não tem ensaio, tu vai, né? A gente faz esperando o pessoal chegar, a gente faz um ensaiozinho com você aqui, agora tu vai para casa, tenta decorar o máximo possível o texto e aí você vem pra amanhã, e vai aprendendo, fazendo, né?”. Cara, assim eu fiquei, mas eu nunca disse nada, nunca digo, não sabe? Eu entro, vai dar merda, sabe? Mas eu vou, né? Eu não recuo e aí eu fui, né? Aí o pessoal atrasou, sabe? Atrasou aquela coisa toda. Aí chegou todo mundo assim, um pessoal tudo muito estranho, né? E não teve tempo, sabe? Ninguém... ah, vamos lá e tal. Mas eu não entendia, não tenho, não tinha nem lido, né? Eu disse: “não, mas vamos fazer o seguinte, deixa eu ir para casa, tá? Que eu vou ler esse negócio e amanhã e tal”. Então tá amanhã tem que estar aqui às 6:30 da manhã que a kombi sai daqui, né? E aconteceu um negócio muito, muito estranho, assim: eu pego, vou para casa, e essa, e eu morava nessa nesse apartamento, no quarto, né? E era uma rua linda assim, fechada de árvores, né? Um puta prédio, um prédio bacana assim e tal. Que não tinha porteiro, nem eletrônico e nem porteiro não sei o que. Então, assim, tinha um vão grande, né? Aí eu cheguei em casa, peguei o busão e tal, cheguei lá. Aí eu cheguei em casa, eram umas 21h30/22h da noite. Vou chegar e vou ler, preciso ler esse negócio. Aí eu vou entrar, puta não tinha chave, tinha perdido a chave. E a rua as árvores fechavam a iluminação, ficava uma rua muito escura e eu não conseguia ler lá fora, eu não conseguia ler lá fora. Aí o que que vou fazer? Eu não conseguia ler lá fora, não conseguia entrar, aí assim, tem que esperar ver se alguém chega. Aí eu fiquei esperando, não sei quanto tempo, mas a noção que era uma eternidade, até chegar alguém. Quando chegou alguém, gente, eu tenho que estar 6 e meia lá. Eu não vou ler isso aqui, né? Aí eu fui dormir, né, para poder acordar. E eu acordei, mas eu acordei quando me dei conta eram 9 e meia da manhã, né? Cara eu pirei, assim, que merda tinha que estar 6 e meia lá e era longe para cacete, né? Sem dinheiro, né, não tinha pegar táxi, não tem, não existia isso, né? Aí eu peguei o primeiro ônibus até a Rodoviária, fui lá na Rodoviária. Eu sabia qual era a cidade, eu não sabia nem o que ia ser apresentador. Ah, o ônibus para São Sebastião do Caí, né? Ficava aí um cento e poucos quilómetros de Porto Alegre. “Ah, só sai depois do meio-dia”, puta merda, né? Aí eu fui para a estrada, pedi carona, pedi carona. E foi engraçado, peguei carona primeiro até um, né? Um lugar que chamava Scharlau, indo reto, vai para Novo Hamburgo, indo para cá vai para o lado de São Sebastião do Caí, eu parei aí. Aí tinha uma menina na parada de ônibus, assim, ela olhava para mim, eu achava que ela estava dando em cima de mim e tal, né? E eu pedindo carona e tal, peguei carona e fui embora, né? Aí eu chego em São Sebastião do Caí. E agora vou descobrir aonde, né? Aí começaram: “onde é que vai ter teatro hoje, onde é que vai ter teatro hoje?”. Então, tinha um cinema lá que ia ter teatro e eu fui lá para o cinema. Cheguei lá, não tinha ninguém. Aí eu disse, caralho, eu também era importante para essa peça, estão me esperando. Eu pensei: não existia celular, não existia nada, que é que eu vou fazer, né? Vou esperar aqui. E aí dito e feito, né? Chega meio-dia passado, assim, chega o pessoal, né? E eu lá esperando. E junto com o pessoal chega aquela menina que achava que está dando em cima de mim. Ela morava na, né? Em Novo Hamburgo, ela tinha combinado de esperar o pessoal aí para pegar eles. Muito engraçado. E aí eu fui para, né? Foi muito, foi um caos, né? Porque eu não tinha lido, não tinha visto nada e disse: “olha, relaxa, tá?”. Como eu fazia 7 papéis, eram 7 roupas, né? E aí assim: “ó, a gente fala quando e você entra, se entra e se faz de bobo, começa a concordar e a gente vai dando a tua fala”. E aí foi assim, foi a primeira a primeira apresentação. Foi um caos, né? Mas eu fiz, entrei e fiz etecetera. E fui... E outra coisa que me lembra muito, muito forte assim; gente, eu era um moleque, eu tinha 17 anos, né? E vinha do interior, né? Porto Alegre, me assustava, eu ficava impressionado com sirene quando passava sirene de polícia, de ambulância eu ficava assim, sabe? Então era uma. Eu tinha assim. Eu era um cara do interior mesmo, né? Então tudo me assustava, né? Me assustava não. Tudo era muito... me chamava muito a atenção. E aí na volta, né, do... Aí a gente volta para Porto Alegre, aí e aí a gente ia chegar e ia fazer um ensaio. Aí ia começar as coisas, porque no dia seguinte já tinha outra cidade para viajar, né? Aí eu chego na volta da cidade, né, para, para, para Porto Alegre, um frio do cão. Nós damos cobertor assim e tal. Todo mundo dentro da Kombi, de repente, uma mão na minha perna, né? Assim, alisando assim, e tinha a Daisy, que era uma menina do lado, e o Roberto do seu lado aqui. Aí eu vi, não era da Daisy, era do Roberto. Puta merda, né? Aí eu fiquei, né? Aí, puta merda (risos). Aí chega lá no, no... para mim, tudo isso era novo, né? Tudo isso era novo. Aí chega lá e disse, eu disse: “porra, Roberto, qual é a tua? Eu falei para ele assim, esse negócio de passar a mão na minha perna”, o cara: “desculpa, né? Espero que isso não estrague a nossa amizade”. “Ah, cara, a amizade, amizade é uma é uma nasce, não começa a encher o saco”, eu falei para ele. Então assim, mas foi esse o meu, meu começo no teatro. E foi muito legal, porque já era profissional. Eu estava em uma escola, fui para um teatro profissional, já tinha carteira assinada, já tinha não sei o que. Salário, nunca tive salário na minha vida e tal, né?
P/1- Até então você vivia para a grana do seu pai?
R - É com a grana do meu pai e tal, né? É... mas logo no teatro já comecei, né, na nessa, nessa coisa toda. Aí depois. Cara, não teve... eu acabei fazendo um contrato de um ano com essa peça de teatro. Aí ficou 4 meses, né? Aí vem uma megaprodução alemã de teatro e os cara me fizeram uma proposta pra eu trabalhar. E era um puta de um... Ia viajar ao Brasil inteiro, era teatro adulto, essa aí era teatro infantil, chamava, a infantil chamava: Locomoki Mili Pili, né? E essa outra peça de teatro é uma peça com 3 atores. Um ator era um puta de um ator, já tinha feito cinema, guerra dos pelados, revolução do Muckers e não sei o quê. A outra já tinha feito novela. O Maurício Távora, ele era de Curitiba. E ela já tinha feito novela, tinha estado de TV, era Elaine Falcão. Eu tinha 17/18 anos e o Maurício já tinha 60 e pouco naquela época, e Elaine por aí, alguma coisa assim, né? É hoje a minha idade, assim, eu na época: “putz, uns velhos, os velhão aí”. Mas aí foi muito legal, assim, foi uma mega de uma experiência, porque aí eu rompi o contrato e fui fazer... E o diretor era um alemão radicado na Argentina. Ele vinha de Buenos Aires para ensaiar toda a semana com a gente. E a estreia foi aqui em São Paulo, né? No teatro ali no bexiga, não lembro o nome do teatro agora. E depois foi para o Rio, foi para Salvador, foi a Belo Horizonte, né?
P/1- Como que eles te descobriram?
R - Ah, eu... Eu acho que eles estavam procurando ator, sempre tem olheiro nessas apresentações. A gente já tinha apresentado em em Porto Alegre a Locomoki Mili Pili fazia temporada no interior e depois ela apresentou no mega teatro, que é o teatro presidente de Porto Alegre, e lotava, assim, né? Geralmente era sexta, sábado e domingo e tal. Crítica, sempre saía crítica em jornal. Eu não lembro, né, disso, mas tinha crítica em jornal. E tinha as referências de diretores e tal. E eu tive, né? Alguém deve ter falado sobre isso, deve ter recomendado a chegar a mim, né? Não sei como. O Rad, porque assim eu, eu era de um grupo de teatro que era o grupo... que era do Neri. E tinha... esse grupo era do Ronald Rad, que era um outro grupo, que era o Teatro Novo, né? Teatro novo. Então o Rad que ficou de fazer os contatos com os atores em Porto Alegre e tal, né? Que o ator era só eu porque o um era do Rio o outro era de São Paulo. Mas eu não sei, eu acho que foi isso, né? Enfim, a peça foi um foi muito legal, eu ganhei um prêmio, ganhei um prêmio de melhor ator na naquele ano com essa peça chamada Linha de Montagem.
P/1- Você já tinha 18 anos?
R - Tinha 18 anos, eu acho, foi... e aí eu entro na faculdade, sabe? E aí é uma loucura.
P/1- E como é que foi pra você essa viagem no Brasil? É... que você estava conhecendo o Brasil também.
R - Total, total, né? E acho que São Paulo, né? Eu não conhecia, conheci, São...
P/1- Qual foi sua impressão?
R - Ah, era tudo tudo louco. Não sei. Eu lembro que eu almoçava todo dia no Chic... Como é que chama aquele ainda existe hoje na República? O chic chique, não?
P/1- Gato que ri?
R - Pode ser. Acho que é o gato que ri. Eu parava um era um hotel ali na no centro, né? E a gente ia para o teatro e... Ah, uma cidade, mas sei lá. Eu estava já no mundo, assim, no, no, no, já não me apavorava mais, né? Porto Alegre a sirene me chamava atenção. São Paulo... cara era o mundo, sabe? Mas eu já estava pilhado, né, pra apresentação, né? E foi muito lindo assim. A experiência. A crítica foi super boa, né? E no Rio de Janeiro teve algumas coisas muito, muito interessante, né? O Maurício Távora era um puta ator, já tinha sido premiado, ele era do corpo de baile, né, do teatro Guaíra, né? Só que ele era um cara assim, ele estava no momento da vida dele, meio de decadência, né? Ele bebia para caralho, sabe? Ele bebia muito. E a companheira dele, né, era diretor de teatro também. Então ela não. Ela estava com o trabalho dela em Curitiba e tal. Né? Então, quando a gente ensaiou 2 uns 3 meses em Porto Alegre, ela ficou com a gente em Porto Alegre, porque, para segurar ele, se não ele, puta, né? Aí foi superbom, né? Aí a gente estreou em São Paulo, ela veio para cá, foi ótimo e tal. Ela ficou o tempo que a gente ficou aqui em São Paulo, que não foi muito tempo. Eu acho que foi uns, não lembro se foi uns 10 dias, 15 dias de temporada. Uma temporada curta, não lembro disso. E daqui a gente foi para o Rio. E ela não foi para o Rio, aí foi um caos, né? Um... aí, o cara começou a beber e tal. E começou a... Teve uma situação muito, muito interessante. Assim, a peça, o cenário, era um cenário gigante, né? Era uma, era construída uma casa, tá, e tinha um avião em cima da casa, né?
P/1- Caiu ali.
R - Vocês me cortam, se... Tá bom aí. Então, o cenário é um cenário gigante. Tinha um avião em cima. Que era a história de um operário de linha de montagem. A peça era lindíssima, era a estreia mundial aqui no Brasil, né? Porque essa peça nunca tinha sido montada em nenhuma parte do mundo. Era uma coisa meio brechtiano. E esse cara era um operário em decadência, desempregado, totalmente desempregado. E ele tinha uma oficina de aeroplanos na casa dele, e ele ficava construindo aeroplano. E ele ficava sonhando que ele era um cara superimportante, campeão de... era, era de aviação e pau a tá. E as viagens dele, né? E a mulher dele um inferno, né? Com ele, a relação familiar. E o filho, eu era o papel de filho, né, era a negação daquilo, né? Que queria ser a... queria me sindicalizar, queria, sabe? Aquela coisa toda, então é a história da peça era, era, era um pouco isso. E no final da peça, né, num momento de crise, ele derruba o avião e o avião cai em cima da da casa. E é muito, era muito louco, assim, porque as asas eram as asas de avião. Era o plano de madeira, assim, grande, e ela é toda amarrada com elástico. Então as asas vão para cima do público, assim, e voltam, sabe? Então, assim... Aí tinha uma cena assim... Ah, eu comecei a contar isso porque o cenário era muito grande, então o cenário ia de caminhão para todas as cidades. Então a gente ia de avião e chegava e esperava quase uma semana para o para o cenário chegar e ser montado, para a gente começar a trabalha. Fazer, fazer uns 2/3 dias de ensaio e depois estreava. Então, a gente chegava no lugar, ficava uma semana coçando, né? E chegou no Rio de Janeiro, né? Puta verão aquela coisa toda: para a praia, aquela coisa toda. E eu italiano, branco para cacete, um vermelhão daqueles horroroso, né? E aí no dia da estreia, né, no dia da estreia aconteceu várias coisas, foi um horror, assim. Aí a parte mais dramática da peça é o momento de confronto entre o pai e o filho, tá, que o pai enlouquecido começa a dizer assim: “você roubou cinco reais”, né? Não era reais na época. “Você roubou cinco reais, né? Me devolve”. E eu disse que eu não roubei, né? E aí ele ficou... O meu pai começa a me bater, né? Começa a me bater e vai me arrancando a roupa e me humilhando, assim: “vai tira a roupa!”, e me bate, né? E eu fico completamente pelado, né? Numa humilhação tremenda. E não era para rir, era uma coisa para ser, era uma coisa humilhante aquilo, sabe, dramática mesmo, né? E aí quando ficou completamente pelado naquele, né? Hum, né? Um engraçadinho lá grita assim: “Aí, camarão!”. Eu tava todo vermelho, aí fica um riso total, uma merda, né? E numa dessas aí também no Rio, né? Logo depois, o Maurício entra bêbado, né? E os tapas era tudo super bem ensaiado, né? Ele vem com a mão violenta assim e dá e, tem um lance, né, que aquilo para aqui, né? A minha mãe do lado da um berro e grita, e diz: “não!”. E aí quando ela fala aqui, a palma é a dela, né, e eu jogo a cabeça, então era tudo super ensaiado, né? Ah, meu... ele bêbado, ele veio com tudo, sabe, né? Me acertou em cheio assim. Aí eu também, né? Cheguei, peguei ele aqui assim: “seu filho da puta, se você me acertar mais uma vez um tapa desse eu te mato!”. Não tava no script isso, né? Mas fiz de novo aquela bobagem, desculpa. Bom aí... mas foi assim, foi uma mega experiência.
P/1- Você presta vestibular depois ou você já tinha prestado?
R - Eu não lembro agora. Foi tudo... porque acontece um monte de coisa nesse, nesse período, tá?
P/1- O que mais que aconteceu?
R - Não porque assim, ó: primeiro eu faço vestibular, né?
P/1- Pra o que?
R - Pra história.
P/1- Você já queria fazer isso?
R - Aí eu não sabia o que eu queria, sabe? Toda minha família me levava para o direito, né? E aí, como...
P/1- Tinha essa expectativa?
R - Deles?
P/1- De seus pais que você seguisse alguma carreira.
R - Ah, tinha de né? E eles não falavam assim, mas, assim, sempre, né? Eu tinha advogados na família, tinha dentistas também, então tinha uma coisa que puxavam sempre para, né? E é evidente que toda, né, toda a orientação eu ia completamente o contrário, né? Então, eu nunca soube direito o que eu queria fazer, então eu fui muito na onda do meu professor, né, da história, que era legal. Eu começo a entrar em um lance de política, né? E acho que história dialogava com o que eu queria e eu fiz faculdade de história. Entrei, né? Fiz vestibular para história. Entrei, né? Foi uma coisa ridícula, porque eu não estudei absolutamente nada, né? E o que eu em humanas eu tentava fazer, né, em exatas eu não sabia nada. Eu pegava, escolhia uma letra e tal, né? E tive sorte. Eu lembro que de matemática, um absurdo, a média foi 13 e eu tinha acertado 14 em... na letra A, entendeu? Todas as outras tinham dado 7/8/6, né? E eu peguei a, escolhi a letra que tinha dado 14, enfim. E aí entrei na faculdade. Cara, e aí não dava, né? Porque eu fazia faculdade e trabalhava, viajava e vivia viajando. E na primeira semestre você é obrigado a fazer todas as disciplinas, não pode escolher 2/3 disciplinas. E... mas eu, eu... Eu sempre me senti muito, muito acolhido assim pelos professores. Nossa, eles gostavam demais de mim, sabe? Então, puta, me ajudavam, fazia prova fora de hora, fazia não sei o quê, né? Deve ter me passado também, sabe? Mas assim eu tentava conciliar, né? E aí, enfim, eu faço depois a Linha de Montagem, eu faço outra peça, né, de teatro, que é uma peça infantil também. Um projeto que eu achava que era mais legal e tal. E eu começo a cansar, sabe? Estudar, né? O ambiente do teatro é muito existencial, me incomodava aquilo, sabe? Ah... sabe? Era todo um, todo mundo tinha um sofrimento para, para expor, sabe? E aquilo tava incomodando, sabe? Aí eu disse: “puta, eu acho que eu vou parar para terminar a faculdade, né?”. Porque eu tava dando conta, eu estava fazendo junto, né? E eu estava fazendo 12 disciplinas, 14 disciplinas, sabe? E mau para caralho. Não sabia nada, né? E aí terminou essa peça, eu resolvi parar. Quase assim, porque logo depois veio um convite para eu fazer Marat/Sade, né? Com o Nestor, que era um que era um diretor argentino, mas que morava em Porto Alegre, que eu gostava e tal. Mas eu fiquei assim e tal. Mas aí eu começo a voltar. Só que aí eu volto para a faculdade é movimento estudantil, né? Porque logo no início da faculdade eu já tava me ligando, eu já tinha entrado para o diretor acadêmico. Então foi o diretório acadêmico, teatro, faculdade. Mas aí eu não conseguia militar, sabe? Mas aí eu, quando eu vou para a faculdade, aí eu entro de cabeça no movimento estudantil. Aí eu disputo diretório acadêmico, a gente ganha, que era o Casta.
P/1- Era de que, de qual tendência?
R - De que eu era? Eu não era de nada aí. Eu vou virar a ser uma tendência chamado Aroeira, tá? Que tinha ligações com ALN, né? Porque algumas pessoas que era que fundaram Aroeira, que era uma tendência estudantil em Porto Alegre só, eram pessoas que eram, tinham relações com o frei Beto, com o Paulo Vannuchi, com Paulo de Tarso Venceslau, com esses caras que eram da ALN, né? Tanto é que quando a gente que... eu tô no Aroeira, eu não sabia dessas relações. Aí eu disse: “bom, esses caras estão operando para virar, né? Né? Quadro da ALN, né?”, aquela coisa. A gente tinha essa desconfiança toda. Mas isso só vai se dar um pouco depois, porque quando eu entro agora, né, eu não, não era de tendência. A gente era um grupo de estudantes que já tinha esse pessoal, que tinha cristão, tinha de tudo, porque os nossos opositores é MR-8, o 8 tava no diretório académico e o 8 tinha acabado com o movimento estudantil, não fazia greve. E tinha um negócio: Porto Alegre tinha um dos festival de música mais importantes, né, do, era o mais importante do Rio Grande do Sul, mas com repercussão nacional e tal que era o MUSIPUC, né? Que era incrível assim, né? E o MUSIPUC tinha parado fazia 8 anos que não tinha MUSIPUC. Era 8 anos que MR-8 tinha... engraçado, nunca tinha feito associação, 8 anos que não tinha músico, porque eles acabaram com o MUSIPUC. Aí a gente disputou o diretório acadêmico, e a plataforma tinha, além da defesa da educação, pá, pá, pá e tal, era trazer o MUSIPUC de volta, né? E aí a gente ganha o diretório, né? E eu entro com tudo. Puta mais uma vez, né? A faculdade segundo plano, porque eu entro com tudo no diretório acadêmico. E trazer o MUSIPUC. A gente reativa o MUSIPUC. E MUSIPUC, ele vai ser a... o dia que ele vai ser o festival mesmo, e que era incrível, assim, a gente pegou um jurado fodido de primeira, sabe, né? No mundo da música, da cultura de Porto Alegre e tal. A gente faz uma puta divulgação, eu vou na TV, né? Eles ajudam a divulgar nas rádios. Então reacende: o MUSIPUC tá de volta, e aquela coisa toda. E eu nunca vou esquecer, cara, que foi um absurdo, assim, tinha, teve 340 ou 370 músicas inscritas, né? Um puta... foi um negócio ferrado, né? Aí eu disse: “puta, como é que a gente vai fazer agora, né? Nós vamos pegar a gente”. A gente escolheu uns caras da, da, da música, do teatro, a gente e da cultura que eles não têm tempo para ficar ouvindo 370 músicas, né? Aí a gente, sei lá, vamos fazer o seguinte, né? Vamos pegar, compraram, né, um garrafão de vinho, foram lá para o diretório acadêmico e vamos ouvir, e vamos selecionando e vamos selecionar 70. Então a gente fez uma pré-seleção, né? E teve uma coisa muito legal, muito legal que uma das músicas era... muita música de protesto. Era música de protesto direto, né, em todos os ritmos que se possa imaginar, né? E de repente, ouço uma música que era um blue. “Cara, essa música é boa demais. Essa música vai ganhar, essa música tem que ganhar!”, eu disse, né? E o nome da música era “Para Viajar no Cosmos não é preciso gasolina”, né, nem Lisboa, né? E aí? E a? Aí o que acontece: eu não lembro agora se o show era no, no, no teatro da reitoria. Puta, 1000 pessoas! Lotava. Rádio, TV, era um negócio muito legal, assim. E ia ser, não lembro se ia ser dia 20 de novembro ou 12 de dezembro. Não lembro, tá? Mas o dia 8 de novembro, né? Eu vou visitar minha família no final de semana porque tava maior pauleira, né? Eu vou visitar minha família em Nova Prata e no sábado. E meu irmão tinha uma moto e eu peguei uma moto, fui passear depois do meio-dia e eu fui atropelado por um caminhão, né? E me machuquei muito assim, né? Fiquei, né? Fiquei praticamente não voltei para Porto Alegre aquele ano mais, né? E? E esse acidente mudou minha vida também, por um, por outros negócios.
P/1- Que que aconteceu no acidente? Qual foi a sequela?
R - Ah, eu fiquei assim. Primeiro assim, né? Me acidentei em uma cidade do interior, eu quebrei a perna em 17 partes, né? Eu tive fratura cominutiva, exposta, na da tíbia, do perónio, do fémur, né? E eles queriam amputar, meu irmão que não deixou, aquela coisa toda. Só que no interior, assim, os caras são muito ruim, né? Então os caras me engessaram, eu fiquei três meses e meio deitado na cama, né? Sem me mexer. E o cara ainda diz assim: “ó. quanto menos você se mexer, mais rápido vai ser a sua recuperação”. E eu sou muito, né, cu de ferro para essas coisas. Os caras mandam fazer um negócio que é que é que é para cumprir aquele objetivo, eu cumpro, né cara? Eu fiquei quieto na cama, não mexia, eu não fazia contração muscular para melhorar logo, sabe? Né? Eu aprendi a me espreguiçar, né, relaxando só essa perna. Eu me espreguiçava, quando se preguiça você faz (gesto), né? E eu espreguiçava com essa perna relaxada, porque que eu não queria mexer. Aí a minha perna ela ficou torta, teve curtamente do tendão de Aquiles, e eu fiquei todo, né? Eu estava todo. Engessado aqui e aqui na perna, né? Então foi assim, 3 meses brutais. Eu estava falando, acabei falando do acidente, porque mesmo?
P/1- E aí você ficou um ano em Porto Alegre, foi no... Porto Alegre, não no festival da música.
R - Ah, é! E aí, o que aconteceu é que foi muito legal, porque eu assisti, eu vi pelo rádio o MUSIPUC, né? E o Nei Lisboa ganhou, ganhou a música que ela ganhou, né? E teve ele ficou empatado com uma, teve um protesto, aquela coisa toda. E agora, recentemente, eu... Me convidaram para participar de uma entrevista com Nei Lisboa, né? E o Nei Lisboa, ele é irmão do Luiz Eurico Tejera Lisbôa, que foi assassinado pela ditadura, que era casado com a Suzana Lisboa, né? É. E aí, eu contei para o Nei, disse: “pô, Nei eu tenho uma história na sua vida, né? Você surge para a música, e hoje eu Nei Lisboa, para mim, é o cara mais incrível da música no Rio Grande do Sul, né? Rio Grande do Sul só fica lá porque os caras não saem de lá mesmo, né? Os Almôndegas que também saíram do MUSIPUC, né? E (inaudível), né? Eles saíram porque foram para o Rio aquela coisa toda, mas se não, fica lá. Mas é isso, né?
P/1- Esse período que você ficou com a perna, assim você ficou com medo? Que que cê sentia? Você achava que seria essa ideia essa?
R - Achava, eu nunca tive nenhum tipo de, de medo que eu não ia sair dessa, né? E agora, foi um cavalo de pau na minha vida, né? Tem uma associação que eu faço na minha vida em relação a isso, quando eu não tinha sofrido. Não. Isso foi depois do acidente, é outra história, mas vou contar agora, porque eu não esqueço. Eu tava... na época depois eu volto para a questão do movimento estudantil de novo. Eu acho que foi antes, eu não lembro, não importa. Cara, eu tava dormindo 3 horas por dia, né? Eu ficava até às 3:00 no diretório, eu voltava pra casa às 6:30 da manhã, eu já tava indo pra pra faculdade, pra PUC, aula, prova, diretório, militância, greve, né? Então, assim, eu estava pirando assim, né? E um dia eu cheguei em casa de madrugada. E eram 7 da manhã, eu já tava indo para o ponto de ônibus para ir para PUC e, cara, eu tava assim, cara, eu não vou aguentar, né? E eu tava indo assim no frio, aquela coisa, assim. Aí Iá, eu, bem na frente do meu prédio, quando eu saio, tem um muro pichado. Bem grande assim. E eu vou lendo tudo correndo, né? E aí leio, termino de lê, eu paro assim, e li de novo, e tava escrito assim: “Somos tudo”, né? “Somos tudo que existe e a gente faz o que pode”, né? Aí eu parei aquilo, aí eu voltei e fui dormir, sabe? E aí eu disse: “porra, meu, calma, sabe?”, né? Você é... o mundo não se, né? Não se reduz, não se resume a você. E o acidente eu faço sempre uma relação com isso, porque o acidente me dá um cavalo de pau na vida. Eu começo a ter uma relação diferente com meus pais, né? Mudou completamente. Eu tinha uma relação muito arrogante, muito, muito, muito adolescente, muito jovem, sabe? De negação, de enfrentamento. Não existia briga não, e tal. Meus irmãos, né? Era pau, né? Porque nesse período eu já começo estar ajudando a fundar PT também, né? E aí, né? Tem um tudo. Fundar o PT. Eu já começo na militância fundar PT na minha cidade, em Nova Prata, eu morava em Porto Alegre, mas estudava em Nova Prata, né?
P/1- Deixa eu só voltar um pouquinho nesse período. É... você tinha religião, tinha algum tipo de ou fé, alguma coisa que você teve essa formação? Não.
R - Não, eu tinha. Eu amadureço hoje por uma coisa um pouco diferente, mas eu me sentia... eu me sentia ateu, eu dizia que era ateu. Não, né? Não tinha uma coisa... era de negação, mesmo, da religiosidade, de uma forma muito preconceituosa. Muito... né? Ponto, né? Então. E embora eu tenha feito aquele treinamento de liderança cristã e tal, aquilo me levou a, inclusive, a ter uma ideia mais que eu não tinha nada a ver com, né? Com a igreja católica, né? Com padre. Blá-blá-blá. E depois eu descubro que tem uns padres também tinham uma luta política, tinham gente muito interessante, etecetera, mas nunca mais despertou uma religiosidade. Religiosidade. Eu me sinto hoje um agnóstico assim, né? Não consigo discutir, né? Respeito tudo, todos, né? Eu só não aguento, sabe? Fanatismo... essa coisa exagerada em todas as religiões, seja ela evangélica, católica, católica, de matriz africana, judaica, quando tem um, sabe? Traz uma coisa que não me faz bem, né? Mas a fé? Se o cara acredita, tomara que acredite. Eu sinto falta de acreditar em alguma coisa. Eu não consigo imaginar o que vai acontecer da vida. Não consigo imaginar outra dimensão, sabe? Né? Eu gostaria. Até hoje estou, né, talvez pela minha idade, eu gostaria de buscar um, né..., mas eu sei que isso é uma coisa muito íntima, né, que não, não passa por um processo de discussão, de construção. É uma coisa que vem, sei lá, né?
P/1- Aí voltando lá, você já estava começando a fundar o PT. Como que entra o PT na sua vida, assim, para você chegar a ponto de levar a fundação?
R - Então, eu tava na... o grupo que eu começo a me articular, né, no movimento estudantil, é o Aroeira, né? E o Aroeira, assim, era a gente que estava na faculdade, mas alguns que já tinham saído. E muito jornalista, pessoal que era do (inaudível) Jornal, né? E a gente se identificava como anti-trotskista, né? Então, assim, os nossos adversários eram os trotskistas nas disputas políticas e etecetera. E esse... os trotskistas foram em peso para o PT. Então, o Aroeira, né, começou a ter uma linha de discussão de que não era o PT, né? O PT era um partido, né, de que tinha desconfiança ideológica, né? Ele era... o Lula, era um cara que tinha que se pensar melhor, conhecer melhor, né, porque tinha um discurso muito conservador e etecetera. Então, o Aroeira... e a principal expressão do Aroeira, do nosso grupo, a liderança nossa, era o Laerte, né? Laerte, que tinha sido preso com o Vanuc aqui, ficou 5 anos na prisão... foi preso com 14 anos, né? Ficou 5 anos preso. E é uma figura que até hoje o meu, meu irmão assim, né? Então, eles vinham com essa. Essa visão, né? Não PT, tavam mais para uma linha de apoio aos, aos socialistas do MDB. E a gente, quando digo a gente era o pessoal de Nova Prata, que eram 4 pessoas que estavam no Aroeira, 3 pessoas que estavam na Aroeira, né, que eram de Nova Prata, né? Que era o Túlio, Tadeu e eu, né? E a gente assim: ó, olha, eu acho que é o PT, né? O Tadeu, especialmente, vinha com uma convicção, né: “o PT porque não sei o que babá e tal”. E a gente não rompe com Aroeira, mas desobedece a orientação e funda... começa a fundar o PT em Nova Prata, né? E bora, né? E logo depois, por conta disso, o Aroeira faz uma discussão interna e assume que é o PT o partido que tinha que militar aquela coisa toda, né? Então a gente começa um processo de construção do PT. Naqueles moldes mais incríveis e bonitos, que deu origem ao PT: núcleos de base, a gente começou a visitar a colônia trabalhadores rurais, né? Imagina Nova Prata só tinha esse tamanho (gesto). Só tinha uma fábrica. A gente ia lá começar a puxar o operário, tinha que, tinha que ser operário, tinha que ter camponês, tinha que ter operário, né? Porque nós era tudo pequeno burguês, tudo era classe média, entende? Então a gente ia, né? E foi assim nascendo. E começamos a organizar o PT em Nova Prata, né? E o Tadeu, logo depois se forma, e volta para Nova Prata e preside, ele é muito organizado aquela coisa, o pai dele era secretário da, da prefeitura, é tudo organizado, aquela coisa, e aí ele começa a organizar o PT com reuniões semanais, núcleos e escambau. E o PT de Nova Prata era uma referência de organização nos PT no Rio Grande do Sul, né? Mas a gente só tinha direito a duas vagas no diretório estadual, né? E então foi isso... Na primeira eleição de 82, né? Eu fui candidato a vereador, né? Então teve 2 candidatos a vereadores pelo PT, né? Um que era um bancário, que morava lá, e eu né que que morava em Porto Alegre e ao final de semana fazia campanha, né? E o Tadeu foi candidato a prefeito, né? E, enfim, a gente foi lá... o meu primeiro voto, o meu primeiro voto foi em mim (risos), digo, que eu tinha 18 anos, né? Quando... foi o primeiro voto, não sei se eu tinha 18 anos, 82 não, eu acho que eu tinha mais, mas foi a primeira vez que eu tinha votado, né? Então foi, foi isso, né?
P/1- E aí você, você, você tem essa experiência como vereador, e aí...
R - Eu fui candidato, não fui eu, não fui eleito.
P/1- Como candidato... você tinha uma coisa assim na sua cabeça? Eu quero isso é, é, almejava ou sair de Porto Alegre, de Nova Prata, de ir para outros horizontes.
R - Rosana, assim, ó nesse período. Aí assim, ó, acontece muita coisa junto ao mesmo tempo: o acidente me dá uma outra dimensão, que vai ser uma outra relação, a minha mãe começa a ter outra relação com a política, sabe? Ela sempre não gostava de me meter na política. E aí, como eu fiquei 3 meses e meio em casa, a minha mãe chamava as reuniões na minha casa. Então o PT era... então, aquelas reuniões começavam a ser no meu quarto, né? Então enchia de gente no meu quarto e tal e a minha mãe ficava lá toda hora fazendo café, servindo, acompanhando. E a minha mãe foi, se filiou no PT, né? Ela foi... eu até tive desconfiança, mas ela, ainda em vida, né, ela foi homenageada com uma afiliada número um do PT, eu acho que ela não era o número um, acho que fizeram uma forçação de barra aí para homenagear ela, né? Porque... Mas, enfim, ela começou ter outra. A minha mãe virou fanática do PT, assim, de Bandeira, ela botava Bandeira. O Olívio Dutra era governador e ia para, disse que ia para Nova Prata, ela queria que o Olívio Dutra parasse na casa dela, preparou o quarto, tudo direito, depois ele não foi, né, acabou desistindo de ir para Nova Prata. Mas, assim, ela era muito militante dentro de casa, ela nunca ia a reunião, aquela coisa toda e tal, né? Mas muito, muito petista. E os meus irmãos, que sempre, todos eles contra o PT, eles fazem o movimento. Hoje eles são todos, né? Puta lulista assim, aquela coisa toda, de briga, sabe? Então, só que então tem essa virada na minha casa que é muito legal. Eu começo a ter um outro olhar para os meus pais.
P/1- E teu pai?
R - Então, o meu pai... acontece com o meu acidente uma loucura assim, sabe? Meu pai, era muito, ele era engraçado, ele era um cara quieto, mas muito brincalhão, né? E as pessoas gostavam muito dele. Então, assim, eu lembro que às vezes eu viajava com meu pai para a colônia, para o interior, quando ele chegava era uma festa. Chegou. Ele chamava o meu pai de Carlim, meu pai era Carlos, né? E chegava era o Carlim, chegou e tal e piada, brincadeira. Ele gostava de, né, uma passarinhada, eles fazem, né, super ecológica, assim, hoje, né? Comer passarinhada (risos). Então, eu ia, sabe, aquela coisa, com ele. Então ele era uma pessoa muito querida assim, né? Então ele é. Ele agregava assim, mas ele era quieto nessa coisa da política, não se metia. Em casa ele era uma pessoa quieta, né? E aí, o que é que aconteceu, quando eu me acidentei, né? A lembrança que eu tenho é a seguinte: eu, eu fiquei, eu tive uma cirurgia de... eu não lembro se... eu acho que foi 7 horas, né, de cirurgia para recompor tudo. Eu tava muito mal e todo quebrado. E o meu pai pegou chinelo e ficou na porta do centro cirúrgico esperando ele sair para me dar o chinelo, né? Então as pessoas disseram: “alguma coisa... parece que ele relaxou”. Ele já devia estar com algum problema, alguma coisa, né? Mas que ele deu uma relaxada aí. E a partir daí, meu pai começou a ter esclerose, né? E era incrível assim, né, Ele passava o dia entre o estado de lucidez total e um estado de, né? Desligamento total, falaram, não ligava, se falava com ele, não ligava, né? E de repente ele falava com você, como a gente está falando, né? E aí foi, né? Então, nesse período o meu pai era, era uma pessoa muito desligada, né? Então, quando eu começo a ter essa, essa, essa história toda, né? E eu brinco, assim, né de que eu fui o candidato do PT, embora mesmo que eu morasse em Nova Prata, eu não, não morasse em Nova Prata, eu fui o candidato do PT mais votado para vereador, sem o voto do meu pai, porque o meu pai naquela época não era, não era urna eletrónica, tinha que escrever, né? E ele, escreveu, Rogério para governador, né? E eles anularam o voto, né? E aí. Então, assim, né? Só que aí em Porto Alegre, com o movimento estudantil, fundação do PT, etecetera. E aí acontece uma coisa muito importante na minha vida, que eu acho que dá um rumo muito do que ia ser a partir daí, né? Primeiro, assim, eu estava em Nova Prata nas férias e tinha duas meninas de Porto Alegre passando as férias em Nova Prata e o Tadeu e eu fomos com elas para o cinema, né? É, eu não sei, eu acho que isso era 1977 por aí, tá? E a gente foi assistir um filme que é chamava “O Julgamento de Billy Jack”, né? Eu pirei com o filme, pirei com o filme. Era sobre a questão indígena nos Estados Unidos, né? E Jean (inaudível), música do Jean (inaudível), aquela coisa toda. Mas pirei, assim, né? E a gente saiu do cinema com as com as duas meninas e tal, a gente foi pro clube, né, tomar um café e conversar e tal, sobre o filme. E coincidiu que aquela naqueles dias, os índios Kaingang e Nonoai tinham expulsado os colonos da reserva indígena, que tá, que os colonos moravam lá 20 anos, né? E estavam uma maior crise, né? E tal. E eu disse para o Tadeu, Tadeu, vamos para Nonoai amanhã? Vamos para a estrada pegar carona, vamos conhecer, ver como é que está essa questão lá e tal. E aí a gente foi, a gente tinha Esperança que as meninas topavam ir com a gente, não toparam, né? E nós fomos para Nonoai e foi muito legal, assim, tirei uma, eu gostava muito de fotografia, né? Eu sempre estava com uma máquina tirando fotografia, né? Eu seria um grande fotógrafo hoje, eu acho, né, mas nunca investi, sempre estava com uma máquina, né? Eu lembro que tirei umas fotos muito legais assim, né? E a gente foi para a reserva indígena, a gente conversava com com os indígenas, aquela coisa toda, entendendo e papapa e tal, e coincidentemente, né o João Pedro Stédile tinha voltado do México, tá? E o João Pedro era funcionário da Secretaria da agricultura e como funcionário da Secretaria de agricultura, ele vai para a região, tá? E diz pros caras, pros colonos: “espera aí, espera aí, não vão embora não, sabe? Não vamos brigar com os índios não, eles têm direito aquela coisa toda, né? Tem Terra para todo mundo. Vamos começar se organizar e exigir reforma agrária, aquela coisa toda”. Então o João Pedro vai nessa pegada com os caras e começa a organizar os caras que foram expulsos e nasce logo em seguida o acampamento do encruzilhado natalino. Cheguei a emocionar. E aí eu estou na faculdade, né? Eu estou no diretório acadêmico. Não sei porquê... por isso que eu te falei que...
P/1- Ele nasce exatamente desse momento que tem os colonos e os Kaingang lá?
R - É na. Na verdade, é, é, vem a partir desses, esses colonos que tinham sido expulsos, né? O João Pedro começa a fazer trabalho com ele, de que: “olha, tem terra, dá para tentar. Tem duas fazendas aqui, que é a makali e a brilhante que são improdutivas, né? Dá para começar a reivindicar essas áreas? Não, não adianta a gente se dispersar, tem que se unir e começar...”. Então, e o João Pedro, ele era funcionário, ele falava com alguém da Secretaria da agricultura, embora o João Pedro já tava assessorando CPT também, né? Então, começa um movimento, um movimento que tem origem com esses colonos que foram expulso da, da reserva indígena Kaingang, né? Em Nonoai. Ai, e aí, e a Encruzilhada natalino ficava em Ronda Alta, que é a cidade vizinha a Nonoai. E aí os colonos são tudo... aí eles perderam tudo, porque eles foram expulsos, eles tinham a casa deles, as plantações deles, maquinário, né? Então, aí começou o quê? A se organizar um grupo de apoio para dar comida para os caras, a roupa, solidariedade, etecetera, né? E eu estava no diretório acadêmico, então nós criamos um comitê de apoio aos acampados de Encruzilhada Natalino. A gente conhecia o João Pedro, porque era irmão do Zé Luís, que é lá da ruptura, o João Pedro é lá da região de Nova Prata, né? Eu já tinha, né, quando o João Pedro voltou já tinha ido na casa do João Pedro, né? E a gente começa a organizar esse comité de apoio, né? E esse comité de apoio é um histórico, porque ele dá força, né? O que que a gente fazia, né? Além de apoio a logístico e etecetera, nós começamos a organizar, articular politicamente, né, o Brasil em nível Internacional para visitarem os acampados a Encruzilhada Natalino para resistirem. Puta então começou a vir padres, cineasta, artista, da Alemanha, da França, de São Paulo, do Rio, padre de todo o Brasil, padre de todo o mundo, bispo. Aí a gente fazia ato, fazia não sei o quê. E aí que vem o Sebastião Curió, é enviado pela pelo governo para ir para Encruzilhado Natalino para desmanchar o acampamento, porque o cara já tinha acabado com a guerrilha do Araguaia, já tinha nesse negócio. E o Sebastião Curió foi lá com um puta esquema de inteligência de repressão e se enfrentou isso. E ele saiu derrotado de lá, a primeira vez que o Curió saiu derrotado de um, né, de um, de uma situação em que ele vai para desmontar, né? E o acampamento começou a crescer, a crescer, a crescer cada vez mais, né? E esse acampamento, inclusive, a Natalino, a partir daí, o que começa a acontecer, o trabalho do João Pedro, o João Pedro começa organizar sem Terra lá da Fronteira, de não sei o quê, Santa Catarina, Paraná. Aí cria um Comité de Sem Terra da região sul, né? Encontros da região Sem Terra da... e então eu tenho uma ligação muito forte. Daí então, em 1980, tá?
P/1- Esse é o primeiro acampamento.
R - É. Claro, isso a partir depois da, da, da, da ditadura, porque na época do Brizola tinha o master e tal, né? É. Que aproveitou muito a experiência de que era de lá e tal. Aí o que que acontece? Também existia o Zé Luís, o irmão do João Pedro, né, que fazia economia, né? Também queria fazer trabalho operário, né? Então o Zé Luís foi trabalhar numa metalúrgica e começou a disputar um sindicato dos metalúrgicos de Porto Alegre, que era pelego há 500 anos, né? Então a gente começou a organizar a oposição dos metalúrgicos. E conhecendo outras pessoas, também tinha um trabalho do Aroeira em algumas comunidades de base, né? Em periferia ou escambau. Aí nasce com uma ideia do João Pedro: vamos organizar uma organização, uma ONG que vai dar estrutura para dar todo apoio para esses, né? Porque o João Pedro sempre teve um certo sectarismo, também, né? Ah, tem o grupo lá da Fase, mas o pessoal é trotskista, tem não sei o que, mas o pessoal é muito igrejeiro. “Não, vamos fazer uma coisa nossa, né?” Eu não quero ficar discutir, perder tempo com discussão, né? Então, a gente reuniu um grupo de pessoas que tavam lá apoiando os metalúrgicos, comunidade de base, né? Sem Terra. E ai começa a questão do movimento sindical, rural também, né? E aí a gente cria uma organização chamada o CAMP, que é Centro de Assessoria Multiprofissional. Era Para Ser movimento popular, mas o multiprofissional era para despistar, não dá aquela coisa toda. É que nem o cara não chama Vladimir, chamar Fladimir, né, pra dize (risos)... Bom a gente cria o CAMP, que foi, né? O suporte logístico e político que deu origem ao MST, ao, ao MAB, Movimento Atingido por Barragem, que na época era CRAV que era Comissão Regional de Atingidos por Barragem, que era só Rio Grande do Sul e Santa Catarina, né? E movimento sindical, e tal. E dentro do CAMP, eu sou uma das primeiras pessoas profissionalizadas, assalariadas. Criamos o CAMP, fomos atrás de dinheiro. Aí selecionamos quem vai trabalhar lá. Eu. Né? Me botaram pra ser uma das pessoas a trabalhar lá. E na organização eu vou na pegada de acompanhar o sindicalismo rural, porque lá tinha quem trabalhava com a questão urbana. Sabe quem trabalha com o MST? Quem trabalha com, né, o? Eu vou trabalhar com sindicalismo rural. E o nosso plano era o seguinte, o sindicalismo rural no Rio Grande do Sul, na região sul, ela era, assim, 98% de gente que pelega, né, que era gente comprometida com, com a estrutura sindical, com o governo, que era da ditadura aí, né? O final da ditadura assim. E aí, a gente, nosso, a nossa meta era organizar oposições sindicais para derrubar isso, né? Então nós começamos a construir isso e aí criamos, né no CAMP, né? A primeiro foi a comissão sindical do alto Uruguai. Nós escolhemos a região do alto Uruguai como a região mais importante do estado, para municípios pequenos, muitos sindicatos, lutam, Sem Terra forte lá e tal, para a gente começar a criar oposições sindicais. E começamos a criar posições sindicais para ganhar as eleições e criar um movimento sindical, que foi muito importante para a construção da CUT na sequência. Na sequência também, né? E aí, nessa construção da comissão sindical, começou a ter o sindicato de Santa Catarina, porque o alto Uruguai, né? É o norte do Rio Grande do Sul, mas é o oeste de Santa Catarina. Então nós começamos a fazer em Santa Catarina e é um sudoeste do Paraná, então criamos articulação sindical da região sul, já trazendo o Mato Grosso do Sul, São Paulo, Santa Catarina, né, Paraná e Rio Grande do Sul fazendo esse trabalho de ganhar oposições sindicais. É um negócio incrível, assim, o João Pedro é um gênio, ele é um cara fora da curva. Eu lembro que... a gente foi para organizar uma oposição sindical no sindicato, numa cidade chamada casca, né? Eu tava falando assim, ó, o João Pedro é um cara bem fora da curva, assim, ele, eu não sabia como era, como é que a gente vai organizar, né, uma oposição sindical? O pessoal não conhece a gente, a gente de fora, né? Puta, a minha cabeça dizia, ó, chega lá, começa... claro que ele já tinha um contacto e tal. Não, tranquilo, tranquilo, a gente vai sair de lá hoje, imagina, uma primeira reunião que as pessoas não sabiam nem o que é que se tratava direito, ele queria sair de lá com a chapa formada, com o material pronto, tudo. Cara, como é que você vai fazer isso, né? Então ele chegava, né, e falava sobre a questão do Brasil, né, a questão sindical, a importância que tem, que como eles estão se ralando, se ferrando, porque tem um sindicato que não defende os interesses dele. Um negócio, né? Aí abriu, né, que todo mundo concordava, concordava, assim. Bom, então assim, vocês vão continuar sem fazer coisa nenhuma concordando em nada e fazer alguma coisa? Qual é, né, qual é o problema? Aí, “o sindicato não ajuda”, então não ajuda, tem que fazer o quê? Ah, tem que ganhar o sindicato. Então, “quem concorda que tem que mudar o sindicato?”. Então bom, então vocês topam fazer uma oposição sindical? “Topamos”. Quem gostaria de entrar na, né? Quem seria a pessoa mais importante para está na ser o candidato a presidente? Se o cara não tá aí, não, o fulano de tal seria uma pessoa boa, porque ele pensa como nós, porque... cara, cê sai da reunião com a chapa montada: quem vai ser tesoureiro, quem vai ser presidente, quem vai ser, não sei o quê, né? E ele vai só problematizando e disse: “ó, tem que ter mulher porque, né, não sei o quê!”, “Ah, não, a fulana vai por”. “Mas não vai botar todo mundo nessa dessa Capela aqui, tem que ser de todo município”. Então ele ia dirigindo as pessoas e forçando as pessoas pensar sobre aquilo, né? Bom, “o que que vocês querem defender”, né? Aí, ele ia escrevendo no quadro, o cara saía de lá com a plataforma pronta. “Bom, isso aqui pode ser? Bom, então assim, ó, o pessoal daqui do CAMP vai rodar isso aqui para vocês, vai entregar o material. Quanto vocês acham que precisam?” “Ah, 1000/5000, né, cartilhazinha dessas e tal”. “E como é que vai ser?”. E já planejava, a campanha. Passava uma tarde inteira, começava de manhã às 4 da tarde, né? Os caras sempre tavam com planejamento, não sei o que, com a campanha. Os cara em campanha. Cara, o cara assim, uma capacidade absurda de, né? E aí, quando sair daquela reunião primeira vez, disse assim: “gente que negócio inacreditável, que capacidade que esse cara tem”, e aquilo foi uma escola para mim. Aí eu saí construindo, fazendo, ajudando a construir a oposição sindical em todo o estado do Rio Grande do Sul. Fazendo reunião, conversando, discutindo, seguindo aquela, aquela cartilhazinha, então foi um negócio muito importante para mim, sabe, o CAMP. E fruto disso, nós resolvemos... aí vem um segundo problema, que era o seguinte, puta, a qualificação desses dirigentes era muito ruim, tá? É um pessoal que tinha vontade, era muito, né motivados a fazerem aquilo, mas não tinha formação política nenhuma, né? E aí a gente resolve construir a Escola Sindical Margarida Alves. Margarida Alves foi uma camponesa assassinada na Paraíba, né? E então, a gente contrói uma escola sindical e eu fico responsável para ser o, né, a pessoa que vai dar, desenhar e botar essa escola para, para funcionar, né? Então é uma escola, ela passa a funcionar na cidade de Francisco Beltrão, que tinha uma entidade que se chamava acessoar, que era um lugar bem grande, tinha salas de aulas e bababá e tal. Era sudoeste do Paraná. E aí, enfim, a gente desenha a escola, né? A metodologia, contrata uma pessoa para fazer, começa a fazer projeto para financiar isso. E aí, já vinha antes uma articulação com movimento sindical rural de outros estados, né? Muito importante, assim, então nós começamos a ter contacto com o Santarém, né? No Pará. E por quê? O pessoal do MST, da CPT, né? Algumas pessoas com quem nós tínhamos contato já tinha contato com o pessoal, porque tinha relações com ALN lá atrás, né? Então a gente começa a ter uma aproximação com algumas pessoas que estão em Santarém fazendo o sindicalismo mais combativo do Brasil, né? que era o Avelino Ganzer, né? O Geraldo Pastana, né? O Ranulfo Peloso, que eles criam o movimento sindical. Mas só que lá estava no meio dos bandidos, queriam matar os cara e tal, né? E a gente começa a fazer uma articulação com eles, então a gente começa a ter uma articulação nacional também e essa escola a gente. Ela é inicialmente voltada para São Paulo, Mato Grosso do Sul, Paraná, Santa Catarina e Rio Grande do Sul, mas começa a receber algumas pessoas de outros estados.
P/1- Quer dizer, ela funcionou como uma inspiração.
R - É.
P/1- Tipo um pioneirismo.
R - É, é. E assim, ó, na verdade, era a formação política, sabe? Dava aula mesmo, era assim, né? O frei Betto, né, uma pessoa com quem eu conversei muito para ele me ajudar a pensar como é que pode ser uma escola de educação popular para a formação política para colono. Colono que não sabe porra nenhuma. História do Brasil, história do movimento político, história do não sei o quê. Tinha professores, né? Então vinha lá, os caras faziam uma imersão de uma semana. Era a primeira etapa, sabe? Depois vem outra turma. Daqui 3/4 meses vinham, ficavam mais uma semana, segunda etapa, então tinham várias etapas com um curso completo. E a gente começava a formar, né, dirigentes sindicais rurais e tal, para, né, fortalecer o movimento sindical. Até que eu acho que vai ficar por outro capítulo, né? E aí, eu estava a 1000 por hora nisso, super entusiasmado. O campo era uma organização superimportante, né? Super articulado. Nesse meio tempo, o que que acontece? Vem a ideia de bom, o movimento Sem Terra estava espalhado por todo o Brasil, o João Pedro a 1000, não existia o MST ainda, existia Sem Terra. Nós tínhamos um jornal, nós não, o Comité de apoio tinha um jornal que chamava jornal do Sem Terra, né? Aí o João Pedro, numa articulação nacional, resolve, assim: “tá na hora da gente criar o movimento Sem Terra”. O José Richa era governador do Paraná. O Claus Germer, que era um cara de esquerda, né, era o secretário da agricultura e eles conseguem fazer o congresso de fundação do MST em 1985, em Curitiba, no Paraná, né? E aí vem Sem Terras de todo o Brasil. E aí vem gente do mundo afora e que e nasce o MST. Só que daí não tem mais sentido ter a sede, porque a sede do MST ficava lá no Camp, na sede do Camp, né? Não, nacional vai ter que ser em São Paulo. E aí vem para São Paulo e na articulação com todo os contatos, a Madre Cristina do Sedes Sapientiae, né? Sede o espaço, né? Do instituto Sedes Sapientiae, lá, né? Que já tinha o CEPI, já tinha o CIMI, já tinha vários movimentos. E o MST começa a sede nacional aí, e aí cria o jornal do MST, né? O jornal sem Terra mesmo, vira um jornal, etecetera. E eu estou lá no CAMP, né? No meu trabalho de sindical e etecetera. Aí eu estou de férias em janeiro...
P/1- Você já tinha formado?
R - Não sei... é, não, já tinha, não. Nesse período já tinha, eu formei. Na verdade, eu acabei formando e 82, tá, em 82. E aí eu vou para o CAMP, exatamente, né? Em 1982. Aí eu estou lá, eu estou de férias e vem uma ligação. Acho que foi do João Pedro. “Onde é que você está?”, “estou, não sei o quê”, “então vem para Chapecó”, “não estou indo de férias aqui, né, não”, “estamos aqui em uma reunião de uma reunião importante para você”. Assim não. “Eu não posso ir agora”, “então vem na semana que vem”. Nós fomos numa imersão aqui em Chapecó, porque Chapecó era um centro de imersão que tinha uma escola, tinha um bispo super progressista lá da que foi presidente da CPT, o dom José Gomes. E aí eu vou pra lá, né? Na reunião, e aí assim, ó: então, eu sei que tava, era o João Pedro, estava o Avelino Ganzer, estava o Geraldo Pastana, tava o Hamilton Pereira, que era o Pedro Tierra, tava não sei o quê e tal. Ó, nós fizemos uma reunião com o Lula e não foi eleito nenhum deputado constituinte rural, tá? Então, nós conversamos com ele, que tem que organizar uma assessoria. Para a reforma agrária na constituinte, e assessoria, além de assessorar a bancada para a constituinte na reforma agrária, tem que organizar a maior marcha pela reforma agrária que o Brasil já viu. Essa, né, pô, legal e tal. É, mas esse cara é você, que vai para Brasília, né? Aí, puta, eu recente tinha mudado de apartamento, né?
P/1- Você tava casado?
R - Não, eu tava namorando, tava vivendo com minha namorada, né? Que é a mãe da minhas filhas, que, né, não é a mãe do meu filho, né? Ela recém tinha se formado, né? E ela, ela é assessora de imprensa do deputado Adão Preto, que era deputado constituinte no Rio Grande do Sul. Estadual, né? E ela estava trabalhando lá, o primeiro trabalho dela e tal. E eu, cara, mas não, “falou para o Lula, todo mundo disse que é você é o cara, tem que ser você”. Puta, se o Lula disse isso, né, não tem como, não vamos embora, né? E aí, qual era a ideia? Tinham...
P/1- Já conhecia o Lula.
R - Não, nunca só era meu ídolo, né? Mas o PT tinha um deputado federal do Mato Grosso do Sul chamado Sérgio... Sérgio Cruz, tá? Ele era do MDB e ele saiu do MDB e foi para o PT. Era um cara que trabalhava muito com a questão rural, camponesa e tal. E esse cara foi candidato a deputado federal constituinte pelo PT, não se reelegeu. Então, a ideia era de que o Sérgio Cruz e eu fôssemos para Brasília e montássemos uma assessoria da bancada do PT para a reforma agrária. E aí, ora, né? Eu vou embora. Bom, tem que ir lá conversar. Pega um avião e vou para Brasília. O Sérgio Cruz vai de Campo Grande para Brasília. A gente se encontra lá, bom vamo lá conversar com o Lula, conversar com alguém. E conversar vai, corre para cá, corre para lá, fica o dia inteiro. Ninguém fala com a gente na liderança do PT. E aí, no outro dia, acho que também, acho que ficamos um dia e meio, aí o Sérgio Cruz disse: “ó Rogério, boa sorte, eu estou fora, é não, não vou entrar nessa roubada não, não consigo nem falar com os cara e bababá e tal”, né? Não eu, eu tou mentindo, eu mudei assim. Não, não aconteceu isso. Acontece que eu decidi. Eu fui para lá, a gente conversa e tal, e eu fico de voltar para já começar com o Sérgio Cruz, né? E a gente não tinha. Teve um, esse primeiro encontro foi um encontro muito rápido com, nem lembro com quem era, que se decidiu isso. Aí eu volto para Porto Alegre, sei lá, vou-me embora, “Denise cê topa?”, Denise: “topo”. Vou-me embora, né? Aí eu lembro que eu tinha um Passat, peguei meu carro e botei tapete. O Pedro Simão era ministro da agricultura do Sarney, já nesse período, né? E o Simão foi eleito governador. E o secretário, e o assessor do Sarney do Simon lá na agricultura, era um amigo meu, era o Tadeu Viapiana, né? E o Tadeu virou secretário da fazenda do Rio Grande do Sul. E aí eu falei para o Tadeu: “Tadeu, deixa eu ficar no teu apartamento? Ah, vem para cá, só assume aluguel e tal, a gente nem fala proprietário”. Subiu aqui e tal. Então eu já tinha apartamento de, que eu ia, mas não tinha salário, não tinha nada discutido sobre isso, né? Já fiquei com o apartamento do cara. Lá na 203 norte. E aí eu peguei no carro, cheio de panela no carro, tapete, travesseiro, escambau. Vou embora, né? E, aí chego em Brasília, fui lá, fomos para o apartamento, botamos já tinha tapete e já tinha travesseiro, né?
P/1- E panela
R - E panela, exatamente. E não tinha fogão, não tinha absolutamente nada, porque ele levou tudo embora. E aí, no dia seguinte eu vou lá para o congresso, aí vem o Sérgio Cruz. E aí que acontece isso? A gente não consegue falar com ninguém, né? E o Sérgio Cruz disse, ó: “eu tô fora, vou embora e tal”. Cara, eu fiquei, eu... eu queria chorar meu, porque o que é que vai acontecer, meu, não consigo falar com ninguém. Aí eu consigo falar com o Olívio Dutra. O Olívio Dutra era o secretário-geral do PT na época, o Lula era o presidente e o livro era o secretário-geral. E o Olívio era constituinte também. Aí eu vou conversar com o Olívio Dutra e o Olívio diz assim, eu falei, ó: “João Pedro me ligou pá pá, pá, aquela coisa toda. Disseram que eu era o cara, eu topei, vim para cá, não sei o quê”. Aí o Olívio: “pô, não tô sabendo de nada, né? Mas já que tu está aqui”, ele disse, “vamos ver o que a gente faz”. Puta, aquilo caiu com uma facada, né? Eu queria, eu queria chorar, né? “Já que tu está aqui”, vai tomar no cu, cara, eu venho num carro, chego pra cá e não sei o quê e: “já que tu está aqui”, né? Aquilo, cara, me pegou. Aí eu vou para casa. Eu falei para Denise, assim: “Denise, vamos embora, né? Cara, tá tudo muito esquisito, não sei o que, né?”, e a Denise, sei lá, não, não lembro o que ela falou. Aí eu respirei um pouco: “ou a gente ou ninguém vai fazer? Aí eu sabia que era isso, não tinha. Você acha que o Olívio Dutra. Não devia saber. Talvez nem o Lula, saiba, né? É coisa do João Pedro, é coisa desses caras são loucos. Eles devem ter falado com o Lula e o Lula, disse: “Ah, não, boa, beleza, não manda, a gente resolve”, deve ter sido isso. E eu fui achando. Aí, cara, foi muito incrível, né? Aí eu disse: “não, eu vou fazer, eu vou montar essa... esse negócio vai ser uma puta de uma assessoria”. E, bom, eu não tinha salário, não sabia que o que ia ganhar, não sabia, não tinha ninguém para trabalhar, não tinha lugar para trabalhar, não tinha nada, nada, né? Aí, eu vou lá para o Congresso, né o PT tinha, foram 16, 16 deputados federais eleitos, né? Aí, no mapeamento, descubro que a Irma Passoni, passou. Além de ser deputado federal, ela era a terceira suplente do Congresso e a terceira suplência era uma mega de uma estrutura. Tinha uma sala de reunião absurda de grande, tinha uma outra sala de secretárias que tinham umas quatro secretárias, tinha carro, motorista, né? E ela não usava porque ela usava o gabinete dela. Disse cara, vai ser aqui, né, aqui que eu vou trabalhar. E eu disse, né? Cara, a irmã é louca, ela é mau humorada, ela não gosta de ninguém, ela é um horror, né? Ah, deixa comigo, né? Aí, me preparei, né? Pedi uma conversa com a Irma, ela me atendeu, mal-humorada mesmo, assim. Aí disse assim: “Irma, né, eu tô aqui com uma missão, sabe? É o seguinte: o PT não elegeu nenhum deputado federal na área de reforma agrária, tá? O Lula disse que ele quer resolver essa questão. Nós precisamos priorizar a reforma agrária e o Lula disse que a Irma é a pessoa com maior sensibilidade para a reforma agrária, porque ela é do interior de Santa Catarina, trabalhou com trabalhadores rurais, conhece como ninguém, é a pessoa que mais sensível, e eu vim com a tarefa de organizar uma assessoria para te ajudar a trabalhar na questão da reforma agrária constituinte”. Cara, ela me amou, né? Tudo que ela queria. “Maravilha, o que é que você precisa?”, “olha, não tenho lugar, tinha pensado usar a suplência”, “pode usar, pode usar estrutura que quiser”. Aí, eu ganhei, né? Já tinha lugar, né? Aí, depois fui construindo, né? A questão, né? Tinha que ser contratado. Eu não tinha dinheiro, né, tinha que pagar minhas... e foi um negócio incrível construir uma assessoria maravilhosa. Não tinha ninguém para trabalhar, então o Zé Gomes da Silva tinha sido o cara que os Tancredo escolheram pra ser o presidente do INCRA, o presidente do INCRA na época tinha status de ministro. E o Zé Gomes é uma das maiores referências da reforma agrária do Brasil, porque ele era um fazendeiro, um cara muito rico, fazendeiro, e que sempre trabalhou para reforma agrária. E a fazenda dele, era em Pirassununga, era o maior exemplo de reforma agrária, né? De, de, de produção alternativa e tal. E ele, o Zé Gomes, que criou a ABRA, que é Associação Brasileira de Reforma Agrária e tal, e o Zé Gomes foi escolhido como presidente do INCRA. E o Zé Gomes montou um time de primeira. E o Sarney não demitiu, não, não tirou ele, manteve ele. Só que ele, quando ele viu que com Sarney não ia ter reforma agrária nenhuma, ele foi o primeiro cara do primeiro escalão que pediu demissão do governo Sarney. Só que a equipe dele, ficou uma equipe montada maravilhosa e tudo do PT, sabe? Técnicos, né, pessoas incríveis que tavam lá coçando, porque saiu o Zé Gomes ficou aquilo, né? Aí eu cheguei lá, fiz uma reunião com 20 funcionários do INCRA de primeira linha. “Olha, né, não tem dinheiro, não tem não sei que, ah, precisa de uma equipe montar, assessorar a bancada do PT na reforma agrária”. Cara, eles tinha tudo lá, né? Só batia um ponto lá no INCRA, ia lá para a Câmara trabalhar e a gente começou a trabalhar a questão da, né, da assessoria da bancada do PT sobre o termo de reforma agrária.
P/1- Qual que era o projeto? Assim, que que era pensar reforma agrária naquele momento?
R - Então, não tinha no primeiro ano, não era, não tinha um projeto, mas tinha, assim, primeiro lugar, né? Nós queríamos botar uma limitação, né? Do tamanho de Terra, né? Ter a questão fundamental, né, a figura da desapropriação de terras improdutiva para fins de reforma agrária. Não podia ser pago em dinheiro, porque aí não ia pagar, não tinha que pagar em títulos da dívida agrária, então nós tínhamos alguns, né? Tinha primeiro tem que constar na constituição de que terra improdutiva, tem que ser desapropriada para reforma agrária. Ponto, né? Aí sim, ó. Tem que tamanho, né? Aí vinha outra discussão, bom, mas não vai ter dinheiro para vai desapropriar, é o que? Porque se você não paga, é expropriar, iria expropriar, não vai se passar nunca. Então desapropria, mas eu vou ter que pagar, mas paga como? Se for dinheiro, não vai ter dinheiro, então título da dívida agrária resgatáveis de 20 anos, né, sendo que só começa a pagar depois de, não lembro quantos anos, 10 anos, 5 anos ou coisa assim. Então tu lá, desapropria a Terra, tu paga título e o cara depois de 5 anos começa a receber em 20 anos ele recebe. Isso dava, então, é, é, esses eram os parâmetros e tal, mas a gente... e aí o MST, não precisamos organizar maior, né, marcha de reforma agrária no Brasil, para que senão, para votação, senão, só lá dentro coisa nenhuma? Então a gente vê algumas pessoas do MST, também, e a gente começou a organizar a marcha de sem-terra. A nossa ideia era botar 10000 sem terras, ao redor do congresso na votação da reforma agrária. E fez, a gente fez isso, foi lindo, foi incrível. Então foi uma puta de uma experiência, incrível. Terminou a votação da reforma agrária, né? Ficou razoável, né? Teve. Tem muitas histórias incríveis durante a votação, coisas interessantes, assim, de, né, do que aconteceu e tal. Mas aí terminou a questão da reforma agrária, disse. Bom, agora eu vou voltar a Porto Alegre porque todo o meu, minha vida tá voltado para Porto Alegre, assim minha ideia era trabalhando com esse negócio para Porto Alegre. E aí? Alguém do PT... Disse, se eu não queria continuar, né, e fundar a Secretaria agrária nacional do PT, porque a gente já tinha, já estava uma puta articulação, já tinha nome de todo mundo, mas não tinha a Secretaria Agrária Nacional do PT. E o PT já tinha Secretaria sindical que era o (inaudível), quem o secretário sindical, né? Eu disse, ah, mas em Brasília não fico aquilo não, nem fudendo, né? “Não, mas pode ser em São Paulo porque tem o diretor nacional fica em São Paulo, a sede fica em São Paulo”. E aí eu falei com a Denise e a Denise topa. Com a Denise, foi muito engraçado, porque a Denise, aí chegou lá, vamos procurar trabalho para Denise, né? Eu tinha um amigo meu que era jornalista em Brasília, da Gazeta Mercantil, aí ele disse: “não, vou falar com a Rosita, a Rosita é minha chefe”, que era a Rosita, era chefona da Gazeta Mercantil, né? E aí a Rosita: “não manda chamar ela aqui para conversar”. Uma menina 18 anos, né? E recém-formado, não tinha trabalhado em um lugar, tinha sido assessora da Adão Preto por 2 meses, né? E ela diz, a Rosita chegou e disse assim: “ah, você é do Rio Grande do Sul?”, “sou”, “da onde do Rio Grande do Sul?”, ah, eu nasci em Sapiranga”, assim: “contratada!”, ela disse: “eu também nasci em Sapiranga, não existe 2 pessoas”(risos). E a Denise começou a trabalhar e tal, né? E aí quando a gente resolveu, vou falar com a Rosita, de repente ela me transfere para a Gazeta de São Paulo e conseguiu, né? Aí eu vim para São Paulo, né?
PARTE 2
Entrevista de Rogerio Sottili
Entrevistado por Rosana Miziara
São Paulo, 01 de junho de 2023
Projeto Conte Sua História
Entrevista número PCSH_HV1387
Revisor Nicolau da Conceição
P/1 - Entrevista de Rogério Sottili, parte 2, entrevistado por Rosana Miziara. O código da entrevista é PCSH-HV-138. São Paulo, Museu da Pessoa, São Paulo, 1 de junho de 2023. Improvisei a claquete. Podemos? Bom, estamos continuando aqui a segunda parte da entrevista. Na primeira parte a gente parou quando você contou do trabalho que você foi fazer em Brasília, como é que você chegou lá, como é que foi esse começo e como é que você foi estruturando o trabalho, não tinha nem espaço, como é que isso foi ganhar espaço e todo o trabalho que acabou culminando na Constituinte. Queria voltar um pouquinho atrás para saber um pouco dessa experiência cotidiana, alguns causos que você trouxe, por exemplo, o que que era ir para o campo, algumas passagens, uma vez teve uma história que vocês estavam numa caminhonete.
R - Então, nessa história da luta do MST, que naquele momento tava muito centrado no acampamento em Cruzeira do Natalino, porque tinha um grupo de 120, se eu não me engano eram 125 famílias acampadas em Cruzeira do Natalino. E tinha um movimento, tanto do governo do estado quanto do governo federal, que ainda era o final da ditadura militar. Curió. Então assim, era uma resistência, muita pressão, muita violência e a gente sabia que a nossa presença e a presença das pessoas e a visibilidade na mídia, na imprensa, é que poderia resguardar e dar segurança para as pessoas. Então, a gente ia muito para cruzar Natalino, para Ronda Alta. Se organizava Romarias, reunia lá 20 bispos do Brasil inteiro. O Casal D'Áliga foi uma pessoa muito presente sempre nessa resistência. Dom José Gomes da Silva, que foi presidente da CPT Nacional na época. Ele era bispo de Santa Catarina, de Chapecó, do oeste catarinense. Então, tinha muitos bispos e tal. E a gente ia muito pra lá, ou por atividade, ou por reuniões, ou pra levar mídia, imprensa, ou levar personalidade. E tudo isso era muito engraçado. O João Pedro Stédile tinha uma kombi muito velha. Então, a gente... nós íamos em treze pessoas na kombi. E Ronda Alta, inclusive, da Natalina até Porto Alegre, dá perto de 400 quilômetros. 350, 400 quilômetros. Na época, depois de Passo Fundo até Ronda Alta, não tinha asfalto, era estrada de chão, terra vermelha, e era assim, era uma reta, mas era os morros, então assim, a Kombi descia, mas ela não subia. De madrugada, assim, a gente… Muitas vezes, né? Descia, embalava, né? E o João Pedro, assim, “a hora de empurrar”, e todo mundo pulava da Kombi andando, ia levando a Kombi até em cima do morro pra ela continuar descendo. Mas era muito divertido, era uma coisa... Era uma diversão, assim, né? Esse era um pouco o tom, né? A cor da luta na época. Claro, né, que eu tinha 22, 23 anos de idade e isso tem todo um ar muito juvenil, de aventura, muito legal. Mas nós tínhamos muita... A gente foi aprendendo muita habilidade na luta como um processo importante. Eu lembro uma vez, que foi muito engraçado, que tinha uma organização internacional que apoiava financeiramente o movimento de resistência, inclusive lá na Natalino e tal. Só que o projeto era um projeto que era formação, era visibilidade, eram atos, organização e etc. E aí vinha, se não me engano essa organização era alemã, e o pessoal vinha de vez em quando para ver o projeto e tal. E nós brincávamos, e a gente fazia isso mesmo: bom, tomara que o cara chegue aqui e esteja chovendo muito, que esteja muito frio, ele vai ter que passar fome, ele vai passar tudo que acontece aqui de certa forma. E termina, e é uma semana geralmente, a visita das pessoas é uma semana, e geralmente terminava o cara num hotel cinco estrelas com um mega rodízio de carnes e churrasco. O cara fica muito feliz e ele aprova a renovação do projeto. A gente se divertia com isso, então era uma luta muito boa, muito divertida. E essa vez a gente fez justamente e aconteceu isso. Era inverno, era julho, muita chuva. Cara, atolou o carro, né? O cara desceu, se embarrou, passou frio, fome, não tinha comida. Foi uma semana do cão, assim. E a gente esperava na torcida isso, mas não achava que... né? Era mais brincadeira, mas aconteceu exatamente isso, né? E era muito divertido. Então, assim, tem muita... muitos... muitos... Muitos causos, né? Nós organizamos, eu não sei se eu já falei sobre isso, mas... Então, fruto dessa luta, inclusive, da Natalino, que a gente organizou o CAMP, que é o Centro de Assessoria Multiprofissional. E ele trabalhava então com questão rural, urbana, movimento popular, sindical e tal. E nós tínhamos uma eleição do sindicato metalúrgico de Porto Alegre. E o Zé Luiz Stédile, que era irmão do João Pedro, que era a pessoa que era meu amigo na época que fez a ponte com o João Pedro e tal, ele estava disputando na chapa para o sindicato de Porto Alegre. Então, a gente apoiava a oposição sindical metalúrgica, que era um sindicato muito pelego, extremamente direita. E a gente estava tentando derrubar essas eleições, e já tinha tido várias eleições e o cara sempre ganhava. E nessa eleição a gente estava organizando uma oposição sindical e apoiando a oposição. E no dia da votação, uma das minhas tarefas, eu com a Kombi do João Pedro, eu ia buscar aposentados para votar. Então, eu ia. Tinha lá os endereços, eu ia pegando os aposentados, levava para o sindicato, depois... ficava com homem, né? E depois envolvia. E aconteceu um acidente nessa... Não estava nem um idoso metalúrgico, nem um aposentado. Eu estava indo buscar, mas eu estava eu e uma menina chamada Carmen, que ela era da oposição metalúrgica, e eu estava descendo uma rua, e bem na frente da Taurus, em Porto Alegre, eu não sei o que aconteceu, eu acho que eu fiz uma manobra errada e veio um carro e bateu de cheio na Kombi. Eu sei que a Kombi atravessou o muro da Taurus, arrebentou o muro da Taurus. Enfim, eu acordei no hospital horas e horas depois, né? E foi um negócio muito traumático, né? Enfim, a Kombi depois, ela foi para o concerto, mas o concerto era uma oficina, né? Que era o pessoal da oposição metalúrgica, né? E eles arrumaram a Kombi, deixaram ela tudo bonitinha, pintaram, arrumaram, depois de meses, né? Levou muito tempo isso. E no dia que o João Pedro foi ligar, a Kombi explodiu, pegou fogo. Enfim, tem essas delícias, assim, no meio da luta.
P/1 - Aí voltando lá pra Brasília, aquele momento que você tá lá, você estava estabelecido lá, você ficou até a votação, é isso?
R - Foi, eu fiquei até a votação da reforma agrária. Na verdade, a constituinte, ela entra por 1988, mas o capítulo da reforma agrária se dá no final de 87. Eu queria voltar a Porto Alegre, mas houve o convite do PT para que eu continuasse, porque a gente construiu uma articulação muito grande envolvendo a bancada do PT, envolvendo a direção partidária, envolvendo os estados, envolvendo o movimento social. Então, aí tinha a gênese de uma Secretaria Agrária Nacional do PT, que não existia, na verdade. Aí eu disse que eu topava, mas eu não queria ficar em Brasília. Ele disse que podia ser em São Paulo. Aí eu me mudei para São Paulo.
P/1 - Você pensava em sair? Algum dia pensou em vir para São Paulo?
R - Não, eu ia voltar para Porto Alegre. A minha companheira, que era Denise Neumann, ela engravidou em Brasília, da minha primeira filha, a Júlia. E ela trabalhava na Gazeta Mercantil, e ela conseguiu a transferência para São Paulo, para a Gazeta de São Paulo. Isso ajudava, porque o salário dela era melhor que o meu, eu vinha para cá, então, encaramos, e nós viemos para cá. E aí foi uma experiência incrível, porque no No PT existia de secretaria setoriais, apenas a secretaria sindical, que o secretário era o Luiz Gushiken, e a secretária executiva era a Sônia… esqueci o nome da Sônia, mas uma companheira querida. E tinha também a secretaria de... Não, eu estou confundindo. Era o Ruschkin e o secretário executivo, acho que era o Marçal, uma coisa assim. E a Sônia era a secretária de Movimentos Populares. Eram as duas secretarias que tinha. E aí eu vou lá para organizar a Secretaria Agrária Nacional do PT. E foi um negócio incrível, assim, porque eu trouxe a experiência de Brasília, por conta da constituinte, da pressão. Tinha uma tentativa, mas muito focada na Secretaria Estadual, no Diretório Estadual do PT de São Paulo, que era o seguinte, o Graziano, o José Graziano, ele era um secretário agrário do PT de São Paulo. Mas qual era a lógica da secretaria que o Graziano construiu? Era uma lógica de produção de conteúdo, de programas agrícolas, programas de reforma agrária, assessoria, documentos. Era o Graziano que era um estudioso importante, um dos estudiosos mais importantes da questão agrária. Então, era uma secretaria focada na produção de conteúdo, de assessoria mesmo. Mas não a visão de articulação de movimentos sociais, etc. Então, a experiência de Brasília trouxe para nós do PT, e não era só a experiência de Brasília, era a experiência da sindical também e de movimentos populares.
P/1 - Que ano você tá falando?
R - Eu tô falando de 1978. Não, desculpe, 88. É no ano que a Luiza Erundina ganha a eleição também em São Paulo. Então, começa a organizar a Secretaria Agrária. O secretário agrário, que realmente, geralmente, era um dirigente político. E eu era o secretário executivo, o dirigente nem ficava aí, eu tocava e tal. Então, o primeiro secretário agrário nacional do PT foi o Geraldo Pastana. Ele era de Santarém, já tinha sido candidato a prefeito de Santarém, ganhou e foi roubada a eleição dele. O Geraldo depois foi deputado federal também, foi prefeito também de uma outra cidadezinha perto de Santarém. E ele era de um movimento camponês que foi luz para o movimento camponês no Brasil, inclusive para o MST: que era um movimento do sul do Pará, que era muita violência, que eles tinham… eu chamava de que era um movimento lamparina, porque eles fizeram um filme, um documentário sobre o movimento de resistência do sul do Pará, e o nome do filme era Lamparina. Um documentário lindo, de uma hora de duração e contava toda a história deles, como se organizaram. O Geraldo Pastana foi presidente do sindicato de Santarém, Sindicatos Trabalhadores Rurais, e foi caçado pela ditadura. Aí teve toda a resistência, e eles construíram o Sindicato Paralelo, e estava lá o Avelino Ganzer, o Waldir Ganzer, o Ranulfo Peloso, que é uma figura fantástica, que era religioso e tinha trabalhado… ele é lá do Pará também, mas ele tinha trabalhado com o cardeal… cardeal importantíssimo de Pernambuco e Recife e Olinda, como é que é o nome? Deu um branco. Daqui a pouquinho vem. Daqui a pouquinho vem. Então assim, o Ranulfo fazia todo o processo de formação, então era um negócio muito lindo. Então a gente, e o Geraldo trouxe, era o secretário agrário nacional do PT. E ele morava no Pará e eu tocava a secretaria agrária. E nós construímos um coletivo agrário nacional. E esse coletivo tinha que ter representação da bancada federal do PT, tinha que ter representação dos principais movimentos nacionais do PT, próximos ao PT. Então tinham o pessoal ligado à luta pela terra, do MST. O MST já tinha sido fundado em 1985. A CUT, rural, que aí era o Avelino Ganzer, que era o secretário rural da CUT. Não, Avelino Ganzer era o vice-presidente nacional da CUT. E o Paulo Farina, que era um sindicalista rural do Rio Grande do Sul, era o secretário rural. Então era ele, Paulo Farina, Geraldo Pastana, o pessoal ligado à CPT. Aí começa o movimento de atingidos por barragem. O MAB, porque na verdade o MAB, o primeiro foi o CRAB, que era o Comissão Regional de Atingidos para o Barragem da Região Sul, que deu origem depois ao MAB, que era o Movimento Nacional de Atingidos por Barragem. Então, criamos um coletivo que se reunia de três em três meses, numa reunião o dia inteiro, para discutir politicamente o que a gente ia fazer, estruturar a luta da Secretaria Agrária, incidir sobre o PT na questão rural. Então, qual era a nossa preocupação? Nossa preocupação era construir uma maior institucionalidade dentro do partido da luta camponesa e que isso deveria estar representado por dirigentes camponeses nas mais diferentes esferas de direção, nos documentos do PT, do ponto de vista de considerar a questão camponesa. Porque o PT era muito operário e muito ocupado para aqueles dirigentes de esquerda, que vieram da resistência ao golpe militar, que tinham um viés muito pequeno na questão camponesa. Então, o PT era um partido urbano e intelectual, operário e intelectual. Então, nós queríamos cavar esse espaço. Ajudar muito na eleição, nas mais diferentes esferas também de eleitoral, seja vereador, deputados, senador, prefeitos, governadores, etc, na questão rural. Então, era um pouco essa lógica da Secretaria Agrária. E produzir muito documento, assessoria que o PT encampasse para isso. Foi um trabalho incrível, incrível, incrível, que resultou em questões muito importantes para o PT. Teve dentro desse processo, algumas pessoas começaram a se aproximar, sabe, que não eram da luta social especificamente, mas que tiveram um papel importantíssimo, né? O Zé Gomes da Silva, que é uma figura maravilhosa e eu tive o prazer de ser muito próximo dele. As pessoas diziam de uma forma séria, mas brincando. O Zé Gomes foi presidente do INCRA. O Zé Gomes foi a pessoa que ajudou a construir o Estatuto da Terra encomendado pelo Castelo Branco na questão do golpe. Então, a redação do Estatuto da Terra foi feita praticamente pelo Zé Gomes. E o Zé Gomes sempre foi um cara com uma visão extremamente moderna e defendendo a reforma agrária. Ele acreditava que o Castelo Branco queria fazer reforma agrária. Ele ainda acha que o Castelo Branco sofreu um golpe por conta, inclusive, dos seus compromissos com a questão agrária. Ele era um grande fazendeiro e a fazenda dele era uma referência no Brasil de considerar camponeses, os trabalhadores lá tinham uma participação muito importante, tinham glebas que eles trabalhavam, produziam para consumo próprio e ele era uma visão da agronomia super sustentável, sem veneno. Então ele era agrônomo e era um cara com uma visão incrível. É pai do Graziano e eles não se davam bem na política. Eles tinham uma divergência. O Graziano relativizava muito a questão da reforma agrária e o Zé Gomes, para ele era crucial a questão da reforma agrária. E o Zé Gomes, o Graziano tinha uma visão de que a questão da reforma agrária já tinha dado no Brasil. Não aconteceu e não ia mais acontecer. Até porque a configuração, o mundo rural tinha mudado. As pessoas tinham virado, assim: o camponês hoje era o assalariado rural, que talvez não quisesse mais um pedaço de terra, era o sitieiro, o cara que cuidava do sítio do outro, então ele tinha uma visão diferente. E o Zé Gomes defendia que a reforma agrária, que o problema do Brasil era uma estrutura fundiária que você, ou você reparte isso, e tinha camponeses que queriam trabalhar a terra e você tinha que fazer essa divisão da reforma agrária. Então, o Zé Gomes, ele vem, ele sai do INCRA, ele foi o primeiro cara do primeiro escalão, porque quando o Tancredo foi eleito, convida o Zé Gomes para ser presidente do INCRA com status de ministro. O presidente do INCRA no governo do Tancredo tinha status de ministro. E quando o Tancredo morre, o Sarney mantém ele como status de ministro. E mantém ele como presidente do INCRA. E aí ele acaba saindo, ele é o primeiro cara do grande escalão que sai, porque aqui não vai ter reforma agrária nunca com o Sarney. E aí ele começa a se aproximar e aí ele vem ajudar o Lula a construir, depois, o governo paralelo, para cuidar da reforma agrária, o programa de reforma agrária. E o grande apoio a ele nesse processo de construção era nós, a Secretaria Agrária. Então, nós nos aproximamos muito. Então, ele me ligava todos os dias, sete e meia da manhã, um querido assim: “Rogério, está valendo aqui no Estadão, não sei o que”. Então, ele vinha com ideias, ideias e ele começou a fazer parte do coletivo da secretaria agrária com uma presença muito forte. E as pessoas diziam o seguinte: o Zé Gomes via em mim o filho que concordava com ele na reforma agrária. Meio pra dar uma estocada no Graziano, mas ele tinha um carinho imenso pelo Graziano, mas tinha essa divergência política na questão da reforma agrária.
P/1 - Pegando só um gancho dessa divergência, como era no PT visto a questão da reforma agrária? Era um campo de disputa de ideias, tinha uma convergência?
R - Tinha uma hegemonia desse campo que nós representávamos na secretaria agrária, mas tinha sim alguns movimentos rurais, digamos assim, no PT, divergente, mas não tinha força para isso. O Bruno Maranhão, por exemplo, era de uma corrente dentro do PT, extremamente minoritária e embora ele fosse um latifundiário de Pernambuco, de família muito rica em Pernambuco, ele era um cara que tinha lutado contra a ditadura, luta armada, defendia a luta armada ainda nesse período. O ponto de inflexão política dele dentro do PT é a questão rural, agrária. Mas ele sempre teve uma postura não de disputa com a gente, de aproximação, de tentar incidir sobre a visão que ele tinha, porque ele sabia que ele não tinha força, a corrente dele era pequena. Então ele lutava mais para ter um espaço no diretório, ele sempre foi do diretório nacional do PT. Deve ter sido até quando ele morreu. Ele era um campo que trabalhava na questão agrária. A democracia socialista, que é a DS, que sempre foi uma corrente muito expressiva dentro do PT, mas sempre minoritária também. Também tinha um trabalho no meio rural importante, mas mais restrito no Rio Grande do Sul, porque eles tinham alguns sindicatos de trabalhadores rurais no Rio Grande do Sul, com alguns outros sindicatos de alguns estados do Brasil. Então eles também, tinha uma disputa muito velada, muito sutil, porque realmente a hegemonia era esse movimento camponesa, porque as principais lideranças camponesas do Brasil eram pessoas, ou era o Avelino Ganzer, que estava na vice-presidente nacional da CUT, que era uma expressão incrível do movimento rural novo que estava nascendo. Eu nunca vou esquecer de que eu estava na Nicarágua em 1985, e no mesmo período que eu estava na Nicarágua em 1985, estava acontecendo um grande encontro em Cuba, sobre, eu não lembro se era sobre dívida externa, o que que era, que as principais lideranças de esquerda do mundo, da América Latina, estavam em Cuba. Lula estava lá, Avelino Ganzer estava lá, estava todo mundo lá com Fidel Castro. E quando terminou o encontro de Cuba, algumas lideranças foram para a Nicarágua.
P/1 - Como foi na Nicarágua?
R - Então, terminando isso aqui, eu já entro nisso. E aí, os caras disseram o seguinte: gente, o Avelino Ganzer arrasou em Cuba. Ele deu um discurso no Congresso que o Fidel só perguntou: “quem é esse camponês”, tá? Esse camponês é o Lula, sabe? É o Lula, é um grande quadro político e tal, então ele impressionou muito. O Valdir Nogueira estava com a gente, o Geraldo Pastana, que era esse pessoal camponese e com expressão em vários estados do Brasil. Na Nicarágua, Rosana... foi uma experiência inédita. Eu fiquei um mês na Nicarágua e foi em 1985. E tava ainda em plena revolução. A revolução tinha sido antes, em 1980, 79, 80. Só que tinha os Contras financiados pelos Estados Unidos que queriam derrubar o regime sandinista. Nós éramos financiados no Camp em Porto Alegre por uma organização francesa chamado Fredson, e eles fizeram um encontro por conta disso que estava acontecendo em Nicarágua, eles fizeram um encontro com todas as organizações que eles apoiavam na América Latina na Nicarágua, meio que para dar uma força, solidarizar, dar presença, questão internacional, que era importante. E eu fui. Esse encontro deve ter sido um encontro de uns 15 dias, 10, 15 dias, E, depois que terminou o encontro, eu fiquei mais uns 15 dias na Nicarágua, viajando, e fiquei na casa, então, de um comandante sandinista, que era um parceiraço, assim. Não lembro, o filho, alguma coisa assim o nome dele, não lembro o nome dele. Conhecendo, visitando e tal. E eu tive uma experiência inesquecível, porque nós viajamos para o interior da Nicarágua e eu fui para uma região que estava em plena guerra, chamada Cinco Pinos, que ficava na divisa com Honduras. Porque os Contras eram financiados pelos Estados Unidos e eles ficavam nas fronteiras, nos países, especialmente Honduras. E eles invadiam a fronteira para ir derrotando, matando as pessoas, derrotando e conquistando espaço. E nós chegamos, eu fui para Cinco Pinos e estava lá o Casaldáliga, Dom Pedro. E quando nós chegamos, foi um negócio interessante, porque nós chegamos num lugar que era um campo, bem rural, tinha uma igreja, e nós chegamos lá e Dom Pedro estava rezando uma missa, e cheia de camponeses. E eu não lembro se ele ficou sabendo que tinha um grupo de brasileiros indo pra lá ou o quê. E no grupo que eu tava comigo, tinha um padre, se não me engano, o nome dele era Jandir, não sei se é esse nome, mas ele era do Ceará, de Fortaleza. E esse cara, em Fortaleza, ele era um cara meio que em oposição ao PT. Eu sei que a gente conversava e aquela coisa toda, denunciava o PT lá, aquelas coisas todas. E aí, bom, mas a gente tava indo pra lá e ele falava que era, como ia ser emocionante ver o Casaldáliga, porque ele só tinha visto o Casaldáliga uma vez, não sei quantos anos antes, numa reunião de igreja na São Paulo, uma coisa assim, com um monte de bispo e tal, ele era padre. Então ele não tinha intimidade nenhuma, não conhecia e tal. Aí quando a gente entra na igreja, nós estávamos cinco pessoas, mais ou menos, aí o Dom Pedro, rezando a missa, ele muda e diz assim: “ó, queria aqui pedir uma salva de palmas para os brasileiros que vieram solidarizar com os sandinistas e tal, e tem o meu amigo Jandir, não sei se é Jandir, que é lá de Fortaleza, que nós tivemos juntos”. Aí o Jandir ficou assim: “cara, como é que ele lembra disso? Nem eu lembrava, sabe? Eu era um padre qualquer, um João Ninguém, e ele era o bispo. Eu lembrava dele porque ele era o Dom Pedro Casaldáliga”. E foi incrível, assim. Depois disso, nós fomos para um povoado de Cinco Pinos, né, e que era... tinha sofrido muito a guerra, tava destruído, assim. E aí o Dom Pedro disse: “ó, vamos fazer uma conversa aqui com sandinistas e tal, com a gente, para entender a situação”. E a gente foi num descampado, que tinha umas árvores caídas, assim, e nós sentamos nas árvores caídas e fizemos uma roda aí, com umas 20 pessoas. E alguns sandinistas começaram a contar como é que eles estavam vivendo, alguns populares também e tal. Nisso entra, tava final da tarde, assim, entra um jeep buzinando a toda velocidade, né, e as pessoas gritando assim: “yo quiero megáfono, yo quiero megáfono,yo quiero megáfono”. Eu não estava entendendo o que estava acontecendo. Aí explicam, não, eles querem um megafone, porque os sandinistas cercaram dois mil contras a dois quilômetros daí. E tava escurecendo, eles queriam um megafone pra negociar a rendição deles, né? E... então vai todo mundo procurando o megafone, aí pega o megafone e pinja, pinja, porque não tinha pilha, e todo mundo abrindo os gravadorzinhos, na época era gravador que a gente levava, né? Só que a pilha era pequena, do megafone era pilha grande, correndo todo mundo, que era uma coisa... era assim que funcionava, né? E aí pegaram e os caras foram lá pra negociar a rendição. E à noite, então, assim, a gente dormiu, era um lugar, era um casarão grande, né, que tinha uma varanda ao redor de toda a casa e na varanda era só redes, né, então a gente dormia em redes, assim. Eu não conseguia dormir, porque na minha cabeça os Contras iam entrar a qualquer momento. E lá tinha, não lembro como é que chama, mas era assim, vigília popular, uma vigília popular. Então, cada família assumia a vigília de uma quadra e passava tantas horas para cá e para lá, andando, a outra família lá, para saber se tinha alguma coisa. Então, só via aquele espaço. E eu na rede. E na rede do lado era o Dom Pedro que tava, né? Na rede que eu tava. E eu não conseguia dormir, foi um sofrimento e um medo absurdo, assim. E eu sei que alguma hora da noite, né, a paranoia era tão grande que aí... Eu sempre acho que galo canta às quatro da manhã, né? E aí chegou uma hora que, tem muita galinha, muito galo lá, muita galinha, e começaram a, né, a cacarejar. Então, eles começaram a cantar os galos, e era coisa meio ensurdecedora. Aí eu disse assim, ó, puta, na inteligência dos Contras, eles esperam exatamente o momento dos galos pra ir invadir, porque vai abafar os barulhos. E daí eu morria de medo. Eu acabei pegando no sono de cansaço, eu acho, e de medo. E foi muito tarde, foi depois dos galos e etc. Mas eu devo ter dormido uma hora, uma hora e pouco, assim, de repente eu acordo, tenho uma imagem incrível: porque eu acordo assim, eu vejo na rede do lado, que era o Dom Pedro, tava vazia, e tinha uma pedra grande, logo do lado da casa, assim, e eu vejo estava o Dom Pedro sentado com, né, aquele jeito sentado na pedra, com as pernas assim, de sandália, e ele escrevendo, assim, uma imagem que eu guardei até hoje, que eu guardo pra mim, que foi incrível, assim, né. Foi uma bela de uma experiência dessa de eu ter passado pela Nicarágua, né?
P/1 - E aí quando você volta, quer dizer, essa viagem, você já tava no diretório?
R - Não, foi antes. Eu tava no campo em Porto Alegre, isso foi em 85. Em 87 eu vou para Brasília, na Constituinte, e aí eu venho para São Paulo em janeiro de 88. E aí a gente organiza a Secretaria Agrária Nacional do PT. Aí, junto com o Zé Gomes, tem uma coisa do Zé Gomes fantástica, assim. Na eleição de 89, com Lula, a gente ajuda rapidamente nos temas agrários, mas eu me envolvo com outra coisa na campanha: que eu me somo ao Canova, que a gente começa a fazer contatos com rádios de todo o Brasil. Então, nós tínhamos uma lista de mais de mil rádios. telefone, programa, tudo direitinho. Então, a gente assim, ó: o que a gente vai fazer? Nós vamos pegar o rádio do interior, não adianta você ligar lá para a Rádio Eldorado, Rádio Guaíba, esses caras têm estrutura. Agora, se você ligar para uma rádio do interior, sabe, que os caras não tem grana, não tem dinheiro e pra eles autoridade é o fato do ano. Então assim, nós estávamos num comitê do Lula que passava todo dia Paulo Betti, Eduardo Suplicy, Chico Buarque, José Genoino. Então vinha uns caras que esses caras só são conhecidos na televisão, no rádio. Então a gente ligava para os caras, a gente tinha uma lista dos caras que passavam lá, assim, ó: “Genoino, vem cá, vem cá, topa dar uma entrevista agora?”. Aí a gente ligava para uma rádio no interior, lá do Rio Grande do Sul, disse: “olha, eu tô aqui do lado com José Genoino que topa dar uma entrevista sobre”, não era sobre eleição, sobre conjuntura, sobre o Brasil, aquela coisa toda, né? A gente ligava, os caras não pagavam nem o telefone que a gente ligava pros caras. Eles botavam no ar, sabe? E a entrevista era de 20 minutos, 30 minutos, e pegava numa coisa mais geral e entrava, né, então botava. Tô aqui com o Chico Buarque topando dar uma… Nossa, entrava no ar. Nós fizemos, né, um trabalho incrível, assim, foi uma campanha de dois meses. Eu lembro que teve um número incrível que a gente pegou, depois, medindo a audiência e tal, que a gente atingiu milhões de pessoas nessa brincadeira, sabe? Em dois, três meses a campanha e depois o segundo turno. Então foi um trabalho muito legal. Mas depois que eu ia falar do Zé Gomes, a gente começa a trabalhar no programa de governo de 1994, do Lula. E aí a gente fez reuniões, envolve o movimento social, vem o MST e discute, blá blá blá. Projeto de reforma agrária. Aí, quando tá pronto, nós temos que apresentar para o Lula, o candidato, para saber se ele concorda ou não concorda. E nós fizemos um café da manhã na casa do Jacques, que era um francês, que morava aqui na Vila Mariana, uma casa linda, assim, um jardim maravilhoso, uma mesa grande. E aí tá lá o Zé Gomes, João Pedro Stédile, Geraldo Pastana, Pedro Tierra e não sei mais quem, eu tava no grupo, o Lula, não lembro se o Zé Dirceu tava ou o que, e a gente apresenta o programa de reforma agrária para o Lula. E a gente destaca os problemas. E um dos problemas era incrível, o problema era o seguinte, o Zé Gomes defendia que o limite da propriedade rural do programa Lula Tinha que ser 2 mil hectares, quer dizer, a terra devoluta acima de 2 mil hectares tinha que ser passível para reforma agrária. Desculpa, mentira. O Zé Gomes defendia que o limite era 500 hectares. E o João Pedro defendia que era 2 mil hectares. Aí o Lula falou, eu não estou entendendo nada aqui. O fazendeiro defende, radicaliza para desapropriar a terra e o sem terra flexibiliza. Eu não estou entendendo nada, o Lula falou. Ele começou a rir, vocês estão ficando louco? O que está acontecendo? Vocês estão com certeza que estão falando isso? E foi um debate incrível. O Zé Gomes argumentava, assim, se você não desapropriar as propriedades de mil hectares, dois mil hectares, você não muda a estrutura fundiária do Brasil e você não muda a política no Brasil. O poder econômico, o poder, a democracia está ameaçada pela concentração de riqueza e a concentração de terra e tem que mudar isso porque a quantidade de terra não sei o que. Aí o João Pedro dizia assim, ó: “concordo com você Zé Gomes, só que é o seguinte, vai mexer a onça com vara curta? Nós não precisamos, vamos no primeiro passo, se a gente desapropriar as terras só acima de 2 mil hectares, você não vai comprar abriga com uma parcela importante, sabe, que vai infernizar a nossa vida, e pra nós é o suficiente, a gente avança por aí”. Então, era uma coisa, né, e o Lula deu razão ao João Pedro, né, sobre essa disputa assim. Foi um negócio muito incrível esse debate. Mas aí no PT, na Secretaria Agrária. Aí o Plínio de Arruda Sampaio se aproxima muito da gente nesse período. O Plínio tinha se afastado um pouco do PT, aquela coisa toda. Mas ele volta para o PT, ele se reaproxima do PT, muito mais engajado na questão rural, agrária. E o Plínio sempre era visto dentro do PT como o cara da direita, o direitoso do PT. Fez uma campanha muito ruim para governador do estado. E aí que ele se afasta depois da eleição, acho que foi em 92, uma coisa assim. Mas em 95, por aí, ele se aproxima da Secretaria Agrária e quer ajudar muito a gente. Então, o Plínio passa junto. Eu não lembro quando o Zé Gomes morreu, mas eu não sei se é nesse período por aí. O Zé Gomes morreu. É um negócio incrível. Eu tinha tanta proximidade com o Zé Gomes que eu fiquei sabendo da morte do Zé Gomes antes de quase todo mundo, antes da família dele, por uma coisa incrível assim. Eu estava no Diretório Nacional do PT e o Marçal, que trabalhava com o Gushiken, me liga: “Rogério, o Zé Gomes faleceu?” E eu disse, “não, imagina”. Eu sabia, eu sabia tudo. O Zé Gomes me ligava todo dia. “Não, o Zé Gomes está em Campinas e tá indo hoje para Piracununga, onde era a fazenda dele”. “Não, parece que ele teve um ataque no coração na estrada indo para Pirassununga. A gente passou lá, alguém deles passou lá e viu uma movimentação, uma ambulância, aquela coisa toda e disseram que era o Zé Gomes”. “Não pode ser, acho que não é”. Aí o que eu fiz? Eu liguei para a secretária do Zé Gomes, do escritório dela de Campinas, me fiz um pouco... “Ah, o Zé Gomes está aí?” “Não, ele foi para a fazenda”. Então, ela falou como não tava sabendo de nada. E eu não falei nada e eu liguei para a filha do Zé Gomes, né? E ela não sabia também, né? Então, foi... Tinha sido aí questão de minutos, né? Então... Isso é muito forte, né? Porque eu tinha uma ligação muito... Muito importante com o Zé Gomes e... E a... E essa sintonia, né? O Marçal também não sabia que tinha tanta ligação. Ele ligou porque sabia que o Zé Gomes tava próximo na Secretaria Agrária e tal. Mas voltando ao Plínio, aí o Plínio se aproxima da gente e começa a ajudar muito a gente. E nesse período acontece uma coisa muito importante na minha vida, né, que vai dar até uma… me dá um rumo, não muda o meu rumo, mas da ajuda no meu rumo da vida. Eu estava numa reunião na Assembleia Legislativa. Eu acho que isso é início de 1996. Eu tava em uma reunião da Assembleia Legislativa. Eu tava em um gabinete de deputados. Aí chega lá o Valdemar Rossi, na porta, assim, e disse, Rogério, eu poderia falar com você um minutinho? Ah, um parênteses antes. Na eleição de 94, Eu coordeno a agenda do Lula e o comitê era um comitê ali na Eduardo Prado, que depois vira Angélica, pertinho da São João. E eu ficava lá. Eu era o secretário executivo, quem era o coordenador da agenda mesmo era o Hamilton Pereira, o Pedro Tierra, que era o secretário agrário nacional do PT, mas o Hamilton morava em Goiânia, eu que segurava praticamente tudo, tocava o dia-a-dia, construía as agendas, etc. Então, eu tava muito no coração da campanha. Como o Lula tava viajando muito durante a campanha, a sala dele, que era a sala mais bonita, grandona, sofá, aquela coisa, tava sempre vazia lá. E eu ia lá às vezes, ou para dar uma descansada, dormir no sofá. E tinha um livro de um fotógrafo, que era de works, né? Acho que é isso, né? Do Sebastião Salgado. Cara, eu ficava namorando aquele livro, sabe? Era demais aquilo, né? E eu lia do Sebastião Salgado, assim, o cara é um gênio, que cara! E o cara morava fora do Brasil, era um dos maiores fotógrafos do mundo. Eu babava, eu ia naquela sala ver o livro, sempre ver o livro, né? E o cara tinha um cabelo Grande, né? Branco, um bigodão, né? Brancão, assim. Enfim, então, assim, era um cara que, pra mim, era um mito, sabe? E eu ficava, assim, durante a campanha vendo isso. Bom, aí o Valdemar Rossi vai lá e diz assim: “Rogério, eu já preciso falar com você e tal, não sei o quê”. Aí eu saio, tá ele e um cara, um careca, assim, né, e disse, olha, esse cara é o Sebastião, ele queria falar com você. E eu olhei pro cara, assim, não tinha nada a ver com o Sebastião, ele é fotógrafo, é Sebastião, e queria falar com você. E eu disse, é o Doce ou é o Salgado? Eu falei, né, com certeza era o Doce, não seria o Sebastião Salgado ali na frente. Não, é o Salgado. Eu olhei para ele assim, você é o Sebastião Salgado? Mas você é careca, não tem bigode. E você é bem mais novo, porque o que eu conheço do Sebastião Salgado de foto é cabelo branco, bigodão e tal. Ele riu e tal, não sei o quê. Aí ele quis falar comigo, e aí ele disse... Ele estava fazendo um projeto, e ele precisava muito fotografar uma ocupação de terra no Brasil, que era dentro do projeto dele, que era, eu não lembro se era Civilizações ou Gênesis, alguma coisa parecida. E falaram pra ele que eu poderia ajudar, né, porque eu tinha uma boa relação com o MST. E na hora eu me dividi entre, né, uma figura que eu tinha uma admiração, assim, eu fiquei com o queixo caído, e ao mesmo tempo, né, já havia dificuldades, porque o MST, o MST era muito sectário em relação à imprensa, com todos os motivos e razões do mundo, e com fotógrafos, era visto como imprensa: “não, esses caras só querem essa coisa toda”. Aí eu disse, não, eu ajudo, sim, vou conversar. Olha, não é fácil, papapá e tal. E aí eu fui conversar com o João Pedro, e eu disse para o João Pedro assim: “João, você já ouviu falar no Sebastião Salgado? Fotógrafo e tal. Então, esse cara é um puta cara, é um cara super comprometido, ele quer fotografar uma ocupação de terra, sabe? E eu acho que ele pode ajudar muito o movimento, porque dá visibilidade”. Naquele momento, o movimento tava passando por um processo de desgaste político muito grande, sabe? O João Pedro saía na capa da Veja como diabo, sabe? O MST era... então, assim, era um processo muito difícil, assim. E eu acho que ele pode dar visibilidade para o movimento em todo o mundo. Ele não vai sacanear a gente, não sei o quê, bababá e tal. “Tu garante?” Eu não garanto porra nenhuma, mas... E aí ele concordou. Ele disse, então faz o seguinte, manda ele para Curitiba e ficar em um hotel e aguardar uma ligação. Mas quando? Não, pra ele ir logo, mas não sei quando vai acontecer. Ele vai pra um hotel e fica aguardando lá. E aí eu conversei com o Sebastião Salgado e aí ele, o Sebastião Salgado de cara pegou, foi pra um hotel e ficou um hotel uma semana inteira lá, sem fazer nada, esperando alguma ligação. E chegou uma ligação dizendo: “olha, esteja, vai ter uma ocupação em tal lugar, esteja lá, não fala pra ninguém, porque ninguém pode saber porque se a polícia chega e desbanca essa ocupação”. Bom, eles chegaram a um acordo. E eu sei que a ocupação estava prevista para acontecer tipo 3, 4 da manhã e o Sebastião Salgado conseguiu negociar com eles para ser... como o Sebastião Salgado não fotografa com flash, ele não conseguia fotografar à noite a ocupação. Então tinha que ter os primeiros raios de luz. Então ele atrasou a ocupação para os primeiros raios de luz para ele poder fotografar. E o cara teve uma puta sorte Ele teve uma puta sorte porque foi a maior ocupação de terra do Brasil. Foi da… Fazenda Jacometti, não sei por que me emociono. Foi da Fazenda Jacometti. Não sei se foi 12 mil famílias ou 12 mil pessoas, eu não lembro. Foi uma ocupação enorme, que saiu aquela foto lá do cara com a... com a foice, né? Bom, e aí o Sebastião Salgado fotografou, foi aquela... E aí, a partir daí, acontece outra coisa. Eles estão lá na ocupação, eles ficaram lá uma semana, o João Pedro também, etc. E eu estou no Diretório Nacional do PT, na Secretaria Agrária Nacional, e, de repente, chega uma ligação, pra mim, que eu não lembro de quem é, mas foi do Pará, teve um puta massacre em Eldorado e Carajás. E tá acontecendo agora, tem muitos mortes e não sei o que e tal. E eu procuro Zé Dirceu na hora. Zé, aconteceu agora um massacre assim assado. E o Zé, de cara, aluga um avião. Precisamos ir pra lá agora. E eu quero que o João Pedro vá comigo. Vê com o Suplicy, porque o Suplicy, se não me engano, era líder no Senado, eu quero o Genoino, que era líder na Câmara, uma coisa assim, Paulo Sérgio Pinheiro, que era um cara que era da ONU, vê se ele tá aí, a gente pega uma comitiva e bota no avião e etc. E aí, eu vou, por questão do avião, claro que não dava pra sair agora, isso já era umas quatro da tarde, três, quatro, cinco da tarde, e aí eu começo a organizar pro avião sair de manhã cedo no dia seguinte. E eu começo a ligar para as pessoas para organizar a ida. E o João Pedro? Como é que eu vou ligar para o João Pedro? O João Pedro, até hoje, em junho de 2003, ele não tem celular. Ele não tem celular. Não é que ele tem, ele não divulga, ele não tem celular. Ele só funciona por e-mail. E como é que eu vou encontrar o João Pedro? O João Pedro está no Jacomete, na ocupação lá. Aí eu lembrei do Salgado. Eu tenho o telefone do Sebastião Salgado. Aí eu ligo para o Salgado. E o Salgado atende, né? Isso já era noite, tipo nove e meia da noite, dez da noite. Ele me chama de gaúcho. “Aí, gaúcho, não sei o quê, né?” “Tá na Jacomete? O João Pedro tá por aí? Tá aqui do meu lado, nós estamos no carro voltando pra São Paulo, né?”, “Posso falar com ele?” Aí eu ligo pro João Pedro, o João Pedro não sabia do massacre e eu falo, ó, João Pedro, aconteceu isso. O Zé, alugando o avião, ele quer que você vá junto e papapá e tal. Aí o Pedro fala, eu sei que o Salgado pega o telefone, eu preciso estar nesse avião. Bom, aí claro. Aí o Sebastião Salgado vai nesse avião e vai à delegação. Então ele é o primeiro fotógrafo que chega no massacre. E foi um negócio super importante, né? Bom, como resultado disso, desse processo todo, na volta, depois de tudo isso, O Salgado quer continuar fotografando alguns acampamentos e alguns assentamentos, e quer voltar para Jacomete alguns meses depois. Aí ele diz assim: “Rogério, tu precisa ir comigo, tu tem que ir comigo, tu tem que ir comigo, não sei o quê”. E eu, porra, sei lá, né, eu tô no PT, tem muita coisa pra fazer. “Bom, dez dias eu topo, eu consigo conversar aqui, mas mais do que isso eu não posso”, então eu vou embora. E aí eu fui viajar com ele, né? Então, eu tinha um motorista que era da Folha, né? Porque na época o Salgado fazia trabalho pra Folha, tinha um contrato com a Folha também. E o Carlão, né? Que era o motorista da Folha, que era apaixonado por fotografia também. E nós três viajando, né? De carro, de São Paulo, aí nós fomos pra Santa Catarina, lá na divisa argentina, de Dionísio Cerqueira, Paraná.
P/1 - Você, ele e o motorista?
R - Hã?
P/1 - Você, ele e o motorista?
R - É, nós três. E uns dez dias foi isso, né? Parando em acampamento. Então, assim, eu era importante porque eu conhecia muito o movimento e eu chegava, né, com salgado. E dizia assim, olha, explicava, olha, eu sou do movimento, eu sou do PT, ajudei no movimento, sou amigo do João Pedro, o João Pedro que me orientou, papapá, o Salgado fotografou. Eu fazia a entrada, aí o Salgado fotografava e tal. E foi um negócio incrível, nós viajando, conversando, jantando, almoçando. E o cara tinha que pegar todo o primeiro raio de luz. Então, todos os dias, às quatro da manhã, a gente levantava. E, às oito horas da noite, o cara estava dormindo, né? Então, assim, foi uma mega experiência. E, nessa viagem, a gente começa a conversar e nasce a ideia do Projeto Terra. Aí o Salgado diz assim: ó, a Lélia, que é a esposa do Salgado, não existe Salgado sem Lélia. A Lélia é bastidor. Então, tudo que o Salgado pensa e fez, ele discute com a Lélia. Tem o feedback da Lélia, tem o traço da Lélia, tem o ponto que a Lélia pensou, abordou. E ela faz toda a produção, sabe? Ela é arquiteta, faz toda a arte. A Lélia é assim. O Salgado passava o dia inteiro ligando para a Lélia. Qualquer coisa que ele via de interessante ou desinteressante, ou de qualquer coisa, ele ligava para a Lélia para contar. Ideias também. E aí, numa conversa, eles dois disseram que queriam fazer um projeto de solidariedade ao MST. Então, e aí eu lembro que ele falou assim... “conversando com a Lélia, a gente pensou em fazer um livro pro MST, e doar para o MST, e o livro seria Trabalhadores da Terra. E eu convidaria o Chico Buarque para fazer a legenda do livro”. E eu opinava, eu dizia assim, eu não gosto de nome composto, eu acho que é mais forte, como o teu livro já é Trabalhadores, podia ser Terra, sabe, só Terra, porque é mais forte do que Trabalhadores da Terra. Aí ele pegava e ligava para a Lélia, O Gaúcho acha que só terra é mais forte. A Lélia concordava. Não, pode ser. Eu dizia o seguinte. Olha, ouvindo as tuas fotos, Salgado, eu acho que um cara que tem uma tua linguagem, mas na escrita, a linguagem da fotografia é o Saramago, sabe? Então se imagina um livro que tivesse a legenda do Chico e um prefácio do Saramago. Aí ele ligava pra Lélia. Ele ligou pro Saramago na estrada, né? E o Saramago, claro, topou na hora fazer não sei o quê. Ligou pro Chico e o Chico dizia, não, vem aqui, vamos conversar, né? E foi nascendo aí o projeto, né? O Projeto Terra e tal. Eu lembro que quando nós voltamos, chegamos no sábado de tarde, eu tava cansado pra Dedéu, assim, saudade das minhas filhas, duas filhas pequenas e tal, a Júlia e a Luísa. E aí o Salgado disse assim, ó: “o Chico disse que é pra gente ir pra lá conversar com ele, no Rio. Vamos?” E eu disse, ah não, tô chegando agora, tô muito cansado, não sei o quê. E ele foi pra casa dele, né, ele ficava na casa da Betty Mindlin, ali no Butantã, ele foi pra lá trocar de roupa, trocar de mala e pegou um avião e foi pro Rio conversar com o Chico, né? Do Rio ele me ligou, eu conversei com o Chico, o Chico super topou, só que o Chico disse o seguinte: “eu não sou legendeiro, eu sou músico, eu topo fazer um CD para encartar no livro, né?” E assim foi nascendo o Projeto Terra, né? E aí foi uma... A partir daí, nós ficamos muito amigos, né? O Salgado... Nós temos um contato até hoje muito forte. Tivemos algumas brigas, uns distanciamentos em alguns momentos. Mas... somos muito amigos, né? E... Eu lembro que... Ele foi muito solidário comigo. Ele foi uma pessoa muito solidária comigo em super momentos. Quando eu fui secretário da Prefeitura de São Paulo, que é outro capítulo, que foi um negócio incrível, maravilhoso, e eu acho que não foi bem lidado pelo Haddad com isso. Opinião minha em relação a isso. E eu fiquei sabendo porque o embaixador do Brasil na França era meu amigo, que era o chefe cerimonial do Lula, o governo Lula, o Poc, que acabou falecendo de câncer uns dois anos atrás. E o Poc morava, eu estava na França, em Paris, e ele disse: “pô Rogério, me ajuda aí a fazer uma ponte, eu queria convidar o Salgado pra vir jantar aqui em casa”. E aí eu liguei pro Salgado, claro, aquela coisa toda, e coincidiu que o O Haddad estava indo para Paris e o Haddad também foi a Paris. E coincidiu quando o Haddad resolveu me tirar do governo. Concretamente, o Haddad me tirou do governo. E no jantar, puta clima ruim, porque o Salgado deu uma cobrada, um absurdo, o Haddad ter me tirado do governo, quando tava, que reconhecidamente todo mundo sabia que tava fazendo um puta trabalho. Ele fez uma cobrança e o Haddad não gostou. O Haddad tem uma personalidade muito forte também. E não gosta de ser cobrado também. E eu sei que o Haddad não gostou, criou um clima, aquela coisa toda e tal. Eu fiquei sabendo isso depois, evidentemente, muito tempo depois, porque o Poc comentou comigo (risos). Enfim, foi um pouco esse processo todo. Então, ele foi muito solidário comigo. Depois, eu vou para o governo Dilma, eu vou como secretário especial de direitos humanos. E aí a Dilma é deposta, a gente sai junto, esse é um outro capítulo também, porque foi um processo muito difícil, né? A Dilma tava vivendo um problema grave de isolamento político e a assessoria dela e ela ajudaram a construir algumas saídas para tentar conter a crise com o Congresso, e uma delas foi a reformulação do governo. Então, juntando os três ministérios irmãos, digamos assim, que era Igualdade Racial, Mulheres e Direitos Humanos, num ministério só. Só que foi um desenho que não ia funcionar nunca. Ela criou uma ministra, que era a Nilma, que é uma pessoa incrível, que era ministra da igualdade racial, como ministra dos direitos humanos, só que convida três secretários especiais com status de ministro. Então o que? Mulheres, era Eleonora Menicucci, que era ministra, virou secretária especial e me convida para ser secretária especial de direitos humanos, também com status de ministro. Então a Nilma virou rainha da Inglaterra. E isso criou um certo tensionamento, um problema. E nós tínhamos que juntar os ministérios. Era um negócio burro, sabe, que não ia dar certo. Tanto é que no processo de discussão eu me afastei sobre a reestruturação. Eu disse, olha, o limite, porque como a Secretaria de Direitos Humanos era o maior ministério, tinha uns 300 cargos, sei lá, o limite de corte é esse, no desenho. A partir daqui eu não discuto mais, porque aí é destruição total que não vai funcionar. E eu estava achando que isso não ia dar certo. E assim, se a presidenta Dilma sobreviver desse processo, isso vai ser rediscutido, não tem como dar certo. Eu tava apostando assim, isso não vai funcionar e nós vamos rediscutir, vai voltar ao que era antes. Essa era a minha visão. E se não funcionar e a Dilma for cassada, isso também morreu. Então eu me afastei. A menina que é uma figura importantíssima para mim, que é a Juliana Borges… Juliana Borges, não, Juliana. Ela era minha chefe de gabinete e ela começou a acompanhar ela e tal, esse processo todo. Mas aí eu saí do governo e foi muito triste aquilo, a Dilma, saiu todo mundo junto, humilhados, a rua te chamando de ladrão, de ladrão, de ladrão, de ladrão, um processo muito dolorido. E o Salgado estava passando por São Paulo, ele e a Lélia. E aí ele me ligou, vamos jantar hoje, né? E nós fomos jantar ali na Haddock Lobo, se não me engano. Eu lembro que estava a Betty, o companheiro dela, e estavam mais alguns amigos e etc, né? E estávamos na mesa jantando e conversando, né? E o papo era um impeachment, aquela coisa toda. E o Salgado ia embora, no sábado de manhã, isso era sexta-noite, no sábado de manhã… mentira, era sábado à noite... não, era… sábado de manhã eles iam embora. E aí fomos embora e tal. Então, sábado ele já viajou. Mas domingo de manhã cedo, toco o telefone, eu vi que era o Tião, era o Salgado. Aí eu atendo, né? Ele disse, “onde é que você tá?”, eu disse, não, “tô no aeroporto ainda”. “São Paulo?”, “Não, aqui em Paris, tô chegando agora, eu e a Lélia. A Lélia e eu conversamos durante a viagem e a gente tá muito preocupado com você. A gente queria te cuidar um pouco. E aí, assim, ó, tô te mandando uma passagem e aí você vem passar os dias aqui, a gente vai te cuidar. E não tem discussão com a Erika, não. A Erika, ou ela vem junto agora, tá? Mas é assim, é semana que vem, você tem que estar aqui. E se ela não, porque vai discutir com ela e vai discutir pro mês que vem então. No mês que vem ela vem. Então agora vem você e tal, não sei o quê”. Aí tá bom. Aí fui pra lá, fiquei uma semana lá com eles e foi uma delícia. Conheci o Costa Gavras, que a gente teve um lançamento de um produto lá na Champs-Élysées, de um perfume, na verdade, e era quem tinha feito toda, toda a curadoria, a arte e tal. Esqueci o nome de um cara super importante brasileiro aqui. Enfim, daqui a um pouquinho eu venho. E era um jantar nessa perfumaria, essa casa de perfume, para 15 pessoas. O Salgado e a Lélia estavam convidados e eu fui convidado também, por conta de estar lá. Então, foi um tempo muito bom. O Salgado foi uma pessoa sempre muito presente, muito solidária, muito próxima. E eu faço, e nesse período todo de 90 e pouco, voltando agora um pouco, eu já tava aqui em 2016. Lá em 96, por aí, muita motivação de uma amiga querida, a Maristela, Ela me incentivava muito de, puta, faz mestrado, né? Eu só tinha feito a faculdade em Porto Alegre, na PUC e tal, faz o mestrado aqui em São Paulo e tal, não sei o quê. Eu te ajudo a construir o projeto, aquela coisa toda. Então, ela me motivou muito e eu acabei fazendo, entrando no mestrado aqui na PUC de São Paulo. Bom, eu vou fazer uma coisa que eu conheço. Então, eu vou fazer sobre a história do MST. Vou contar a história do MST e aquela coisa toda. E eu tinha uma ideia muito geral do que eu queria fazer. Como é que o MST se constitui nessa força política e tal. E isso coincide, muito próximo, não sei o quanto, aí vem o Plínio de Arruda Sampaio na Secretaria Agrária. Eu tô misturando tudo, gente, mas está tudo junto, intercalado. O Plínio vem com uma sacada. O Plínio era um cara genial, sabe? Ele tinha uma perspicácia política absurda, assim, para algumas coisas. E ele tava muito próximo da gente, na Secretaria Agrária e tal. Então, assim, aconteceu o massacre de Eldorado Carajás, que foi aquela coisa absurda, né? E o MST, até o massacre, ele tava sendo execrado no Brasil, sabe? Era outdoor por todo o Brasil contra o MST, da Veja, não sei o quê. Paradas de ônibus, tudo era contra o MST. Então, o MST estava muito embaixo. e teve o massacre de Eldorado Carajás. E o Plínio traz para a Secretaria Agrária Nacional do PT a ideia de fazer um memorial. O que ele chamava de memorial? Era um documento de dez linhas que convocasse o Brasil para denunciar a violência contra os sem terra no Brasil. Era isso. E o Plínio vinha assim, não adianta querer botar aí defesa da reforma agrária, defesa da morte lá de Corumbiara, não, é Eldorado Carajás, era um ponto específico muito xis, tem que focar, tem que focar porque senão começa a ter divisão, ele dizia, começa a ter divisão. Então nós construímos, ele que praticamente deu o texto básico do memorial, que foi um documento de dez linhas. E esse memorial a gente começou a lançar em todo o Brasil com atos contra o massacre de Eldorado de Carajás. E começou a crescer isso, começou a crescer atos em todo o Brasil, não só na capital, não sei o que. Começou com um ato no próprio Eldorado de Carajás, que teve milhares de pessoas, aí começou a ir artistas, bispos, igrejas, e começou a se proliferar atos pela reforma agrária e contra o massacre de Eldorado de Carajás. E a gente... Isso ganhou corpo próprio. A gente começou a fazer isso e depois virou, viralizou. E que foi um movimento super importante. Aí, voltando, eu começo, faço a questão do mestrado, vou contar toda essa história, essa história que eu conheço, eu vivenciei tudo isso daí. Ao mesmo tempo, junto com isso, o Sebastião Salgado vem fazendo o Projeto Terra e começa a fazer exposição no mundo inteiro, e faz aquela exposição, lança aqui antigamente, hoje é o Itaú, o Unibanco aqui na Augusta, só que na época era o Cine Unibanco. Aquela sala grande lotada com Saramago, Chico Buarque, Sebastião Salgado, lotadérrima e tal. Então a gente fez aquele lançamento e o Sebastião Salgado leva essa exposição para o Brasil, e ele aqui no Brasil faz várias cópias, ele doou tudo isso para o MST e começa a ter exposição em todo o Brasil. E ele começa a lançar esse projeto na Itália, em Roma, Paris, Luxemburgo, Berlim. Todo o Brasil começa a crescer uma solidariedade ao MST absurda. O MST que tava no fundo do poço, absurda. E aí eu disse, eu tô no meio de tudo isso. Eu tou no meio do nascimento, força, declínio e agora ressurgimento. Eu tenho que contar essa história. Quando eu tava na PUC em Porto Alegre, eu participei de um seminário sobre história do Brasil, com uma professora da PUC de São Paulo, que eu me encantei com ela, que era a Déa Fenelon. E aí, ela era professora agora aqui do mestrado, e eu disse, puta, eu quero que ela seja minha orientadora, porque ela era orientadora de uma professora minha no Rio Grande do Sul. E aí eu procurei a Déa. “Déa, você pode ser minha orientadora?” Ela disse, “puta, Roger, não posso”. Eu teria que ter sete no máximo, eu tô com onze, não tenho condições, não tenho mais tempo mesmo. Mas eu te recomendo a Yara, Yara Khouri, que era minha professora, por sinal, eu achava uma professora sem graça, uma professora comum lá, e que foi tudo, assim, foi uma figura maravilhosa, porque quando eu discuto com ela. Quando eu discuto com ela a minha ideia e tal, ela gostou. É muito legal, mas ela diz o seguinte, e qual é a fonte que tu vai usar? Porque você é uma fonte, sabe? Você vai usar a fonte oral, entrevistar as pessoas. Eu não sabia direito, eu não entendia porra nenhuma, eu militei a vida inteira, na academia. Ah, tem uma fonte, é verdade, documentos, vou atrás de documentos, etc. Aí ela diz o seguinte, por que que tu não pensa em trabalhar com a fonte fotográfica? Porque contei na história a questão do Sebastião Salgado, aquela coisa toda, a fonte fotográfica, puta, legal isso. E aí ela vai me orientando. Bom, não dá para ser o Sebastião Salgado só, a fonte fotográfica. Então, eu decido pegar as fotos do Estadão, que era um jornal editorial explicitamente contra o MST, peguei o jornal do Sem Terra, que era um jornal explicitamente de apoio do MST, e peguei as fotos do Sebastião Salgado, que tinha uma pegada mais internacional. E aí ela vai me orientando, que eu começo a olhar as fotos, né, a tentar, bom: como é que eu faço uma foto ser ponto de... então ela me deu várias literaturas, eu começo a estudar fotografia como fonte de pesquisa. Não existia no Brasil, não existia. Pouca coisa. Tinha um trabalho de uma professora da Unicamp que fez um projeto sobre o Projeto Rondon, o Marechal Rondon. Até o nome era bonito, era “A Linha da Nação”, uma coisa assim, que era a linha de luzes que o Rondon vai puxando no projeto Rondon, e trazendo civilização. Mas era uma pegada diferente. E aí eu começo a dialogar com as fotos. Eu começo a ler e tentar entender os sinais que as fotos me trazem para eu ir. E eu vi que aquelas fotos... Eu estava muito viciado, porque eu sabia tudo que a foto... Na verdade, eu estava procurando elementos que a foto comprovasse o que eu queria dizer, porque eu era história viva. E isso tava sendo um problema. E aí, a Yara diz, assim, olha, tem um negócio aí pelo que você tá descobrindo que ninguém explorou na academia. Você não tá vendo só a foto como fonte, mas está vendo a foto como parte dessa disputa política. O Estadão constrói a foto, desconstrói o movimento. O MST só se constrói. E o Salgado tem um outro protagonismo. Então, por que tu não começa a dialogar com as fotos, eles participando dessa luta? Então, eu começo a fazer essa leitura e é muito interessante. Quando você pega uma foto que saiu no Liberal, na capa do Liberal, no Jornal do Pará, só que essa mesma foto, uma semana depois, sai na capa do Estadão e sai mais duas vezes em outras edições do Estadão. E essa foto, é uma foto de sem terras, com máscaras, foice e espingarda, em Eldorado Carajás. E é uma foto muito negativa. É uma foto que leva, assim, ó: a desordeiros, os caras estão fazendo luta armada, faz menção aos Chiapas do México. Essa foto criou ambiente político para que tivesse o massacre. Ela participou disso. A foto participou disso. O Estadão indiretamente participou disso com aquela foto. E como é que o MST fazia essa leitura? E como é que o Salgado fazia essa leitura do massacre? E isso é as fotos em disputa, a imagem em disputa. Então, eu começo a desenvolver o meu mestrado por aí, a minha dissertação, e acho que foi um trabalho muito legal, muito bom e inédito sobre essa perspectiva. Eu não sabia. Quando terminei o meu mestrado, eu mandei, depositei na PUC, o MST pediu uma cópia para a biblioteca deles e a UNESP me pediu também. E aí tinha um professor da UNESP, eu não lembro o primeiro nome, mas é o Manzano, se não me engano, ele recebeu e leu, e ele é um cara, uma referência na questão agrária no Brasil. Ele é aqui de São Paulo, especialista nisso, e ele faz uma carta para mim, que eu guardei até hoje, uma carta incrível, que ele diz assim, em síntese, “seu trabalho está incrível, Rogério. Ele é inédito, inédito total. E você percebe que as referências que você usa, bibliográficas sobre a questão agrária, são tudo referências antigas. Ninguém tá mais estudando sob uma nova perspectiva. Você tem aí a referência do Zé Graziano, do Zé de Sousa Martins, os mesmos caras de sempre. E não tem ninguém fazendo uma nova leitura sobre movimentos sociais no campo”. Então, ele faz o que foi a coisa mais gratificante de feedback que eu tive.
P/1 - Você desde cedo tem essa questão com a fotografia, você gostava sempre de fotografar desde a adolescência, você trouxe muito isso na outra entrevista. E esse encontro nesse sentido, desse teu desejo de fotografia, de gostar de fotografar, e esse encontro com o Sebastião?
R - Eu acho que tem algumas coisas que você não entende, é da vida, que acontece, né? Eu acho que, por exemplo, assim, provavelmente no nosso subjetivo, né, eu tinha uma sensibilidade absurda por imagem, por fotografia, que eu não sei de onde vem, mas eu sempre tive uma, talvez pela terra, a cidade que eu vivia, vivi toda a minha infância, adolescência, que é uma cidade da serra do Rio Grande do Sul, é um lugar lindo, tem muitos morros, né, muita araucária, muito pinheiro. Embora eu vivesse bem no centro da cidade, a minha relação com a natureza era total, porque você andava 200 metros, você tava no mato. Então, aquela luz, aquela cerração, porque é uma cidade fria, aquela neblina que baixa, aquela luz do inverno. Então, assim, isso é uma coisa que me sensibilizava muito. Provavelmente, se eu não tivesse essa sensibilidade, o encontro com o Salgado poderia ter sido muito mais burocrático na relação dele com o MST. Por ser um ativista do MST. Eu já estava emocionado com o livro de um cara que eu não conhecia, que eu não percebi que era ele. E a emoção daquele livro, que me emocionava mesmo, não lembro se eu... Mas era uma emoção grande, olhando aquele livro, um babava naquilo, uma coisa incrível. Tinha uma identidade aí, tinha uma identidade... E aquele livro de Works, que era... Tinha uma identidade não só da imagem, mas tinha uma identidade política também, porque quando estava retratando naquele livro, a Serra Pelada, os postos de petróleo no Kuwait, com aqueles trabalhadores manchados de... tem uma foto, que eu digo pro Salgado, porra, pra mim isso aqui é o Chaplin, né? Tempos modernos, porque é uma máquina, é uma, sabe, assim? E é o cara todo de petróleo, né? Manchado de petróleo e o olho branco, lembrava do Chaplin, não sei porquê. É porque tem uma identidade política e tem uma identidade com a minha infância, com a minha adolescência, naquela natureza que eu vivia. Então, a foto para mim foi uma coisa muito sempre presente. Eu sou uma pessoa de família de classe média, média-média, não é uma média alta nem média baixa. Então eu não tinha, a máquina fotográfica que eu usava não era minha, devia ser do meu irmão, devia ser lá da família, uma máquina super simples e tal, mas eu adorava fotografia, eu saía para fotografar. Eu não lembro agora onde eu guardava a máquina, porque as máquinas eram grandes. E não lembro, acho que não existia mochila na época, devia botar no pescoço e tal. E eu fotografava, eu tentava… e olhando as fotos assim... eu vejo que hoje, puta, nenhuma delas eu acho ridícula. Puta, até que imagina naquela época. Fotos incríveis. Fotos que não sei se eu conseguiria fazer hoje. Eu não sei se eu já contei aqui, porque a nossa entrevista é longa, então fica super à vontade: “não, isso tu já falou”. Mas tem um grupo de rock aqui em São Paulo chamado Picanha Chernobyl. que é um pessoal do Rio Grande do Sul. E o líder da banda é o Chiquinho, que é filho de um dos melhores amigos meu, o Tadeu, o Tadeu Rigo, que é de Nova Prata também, o Chiquinho é de Nova Prata também. E hoje eles já estão, sei lá, há 15 anos em São Paulo e tal, e ele é uma banda de rock de rua, né? Eles fazem turnê pra Europa, fazem show por aí, mas assim, eles estão... Aates eles estavam sempre no centro da cidade, eles põem um tapete, põem lá, e a banda toca, passa o chapéu e tal, e eles estão todo domingo na Paulista também e tal. A banda, eu adoro a banda. A banda é muito boa, né? Eles são coisas do nível do Led Zeppelin. Eles são muito bons. O Chiquinho é um guitarrista ímpar, sabe? É um cara incrível. Eu não entendo de música, mas não precisa entender, você sente aquilo, que os caras são muito bons. Recomendo na Paulista procurar A picanha de Chernobyl, no domingo. E o Chiquinho, o primeiro CD deles, o primeiro disco deles, tem uma capa, um índio. E a minha foto, cara. É a foto minha, que eu tirei quando eu fui lá em Nonoai. Foi o Tadeu e eu. Nós fomos lá para o Nonoai, quando os índios expulsaram os colonos da reserva indígena, que resultou na encruzilhada Natalino. E lá eu tirei várias fotos. E uma delas, foi desse cara, ele era um professor Kaingang, e ele tava num caminhão, na carroceria do caminhão, sentado na carroceria. E a gente tava na carroceria. Mas eu peguei num ângulo de baixo e uma foto linda, só do rosto dele, com o fundo assim. E ele botou aquilo na foto. E aí, quando ele publicou a foto, eu disse: “puta chiquinha, essa foto é minha”. “Você não brinca. Eu achei essa foto lá nas malas de foto do meu pai e tal”. “Pois é”. E aí eu contei pra ele que foi puta merda. Ele não tinha dado crédito. Aí, na outra edição, ele deu crédito e tal. Passou um tempo, né? Ele… foi um outro CD. Outra foto minha, né? Outra foto minha. E aí eu liguei e disse: Chiquinha, essa foto minha? Não acredito, também peguei lá. Aí, no terceiro CD, ele disse, ó, tô com uma foto aqui, eu queria saber se é tua. Então, assim... Então, fazia foto, né? E era uma coisa muito, muito legal. E eu acho que as fotos de Salgado... Então, eu faço na minha dissertação de mestrado, eu uso muito essa discussão com a imagem do Salgado, que tem a ver com a infância dele. O Salgado sempre falou que ele aprendeu a bater foto contra a luz, porque ele via tudo contra a luz, na Aimorés, que é a cidade que ele nasceu, em Minas Gerais. Então, assim, é a vida dele, a infância dele. Eu acho que eu tenho uma identidade com isso. Eu não sou um fotógrafo, nunca… eu tirava foto e faz anos. Eu comprei uma... uma Nikon legal depois. Quando eu, no Camp, lá naquela entidade do Rio Grande do Sul, nós tínhamos um jornal, que era um informativo sindical, que era para as oposições sindicais e tal. O que eu mais adorava, ia para as reuniões, eu ia com a máquina fotográfica. Eu fazia a foto para botar e tal. Então, a foto é uma coisa muito presente para mim.
P/1 - O Sebastião sabia disso, desse teu lado?
R - Acho que não, acho que não. Tem uma coisa… nunca contei pra ele, né, é engraçado assim, eu até achava que ele ia dá mais importância, isso foi uma decepção pra mim, porque tem umas fotos, né, que quando eu viajei com ele, eu tive uma sacada, ele ficava fotografando, eu ficava atrás dele fotografando ele fotografando. Então eu disse, eu tenho a foto da foto, sabe? Que é muito legal, e fotos que ficaram famosas, que estão em livros dele, só que eu tenho eu fotografando ele fotografando a foto. E aí eu mandei pra ele, assim, ele não deu muita importância, eu achei que ele ia: “pô, legal, essa aqui ficou boa, fazer uma crítica, não, essa aqui não, ficou muito aqui, muito lá”, ele não comentou, ficou uma decepção pra mim. Mas o legal que as pessoas, algumas pessoas do Movimento Sem Terra: “Ah, eu quero aquela foto, porque o meu pai está nela”. O Sebastião Salgado fotografando o pai dele, sabe? Foi muito legal. Teve uma situação, eu acho que era num assentamento em Paraná City, que fica na divisa Santa Catarina com Paraná, se não me engano, ou Paraná e São Paulo. Foi um negócio muito legal, assim, né? Isso é a fotografia política do que é o MST, né? Chegamos a um assentamento de trabalhadores rurais, colonos, pobres e tal, mas que já era um assentamento, produziam leite, produziam não sei o que mais. Aí nós chegamos lá no assentamento e o sistema era assim, eu chegava na frente, eu sei como me aproximar das pessoas, não conheciam a gente: “E aí, tudo bem? Eu sou fulano, João Pedro, não sei o que. A carta entrada. E esse, eu queria apresentar, é o Sebastião Salgada, é um fotógrafo”. O cara falou assim, um menino, um jovem, trabalhador rural: “Não, eu sei que você é o Sebastião Salgado. Gostaria de te dizer que, por sinal, a sua fotografia é muito mais densa do que as fotos do Cartier-Bresson”. Aí eu disse, Cartier-Bresson? Sebastião Salgado, um trabalhador rural, jovem, e o cara começa a discutir fotografia, luz, com o Sebastião Salgado, citando Cartier-Bresson e blá blá blá, né, e não sei o quê. Então, assim, ó, o MST produziu gente na luta pela terra, né, que deu isso, que foi pra universidade, que sabiam de fotografia, o cara gostava de fotografia, amava fotografia, e era um trabalhador rural fotógrafo também, e tava discutindo fotografia com o Sebastião Salgado. Sabia do Sebastião Salgado muito mais do que eu naquela época. Eu só conhecia aquele livro, aquela coisa toda e tal. E o cara estudava, sabia que era o Sebastião Salgado. Então era uma coisa muito emocionante, essa viagem era muito emocionante porque se ia deparando com essa realidade, misturando a minha vida, sem terra, minha vida na luta do MST, a minha vida, né, porque toda a tua vida tá aí, sabe? Tá a minha infância aí, tá a minha adolescência, tá o meu ativismo, tá a minha política, tá o PT aí, tá o MST aí, e tá a fotografia aí, tá o Sebastião Salgado. Então, essa identidade, ela é muito louca. Eu escrevi um… fui convidado, por um livro da Universidade Federal de Minas Gerais, patrocinado pela Vale do Rio Doce até. A Heloisa Starling tava fazendo, ela era editora desse livro, um livro grande, lindo, lindo, lindo, que ela contava a história dos mineiros. Então, puta, tudo que é mineiro, importante, tem que estar nesse livro. E ela convidou alguém para escrever o artigo sobre o livro, sobre essa pessoa. E ela me convidou para escrever sobre o Salgado, porque o Salgado é mineiro. E aí usei muito todo o meu estudo de dissertação. E a Heloisa Starling é uma historiadora importante no Brasil e tal. E ela, até hoje que me encontra, ela diz que ela emociona toda vez que lê, que é um negócio incrível. E naquele artigo, que é um artigo grande, de várias páginas. De fato, eu botei um pouco essa alma da minha identidade com o Salgado na fotografia. Eu tava contando a história do Salgado, mas, na verdade, eu estava contando a minha história também.
P/1 - Rogerio, voltando lá, você tava na direção nacional do PT e aí você recebe um convite para ir para a prefeitura, você tava lá ainda ou você já tinha saído?
R - Não. Do diretório nacional do PT, o Lula ganha eleição em 2002. O que aconteceu? No ano 2000, teve eleição pra prefeito. Até o ano 2000, eu era da Secretaria Agrária Nacional do PT. E aí eu fiz o mestrado, o secretário agrário político era o Plínio de Arruda de Sampaio e eu era o secretário executivo, que tocava. Eu tive uma aproximação muito grande com o Plínio. O Plínio me motivou muito a fazer o mestrado, inclusive assim, “Rogério, esquece de vir de manhã aqui para a Secretaria Agrária, fica em casa trabalhando no teu mestrado e aí depois do meio dia tu vem aqui”, a gente vai e tal, ia na casa dele e a gente tocava Secretaria Agrária. Então o Plínio me motivou muito. E em 2000 tem eleição para as prefeituras no Brasil inteiro e o João Paulo Cunha assume, na direção do PT, o Secretário Nacional de Assuntos Institucionais e coordena, tô tentando lembrar o nome que chamava, mas era um grupo, não era o GTA, era o GTE, Grupo de Trabalho Eleitoral, que era o que? Era criar uma política nacional de apoio às candidaturas do PT para a Prefeitura. E nós fizemos um trabalho incrível, incrível. O João Paulo é muito bom de trabalho, é pragmático pra caramba, super articulado, e pra mim foi maravilhoso. Eu tava, puta, 30 anos trabalhando com a questão agrária, rural, movimento social no campo, e eu saio disso aí porque ele me chama, eu vou. É um novo ar aí, um momento importante. E a gente faz um trabalho maravilhoso. E o PT, é claro que não só por causa disso, mas esse trabalho ajudou muito, foi o maior resultado eleitoral do PT, da história do PT. O PT ganhou muitas prefeituras em todo o Brasil. Eu lembro uma quantidade absurda, prefeituras importantes, São Paulo, Porto Alegre, Belo Horizonte, Vitória, Recife, então assim, e muitas prefeituras do interior. E que a gente produziu coisas incríveis, desde rádio, propaganda, linha política, dinheiro, então foi um negócio muito legal. E o meu trabalho foi muito reconhecido, meu e especialmente do João Paulo, mas foi muito reconhecido nisso. Então, quando terminou as eleições, o Zé Dirceu era presidente do PT e o Zé era meu amigo. Eu apoiava o Zé para deputado federal, sempre apoiei o Zé e o Rui Falcão para deputado estadual. Esses eram os meus candidatos em São Paulo. E o Zé Dirceu era presidente do PT, mas eu nunca tinha… eu era de uma linha política, eu me imaginava mais a esquerda do PT, então eu apoiava o Zé, porque eu achava um cara importante para ser presidente do PT, com um cara como deputado federal, mas eu achava que ele era meio à direita do PT. E ele era um excelente presidente do PT, sempre achei o melhor presidente que o PT já teve até hoje na história do PT. E o Zé era presidente do PT e o Zé me convida para ser chefe de gabinete dele na presidência do PT. E eu achei um desafio importante. Acabou a eleição, o GTE meio que, eu não queria voltar, já tinha experimentado, e eu fui ser chefe de gabinete do Zé. E aí eu ocupo um espaço muito importante aí na presidência do PT, ajudando e tal, e foi muito... E eu ganhar a experiência de trabalhar com um cara que é um animal político, um cara que era um fora da curva, entende? Com a história que tinha o Zé Dirceu. E aí o Zé começa já a trabalhar nas eleições de 2002. E o resultado eleitoral de 2000 foi fundamental para a vitória do Lula de 2002. Nós ganhamos uma base eleitoral que deu estrutura para o Lula ganhar as eleições de 2002. E eu tô no centro das eleições de 2002. E aí o Zé vai para a coordenação da campanha e eu vou junto para a coordenação da campanha e acompanhamos, fizemos todo o processo, acompanhei de perto a eleição do Lula. O Lula é eleito, começa toda a discussão em Brasília de governo de transição e aí eu entro em crise, porque eu não queria ir para Brasília, eu não queria viver a experiência do governo, mas o que mais me pegava era o medo, eu acho: caralho, ser oposição é fácil, agora assumir esse pepino lá, sem experiência nenhuma de executivo, não é pra mim. Eu vou ficar aqui, tá mais fácil. Eu tava numa zona de conforto e eu tinha duas filhas pequenas. Eu tinha me separado há pouco tempo e eu não queria perder esse contato com elas. A Júlia tinha uns 10 anos de idade e a Luísa devia ter 7 para 8 anos. Eu não queria perder esse contato com elas. Nossa, era uma separação brutal. Então, eu não me movimentei, não quis ir para lá, mas não teve nenhum momento, porque nem o Zé Dirceu dizia que queria ir para lá, porque ele queria muito, mas quem tinha que decidir era o Lula, não era ele. Então, o Zé também até não decidiu o que ele ia fazer. Aí começa um movimento de... não, você tem que vir para a transição, porque se não vier para a transição, você não vai estar aqui, entende? Mas eu não quero ir para a transição, eu não quero estar aí. Então, as pessoas falavam, o Zé não me falava nada. Aí um cara que era chefe de gabinete do deputado Zé Dirceu, lá em Brasília, o Hélio Madalena, que vivia me ligando. Cara, você tem que vir para cá, você tem que vir para cá, estou precisando de você aqui na transição. Então, eles me encheram tanto saco que eu fui para lá, na transição, no finalzinho da transição e comecei a ajudar lá no trabalho de transição, que era uma coisa muito fácil. Hoje você entende, depois quando eu vou para o governo, a gente entende o que é um governo republicano e democrático. Nós fomos muito injustos com o FHC, porque depois que nós vivemos com Bolsonaro e o Temer, você sabe, o FHC era um cara de oposição, mas era um republicano, abriu tudo, entendeu? Então era um trabalho muito fácil na transição e etc. E aí quando o Zé é confirmado para a Casa Civil, aí começa a discussão da montagem do gabinete. Bom, você tem que vir e tal. E eu vi que tinha alguma sinalização para o seu chefe de gabinete, o Zé Dirceu, mas eu estava muito assustado. Porque eu via que a Casa Civil era o coração do governo. Era o ministério mais importante do governo, era o coordenador político do governo. O coordenador do governo. Meu Deus, o que vai ser isso? Não quero estar como chefe de gabinete. Eu posso ajudar o Zé como assessor. Fazendo o que? O que eu sei fazer muito bem e não me assusta, que era a relação com o PT, relação com os movimentos sociais e a relação com a agenda política do Zé Dirceu, os contatos dele, os amigos dele, a vida dele. Ele vai precisar de alguém para fazer isso. E aí eu vou para o governo como assessor especial do Zé Dirceu para cuidar dessa agenda. E aí a coisa começa a cair no meu colo, um monte de coisa e eu vou assumindo, eu vou assumindo, eu vou assumindo. O Zé começou a ter algumas dificuldades, o chefe de gabinete do Zé começou a ter alguns problemas e aí ele começava a cogitar de eu ser chefe de gabinete. E eu dizia, Zé, aí eu descobri, ó, como chefe de gabinete, eu vou assumir um monte de porcaria, burocracia, de documentação, agendazinha, não sei o quê, que vai me impedir de ajudar mais em questões mais estratégicas. Então, vamos procurar uma outra pessoa ser chefe de gabinete seu, e aí eu procurei, acabou sendo a Deise Barreta, que estava em São Paulo, eu que convidei, eu que sugeri a ela. E ela acabou sendo a chefe de gabinete e a gente fez uma boa dobradinha e eu virei um assessor muito próximo do Zé Dirceu ajudando ele nessa construção e tal. E foi uma experiência incrível em todos os sentidos. Acompanhei todo o processo de cassação do Zé Dirceu, da loucura que se construiu o Mensalão. O Zé tava com alguma dificuldade, ele começava a achar que o secretário executivo dele, que é o cargo mais importante depois do Zé, que é o vice-ministro, que é um cara muito próximo do Zé Dirceu, amigo nosso todo, que já tinha sido secretário do Cristóvão Buarque no governo do Distrito Federal, é um cara muito preparado politicamente, que é o Berger. Mas o Zé estava insatisfeito com o Berger, e naquela crise toda. Aí o Zé Dirceu dizia assim, Rogério, eu viajava muito com o Zé Dirceu , era o aviãozinho da FAB, todo o Brasil, a gente viajava junto, então ali conversava de tudo. “Você não vai resolver o secretário executivo?” Você falou, é, secretário executivo é seu, você que tem que resolver, não é eu. “É, mas eu acho que tem que mudar, eu acho que o Berger precisaria ir para outro lugar, alguma coisa assim”. E aí ele... Aí eu caio uma ficha uma hora. Eu estou chegando no Palácio e eu pego o elevador com o Haddad. Aí o Haddad… Aí o Haddad, sempre me chama de Rogerinho. “É, Rogerinho, estou indo embora”. “Como está indo embora, Haddad?” Que acabou meu trabalho lá com o Guido no planejamento, já fiz o que tinha que fazer, tô indo embora”. Porra, mesmo assim, embora agora, nesse momento? E aquilo eu guardei. E aí eu cheguei para o José numa viagem assim, “o que você acha do Haddad para o secretário-executivo seu?” E o Zé, quando ele fez os olhos assim, ele gostou da ideia. “Mas ele toparia?” “Não sei. Mas eu sei que o Haddad está indo embora e eu senti que ele não gostaria de ir embora, porque acabou trabalhando no planejamento”. E, que me consta, o Zé e o Dadi nunca foram próximos politicamente, mas nunca tiveram nenhum problema. E ele disse assim, tu me autoriza a sondar? E disse, não sonda. Tudo isso o Berger até hoje não sabe, na verdade e nem ficou sabendo. Mas aí eu sondei o Haddad. E aí o Haddad gostou muito da ideia. Aí eu disse: “Haddad amou a ideia”. Aí eu falei para o Zé. Aí o Zé disse, “agora tu tem que construir a saída do Berger e a vinda do Haddad”. Não sou eu, Zé. E o Zé, ele é muito solidário. Como amigo, cara, ele tem uma dificuldade absurda. Ele faz. Se tiver que fazer maldade, ele faz. Se fazer bondade, ele faz. Mas ele tem uma dificuldade porque ele é uma pessoa muito solidária. E aí o Zé demorou um pouco e começou a estourar cada vez mais a questão do mensalão. E aí aquela coisa do mensalão, aquela coisa do mensalão e o Zé teve que decidir sobre isso. Só que a questão do mensalão começou a ganhar um corpo, um desgaste dele interno que ele não sabia se ele ia se sustentar e essa coisa começou a atrapalhar.
P/1 - Como que ele vivia isso cotidianamente?
R - O Zé?
P/1 - É.
R - O Zé dizia assim pra mim, eu dizia assim, “Zé, você dormiu bem?” Ele dizia, “Rogério, nunca perdi um segundo de sono na minha vida”. Eu disse, “mas Zé, como é que você convive com isso?” “Eu durmo bem, sabe?”. O Zé é um animal político, sabe? Ele tinha certeza que aquilo é uma disputa política. Ele tinha certeza que aquilo, sabe? Ele já tinha sido preso, ele já tinha sido exilado, ele já tinha vivido na clandestinidade e ele se dava com os caras que fizeram isso com ele. Ele nunca levou para o lado pessoal, sabe? Ele era um cara político totalmente. É impressionante, sempre achei que o Zé tinha um ego absurdo. Mas um cara que tem um ego não lida dessa forma. Um cara que tem um ego grande sofre com isso. Leva para o lado pessoal. Ele nunca levava para o lado pessoal. Entendeu? Ele é um cara que é capaz de hoje, se precisar conversar com o Roberto Jefferson, ele vai voltar a conversar com o Roberto Jefferson. Entende? Então assim, ele, na política, ele fala o que tem que fazer, e para ele tinha que garantir a governabilidade pro Lula, tinha que garantir a questão do Lula, sabe? E tudo era uma disputa política, sabe? Então, o Palocci, ele sempre dizia o seguinte, o Zé dizia, assim, ó: “tô muito preocupado comigo, mas o problema tá lá no Palocci”. Ele dizia, “o Palocci tem problema, esse cara é um problema”, porque tinha uma disputa entre os dois, a gente achava que era política, porque de fato os dois sabiam que depois de oito anos de mandato Lula, um dos dois ia ser candidato natural à presidência da república. E o Zé queria ser presidente da república, evidente que queria. Mas o Zé sabia que o Palocci podia ser um problema, pela experiência dele na prefeitura de Ribeirão. Então tinha questões aí postas. sabe? Que eu, na época, entendia como uma disputa política. Mas o Zé é um cara impressionante, como ele reage, ele sofre. Eu fiquei sabendo numa entrevista, um mês atrás, que ele deu na TVT para o Juca, para o Juca Kfouri, na TVT. Eu nunca sei, o Zé nunca me falou assim. Na entrevista do Juca e do Kfouri, ele falou que chorou, na prisão, aquela coisa toda. Eu imaginava isso, mas o Zé não me passava isso, que era um cara que sempre, na política e tal, é claro que ele vai... envelhecendo, os filhos, o distanciamento, a prisão, fragiliza as pessoas, o mais gigante das pessoas e ele sofreu isso.
P/1 - Você estava com ele no momento em que ele foi preso?
R - Não.
P/1 - Perto dele?
R - Não, eu tava no momento em que ele foi caçado, no momento em que ele sai do governo e depois ele volta para a Câmara. E aí ele discute com a equipe dele quem vai com ele pra a Câmara e quem ficava no governo. Eu estava muito dividido e eu me coloquei à disposição para ir para ele para o governo, para a Câmara, e ficou decidido que eu ia com ele na Câmara. Aí passou, no outro dia teve uma reunião de novo com o gabinete e ele disse, não, o Rogério vai ficar aqui no governo, quem vai comigo é o Fulano, Beltrano e Ciclano. E eu acho que ele... O Zé é um cara muito perspicaz. Primeiro que ele sabe que eu não tenho um perfil para disputa política. E lá ia ser uma guerra. E ele precisava de alguém que tinha esse estômago, que ele tinha, para aguentar aquela loucura e que eu tinha muito maior contribuição a dar aqui. Ele precisava de alguém que poderia contribuir muito mais do que eu com ele lá. Eu acho que foi isso. Ele não falou, eu não perguntei. Tá decidido, tá decidido. Então, foi um negócio muito difícil. Minhas manhãs no governo inicial eram uma loucura, porque eu caminhava todos os dias, uns seis, sete quilômetros de manhã cedo, naquelas interquadras. Gente, era uma tristeza, porque eu ia deprimido, angustiado, porque aquela questão do mensalão, eu não aguentava mais, eu não aguentava mais, sabe? E naquelas quadras, Brasília é isso, né? Tu tá passando pelos canalhas, que estão falando isso de você, os caiados da vida, os deputados tão tudo caminhando aí, os caras que estão fazendo essa disputa política. E eu levava tudo para o lado pessoal, eu levava para a minha… pra dentro de mim aquilo. Me foi um sofrimento, um sofrimento. E agradeço até hoje o Zé não ter me levado pra Câmara por conta disso. E aí a Dilma assume à Casa Civil e me convida pra continuar na Casa Civil. E eu aceitei, num primeiro momento, por não ter outra alternativa naquele momento. Adorava a Dilma, mas sabia que a Dilma era uma pessoa muito… a minha relação com a Dilma foi muito importante. Ela na Minas Energia e o Zé na Casa Civil, os dois conversavam muito. E ela gostou de mim. Eu não conhecia a Dilma do Rio Grande do Sul, porque eu saí de lá muito antes. Conheci ela na transição. E teve uma empatia de cara com a Dilma. Então, quando saía a questão dos movimentos sociais, a Dilma ligava para o Zé e dizia assim: “Zé, essa questão do luz para todos, nós precisamos construir junto, porque senão vai virar uma moeda de troca desses inimigos nossos no Brasil inteiro. Então, porque nós precisamos botar um coordenador da nossa confiança em cada estado para construir luz para todos”. No Maranhão, o Sarney vai botar o cara dele, sabe? E vai fazer política. É o Sarney que vai. Nós temos que botar gente de nós. Aí o Zé me botou para ser o cara, para ir ajudar com quem a Dilma botou, dela lá pra gente construir junto as construções e tal. Então a gente começou… e a Dilma gostou muito disso daí, então começou a ter, o MAB invadiu o Ministério de Minas e Energia e a Dilma, Sottili, vem me ajudar aqui, vem me ajudar a mediar aqui que os caras invadiram e tal. Eu ia lá e tal, então, a gente sempre teve uma empatia muito, muito legal em relação a isso. Então, quando ela foi pra Casa Civil, ela me convidou pra ficar. Mas eu sabia que todo mundo falava que ela era muito dura. E eu disse, puta, eu não quero gente muito dura. O Zé já era muito duro. Eu tinha amolecido o Zé, porque a gente trabalhou junto e tal, né? E eu não tava querendo assim. Aí o Dulce me convidou pra ir trabalhar com ele na Secretaria-Geral. Naquele momento era coordenar o Prêmio ODM Brasil, né? E eu tinha a Secretaria Geral como a Secretaria, o Ministério do Governo que trabalha a participação social. Puta, tudo que eu fiz na minha vida. Aí, eu agradeci para a Dilma, o Dulce me convidou também, eu acho que lá tem mais a ver comigo e tal, e eu tô cansado um pouco aqui da Casa Civil, por conta todo o processo de instalação, ela foi de boa e tal. E me arrependi e não me arrependi de ir pro Dulce, porque o Dulce é uma pessoa muito difícil de trabalhar. É mineiro, né? Aquela coisa toda, tudo tem que pensar muito, tudo é muito difícil, tudo tem que... os fluxos. Eu sou gaúcho, acelerado. Trabalhei com o Zé de Dirceu que é mais acelerado ainda. Entende? Fui coordenar um negócio que tinha que despachar com ele e ele disse, não, não dá assim, não vai sair prêmio nenhum. Aí comecei a desrespeitar, nesse sentido, o Dulce, a passar por cima. Eu decidi as coisas e bancava. Se o Dulce não gostar, ele que me demita, né? Porque senão não vai sair prêmio. E a gente...
P/1 - O que é eses prêmio?
R - O prêmio é o seguinte, o Brasil tinha assumido junto à ONU, tá? E fez um pacto com empresas e a sociedade de fio brasileiro, de que ele ia perseguir os objetivos do milênio, que era da ONU. Erradicação de um analfabetismo, na educação não sei o que, na questão da saúde, na questão da fome, bababá e tal. E o que a gente construiu? Esse prêmio ele premiava as organizações e as instituições que tinham trabalhado para ajudar a alcançar esses objetivos. Então era uma forma de motivar-se a trabalhar mais ainda para atingir os objetivos do milênio. E era muito legal, era um prêmio nacional, era para ser um negócio bombástico, assim, para repercutir internacionalmente e tal. E o prêmio, quando eu peguei, não tinha nada organizado, tinha uma coisa assim, não vai sair, o prêmio era para ser em dezembro, se eu não me engano. Disse assim, ó: eu vou pegar isso. Eu comecei a decidir. E aí tudo que eu pensava eu tinha que conversar. eu tinha que ter a concordância do Dulce, que, por sua vez, como bom mineiro, queria ouvir o presidente. Gente, não dá, assim não vai dar. Aí eu comecei a tocar e o Dulce começou a se sentir meio patrolado, mas ele foi generoso comigo, eu acho, o que ele achava demais... e eu dizia, Dulce, se a gente não faz assim, não vai sair, tá? Se você não gostar, eu tô botando a cara pra você me cortar, a cabeça pra você me cortar. E vamo embora, né? Cara, foi um puta prêmio, foi lindo, teve mil e tantas pessoas no prêmio, inscrições, construímos um jurado de primeira, Thiago de Mello, Serginho Groismann, eu lembro que estava, a maior referência de saúde, que não era o Adib Jatene, mas era um cara assim, sabe? Então pegamos um jurado de renome, sabe? Um negócio muito legal, assim. O Lula ficou feliz da vida e tal. Aí acabou o prêmio, aí o Gilberto Carvalho e o César Alvarez me procuram e me convidam para tá no gabinete do presidente com eles, ajudando no gabinete do presidente. E eu topo, evidentemente, porque senão aqui na Secretaria Geral eu não vou conseguir trabalhar com o jeito do Dulce. E o Dulce é um quadraço político, um cara próximo do presidente, tinha essa questão da secretaria-geral, participação social e é um cara que uma visão política maravilhosa, um cara fundamental que tá lá. Uma pena, eu sinto hoje que, hoje no governo Lula, não tem uma cabeça do Dulce, do Zé Dirceu, do Luiz Gushiken, do Palocci. Eram quatroné? Saiu o espadachim do Lula. Era verdade. Eram quatro cabeças incríveis que ajudavam o Lula a pensar e tomar decisão. E eu não vejo isso. E o Gilberto Carvalho, que também é outro quadro importante na chefia de gabinete. Mas me chamaram para ir para lá. Nesse momento, chegou o Paulo Vannuchi, que era meu amigo, desde sempre, aqui de São Paulo. Em Brasília: “Tô aqui em Brasília, quero falar com você e tal”. Puta, eu acabei de ser convocado pelo presidente para assumir o Ministério dos Direitos Humanos, que fizeram uma barbaridade, rebaixaram o status do ministério, foi uma burrada e agora querem levar. O Lula, segundo o Vannuchi, tava meio insatisfeito com o que o ministério tinha sido feito até então, queria dar umas respostas. E o Paulinho disse, ó: que nunca quis ir para cá, já tinha negado outra vez, mas agora por conta da crise não tem como dizer não. Mas eu não entendo nada, eu preciso de você lá comigo. E aí eu ligo para o César Alvarez e digo, César tem essa questão, tudo bem. Aí foi resolvido. Aí eu pedi para o Paulinho falar com o César. Na verdade, fala com o César. E aí eu vou com o Paulo Vannuchi para os direitos humanos. E é outra experiência única que a gente constroi. Porque assim, existia a Secretaria Especial de Direitos Humanos com status de ministério, mas não era um ministério, porque não tinha orçamento, não tinha estrutura, vivia num puxadinho do Ministério da Justiça. Não tinha nem prédio, nem sala. Tinha sala e tal. Cara, um negócio muito ridículo. Você nunca vai ter que ganhar importância você vivendo na sombra do Ministério da Justiça. Aí a gente faz um... vamos reestruturar. Vamos fazer uma estrutura. O que a gente quer? Precisa de cargo. Eu começo discussão com o Ministério do Planejamento, né, orçamento e papapá. Precisamos de orçamento próprio. Não é a justiça que vai dizer qual é o nosso orçamento. Quero orçamento próprio. Quero estrutura própria. E a gente começa um processo de negociação com o planejamento. Nós queremos casa própria. Quero prédio próprio, que tenha bem grande: “Ministério dos Direitos Humanos”. As pessoas têm que ver assim e tal. E foi um negócio incrível, né? Fizemos isso, reestruturamos, ganhamos um monte de cargo, ganhamos um puta orçamento. O orçamento da Secretaria de Direitos Humanos, quando nós chegamos, era 30 milhões de reais. Quando nós saímos, era 300 milhões de reais. Então, assim, foi um negócio incrível, né? Em todas as áreas, na área de crianças e adolescentes, pessoas com deficiência. E aí, o Vannuchi, pra mim, foi uma experiência única, do ponto de vista de trabalhar com ele, um cara respeitoso. A gente era amigo, tinha medo. Porque amigo é ruim de trabalhar, porque todas essas pessoas que militaram na ALN vêm com viés meio autoritário às vezes também. O Zé Dirceu tinha um viés meio autoritário, o Paulinho Vannuchi também achava isso. Mas esse cara é um cara incrível, um cara que me respeitou do primeiro ao último dia e sempre assim publicamente, internamente, dizia o seguinte: aqui não tem um ministro, tem dois ministros. O que ele falar, ele está falando por mim. E falava isso publicamente e falava isso internamente. Eu me senti muito empoderado para fazer o que tinha. Eu ligava e como todo mundo achava que o Paulo Vannuchi era o melhor amigo íntimo do Lula, que não era, era amigo do Lula, trabalhou 50 anos com o Lula, mas não era essa coisa, mas todo mundo achava isso. E eu utilizava isso. Eu ligava para os caras, eles achavam que quem estava falando era o melhor amigo íntimo do Lula. Entende? E eu dava carteiraça. O Lula pediu para ver isso nos ministérios. E a gente conseguiu fazer um governo, uma Secretaria de Direitos Humanos, que construía políticas públicas transversal, construindo com a participação de todos os ministérios. Eles cumpriam a parte de cada um, fazia um negócio incrível. E o Paulo Vannuchi tinha uma questão muito importante na questão da memória, por causa da ditadura, desaparecidos políticos, nós tivemos muita dificuldade. Então, ele começa a fazer um processo de reparação, pelo menos simbólica, de inaugurar monumentos nos estados onde tinham desaparecidos políticos, prestar homenagem. Começa a fazer um trabalho para tentar identificar ossadas, para ver se identificava… mas com muita dificuldade, porque não tinha técnica, não tinha recursos. E a gente começa a fazer, nós contratamos um laboratório da Suíça, com recursos que não podia ser público, porque não tinha chamamento. Então, uma pessoa pagou voluntariamente, privada, para identificar a ossada. Então, era uma coisa...
P/1 - Com medidor, não é?
R - Era outra técnica, um DNA para ver se aquela ossada... Não sei como era, mas nós identificamos uma ou duas ossadas assim. Mas ele pegou o valor que começou a trabalhar muito o aspecto cultural na questão dos direitos humanos. Ele tinha uma ideia assim, de que: gente, não dá para discutir direitos humanos e só falar de morte, sabe? Vamos tentar encontrar novas linguagens para abrir a cabeça das pessoas. Então, ele inventa um festival de cinema em direitos humanos e inventa um prêmio, não sei o quê. Então, nós começamos a pegar esse negócio. E no festival de cinema começou em quatro capitais. E, de repente, terminou em todas as capitais do Brasil, acontecendo simultaneamente uma mostra de cinema na América do Sul. Nós levamos isso para a África do Sul, levamos para a Argentina, e foi muito forte, muito legal. Tem uma situação bem interessante, que a mostra de cinema a gente fazia com a Cinemateca do Brasil, aqui em São Paulo. O curador era o Chiquinho, Chico César, Francisco César Filho. E aí nós estávamos numa reunião avaliando como vai ser a próxima. E eu dizia, gente, eu ainda acho que tem pouca gente, sabe? Repercute pouco na imprensa, na mídia, sabe? Como é que a gente pode furar isso? Aí eu experimentei uma ideia assim, ó: a gente precisaria trazer gente importante, sabe? Que dê manchete, que dê TV, sabe? Alguém que a gente... “Ah, puta ideia, quem que a gente pode trazer?" E eu lembrei, eu recentemente tinha assistido “O Segredo dos Seus Olhos”, precisamos trazer o Ricardo Darín, pra cá. Pô, tá legal, tem que ser o Ricardo Darín, aquela coisa toda, porque isso dá mídia, aquela coisa toda. Aí eu conheço alguém que conhece a produtora do Ricardo Darín e tal, mas vamos embora. É claro, né? Produtor que conhece produtor, né? A Ricardo Darín, nem mora mais na Argentina, tá em Barcelona, tá na Espanha, já tá com agenda, né? Já tá fechado. Em dezembro, nem pensar e tal. E aí, eu disse, não, cara, será que... Eu sempre fui uma pessoa que assim, ó, né? A minha filha disse que eu sou inimigo do fim, eu sou... Todo mundo vai dormir, acaba e eu não consigo... Minha bateria sempre tá... pilhada. E eu nunca desisto, sou muito insistente. Eu sempre acho que é possível ou impossível, senão não tem jeito. Eu tinha um amigo meu que trabalhava na Embaixada do Brasil, em Buenos Aires, Thiago Melamed. Eu liguei para o Thiago e perguntei se ele tinha como conseguir o contato do Ricardo Darín. E, não, eu consigo e tal. Aí ele conseguiu. Tiago, você não tem como ir falar com o Ricardo Darín em nome do governo brasileiro, né? Rogério, né, diplomata e tudo assim, ele era muito meu amigo, parceiraço, assim. Mas é importante falar com o embaixador, sabe? Para não passar por cima dele, essa coisa. Porque o Ricardo Darín é uma personalidade, não posso, né? Aí eu falava com o embaixador, o embaixador mandava alguém falar de forma burocrática. Aí como o cara responsável por isso não era o Thiago, o embaixador mandava outro cara que tratava de forma burocrática. E eu disse assim, puta, Thiago, tu tem que me ajudar, eu preciso falar com o Ricardo Darín. Aí o Thiago, na camufla, assim, descobre, o Ricardo Darín tá em Buenos Aires. Eu preciso falar com ele. Tu tem que fazer chegar o recado pra ele. Qual é o recado? O recado é o seguinte, que eu tô indo pra lá com o emissário do presidente Lula pra fazer um convite pra ele. E aí o Thiago, como é que eu vou fazer isso? Que ele não queria passar para cima do embaixador e nem para o outro cara que tinha passado e tal. E mais do que isso, tem uma reunião das altas autoridades do Mercosul acontecendo em San Juan, que era próximo de Mendonça, que o Lula iria, a Cristina Kirchner, que era a presidente, iria e todo mundo, e eu ia também na comitiva. Eu dava um jeito de ir para a comitiva. Eu vou pra São Juan e tu diz o seguinte: que eu já tô na Argentina pra ir conversar com ele a mando do Lula, tá? Bom, eu não sei como, mas o Thiago conseguiu chegar e o Ricardo Darín recebeu: “Claro que sim, converso com vocês e tal. Qual é a data?” Tal data. Depois do encontro lá, eu iria pra Buenos Aires pra conversar com ele, né? E eu disse, ó, aonde ele quiser, eu vou na casa dele. Não, aonde? Aí eu quis fazer uma média com o embaixador. Não, convida ele pra ir na embaixada, né? E o Ricardo Darín vai pra lá, né? O embaixador ficou, nossa, feliz da vida, receber o Ricardo Darín na Embaixada do Brasil, pra ele era o, era o, era a manchete do ano, né? E eu lembro, foi incrível, assim, tava o Darín, né, o Tiago, o embaixador e eu. E aí eu agradeço, vim aqui, pedido do presidente Lula, e é o seguinte, Darín, o presidente Lula instalou um prêmio… não um prêmio não, tem uma mostra de Cinema e Direitos Humanos, que quem realiza é o Ministério dos Direitos Humanos da Presidência da República, e nós resolvemos homenagear um cineasta todos os anos. Esse é o primeiro ano. E nós conversamos isso com o presidente Lula. Tinha falado com o presidente Lula. E a ideia nossa era que tinha que ser o Ricardo Darín. E o Lula achou que tinha que convidar o Ricardo Darín para vir receber essa homenagem no Brasil. E eu faço uma conversa. Não lembro o que eu falei assim e tal. E eu sabendo que, teriam me dito, que ele estava com filme filmando na Espanha, que ele não ia estar aí em dezembro. E aí ele falou: “mas claro que eu vou, jamais poderia deixar de atender um pedido do presidente Lula, sabe? Jamais poderia deixar de atender um pedido desse do presidente Lula, que é o nosso líder, que tem um reconhecimento, que é o, né? Eu só quero dizer para você, eu não sabia que fazia filme de direitos humanos, ele falou. Eu não sabia”. Darín, os filmes todos que você faz, Segredos dos Meus Olhos, todos os outros filmes, (inaudível) não sei o quê e tal, todos têm um apelo da linguagem dos direitos humanos, é isso que nós precisamos. E eu disse, que bom, então você tá aceitando? “Claro que eu tô aceitando”. Mas você pode, esse dia? “Não sei se eu posso, mas esse, né, não sei se eu poderia, mas eu posso porque eu vou, eu ajusto minha agenda", ele disse. Então, a gente convidou ele para abrir a mostra em São Paulo, que foi incrível, porque aí deu puta manchete de todos os jornais, capa de todos os jornais. O cinema teve duas voltas. Foi no Cine Sesc da Augusta, abertura, lotado de gente fora. Depois, fizemos uma apresentação na Cinemateca e foi muito legal. E, à noite, a gente foi no Petit Comité, 10 pessoas, nós fomos no Dom, jantar com ele, tava ele e a esposa dele. E fomos jantar lá, tomar vinho e tal. E aí o dono lá do Dom, viu que era o Darín que tava lá, nós estávamos num lugar que só tava a gente, tinha um casal que saíram. Era uma da manhã, ficamos sozinhos lá e o cara do Dom foi lá e disse: “agora eu vou servir vocês”. Vinho e ele começou a fazer degustação e gente, nós bebemos toda.
R - Ele tava com a mulher… que ele era casado com a…
P/1 - Eu não lembro.
R - Já era com a Penélope?
P/1 - É, eu acho que... Não, não, não. Não, não era a Penélope, não. Era antes, era... Não sei se é a Regi... Não lembro, tá? A esposa dele. E foi lindo assim, né? E, puta, ficamos até as quatro e pouco da manhã. Ficamos completamente bêbados e saímos de lá convictos e organizamos uma viagem, todos nós dez, né? Que ele queria muito conhecer a Amazônia. E o Vanu, que tava lá na hora, ligou para o André Villas-Bôas, que era cunhado do Paulinho, antes tinha sido cunhado do Paulinho, que é do ISA, e o ISA tinha um barco. E aí o Paulinho falou, não, está à disposição, o barco tem para tantas pessoas e tal. Então, nós já saímos de lá programados, já tinha data, que era no ano seguinte, não sei se era junho e tal. Aí nós nunca mais falamos. Foi coisa de bêbado, né? Foi uma experiência incrível. Mas essa discussão dos direitos humanos, pela pegada cultural, foi um negócio muito importante e que eu trago para mim na minha vida toda. E aí eu fiquei lá nos direitos humanos. Depois, quando o Lula sai do governo, a Dilma assume a presidência da república. A Maria do Rosário foi convidada pela Dilma para ser…
P/1 - Você ficou nos dois mandatos, né?
R - Os dois mandatos inteiros do Lula.
P/1 - E aí, quando acabou?
R - Quando acabou…
P/1 - Fez campanha?
R - Não, eu estava no governo direto, nos direitos humanos. Aí a Dilma convidou a Marieta do Rosário para ser ministra dos Direitos Humanos. E a Maria do Rosário me convidou para ser… continuar no mesmo lugar que eu tava, que eu era o vice, eu era o segundo, né, do Paulo Vanucchi. Chama secretário executivo. E ela me convidou e eu aceitei inicialmente, mas eu senti que não ia dar certo, né, porque ela tinha toda a legitimidade de imprimir a marca dela, a característica dela, de fazer, e tudo isso significava mudar o que eu tinha construído com o Vannuchi. Então ia ter uma resistência natural minha e tal. Então eu tava um pouco incomodado com isso, mas eu tinha aceitado. Mas, assim, isso não vai dar muito certo. E isso tudo antes da posse, tá? Ela não tinha tomado posse nem nada, eu tava ainda lá com o Vannuchi. Aí o Gilberto Carvalho me liga e diz o seguinte: “Rogério, a Dilma me convidou para ser o secretário-geral da presidência”. E como eu sabia que o Gilberto era um cara muito forte, muito importante, e que ia ser muito importante para a Dilma. E ele disse assim: “ó, eu queria que tu te convidasse, tu toparia ser secretário-executivo meu na Secretaria-Geral. Porque eu vou ter que estar muito junto com a Dilma e tu toca o Ministério”. Ah, topo, eu disse, na hora. “Mas me falaram que a Rosário tinha te convidado pra conversar”. Não, ela me convidou, mas eu topo ficar com você. “Não, mas tu não quer pensar?” Não, topo. E aí o Gilberto falou assim, então eu vou falar com a Rosário. Não precisa, eu falo com ela, mas se tu quiser falar, pode falar, uma coisa assim. Aí falei pra Maria do Rosário. E eu fui feliz da vida. Aí era dezembro, véspera de Natal. Eu pego o avião para passar o Natal com a minha família em Porto Alegre. E o Lula e o Gilberto, a Dilma, todo mundo vem para cá, na véspera de Natal, sempre tem o Natal com os catadores. E eles vêm para cá e eu fui para o Porto Alegre passar o Natal. Aí eu chego no aeroporto de Porto Alegre, eu pego o celular. Puta, umas 10 ligações do Gilberto no meu celular. Aí eu ligo. “Aí, Gilberto, o gato subiu no telhado, ele disse”. O que houve? “A Dilma me pegou aqui no Natal dos Catadores e perguntou: ‘e daí, Gilberto, já montou o teu gabinete?’ Eu disse, não, já está montado. Convidei o Sottili para ser meu secretário executivo. ‘Não, não, não. Eu quero ele no meu gabinete. Porque o Giles, que é o meu chefe de gabinete, tá com uma doença, tá com um problema de saúde, e eu gostaria que ele dividisse com o Gilles a chefia de gabinete, para me ajudar’. E tu sabe, Rogério, não dá para dizer não para a presidente”. E eu disse, é, eu não posso dizer não, Gilberto, mas você pode. Com o seguinte narrativo, porque eu não queria, eu tinha medo da Dilma, estressada, porque estar trabalhando com ela longe é uma coisa, mas estar do lado dela, eu prefiro não. Eu disse, Gilberto, você tem que convencer com ela que você precisa estar do lado dela, que tu vai ajudar muito ela, e para você estar do lado dela, você precisa de mim aqui para segurar o ministério. É essa a discussão que tem que fazer. Ai, não sei, caramba. Vai, vai, vai passar o Natal, vamos ver como é que faz. Aí, passou o Natal, ele me ligou. “Falei com a Dilma. Ela disse tudo bem”. Fiquei feliz da vida. Aí eu volto pra ser o secretário executivo na Secretaria Geral. E aí, na Secretaria Geral, foi uma experiência muito importante. Tudo é diferente. O perfil do Gilberto é totalmente diferente do Paulo Vannuchi. O Paulo Vannuchi e o Gilberto são diferentes do José Dirceu. Então, foi um acúmulo de experiência muito incrível. E aí, nós aprovamos o MIROSC, o Marco Regulatório da Sociedade Civil. Vivemos situações muito delicadas com a Dilma.
P/1 - Como que foi essa experiência do Marco Civil Regulatório?
R - Então, foi uma coisa muito difícil porque a Dilma fez um decreto, eu não lembro exatamente o que foi, que mandou suspender todos os convênios com as organizações da sociedade civil. Foi um horror, um erro político incalculável. A Dilma tinha dificuldade de ouvir o Gilberto. Ou o Gilberto tinha dificuldade de falar com ela. É um dos dois. Mas o Gilberto sabia que isso era um pepino, que não podia ser e tal. E ela saiu. Saiu o decreto na Casa Civil. A chefe da Casa Civil na época, se não me engano, era a Gleisi Hoffmann. Começou com o Palocci, o Palocci mudou, foi a Gleisi. E não foi legal, tinha problemas de relação de Gilberto com a Gleisi. Política, porque a Gleisi coordenava o governo, tinha algumas limitações, cumpria muito o que a Dilma mandava e o Gilberto tinha que fazer o contraponto da sociedade civil, segurar. Então teve um tensionamento e acabou saindo o decreto sem a nossa participação, que foi um caos. E aí, a sociedade civil enlouqueceu, porque muita gente vivia disso, sabe? Parou tudo, não tinha mais repasse. E aí, o que aconteceu? A sociedade civil começou a procurar gente, reuniões, etc. Então, nós tínhamos estratégias. Então, por exemplo, eu não lembro, tô com dificuldade de nomes, mas um cara que foi um cara fundador da FASE Nacional, ele é do Rio de Janeiro, Ele é muito amigo da Dilma, tiveram preso juntos. A Dilma gosta muito dele. Então, nós precisamos chamar ele para vir para cá, mais algumas outras pessoas com quem a Dilma tinha, para fazer uma conversa com ela, para ver se ela ouve sobre isso daí. Mas qual é a narrativa? Então, nós discutimos. Vamos fazer disso uma limonada. Porque tava muito ruim antes também. Não tinha marco regulatório da sociedade civil. Você não tinha regras de como você convênia. Tudo era dificuldade para a sociedade civil. Então, a sociedade civil também reclamava sobre isso. Então, como é que a gente pode botar no colo dela a seguinte narrativa? Tava ruim para a sociedade civil. Então, nós vamos construir um marco regulatório para melhorar a vida das organizações e tirar um grupo de trabalho para montar isso imediatamente. E aí ela se sensibilizou e a gente começa o processo de construção do marco regulatório da sociedade civil. Eu começo a coordenar esse processo. E nesse momento volta dos Estados Unidos uma figura que tinha trabalhado com Gilberto Carvalho, uma figura muito importante, que é o Diogo. O Diogo tinha trabalhado com o Gilberto, ele faleceu agora durante a pandemia num acidente trágico, morreu eletrocutado em Florianópolis, no final do ano; mas o Diogo voltou para o Brasil, ele era casado com uma diplomata, tava em Nova York, estudou lá e eles voltaram. E aí eu conversei com o Gilberto, que eu era secretário executivo, que o Diogo deveria ser o chefe de gabinete do Gilberto. Ajudaria muito e tal. E o Gilberto topou, eu conversei com o Diogo, ele não estava querendo vir para o governo, mas eu convenci, ele gostou e veio, e aí eu pedi para ele tocar a questão de coordenar a questão do marco regulatório, dividir porque tinha muita coisa e tal. E o Diogo, puta, né, um cara com uma qualidade incrível, advogado, conhecia os problemas, montou uma equipe para trabalhar isso, então tocou a questão do marco regulatório. Então, se deu assim, né? Demorou muito, tivemos muitos problemas nesse processo, nessa dificuldade. A Dilma teve uma dificuldade de trabalhar, de perceber as dificuldades que isso estava impondo à sociedade civil. E não acho que se resolveu, hipótese alguma, mas teve um encaminhamento, pelo menos.
P/1 - Aí você ficou até?
R - Bom, aí o que aconteceu? Eu tava na Secretaria Geral, tava bem feliz na Secretaria Geral, tava amando Brasília, a minha companheira, a Erika, trabalhava lá também, tava feliz da vida. Nasceu o Pedro, o nosso filho, em Brasília. Também tava adorando. Então, assim, tava tudo muito organizado. Aí um dia o... O Vannuchi me liga, também, tudo acontece perto do final do ano, né? Tudo acontece perto do final do ano. E devia ser início de dezembro e tal, eu tava num domingo na casa dos amigos, e aí o Vannuchi me liga, assim, ó: “o Haddad me pediu pra sondar você pra ser secretário de Direitos Humanos da Prefeitura de São Paulo”. A primeira reação que eu tive foi, fora, eu tô aqui, num lugar super importante, num momento super importante. E o Paulinho usou a amizade que tinha comigo. E ele e disse: “não responde agora, pensa um pouquinho. Agora, considere o seguinte: na vida toda você sempre foi o segundo”, ele disse, “talvez a oportunidade de você ser o primeiro”. Isso me pegou de cara, porque eu tinha sido o segundo do Paulo Vanucchi, lá o segundo do Zé Dirceu, quase o segundo, nem o segundo. O segundo na Secretaria Agrária, o secretário agrário político era o Geraldo Pastana, era o Plínio Sampaio, eu era o cara que tocava a máquina. Era o segundo, não era o primeiro. Quem tava na vitrine era eles e tal, né? O Paulinho tava na vitrine, eu tava no segundo, o Gilberto tava na vitrine, eu tava no segundo. Pô, ele me pegou isso, cara, e aí desmontou, né? Então foi um sofrimento, foi uma coisa muito sofrida. E aí eu sinalizei sim, o Haddad me ligou e eu topei, né? E o Haddad me espantou, porque o Haddad, assim... “Ele aceitou?! Eu gosto muito do Rogerinho e tal, ele aceitou e tal, não sei o quê”. Eu não tinha terminado de contar a história lá do Haddad para a Secretaria Executiva, depois eu queria retomar porque foi muito engraçado, porque depois eu falei para ele e o Haddad não lembrava. E eu achei estranho, como é que o cara pode se espantar de que eu não poderia aceitar um honroso convite como esse? Depois eu fui entender. Bom, aí ele me chama pra vir pra cá, uma reunião lá com os secretários que tinham convidado e estudantes da pós. E aí ele faz uma reunião e tal, esquisita, aí eu vou conversar. Eu não consigo conversar com ninguém, essas coisas ninguém... Aí eu cheguei pro, pro, pro, pro Donato, que era o secretário de governo, disse: Donato, tá difícil, eu preciso conversar com alguém que me ajude a pensar. Não existe secretário de governo, mas como é que eu faço? Tem que começar a trabalhar sobre isso. Eu preciso fazer uma transição. Me diz com quem eu converso. Só me diz com quem. Ele disse, “não, fala com o Márcio Neto, que era o secretário de Assuntos Jurídicos, já tinha sido escolhido, e comigo”. Tá beleza. Então, tu me autoriza, eu vou montar uma equipe e vou começar a trabalhar um desenho e vou começar a discutir com vocês. E aí, claro, eu viajo, porque eu monto um ministério quase. Aí tinha uma pessoa muito importante para mim, que é a Larissa, que tinha trabalhado comigo em Brasília, tava em São Paulo, era gestora pública do Ministério do Planejamento, locutada em São Paulo, e mais umas outras pessoas que tinham trabalhado comigo lá em Brasília, Luana Bottini, companheira do Pierre Paolo Bottini, mais umas outras pessoas. Fizemos um grupinho, vamos desenhar a Secretaria de Direitos Humanos. A luz da nossa experiência do governo federal. Começou aqui, pá, pá. Coordenações. Tinha 14 coordenações. Aí fui conversar com o (inaudível), ele foi me autorizando, o Donato também. Aí, beleza. E como não existia, eu tinha que juntar a estrutura que existia de uma secretária que tinha sido extinta, que era de participações e parcerias, que não tinha nada a ver com direitos humanos, e tinha um conselho de direitos humanos da Prefeitura, que era o Zé Gregori. Porque o Zé Gregóri era presidente do conselho, mas com status de secretário, mas não existia secretaria, tinha um conselho, que era tipo uma ouvidoria. Eu tinha que juntar as duas estruturas e fazer, então nós começamos a discutir. Aí quando eu vou conversar com o Haddad e eu apresento para ele, aí só depois da posse dele. Eu apresento para ele, ele caiu de costas. “Cara, você quer um ministério, ele disse”. Não, Haddad, direitos humanos é isso. Eu tô juntando. Então, começou um estresse aí, porque ele queria cortar. Ele tinha 14 coordenações. Coordenação de criança e adolescente, idosos, cidade, imigrantes, LGBT e vai, direito à memória e verdade, 14. E são os temas que permeiam a cidade. É a transversalidade, é não sei o quê. Depois foi me dar conta de que o Haddad achava que eu ia ser um Zé Gregório, que era sumir. Por isso que ele se espantou que eu aceitei, que era um cargo de status de secretário, que ia ficar lá. Eu tinha um cargo muito mais importante em Brasília, mas não era isso que eu queria. Eu lembro que, antes da posse, fui visitar o Zé Gregório no cargo de secretário. O Zé Gregório é uma figura que eu tenho um carinho, um respeito e uma admiração incrível. Eu fui conversar com ele, ele me contando e tal. E uma coisa que ele me falou, aí é importante pra mim. Ele disse, “Rogério, é o seguinte, o Kassab, ele era secretário do Kassab, né? Ele disse o seguinte, ó, o Kassab pode falar tudo de mim, sabe? Mas ele não pode falar que eu dei trabalho pra ele”. Eu não falei para o Zé Gregório em respeito a ele, mas eu vou ser exatamente o contrário do Zé Gregório. Eu vou ter que dar muito trabalho para o prefeito, porque você não tem direitos humanos na cidade. Então, eu consegui, montei uma equipe incrível. Eu tinha saído do governo federal, tanto da Secretaria Geral, quanto da Secretaria de Direitos Humanos, com o reconhecimento de que sabia montar equipe, gestão, as coisas fluíam super bem. E eu queria fazer isso em São Paulo. Então, a gente construiu um negócio muito legal, muito legal. construção de políticas públicas, o Transcidadania nasceu aí, conversa, discussão. Transcidadania foi incrível. Um dia o Haddad chegou para mim, depois de uma reunião, e disse assim: “Rogério, você tem que me ajudar. Eu saio da casa da minha mãe todos os domingos do almoço, e com minhas crianças, minhas filhas pequenas e tal, e tem aquelas travestis desnudas, com o peito para fora. É constrangedor isso. Nós temos que pensar uma política de oferecer alguma alternativa para elas. Você tem que me ajudar nisso”. E eu, puta, agora como vamos fazer? Aí eu começo a discussão interna, vamos ver o que existe. Primeira coisa, essa visão que o Haddad traz é uma visão higienista, tem que tirar da rua, não é por aí. Mas eu também vou aprendendo nisso, sabe, Rosana? Porque a população LGBTQI+, é o direito dela. O travesti tem o direito, a prostituta tem o direito de ser prostituta, fazer o que quiser da vida. Isso não tem que ser um problema. O que é o problema é a pessoa se submeter a determinadas condições contra a vontade dela, por falta de alternativa, por exemplo. Eu aprendo aí, eu não sabia disso antes, e eu já estava nos direitos humanos há muito tempo. Eu vou aprendendo nesse debate, nessa conversa. Então a gente começa, assim, vamos procurar alguma experiência internacional que tenha programa para travestis e transexuais. Puta, primeira coisa, não existe nada no mundo, nenhuma experiência. Existiu uma coisa muito pontual na Dinamarca e no Uruguai, muito pontual. Então nós temos que começar novo. Aí a gente precisa conhecer essa população. Então tu faz uma pesquisa, aí tu descobre o quê? Que é uma população que tem uma média de vida de 40 anos de idade, geralmente, ela morre de violência ou de doença. Ela é 80% analfabeta, que não tem o ensino fundamental, porque uma porcentagem enorme é de pessoas que saíram de casa com 14 anos porque a família não aceitou ela LGBT. Então, ela sai, vai para a cidade grande e a prostituição vira a única forma de sobrevivência. E a prostituição tira a possibilidade dela trabalhar, porque ela não tem ensino fundamental. Então, nessa discussão, a gente descobre que o ensino é o carro-chefe. E se ela não tiver educação, ela não vai conseguir outro trabalho. Agora, como é que se oferece educação se ela precisa comer? Entende? Porque se ela não está na rua trabalhando, ela está na escola. Se ela está na escola, não tá na rua trabalhando, então não tem comida. Então vem a história da bolsa. Então a gente vai construindo um projeto nessa escuta, sabe? E virou um projeto maravilhoso, que virou referência internacional. Eu lembro que, naquela época, uma honra nossa, para nós era assim, o Obama, que era presidente dos Estados Unidos, mandou um assessor dele vir conhecer o Transcidadania para implementar nos Estados Unidos. Então foi um negócio incrível. E até hoje, ainda, o Transcidadania, quando eu tava saindo do governo, eu não vou me emocionar agora, porque eu sempre me emociono quando eu conto essa história. Tinha uma Blenda, se não me engano, ela era uma travesti. E ela fez o Transcidadania. Aí, quando eu tava saindo, ela pediu uma audiência comigo, que ela queria conversar comigo. Claro que eu atendi. Veio ela e uma outra travesti. E ela disse assim, ó: “Rogério, eu venho aqui pra te agradecer, em primeiro lugar, porque você salvou a minha vida, porque eu tenho quarenta e poucos anos de idade e a média de vida nossa é essa idade. Então, assim, eu poderia estar morta hoje se não fosse a Transcidadania. Então, eu queria te agradecer muito. E eu sei que agradecimento também é pouco. Então, eu assumi o compromisso que eu quero transformar minha vida agora para transformar o Transcidadania em uma política pública. Eu quero aprovar um projeto de lei na Câmara que essa política não deixa de ser uma política de governo, porque acaba o governo Haddad, acaba a política pública. E para isso a gente organizou uma ONG, que eu não lembro o nome da ONG, e eu queria te convidar para ir no lançamento da ONG”. Cara, aquilo me emocionou.
P/1 - Não era a Brenda Lee?
R - Eu acho que é.
P/1 - É, eu sei, a gente fez parceria com ela.
R - Cara, foi um negócio incrível. Então, assim, nós fizemos muita coisa na cidade de São Paulo de política pública. Nós criamos o CRAI, que é o primeiro centro de referência e acolhida do imigrante na cidade de São Paulo. Eu fui para Portugal para conhecer a experiência e é um negócio incrível. É uma casa que recebe até 120 pessoas. Cê imagina um imigrante, que chega do Senegal ou da Bolívia ou sei lá de onde, ele chega aqui, ou da Síria, ele não tem onde ir. Ele vai ser maltratado, ele não sabe português, ele não sabe o que fazer. Então, ele saber que tem um lugar que ele pode ir e vai ser acolhido, e ele pode chegar lá com o filho dele, com a família dele, ele vai ter um lugar onde ele vai tomar banho, ele vai ter o quarto dele, ele vai dormir, ele vai poder ficar três a cinco meses nesse lugar até se estabelecer, e aí vai receber atendimento psicológico, vai receber orientação de advogado. Vai ter aula de português, vai ter o Ministério do Trabalho com um posto aí para orientar para o trabalho. Então, cara, ele vai se sentir muito bem acolhido. Isso tinha em São Paulo, não sei se tem hoje. Isso nós construímos. Então, assim, nós fomos construindo o De Braços Abertos. O De Braços Abertos é uma novela. Coisas que pouca gente sabe, e eu diria, assim, teve duas pessoas, no meu ponto de vista, que talvez tenha a maior responsabilidade para o De Braço Aberto ter sido o que foi. Chama-se, o Lancet, que morreu de câncer, que era um psicanalista argentino, e o Tykanori, que é um psiquiatra importantíssimo também aqui na política de saúde mental no Brasil. Eles foram fundamentais, eles que me ajudaram a ir fazendo, a gente fazia articulações subterrâneas para que as coisas fossem passar de uma forma ou outra, porque o Haddad tinha uma preocupação muito grande com a Cracolândia, sabe? E o Haddad tem uma qualidade absurda, rara, nas pessoas e nas lideranças. Ele é uma pessoa muito permeável. Se ele vai se convencendo do projeto, ele vai incorporando aquilo, ele vai tomando aquilo pra si, ele dá prioridade e as coisas acontecem. A Transcidadania aconteceu, o Haddad começou com uma visão higienista e terminou com uma visão contemporânea, muito mais moderna de todos nós, ele entendeu o transcidadania e incorporou aquilo, e nunca teve problema com transcidadania, com recurso, com nem nada, sabe? E o Braços Abertos foi mudando, ele tinha uma visão, assim, muito de segurança pública, tanto é que ele queria colocar no início, ele botou no início para coordenar o de Braços Abertos, que não era o Braços Abertos, que era nem tinha nome. O que? O secretário de Segurança, que é um cara muito interessante, que era o Roberto, e a Luciana Temer, que era a secretária de Assistência Social. Tá errado, sabe? Tá errado. E a gente não queria brigar internamente sobre isso. Então, eu era muito amigo do Lancet. O Lancet era um cara reconhecido no movimento e não tinha papas na língua, como o argentino. E aí o Lancet chegava: “Não pode ser segurança pública. Pro Haddad. Tem que ter direitos humanos, tem que ter saúde, tem que ter não sei o que”. Mas eu falar pro Lancet, e o Lancet concordava com isso, ele não era um passador de recado, mas eu sensibilizava. Lancet, você tem que falar pro Haddad, porque se eu falar vai parecer aqui uma disputa de secretaria, de espaço, sabe? Então, o Lancet e o Tykanori participaram. Aí a gente começa a criar um comitê com várias secretarias. Aí o Dadi concorda. É um comitê intersecretarial. E a gente convence de que o coordenador fosse da saúde… que o coordenador fosse da saúde, né, que para nós era uma visão mais adequada do que ser assistencialista apenas. E a gente cria um comitê com participação social para ouvir a sociedade civil, dar os feedback, para ir construindo e tal. E o Lancet e o Tykanori sempre participavam. E a gente combinava um pouco para onde eles deviam puxar e fazer a mediação, né? Então, tudo isso foi dando a formatação que, de alguma forma, eu não precisava eu me expor, porque eu não me sentia empoderado o suficiente para um tema como esse, que dependia de muito apoio das outras secretarias e o prefeito não via a gente como protagonista desse processo. Mas a gente estava lá de alguma forma. Então foi muito legal, muito legal essa construção. E sim, só para virar essa página, a questão mais importante na Secretaria de Direitos Humanos é que a gente construiu as rodas de conversas com a população. Então, para cada secretaria, nós tínhamos, de três em três meses, um encontro com a população em lugar público para ouvir. E vinha muita sugestão. Então, o Transcidadania, por exemplo, veio do Haddad naquela observação muito, mas a gente fez lá na galeria Prestes Maia uma reunião com a população LGBT. Cara, a noite, dia de semana, frio, mais de 350 pessoas. Da Laerte tava lá, a pessoas, travestis que se prostituíam no Largo do Arouche, que não eram organizadas com nada. Então, pessoas que tinham microfone para falar. E falavam a questão da ressignificação do Largo do Arouche que a gente fez, falavam da política para a travesti e da violência que sofriam. Então, tudo isso, eu lembro que a gente fez uma roda dessa com a população de rua na Praça da Sé, uma tarde. Caramba, uma loucura, era um microfone e aquele povo doido, falavam o que queria, sentiam pela primeira vez um espaço de fala. Eles não tinham… e nós ouvindo, tinha que ouvir. E muita coisa daquilo a gente anotava. Então, por exemplo, naquilo, você tinha o quê? Parte da população de rua, era gente que tava há muito pouco tempo na rua, menos de um ano. E esse cara tinha raízes muito fortes ainda e desejos de trabalho, de família, de reatar, de sair da rua. Tinha gente que estava há cinco anos na rua, dez anos, esse cara não quer mais, não tem mais laço, não tem mais vínculo. Esse cara não quer morar numa casa, ele quer morar na rua, sabe? Essa é a vida do cara. Então, nós fomos entendendo essa diferenciação. Então, para esse cara que tá recente e quer vínculo, nós temos que ajudar logo, ele voltar a criar vínculo. Então, nós criamos um Pronatec Pop Rua, que é o quê? Fazer um programa de formação, né, profissional para esses caras, para trabalhar. Esses caras saíram trabalhando na Eletropaulo, o outro não sei o que. Então, a gente ia construir as políticas assim.
P/1 - Você ficou, mas você saiu antes do governo, antes de terminar?
R - Sim, eu fiquei dois anos e meio na secretaria, aí teve uma eleição e o Suplicy não se elegeu senador. E tava existindo uma história muito esquisita nesse período, porque assim, a Secretaria de Direitos Humanos era responsável pela área de criança e adolescente. A área de criança e adolescente tinha o Fundo de Criança e Adolescente da Prefeitura de São Paulo, o FUNCAD. E o FUNCAD tinha muito dinheiro. E os processos de análise para liberação, eram processos de análise e liberação. A nossa equipe era pequena. Então, começou a chegar muita reclamação de que nós não estávamos liberando os processos. Então, o Haddad começou a receber uma informação de que tinha problema, que não saía, tinha incompetência, aquela coisa toda. Mas eu não sabia disso. Eu sabia que tinha uma pressão. E o Haddad tinha me pedido... Quando o Haddad descobriu que naquela época nós tínhamos em torno de 300 milhões de reais no Fundo da Criança e Adolescente, parado no banco, o Haddad me chamou e disse assim, cara, eu quero esse dinheiro para zerar o déficit de creche na cidade de São Paulo. Eu disse assim, Haddad, não é bem assim que funciona a coisa. Tem um conselho que tem o Ministério Público, tem a Sociedade Civil e na Sociedade Civil tem gente que é do PT, tem gente que é do PSDB, tem gente que é de tudo, tem conselheiros tutelares, é um mundo, é tudo pactuado aí. Sai um edital aprovado e os projetos têm que ser aprovados. Então, ele entendeu que não era fácil só, não, tem que usar aquilo. Não era dinheiro nosso, era dinheiro captado pela sociedade civil. Então, eu disse, nós podemos construir um relacionamento, que aprove o edital, que dê margem… embora se tinha uma compreensão que aquele recurso não pode ser usado para aquilo que é de responsabilidade do Estado. Então, creche é de responsabilidade do Estado, não pode ser usado para isso. Então, eu tive que fazer um pacto com o Ministério Público para que isso não fosse um problema. E a gente conseguiu um pacto com o Ministério Público. Começou a apoiar. E a gente conseguiu um pacto com a sociedade civil e aprovamos. E aí começou a aprovação. Mas para fazer esse pacto, nós liberamos uma quantidade de recurso substancial, que não tinha sido captado por nenhuma sociedade, para liberar para a sociedade para os projetos das ONGs. Só que isso tinha que fazer análise do projeto e nós não tínhamos equipe. E aí as coisas travavam, veio reclamação. Então tinha esse sombreamento, aí que tava um mal-estar. Quando o Suplicy sai, depois eu fico sabendo a origem da ideia do Suplicy, né, o Haddad me chama lá e diz assim: “olha Rogério, eu convidei o Suplicy para ser secretário, porque o Lula me falou de que é importante ter o Suplicy perto, já que o Suplicy não foi eleito, tem essa questão com a Marta na oposição agora e é bom a gente sempre ter o Suplicy perto que ele ajuda muito. E a gente não vê outro lugar melhor do que na Secretaria de Direitos Humanos”. Pra mim, foi um baque. Eu encarei super bem na hora, foi um baque porque tava linda a secretária, sabe? E tinha um reconhecimento na sociedade e tal. E não era eu que achava, eram os feedbacks que eu tinha e que as pessoas traziam para mim. Mas isso é coisa da política, bora, sabe? Não, de boa e tal. O Suplicy me convida pra ficar com ele. “Rogério, que tudo igual, né?” E eu não sei… Ó Suplicy, eu vou pensar, eu acho que tu tem que ter o teu espaço e eu vou assombrar muito… Tem que parar?
P/1 - Não, vai ter que parar daqui a três minutos para eu trocar bateria. (inaudível)
R - Não, eu acho que não. Aí eu chego, vou conversar com o Paulinho Vanucchi para me aconselhar, é meu amigo, essa coisa toda. A minha equipe estava muito baqueada. E a gente conversa, a gente faz uma reunião aqui na Vila Madalena também pra pensar. Metade dizia que eu tinha que sair, a outra metade que eu tinha que ficar, aquela coisa toda. Eu vou conversar com o Paulo Vanucchi. Tô conversando com o Paulo Vanucchi e chegou o Lula. “Aí, Rogerinho, não sei o quê”. Ele também me chama de Rogerinho. Aí, “vem cá, vem cá um pouquinho”. E aí o Paulo sobe lá e diz, ah, não, ele estava conversando agora que você não... Aí o Lula: “para aí, Rogério, é o seguinte, eu vou te fazer um pedido, tá? Fica nos direitos humanos. Primeiro lugar para o seguinte: o Suplicy é amado por todo mundo, tá? Porque se fosse qualquer outra pessoa, eu diria para você não ficar, tá? Mas o Suplicy, ele tem duas coisas importantes que todo mundo sabe. Todo mundo sabe, todo mundo ama ele, e gosta dele. E segundo, todo mundo sabe que ele não faz porra nenhuma, ele não sabe executar e coordenar os negócios, e que é você que vai fazer tocar os negócios. Então, assim, ó... E segundo, fui eu que pedi para o Haddad... eu não pedi para o Haddad colocar no teu lugar, eu pedi para o Haddad trazer o Suplicy para perto dele, ele escolheu o seu lugar, né? Então, assim… Então, fica lá e tal”. Aí eu resolvi ficar por conta disso. Mas não foi legal, né? Eu tava muito... O Suplicy foi... Eu sempre gostei do Suplicy, mas sempre... Ah, o Suplicy é daquele jeito. Suplicy foi um querido comigo, né? Me respeitou muito, muito. Eu continuei fazendo tudo que eu tava fazendo como secretário. E o Suplicy fazia as coisas dele, que ele gostava mesmo. Comprava briga com um soldado, pegava um motoboy para levar, ir numa enchente, pegava um barco. Então era isso, sabe? Mas eu não estava me sentindo muito bem nesse processo. Aí um dia o Diogo, que é... Não, mentira. O Diogo, que acabou morrendo eletrificado, tinha ficado no governo, me liga: “Rogério me mandaram sondar se você toparia ser secretário especial dos direitos humanos, que a Dilma estava fazendo uma reformulação e que a Eleonora nas mulheres, você nos direitos humanos e não sei o que e tal”. Aí eu vou pensar, mas o Mercadante pediu para você... Em seguida o Mercadante me liga, me liga formalizando, topa, não sei o que, precisamos, aqui é uma crise, não sei o que, precisamos resolver isso e tal. Não, topo, quer dizer, topo, deixa eu pensar, mercadante. É, mas não tem muito para pensar. E eu disse, não, até amanhã eu…
Troca de Bateria
P/1 - Ah, daí o... Você tava nessa situação com o Suplicy.
R - Foi.
P/1 - Que o Lula tinha te falado.
R - É.
P/1 - E daí a gente te chamou pra voltar pra...
R - Aí eu topei, tá?
P/1 - Pra Brasília.
R - É, aí eu topei ir pra Brasília, porque acaba sendo uma oportunidade de... Eu tava muito incomodado, né, com a situação lá, né? É... Eu fiquei muito incomodado, eu acho que o incômodo que eu tinha não era tanto por... Era também porque eu tinha construído aquela secretaria, ela não existia, eu tinha dado formato, tinha uma equipe que era incrível, impecável, a equipe toda, né? Eu fui tendo problema durante o início e tal, fui fazendo os ajustes, mudando a equipe, então ficou uma equipe incrível, incrível mesmo. E o trabalho era super reconhecido e com muitas entregas, muitas entregas, aquele monumento maravilhoso que a gente fez no Ibirapuera, o projeto Ruas de Memória, que é mudar os nomes de ruas de São Paulo, a questão do CAF, Centro de Antropologia Forense para a Identificação dos Mortos e Desaparecidos. A gente foi fazendo muita coisa. O que eu achei? Eu poderia até continuar, eu poderia até considerar aquilo que o Lula falou, assim: putz, o Suplicy de fato é um cara fora da curva, é um cara que tem um nome, todo mundo ama ele mesmo, gosta do Suplicy e ele foi muito generoso comigo, eu poderia acompanhar tranquilamente. Só que daí eu descubro, eu pensei isso, o Haddad tinha, porque quando você cria cargos, quer dizer, você não pode criar despesa, porque para criar despesa você tem que aprovar um projeto de lei na Câmara. E existia cargo já criado, não usado, de secretário na Prefeitura. Você não precisa aprovar um projeto de lei e não criava despesa, tava lá. O Haddad podia ter convidado o Suplicy para ser um secretário especial, ouvidor dos direitos humanos, perfeito. Põe do lado do Haddad, um cara como o Suplicy, e o Suplicy gosta de estar em contato com o povo. Vai pra rua, vai pra periferia, vai ouvir. Onde tá tendo conflito ele vai, ele faz a mediação, fala em nome do prefeito. O cara é um secretário especial, sabe? Podia ser isso, já tinha cargo, com status de secretário e tudo. Não precisava ter mexido. Então, como ele fez isso, é porque alguma coisa podia estar pegando. E eu acho que tinha disputa interna para me desconstituir, não do prefeito, mas que envolveu o prefeito, de que tinha problema lá na Criança e Adolescente, não tava sendo liberado, aquelas coisas todas. Eles tinham feito um movimento quase que intervencionista na questão, foi um absurdo aquilo, porque o secretário de finanças um dia me chamou O que eu precisava pra gente poder agilizar? Olha, eu preciso de gente pra trabalhar. Aí o cara diz o seguinte, pega da secretaria, você quer que eu acabe a secretaria pra ficar trabalhando pro FUNCAD. Entendeu? Então fica, eu falei, traz o FUNCAD pra você, pra secretaria de finanças, faz você a gestão do FUNCAD. Faz a gestão. Agora você quer deixar que eu acabe com a secretaria? Então eu vou para o inferno. Eu preciso de cargo. Eu preciso de oito pessoas a mais só para fazer a gestão do FUNCAD. Entende? Então assim, tinha alguma coisa e eu acho que ficou... Então, assim, o que eu saí muito, que poderia ter tido outra, outra fórmula, outra possibilidade, outra alternativa que não aquela. Segundo, que era boa para o Suplicy, boa para o Haddad, boa para todo mundo. Segundo, que pode ter ficado ali uma questão que para mim era muito cara. Eu sempre prezei muito por uma imagem que eu construí na minha vida de cuidar muito bem do fluxo da gestão pública, da governança e da construção de equipes. Isso poderia ter sido questionado. E como ninguém falou isso, fica aquela... Eu falei para o Haddad num almoço de despedida, ele me convidou para almoçar com ele. Ele me pediu... não, eu falei, Haddad, posso te fazer um pedido? Eu quero te falar duas coisas. Primeiro, não deixa o Transcidadania morrer e amplia, sinaliza com um aumento e tal. E ele disse que ia fazer. E a segunda coisa, eu posso te dizer que, olha, eu temo que tenham falado mentiras contra a Secretaria de Direitos Humanos para me desestabilizar. Ele não gostou muito do que eu falei, ele não gosta. Quando a pessoa é muito sincera com ele, ele não gosta muito porque ele pode...
P/1 - Ele respondeu, ficou quieto?
R - Não, não é verdade, não sei o quê. É uma coisa nesse sentido, mas uma reação de que não tinha gostado muito da observação. Mas tudo bem. Aí eu fui para Brasília e…
P/1 - E sabia que estava indo para Brasília?
R - Sim, ele me ligou para me cumprimentar. Porque naquele dia, quando o mercador de me ligou, eu tava jantando com a Érika e aí era dez e pouco da noite, o Jaques Wagner me ligou. O Jaques Wagner era chefe da Casa Civil. E o Wagner me liga, assim: “Rogério, a Dilma quer lançar amanhã de manhã cedo essa reestruturação. E eu preciso da tua resposta e tu tem que estar aqui amanhã, de manhã, e tem que pegar o primeiro voo para cá”. Aí, eu aceitei e fui para lá. E foi muito legal porque eu cheguei...
P/1 - Aí você muda com a família ou não fica aqui?
R - Não, eu sabia que isso podia ter curta duração, tava tudo estruturado, já não era início de ano nem final de ano, nem nada, nem tudo acontece no final de ano. Aí, a minha família ficou aqui, eu fui para lá e eu cheguei lá, foi muito legal porque estava tendo uma reunião de alguns ministros, tava: o Mercadante, o Jaques Wagner, o Jorge Messias, se não me engano, hoje tá na AGU, o Zé Eduardo Cardozo, trabalhando o discurso da Dilma. Tava lá no Alvorada, pra fala, né? Aí eu cheguei no Alvorada, ela disse pra eu ir lá no Alvorada. Eu cheguei lá, eu entrei na reunião, ela mandou eu entrar, sentei aí e tal. E eles estavam vendo o discurso e eu disse, pô, mas não tem nada de direitos humanos aí. Eu falei, né? É verdade. Então ela foi lá e botou na fala dela e tal. Aí, começou um processo muito ruim, porque era numa reestruturação que não ia funcionar, falei lá no início da entrevista, mas que tinha que tocar. O que eu resgataria de uma experiência única, foi incrível mesmo, é que, como estava tudo muito confuso, a crise tinha tomado conta, e tava muito difícil de trabalhar, nós tínhamos na agenda de organizar uma conferência nacional… não sei como falar… articulada de todas as áreas, de todas as conferências de direitos humanos, fazer junto. Então nós estamos falando aí por um conto de em torno de 6 a 10 mil pessoas, uma conferência dessa. Então, vamos organizar isso, fazer uma mega conferência, aproveitar isso para fazer um movimento político, inclusive de apoio ao governo e tal, né, contra o impeachment, etc. Além de que isso fosse simbolicamente isso. Claro que a conferência ia discutir os pontos relativos às suas áreas. Então, assim, era uma semana inteira, né, sendo que os primeiros dias cada conferência ia ter junto simultânea, né, crianças e adolescentes, pessoas com deficiência, LGBT e assim vai. E depois, nos últimos dois dias, todo mundo junto aprovando grandes diretrizes. E a gente organizou, foi uma experiência incrível. E aconteceu um negócio histórico para mim. Geralmente, em cada conferência, a Dilma assinaria alguma coisa, algum ato, algum decreto, alguma política. E na conferência LGBT tava lotada, lotada, lotada. A Dilma ia assinar o nome social da pessoa LGBT. Tava tudo certo e tal, não sei o quê. E começa a conferência, e aí tá pra começar a conferência, aquela coisa, a presidenta não chegou ainda, aí a presidenta ia, ia assinar lá. Aí vem uma ligação pra mim e diz assim: “ó, a presidenta quer falar com você”. E eu pego o telefone e, sim, tá. “Rogério, que negócio é esse de nome social? Eu não vou assinar porra nenhuma, e não sei o que e tal”. Eu disse, presidente, a senhora vai assinar o que a senhora quiser, a senhora é a presidente, tá? Mas eu peço que a senhora venha aqui, tá todo mundo esperando, e a gente conversa pessoalmente aqui e tal, não sei o que. “Eu não vou assinar porque não sei o que, porque ninguém me falou, porque bá, bá, bá e tal, não tô sabendo de nada, eu não posso pegar de surpresa disso, e não sei o que, bi, bi, bi, bá, bá, bá, bá”. Aí ela foi pra lá, ela chegou, tava todo mundo lá pra começar a conferência. Eu sento eu e ela, né? E aí eu explico para ela. Eu disse assim: “ó, presidenta, primeiro lugar, né? Eu quero botar os pontos nos IS, assim, ó, se teve falha, foi da sua assessoria, tá? Porque a gente fez tudo certo. A gente... Isso é uma demanda, que é isso, isso, isso. Nós passamos pela casa civil. Nós passamos pela assuntos jurídicos, que acordou, e foi despachado, era pra ser despachado com a senhora. Pra a senhora dar o aval. Só a partir daí a gente operou para anunciar na… entende? E nós recebemos o aval. Nós fizemos reunião com o gabinete, apresentamos disso para fazer. Então se teve problema, tem que ver onde que parou. Essa responsabilidade eu não levo, eu disse.
P/1 - No meio da conferência, conferência começando.
R - Só tava esperando ela para começar, né? Eu eu na salinha, igual a essa aqui mais ou menos, antes, conversando com ela, né? “Depois a gente vê isso, mas eu não vou assinar nada”, ela disse. Vamo lá. Aí vai ela falando, todo mundo ovacionando: “Dilma, eu te amo, eu te amo, meu amor”, aquela coisa toda. E ela vai e fala, e fala, e fala, e todo mundo esperando ela... bom, ela deve falar no final, né? Isso aí. Ela termina e não fala isso, né? Aí foi o negócio assim, ó: todo mundo começou a gritar, chorar, eu nunca vi uma emoção dessas, sabe? A chorar, se jogar para cima: “é traição, é traição, Dilma não fez isso, não faz isso comigo”. Ela me olhava, ela olhava assim para trás, por onde eu tava sentado, tava sentado no palco, logo atrás dela, ela me olhava com, com uma raiva de mim, né? E aí... e todo mundo pulando e ninguém deixava terminar e tal, não sei o quê e... Aí ela dizia o seguinte, ó: “calma, gente. Vamos fazer o seguinte, tá? Teve um problema, eu não tava sabendo dessa portaria e eu não assino nada que eu não esteja sabendo. E teve problema na minha assessoria que eu quero saber o que que houve. Vamos fazer o seguinte, então vamos tirar um, né? Um... o Rogério vai articular aqui uma mediação com vocês, vamos tirar uma comissão de vocês, uma comissão com o Rogério e vamos conversar, vamos ver o que que acontece, tal. E aí a Dilma vai embora, né? E eu vou para lá, faço uma reunião com... e aí eu e eu abro o jogo com eles. Olha, aconteceu isso, isso, nós fizemos tudo certinho. Eu não quero levar essa responsabilidade, né responsável da presidenta e né minha. Teve um problema, ela não tava sabendo, né? E é o seguinte, agora nós vamos discutir com ela, né? Ah, mas a gente quer, não queremos mais discutir, a gente quer assinar, né? Queremos reunir com ela, queremos discutir com ela, não sei o quê. Aí eu ligo para o gabinete do presidente e peço assim, ó: “eu quero fazer uma reunião amanhã com uma comissão LGBT, né? E nós e a presidenta para discutir isso, né? Elas querem uma audiência com a presidente e eu acho que tem que fazer”. A Dilma autorizou fazer. E foi a coisa mais emocionante da minha vida, assim, foi... então teve, tava lotado, sabe? Lotado. Devia ter umas 30 pessoas do movimento LGBT. Tava a Dilma, tava eu do lado dela, tava não sei mais quem. Os deputados, alguns deputados e não sei o quê. Lá na sala de reunião da presidência grande. E ela entra, né? E... E aí ela, ela fala o seguinte, ó: “primeiro lugar”, não, aí, assim: “ó, eu quero ouvir de vocês e cada um fala”. Ela deixa todo mundo falar e as falas de uma consistência, de uma emoção do que aquilo significava para a vida das pessoas de uma coisa impressionante, né? A Dilma chorou, assim, né, ouvindo as falas. E o que que significava não ter assinado aquilo e pá, pá, pá, pá e tal. Aí quando termina ela chega e ela pega a seguinte: “olha, gente, eu quero aqui primeiro lugar, né? Fazer um reparo, né? O eu quero dizer que o Rogério Sottili não teve responsabilidade nenhuma sobre isso. E que, de fato, teve um problema na assessoria. Eu não posso, como presidente da República, assinar o que eu não estou sabendo, né?” Então assim, mas então ela faz uma fala super boa, forte nisso. E faz, e olha para a porta, assim, e faz assim, aí entra a menina lá que trabalha com ela, com o livro do decreto, e ela assina. Foi muito, muito foda, assim, foi muito... bom e aí foi um choro total de todo mundo abraçando ela e tal. E isso me traz muito à luz, né, de que uma gestão pública, né? Com alguém que tem compromisso popular, como é que funciona, né? Porque é... é um negócio justo, um negócio correto, tem um todo um trabalho de assessoria técnica política, né? E um dirigente político, permeável pela escuta, né? O Lula é totalmente. Eu tenho 1000 experiências dessas com o Lula. Quando tava no governo Lula, né? O (inaudível) tava viajando e veio uma ligação do Lula, e ele... eu não sei se já falei isso, porque eu falei tanto, né? Mas houve uma reunião com o movimento de hansenianos, né? E tava Ney Matogrosso e mais um MAH, que eram Movimentos Atingidos por Hanseníase. E aí o Lula falou assim: “olha...” O Lula vai fazer uma reunião agora com vai se receber (inaudível) e quer que o... já que o Paulinho não tava, que era o ministro, queria que fosse para lá. Aí tá lá o ministro da saúde, eu, né, o Lula e o movimento. E o pessoal começa a falar e começa a contar a história deles. Lula já conhecia, né? E é uma história gritante, assim. E o que é que eles querem? Eles querem... eles querem ser eles queriam ser... porque, na verdade, maioria dos atingidos por hansenianos eles foram arrancados das suas famílias, criança, tá? Porque o estado dizia que eles contagiavam e não tinha política para, né? Então assim eles foram arrancados. Teve uma pessoa que contou, uma mulher que tava lá, uma mulher devia ter uns 70 e poucos anos de idade. Ela disse que com 8 anos de idade, né, lá no Amazonas, chegou a saúde, tá? Arrancou ela dos braços dos pais, tá, botou ela com 8 anos numa canoa, amarrou uma corda, sabe, de 7 m e viajaram 2 dias, tá? Ela por sendo puxada, porque não queriam ser contaminado com ela e botaram em uma colônia. Ela nunca mais viu os pais, nunca mais viu os pais, né? E ela viveu numa colônia, foi criada na colônia de hansenianos, né, e foi arrancada disso. Por uma interpretação completamente equivocada do estado, de que a hanseníase não tinha tratamento, não tinha, né? E tal? Então eles queriam ser indenizados, porque essas pessoas nunca mais conseguiram trabalho, nunca mais nada e tal. O Lula, o Lula é um chorão, né? Ele ouviu aquilo, se emocionou pra caramba, né? E olhou pra mim e disse assim: “ó Rogério, eu quero, né? Uma comissão, você vai coordenar uma comissão pra erradicar, erradicar não, pra você fazer a reparação, para, para os hansenianos”. E eu, que que é isso, né meu? Sabe? Então a gente começou do zero, né? E foi uma coisa incrível, assim, porque na verdade, o Lula até perguntou pra assim, mas qual é o universo dessas pessoas, né? Aí o cara falou assim: “ó, é umas 1000 pessoas, 2000 no máximo”, tá bom. Então a gente monta, só que você tem que fazer um processo como é dinheiro público, tem que ser negócio super sério, tem que tem que ter processo, tem que ter análise para ver se o cara tem direito mesmo, né? E tudo isso é uma estrutura, né? Então, a gente começou a montar isso, mas não tinha gente para trabalhar nisso, sabe? Aí com a solidariedade do Ministério da Previdência Social, eu consegui 15 pessoas da previdência social que ficaram trabalhando 2 anos direto em análise de processo, né? Só que aí não era 2000 pessoas, chegou quase 20000 processos. Claro. E aí tem, e aí tu tem que analisar, mesmo, porque tem muito oportunista que eu não tenho direito que aproveitar. “Ah, agora vou ver se eu consigo uma reparação”. E a reparação era receber, não lembro se era um salário mínimo até a morte, né? Então todo mundo queria esse negócio, então a gente fez isso e conseguiu, sabe, fazer um negócio incrível, assim, mas isso é um governo de participação social, sabe? Que do cara, mais do que presidente da república tem uma escuta pro pra demanda social e você tenta transformar isso em política pública pra fazer, pra atender e tal, né? Então, foi mais... mas da Dilma, essa é a grande lembrança, positiva, emocionante que eu guardo daquele curto período. Eu fiquei um ano, né? E o final foi, né? Eu morava num hotel, numa distância, no Lago, assim, uma distância de uns de 1 km, talvez, no máximo, o Palácio, né? Da da, da Praça dos Três Poderes. E foi dois momentos gritantes, assim, um que eu tava dormindo, eram umas 4 meia, 5 horas da manhã. Eu acordo com um foguetório, assim. Ah, saiu, foi, foi aprovada, aprovada a cassação, né? Então foi uma dor, uma dor, uma dor, assim, absurda, né? Não dava vontade de levantar e não dá vontade nada, né? E aí depois, quando de fato é o último dia, que foi, né? O dia, o dia que a Dilma tem que sair. Vai todo mundo para lá, né? Todos os ministros...
P/1 - Tava lá?
R - Tava. E foi um negócio que é um absurdo, porque ela faz o encontro com a imprensa. Ela lê a mensagem dela, né? Dizendo que foi um golpe,e o compromisso dela com o Brasil e tal, todo mundo atrás dela. E eu, povo, tinha uma massa de populares fora do Palácio. Gritando: “Dilma, Dilma, Dilma”. E aí ela resolve sair, né? Descer a rampa, ir até lá fora e nós vamos junto, né? E aí todo mundo querendo abraçar ela, pegar ela e ela vai pegando a mão de todo mundo e nós junto aí. E é um negócio hilário, assim, porque, de repente, quando termina isso, né, bom, né? Lembro que o Jaques Wagner tava de camisa e gravata, né? O casaco dele tava no gabinete. O meu carro tava no estacionamento do Palácio e tal. Quando a gente vai voltar a segurança: “não pode”. Pô o o meu casaco tá no gabinete. O Jacques falava assim, é ordem, ninguém mais entrou aqui, mudou o governo assim. Naquele momento, é um negócio hilário. Assim, eu tive que ligar para o meu motorista, disse assim: “ó, dá a volta, sai daí e me pega aqui na rua porque eu não conseguia mais voltar pra o Palácio, né?” É, o negócio foi, foi, foi violento dessa forma, né? Foi. Àquela saída. Então essa foi um, né? E aí, é arrumar mala, dá baixa do quarto, ir para o aeroporto e começar a vida São Paulo, né? E aí eu fiquei... eu tinha, né, por lei, né? Tem uma quarentena que você tem que cumprir para não... e o Iva Herzog, eu, eu. Me aproximei muito do Iva, aproximei. Eu não conhecia o Ivo, né? E o Ivo foi um cara que quando tava na prefeitura ele foi conversar comigo pra levar um projeto: Respeitar é Preciso. E eu achei incrível o projeto. “Vamos fazer aqui com a Secretaria” e a gente implementou, né? E eu achava que o Ivo era um familiar de morto, de assassinado pela ditadura, que era, porque, assim, tava muito carregado, os outros familiares da dor, né? E sempre só olhavam para trás, sabe? E o Ivo olhava um pouco para frente, sabe? Então eu comecei a convidar o Ivo para dar uma, né? Uma descompensada naquele peso, para algumas reuniões com familiares, né? E o Ivo foi. Então teve essa aproximação com o Ivo, e aí quando eu saí o Ivo veio conversar comigo, disse se eu não topava, substitui ele na, no instituto Vladimir Herzog. Eu disse para ele que eu topava, que era uma honra e tal, né, mas que eu tinha... eu não podia trabalhar nos próximos 6 meses, né? Pela quarentena. E ele disse: “não, ótimo, porque eu também não tenho um salário e eu preciso encontrar um emprego, né, para mim, pra você entrar no meu lugar. Passou, passaram 6 meses, ai o Ivo não me chamou, aquela coisa: “bom, Ivo, seguinte, eu preciso ir procurar trabalho, porque agora passou a quarentena, né? E queria saber como é que...”, “não, não vem para cá, aí a gente dá um jeito. Eu não consegui trabalho ainda e bababa e tal. Então, eu fui para o instituto e... era um instituto, eu achava que o instituto era maior do que era quando, né, eu imaginava porque o nome do instituto é muito potente, Vladimir Herzog, mas o instuto era, tinha um projeto que era o Respeitar é Preciso. Aí tinha o prémio, né, os 2 prêmios, que eram conhecidos. Depois, não era pontualmente um evento que tinha, que realizava e tal, né? E tinha umas 5 pessoas que trabalhavam no instituto. E aí, bom, desafio é esse, vamo começar a organizar, né? E questão de financiamento, recursos, ver como é que funciona e a gente né, começa a organizar o Instituto Vladimir Herzog. E o Instituto Vladimir Herzog hoje está com 30 pessoas, né? Institucional, digamos assim, né? Tem mais pessoas só ligadas a alguns projetos lá na ponta. E tá muito, né, definida qual é a missão do instituto, que é a defesa da democracia, dos direitos humanos e tal? É um instituto de incidência política, né, não é só um instituto de projeto. Nós temos projetos em 3 áreas, né, de educação e direitos humanos, de memória, de justiça e também de jornalismo e liberdade de expressão. Mas é um trabalho de, mas faz também um trabalho de incidência política na defesa da democracia, na denúncia e, etecetera, né? Então, assim, é um instituto que tá também está me dando muita alegria, né?
P/1 - Rogério, olhando assim para trás da sua trajetória, tudo isso que a gente falou, você mudaria alguma coisa? Em algum momento, algum fato, alguma escolha.
R - Não, nenhuma escolha. Eu acho que a nossa, todas essas escolhas até agora. Sabe que quando eu tinha um, eu tenho um amigo, Marcos Barreto, né, que quando fui para o governo federal, pra Dilma no final do governo, ele veio falar, disse: “puta Rogério, né? Você. Rogério, você é foda, né, cara, você, né, você sempre cai para cima, né? Você sempre precisa, né?” Alguma coisa assim ele falou. De que ele achou genial, pá, pá, pá, pá, aquela coisa e... eu nunca me fiz movimento nenhum para eu não sei me movimentar, né? Eu, eu não sei me movimentar, eu quero... uma coisa que as coisas vão meio que acontecendo. É meu estilo, sabe, de... E de facto, né? Se eu pegar todas as minhas escolhas, né? São escolhas que me... me, me, me deram essa vida que eu sou, eu acho que eu sou uma pessoa que... que tem uma experiência incrível, que tem um, né, um legado importante, né, e que tem valores... que eu, que eu desejo para todas as pessoas. Então assim, eu acho que eu sou isso resultado desse processo, né? Tem um... Às vezes eu penso sim, né, de... que aquela loucura que eu acho que todo mundo pensa, né, te dá um cansaço, sabe? De às vezes, assim: “puta, eu poderia ser um pouco mais alienado, né? Menos ativista, ter ido por uma outra pegada, sabe? Eu podia ser um ambientalista, sabe, né?” Eu lembro que eu tinha um amigo que Ivanir Bortot, jornalista e tal, e ele era lá do Rio Grande do Sul. E era fundador do PT e tinha sido candidato, né, tinha sido candidato a vereador na primeira eleição do PT, aí ele chegou para mim em Porto Alegre, ele disse assim: “ó Rogério, eu...”, a plataforma dele era contra, né? Contra autoritarismo, distribuição de renda, né? Contra a burguesia, o escambau. Ele dizia o seguinte: “Rogério, eu luto isso para agora porque tudo o que eu quero ser daqui a uns 20 anos, né, eu quero ser um ambientalista”, ele disse, né, porque eu sei que essa ser ambientalista é a minha, é a minha, é a minha grande missão, mas não dá para ser ambientalista no mundo que tá essa, essa loucura que tá aqui, né? Então, assim, precisamos arrumar um pouco para depois o seu ambientalista, né? E por ilusão, né? Como se as coisas fossem divididas assim, separadas assim, mas às vezes eu penso que o, né? Nesse, nesse meio cansaço, nessa dor, dá uma desilusão no Brasil, quando você vê o Congresso brasileiro ontem, né, se, né, quando você vê esse congresso brasileiro. Será que isso tem concerto, né? E aí, assim, isso te cansa, né? Mas porra meu, isso é só um desvio de um momento de canseira, né? Mas essa é a nossa vida, né?
P/1 - Você tem projetos para o futuro?
R - Você é ambientalista (risos). Não. Projetos para o futuro eu sempre tenho projetos assim de, né? Mas é verdade, eu gostaria de, né? Eu gostaria de ter uma experiência Internacional, né? Eu nunca tive. Eu tenho uma dificuldade imensa, eu não sei falar inglês, né? Nós somos de uma geração que repugnava o inglês, porque era imperialista e depois a preguiça e a idade me, né? Mas eu gostaria de ter uma experiência. Internacional. Aproveitando todos os as experiências de políticas públicas, enfim. E eu gostaria de ter um contato maior com a natureza mesmo. É sério mesmo, assim, eu gostaria de de ter um espaço, né? Um... um sítio ou um lugar onde que eu pudesse viver uma. Com pessoas interessantes próximas, sabe, né? E poder sonhar mais, né? Eu acho que é um pouco isso.
P/1 - Rogério que que você achou da experiência de contar aí nesses dois momentos sua história de vida, parte dela e essa história ficar registrada no museu?
R - Eu acho incrível, né? Eu te contei uma vez de que... eu não sabia o que era o Museu da Pessoa, né? E eu fui, eu fui numa mostra de cinema, assisti a um filme num domingo à tarde. Na sala, na Cinesala, aí na Fradique. Aí eu cheguei lá e achei superinteressante, tinha um Monte de gente conhecida, né? Inclusive, tava você, Karen e várias pessoas para assistir um filme. Ah, que coincidência, né? E assistir o filme que eu escolhi para da Mostra Internacional de Cinema. Aí quando eu vou comprar o ingresso, o filme que eu tinha escolhido não tava lá, não era o filme, era um filme sobre o Museu da Pessoa, um documentário sobre o Museu da Pessoa, disse, “puta merda”. E eu sinceramente não... o documentário, né, não era a melhor coisa que eu queria ouvir, ver aquela tarde. Eu queria uma coisa mais... Aí: “não, mas eu estou aqui agora eu vou assistir” e fui assistir, né? Cara, eu saí de lá emocionado. Emocionado e com uma vontade de dar um beijo na Karen e dizer: “puta, Karen, que coisa incrível, que trabalho incrível que é o Museu da Pessoa e o que você fez, né? E eu fiz isso dentro do cinema, a Karen tava ainda sentado, eu fui atrás por trás dela, dei um abraço nela, dei um beijo e agradeci a ela por ela ter feito o Museu da Pessoa. Então eu, a partir daí, puta, eu não tinha noção que era Museu da Pessoa. E lá, e o que mais tinha me impressionado, né, no documentário, é, de fato todo aquela metodologia meio psicanalítica, sabe? De contar histórias. E que isso era, a história da pessoa era história no Brasil que tava lá colocada, né? Então isso foi muito, muito, muito interessante, mas eu nunca imaginei de eu dar um depoimento. Sinceramente, nunca me passou pela minha cabeça eu dar um depoimento para o Museu da Pessoa. E aí quando eu vi agora, recentemente, aquela questão do MST, eu fui entrar lá, quando eu fui entrar: “ah, eu quero dar meu depoimento”, quando fui entrar lá, disse: “3 minutos? Ah, não dá, né, em 3 minutos não, eu não consigo”. Eu te liguei até. Puta, né, eu queria dar o meu depoimento, mas 3 minutos, mas eu não tinha pretensão de dar um depoimento. Eu queria registrar que 3 minutos era pouco. Se tinha alguma forma de dar mais. O que eu tava, sei lá, imaginando uns 15 minutos, uma coisa assim, né? E aí você me convida e bora, né? E... e assim, a experiência aqui foi incrível, é uma terapia. Muito forte. É uma visita... eu fiz um plano de... um curso não, era um encontro de planejamento estratégico, de gestão de pessoas e tal, e teve um exercício que o cara, um cara fez, né, que eu achei muito, muito curioso, muito interessante. Ele botava assim, ele pegava uma bolinha um, aí ia aumentando as bolinhas, dois, três... não, mentira, era ano, né? Então ela começava lá com, sei lá, 1950, a bola 1951, 52, 53. E eu tava... até chegar o ano que a gente tava lá, que devia ser 2015, sei lá, né, não, 2017, né? Chegava naquilo. Aí ele pedia para cada pessoa ir andando, assim, a pessoa evidente começava no ano que tinha nascido, né? E a pessoa. E tentar caminhar e pensando, né, o que ele podia lembrar a cada a cada ano que tinha, né, até chegar no dia que a gente tava. E foi muito louco aquilo porque quando eu comecei, eu nasci em 59, aí eu olhava: “puta que eu não lembro nada, né?” Aí de repente chegava num ano: vinha uma imagem, sabe? Aí eu parava porque eu tinha que assimilar aquela imagem, né? Aí eu ia andando, ia lembrando de questões importantes. Cara, eu fiz uma, revisitei a minha vida. Gente, eu me saí muito bem de lá, né? E eu acho que eu é um pouco assim que eu estou sentindo aqui, sabe? Nessa questão do Museu da Pessoa.
P/1 - Super. Super obrigada.
R - Obrigada vocês.
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