P/1 – Bom dia, Antônia, queria agradecer a sua disponibilidade para participar do projeto, e para começar eu gostaria que você dissesse o seu nome, local e data de nascimento.
R – Bom, eu sou Antônia Lima Souza, sou Promotora de Justiça e nasci na cidade de Tamboril, no sertão do Ceará.
P/1 – E qual é a data?
R – Doze de março de 1963.
P/1 – Antônia e o nome dos seus pais?
R – Meu pai é Eduardo Rodrigues de Souza e Cândida Lima Rodrigues de Souza.
P/1 – E qual que era a atividade deles?
R – Meu pai nasceu e criou-se no interior do Estado, na cidade de Tamboril, e ele era agropecuarista. Hoje está aposentado e mora aqui na cidade de Fortaleza.
P/1 – E sua mãe fazia?
R – Minha mãe sempre dona de casa, cuidando da família, de todos.
P/1 – Vocês eram em, vocês são em quantos irmãos?
R – Nós somos quatro irmãos, somos duas mulheres e dois homens. Eu sou a segunda filha, da relação desses quatro filhos.
P/1 – E me diz uma coisa, você sabe a origem da sua família?
R – Bom, sei sim. A minha família é daqui mesmo, do Estado, e nossos antepassados moravam na região dos Inhamuns, Tauá. Fugindo da seca se instalaram no Município de Tamboril que também faz parte da região dos Inhamuns, dessa área mais seca do estado. Lá o meu bisavô, que era vaqueiro, trabalhava pra uma família de Sobral. Essa família deixou as terras, porque as constantes secas não compensavam o deslocamento, e daí o meu avô conseguiu adquirir essas terras. Isso há mais de 100 anos, desde então, a nossa família, que é a família Eduardo Rodrigues, permanece na posse dessas terras.
P/1 – E o que a família plantava, era só gado?
R – Era. O foco maior era o gado porque é mais rentável economicamente na elaboração de queijos, de manteiga. Essa era a renda familiar. A agricultura, na verdade, era de subsistência, era pra...
Continuar leituraP/1 – Bom dia, Antônia, queria agradecer a sua disponibilidade para participar do projeto, e para começar eu gostaria que você dissesse o seu nome, local e data de nascimento.
R – Bom, eu sou Antônia Lima Souza, sou Promotora de Justiça e nasci na cidade de Tamboril, no sertão do Ceará.
P/1 – E qual é a data?
R – Doze de março de 1963.
P/1 – Antônia e o nome dos seus pais?
R – Meu pai é Eduardo Rodrigues de Souza e Cândida Lima Rodrigues de Souza.
P/1 – E qual que era a atividade deles?
R – Meu pai nasceu e criou-se no interior do Estado, na cidade de Tamboril, e ele era agropecuarista. Hoje está aposentado e mora aqui na cidade de Fortaleza.
P/1 – E sua mãe fazia?
R – Minha mãe sempre dona de casa, cuidando da família, de todos.
P/1 – Vocês eram em, vocês são em quantos irmãos?
R – Nós somos quatro irmãos, somos duas mulheres e dois homens. Eu sou a segunda filha, da relação desses quatro filhos.
P/1 – E me diz uma coisa, você sabe a origem da sua família?
R – Bom, sei sim. A minha família é daqui mesmo, do Estado, e nossos antepassados moravam na região dos Inhamuns, Tauá. Fugindo da seca se instalaram no Município de Tamboril que também faz parte da região dos Inhamuns, dessa área mais seca do estado. Lá o meu bisavô, que era vaqueiro, trabalhava pra uma família de Sobral. Essa família deixou as terras, porque as constantes secas não compensavam o deslocamento, e daí o meu avô conseguiu adquirir essas terras. Isso há mais de 100 anos, desde então, a nossa família, que é a família Eduardo Rodrigues, permanece na posse dessas terras.
P/1 – E o que a família plantava, era só gado?
R – Era. O foco maior era o gado porque é mais rentável economicamente na elaboração de queijos, de manteiga. Essa era a renda familiar. A agricultura, na verdade, era de subsistência, era pra “mantença” da família e dos animais.
P/1 – E você ficou na cidade junto com a tua família até com quantos anos, Antônia?
R – Bom, eu nasci na fazenda e fiquei lá até os sete anos. A nossa cultura é que aos sete anos nós éramos alfabetizados na escola da fazenda, na escola do meu avô. Ele tinha uma sala de aula na casa grande, e depois que nós éramos alfabetizados, nós íamos para a cidade. A nossa família tem algo que é muito comum a várias gerações, que é a solidariedade. Minha avó morava na cidade de Crateús, que é uma região também do sertão. Quando a gente fazia sete anos e estava alfabetizado, nós íamos para a cidade para continuarmos os estudos, e depois para a capital. Foi sempre assim e sempre acolhidos pelas famílias, nossos parentes.
P/1 – E você veio à Fortaleza com quantos anos e para fazer o quê?
R – Eu fiquei na cidade de Crateús e conclui o meu ensino. Na época ainda era primeiro grau, segundo grau, e como eu não tinha definido o que é que eu queria ser na vida e na época em Crateús oferecia apenas o curso de Pedagogia, eu comecei a ensinar. Fui convidada pela minha professora de segundo grau, a ministrar aulas de redação e expressão, que era algo que eu gostava muito, e aceitei o convite, mas no fundo eu disse: “Não, não é bem isso que eu quero.” Vivenciei a prática do ensino mas eu decidi que não era bem aquilo que eu queria. Então, aos 21 anos, eu descobri que eu queria fazer Direito e aí eu vim morar aqui em Fortaleza. Eu, um irmão e uma prima. Nossos pais alugaram uma casa. À princípio, a gente veio morar aqui, numa casa, e fomos fazer cursinho porque a minha formação era do interior, com muitas limitações. Eu não tinha cursado o Científico, na época, a minha formação havia sido o Normal, Pedagógico, e o curso de técnico em Contabilidade, de modo que quando eu cheguei aqui eu fiz o cursinho em seis meses. Fui aprovada no curso de Direito, que era o que eu queria de fato, na Universidade Federal do Ceará, que hoje é a nossa centenária Faculdade de Direito. Fiquei quatro anos na faculdade, concluí em quatro anos. A partir do terceiro semestre eu fui estagiar em uma ONG de Direitos Humanos, de formação. Ao mesmo tempo em que ela fazia formação em Direitos Humanos ela tinha um outro departamento que era advogar para os sindicatos. Sindicatos rurais, porque naquela época, em 1985, 1986, nós, no Estado, ainda vivíamos um período não democrático, eu diria. E por viver nesse período não democrático, as pessoas que ousavam fazer uma atividade individual de defesa das classes trabalhadoras, dos sindicatos rurais, elas eram muito mal vistas. Então um grupo de advogados se reuniu e criou essa ONG, e essa ONG tinha duas formações, que era o Cetra - Centro de Estudos do Trabalho e de Assessoria ao Trabalhador. Ela ainda existe. Ela tinha a formação em Direitos da Cidadania, que nós não tínhamos ainda esse nome mas falávamos em Direitos Humanos porque os advogados tinham uma formação da JOC, da JEC, da JUC, e montaram esse grupo. E eu fui convidada pra estagiar com os advogados nesse período. Então a minha função durante o meu estágio, era ler o Diário da Justiça, olhar processos no Fórum e também elaborar as peças. Como eu estava na Faculdade, eu não viajava para os sindicatos do interior, mas as demandas, que os colegas advogados iam até às cidades e coletavam, eles traziam e nós elaborávamos. Éramos um grupo de cinco estagiários, e eu era a única mulher, mas era um grupo muito bom, muito participativo.
P/1 – Só pra gente deixar registrado, o que era o JEC, das siglas que você citou, queria que você falasse o que é.
R – Era Juventude Estudantil Católica, Juventude Operária Católica e Juventude Universitária Católica, que era um movimento da juventude dos anos 1970, 1960.
P/1 – E me diz uma coisa, Antônia, esse foi o seu primeiro trabalho, né? Conta um pouquinho como é que se deu o seu desenvolvimento profissional, e como é que você chegou à promotora.
R – Eu fiquei nessa ONG durante todo o curso de Direito, e quando eu concluí o curso em 1988, eu fui convidada pra permanecer como advogada. Daí eu aceitei o convite, porque era super interessante. Eu gostava do trabalho, e também na época não haviam muito alternativas: ou você ia advogar pra iniciativa privada ou para as ONGs, dos movimentos sociais. E como a minha formação também passava pelos movimentos sociais, eu aceitei. Permaneci durante um bom tempo. Desde quando eu recebi a carteira da ordem, em maio de 1989, até 1993, quando eu fiz o primeiro concurso público. É uma experiência muito rica advogar para os movimentos sociais, foi um grande aprendizado. Eu acho que hoje toda a valoração que eu tenho, eu adquiri a partir do estágio, que me deu essa formação muito ampla de Direitos Humanos. Nesse meio tempo, em 1991, eu fiz um curso de Mestrado, também na área de Direito Público, na área de Direito Constitucional. Foi muito interessante porque eu tinha uma vivência de Direitos Humanos da área da advocacia, e pude teorizar essa minha compreensão de vivência. Não cheguei a defender a monografia e portanto passou a ser um curso de especialização, de pós-graduação, mas valeu a pena. Até porque na época eu não tinha muita definição do que é que eu queria contribuir. Eu queria fazer um estudo de caso e na época, a gente fazia muito mais monografia por pesquisa jurídica e eu não queria só isso. A faculdade não apresentava alternativa. E então eu fiz o curso, eu fiz o concurso de defensor público, que foi um dos primeiros concursos pós-Constituição aqui no estado, mas financeiramente não compensava, era muito insignificante, então eu fui estudando pra outros concursos, passei pela experiência de ser procuradora do município de Fortaleza, da área judicial, mas também não me encontrei. Por quê? Porque apesar de advogar na área pública, que eu gosto muito, as questões políticas... Pra trabalhar numa advocacia pública você tem que seguir a orientação do gestor, e nem sempre essa orientação vai de encontro com os interesses do bem comum do município, né? Então eu também percebi que eu não seria feliz. Eu acho que é mais ou menos isso, eu não me encontrei como pessoa, exercendo a advocacia pública como procuradora do município. Foi então que surgiu o concurso do Ministério Público. E eu fiz. Isso aconteceu em 1995, eu fiz o concurso, fui aprovada e assumi na cidade de Forquilha, que é uma cidade da zona norte, a 15 km da cidade de Sobral, e também foi uma experiência muito boa. A princípio eu não me adaptei muito porque, a gente tem toda uma estrutura na cidade, na capital, e de repente você muda literalmente de vida. Vai pra uma cidade estranha, onde você deixa o seu anonimato enquanto pessoa e se torna uma autoridade. Esse foi um período muito desafiante pra mim, porque eu não tinha, a princípio, dimensão da grandeza da instituição. Embora fosse uma instituição antiga, a nova roupagem da Constituição deu um outro perfil para o Ministério Público. Um perfil de instituição defensora de Direitos Humanos, e aí nessa defensoria, nessa dimensão macro do Ministério Público, eu confesso, nos primeiros dias, eu fiquei um pouco assustada. Porque é uma cidade do interior extremamente empobrecida, aonde os Direitos são muito violados, principalmente os Direitos Humanos. A primeira coisa que eu pude perceber era um grande índice de crianças fora da escola, em trabalho infantil, às margens da BR, porque essa cidade é cortada pela BR 222, que liga a um outro estado, que é o estado do Piauí, e a região norte. E lá nessa cidade eu tive a oportunidade de perceber essa realidade, essa problemática, a questão da educação. Depois, vindo aqui à Fortaleza, num seminário, eu pude conhecer a experiência de São Paulo e do Rio Grande do Sul, do Direito à Aprender, e aí eu disse: “Puxa, vamos desenvolver essa experiência, vamos tentar articular, mobilizar a comunidade de Forquilha.” E foi a minha primeira experiência, dentro do Ministério Público, de articulação de todos os setores da cidade para se engajar numa causa, a causa da educação. E foi muito bom porque quando eu cheguei, propus pra cidade reunir as instituições governamentais, comerciais e as instituições da comunidade. Pessoas que eram lideranças na comunidade, e que eram referência. Foi muito bem aceito, foi um período em que toda a cidade se mobilizou. Nós dividimos o município por setores, pra que todas as crianças fossem matriculadas na escola. E nós fizemos um trabalho de um ano, porque foi o período que eu permaneci na cidade, e todas as crianças, eu acredito, eu não tenho um índice porque foi um trabalho muito espontâneo. Isso foi há 16 anos atrás e eu não sabia que existia uma rede de proteção da criança. Essa ação foi meio improvisada, com a vontade de fazer acontecer. E a cidade toda se mobilizou porque o sistema de justiça tinha se estruturado há menos de ano, então estavam todos eufóricos porque possuíam um juiz, um promotor, um delegado. E isso foi motivador pra que todos se engajassem. O sistema de justiça chegou a participar, então eu e a juíza íamos às escolas, conversar com os pais sobre a importância de colocar os seus filhos para frequentar, na formação educacional, de como isso iria repercutir na vida desses garotos e dessas garotas. Foi uma experiência muito legal.
P/1 – E você disse que desenvolveu vários setores. E como é que você fez essa articulação, na verdade, foi o governo, o segundo setor, né, e qual era a participação, por exemplo, das empresas dentro desse processo?
R – Bom, teve empresa também, nós convidamos o secretariado de educação. A política de assistência ainda não existia como tal, porque nós não tínhamos o SUS [Sistema Único de Saúde], mas convidamos o prefeito, que mandou a primeira-dama e que ficou à frente. Essas causas sociais infelizmente ainda temos a cultura de que é responsabilidade do feminino, né, mas a Secretaria de Educação, a Secretaria, a própria primeira-dama foi a responsável, a Cagece [Companhia de Água e Esgoto do Ceará], a Coelce [Companhia Energética do Ceará], na época ainda era Telemar, foram essas empresas. Empresas comerciais locais, de informática, senhores que eram aposentados e que estavam querendo se envolver de alguma forma em algum trabalho voluntário, todas as escolas, todos os diretores das escolas públicas e privadas e só. E o delegado e o juiz. Nesse primeiro período a gente não pensou em chamar pra participação os jovens, não aconteceu isso.
P/1 – E aí, você ficou um ano lá em Forquilha.
R – Foi.
P/1 – E aí o que é que aconteceu, você veio pra cá?
R – Na história do Ministério Público nós temos uma carreira a seguir. Depois disso eu fui para a cidade de Groaíras, mas lá eu permaneci por pouco tempo porque a ascensão na carreira, as promoções, ela se dão a partir de inscrições. Surge a vaga e você vai escalonando, de modo que a sua permanência no interior depende desse processo de mudança, de acessar uma outra Comarca, de maior porte. Então, eu fiquei em Forquilha, depois eu fui pra Groaíras e logo em seguida eu fui para uma cidade da Serra Grande, que é Guaraciaba do Norte, e lá eu permaneci um ano e meio. Lá não teve ambiência para desenvolver um trabalho no mesmo porte de Forquilha, porque as cidades serranas tem uma outra cultura da cidade do sertão. Um ponto característico aqui no estado é que as pessoas que moram no sertão não gostam de ficar em casa, gostam de ficar na calçada, na rua, participando de reunião. Nas serras, por conta do frio, as pessoas são mais introspectivas, ficam em casa. Ninguém circula pelas praças. As pessoas não são vistas na praça, no espaço público da cidade. Elas são mais caseiras. E essa foi uma limitação. A outra limitação foi uma experiência que aconteceu na cidade. Uma adolescente havia sido assassinada por um grupo de agentes de proteção, que era vinculado ao poder judiciário. Aí isso criou certa resistência para que a sociedade viesse a participar de um movimento como esse. E também, outra situação que eu pude perceber, foi uma certa desconfiança: “Isso nunca existiu aqui, por que agora?” Lá nós também tivemos essa mobilização porque a região de serra é marcada pela agricultura, a agricultura familiar e o trabalho infantil. Então eu resolvi que íamos começar sem envolver os setores privados, só o setor público. Foi uma conversa com a mobilização que se deu em nível de educação. A representação do Estado na região da Ibiapaba, juntamente com o prefeito, a secretária de educação e as diretoras de escolas. Pudemos desenvolver essa outra campanha, de que todas as crianças acessassem a escola, e que todas as crianças e adolescentes permanecessem na escola. Porque a gente pode perceber lá em Forquilha, que a partir dos 14, 16 anos principalmente, os meninos começaram a sair da escola, porque passaram a trabalhar. E também porque Forquilha é tipo um bairro de Sobral, é de 15 quilômetros com um fluxo muito grande e uma fábrica, que era a Grendene. Então os meninos queriam trabalhar na fábrica, era a oportunidade. As famílias entendiam a necessidade financeira, não existiam os programas sociais que temos hoje. E lá na serra também, porque é o trabalho da economia familiar, do trabalhar a terra, das hortas. E foi possível ser feito, a partir da mobilização das escolas, das diretoras com a Secretaria de Educação, e esse trabalho foi realizado também. E isso trouxe para o ECA [Estatuto da Criança e Adolescente], uma visibilidade, porque nós visitávamos as escolas. Toda semana tinha um dia que era dedicado às escolas. E cada dia da semana eu ia numa escola da sede. Depois começamos a visitar os distritos, fazíamos os turnos da manhã, da tarde e da noite. E o que foi mais legal lá em Guaraciaba, que foi a primeira oportunidade que a gente teve de trabalhar com rádio. Chegou um radialista vindo de fora e achou legal essa mobilização da educação, e perguntou se eu não podia participar uma vez por semana de um programa de rádio para informar dos Direitos. Seriam Direitos mais genéricos, da área de família, do consumidor, Direito Agrário, trabalhista. Nós topamos a ideia, tivemos um programa que era o “Alô, Promotora”! E como é difícil as comunidades terem acesso. Na época não tinha o acesso tão fácil, telefones celulares. Nós recebíamos os telefones mas o mais interessante eram as cartas que nos eram enviadas e nós respondíamos no ar. Foi uma oportunidade muito boa porque as pessoas podiam estar no sítio, trabalhando, ouvindo seu rádio, e sendo informada dos seus Direitos, de como poderiam acessar os seus Direitos, aonde procurar, como fazer. E nesse período a maior demanda foi com relação a reconhecimento de paternidade e a responsabilização dos pais em relação a contribuir com alimentos para a criação dos filhos. E Direitos Trabalhistas, de modo que quando eu circulava pela cidade, que eu ia ao supermercado, aí o pessoal dizia: “Ai não, está bom de a senhora maneirar, o povo está ficando muito sabido” [risos]. Foi muito legal, muito bom.
P/1 – E Antônia, você falou que você recebia muitas cartas, né?
R – Sim.
P/1 – Tem alguma que te marcou muito, alguma história que veio numa carta te pedindo esclarecimento que te marcou nesse período?
R – Ah, foram tantas, porque cada história de vida traz a sua magia, os seus desafios. Eu digo que cada carta possui muitas emoções mas o que mais me impactava... porque eu venho de uma cultura onde a família é uma coisa sagrada, aonde os pais não haviam necessidade do poder público cobrar a responsabilidade dos pais. Eu vivi a vida toda onde o pai tem o poder, dever de orientar o filho, de sustentar, de cuidar, de proteger o filho. Então quando eu pude perceber que as meninas engravidavam cedo, sem muito projeto de vida, quando não muito eram vítimas de violência sexual, de abuso sexual, que também é uma realidade que eu só pude perceber quando eu já estava saindo da cidade. Porque é uma violência causada no seio da família, e a família, para as pessoas da região serrana, é algo privado, impenetrável. O mundo externo não adentra a família, a não ser convidado, então imperava a lei do silêncio, né? E uma das cartas que mais me marcou foi exatamente essa, a menina que havia sido vítima de violência, engravidou e queria que o seu filho possuísse o nome de pai. O pai era um vizinho que era amigo da família e aquela menina que engravida é uma vergonha para a família. Então, tinha toda essa história, e a primeira coisa que acontece é que elas deixam de estudar, não estão preparadas para criar uma outra pessoa, para se entender como pessoa, como mulher, para entender as mudanças que o seu corpo está passando. Isso é algo que me marcou muito.
P/2 – Queria perguntar a respeito da sua família, nessa jornada toda que você foi, como é que a sua família viu isso, se foi casada.
R – Ah, é verdade.
P/2 – Todo mundo acompanhando.
R – Isso. Quando eu saí da Prefeitura de Fortaleza, da Procuradoria do Município, eu tinha uma vida muito confortável. Trabalhava só quatro horas, tinha todo o restante do dia só pra mim. Nesse período eu já estava casada mas não tinha filhos. Eu já tinha cinco anos de casamento, e quando eu fiz o concurso do Ministério Público foi porque eu estava me sentindo muito apática. Eu queria algo diferente na minha vida. E quando eu soube do resultado, que eu ia ser chamada, me deu um grande frio na barriga, porque eu ia deixar toda uma estrutura padronizada, a estrutura de família, de casa e de marido. O meu marido não podia ir comigo porque ele tinha a vida dele aqui. E o meu grande conflito foi que a minha mãe, que é uma mulher conservadora, no sentido que a família dela sempre foi ela, os filhos e o marido, na cabeça dela era inconcebível uma mulher sair de casa atrás de um sonho, de um trabalho e deixar o marido. Ela dizia assim: “Minha filha, você quer o quê? Você ainda não está satisfeita? Você já é uma promotora, você é uma advogada do Município de Fortaleza, você não ganha bem? Por que você quer ir pra outra cidade, seu marido vai ficar aqui.” Na época eu fiquei assim: “Mamãe, não é bem assim.” E ela: “Olhe, você está querendo ser uma mulher descasada. Onde já se viu deixar o marido e ir trabalhar a 210 quilômetros de distância.” E eu disse: “Não mamãe, mas a gente vai se encontrar no final de semana”, mas foi um...
P/1 – Um desafio.
R – Um desafio mas hoje eu faço uma leitura, fiquei oito anos no interior, com duas residências, uma aqui, visitando o marido, ele me visitando no interior, foi um novo modelo de casamento, eu diria. Foi um modelo em que nós dois tivemos a oportunidade de crescermos enquanto pessoa, porque nós respeitamos o sonho de cada um, então eu vim para o Ministério Público, e disse: “Vou ver tudo isso.” Eu posso até dizer que nos primeiros dias o Ministério Público me impactou muito, como eu falei anteriormente, e eu até cheguei a pensar que não era bem o que eu queria, mas depois, quando eu comecei a me envolver com a comunidade, com a articulação, ver o Direito acontecer, aí eu fui me apaixonando, hoje eu tenho esse caso de amor longo [risos]. Com o Ministério Público. Eu digo que é um dos maiores amores da minha vida.
P/1 – E Antônia, fala uma coisa, como é que se deu o seu envolvimento com esse Projeto do Infância Ideal que a consultora Camargo Corrêa, o Instituto Camargo Corrêa desenvolveram na região lá do...
R – Da Barra do Ceará.
P/1 – É.
R – Bom, eu vim aqui pra Fortaleza, fiquei mais uns oito anos no interior, e a minha experiência com infância e adolescência propriamente dita, nos termos do ECA, veio a acontecer quando eu fui pra uma cidade de porte maior, que era Itapipoca, de 80 mil habitantes. Lá já tinha essa metodologia de articulação da sociedade, e tinham mais atores do sistema de garantia de Direito, ou seja, haviam ONGs estruturadas e havia um poder público mais estruturado. Lá nós começamos a exercitar o trabalho em rede, ou seja, nós tínhamos uma reunião uma vez por mês para que cada Instituição, cada Pasta, pudesse dizer o que estava acontecendo, em benefício da criança e adolescente. E eu acho interessante frisar que lá a gente pôde perceber um índice imenso de crianças sem a paternidade reconhecida. Então nós éramos três promotoras e fizemos um projeto de que cada vez que uma família fosse registrar um filho no cartório e não tivesse o nome do pai, ele encaminhasse o procedimento oficioso para o Ministério Público chamar o suposto pai. Conversávamos e eu diria que em 80% nós não entrávamos com a ação judicial, era resolvido na conversa. E também nesse período a gente viu um índice alto de subnotificação de registros. Foi acionado a Secretaria do Estado para que ela pudesse desenvolver esse trabalho e a maternidade local pudesse registrar o filho na maternidade. Para que a criança já saísse cidadão, com o seu registro. Foi uma experiência muito boa. Então, quando eu cheguei aqui em Fortaleza, eu ainda fiquei um período numa promotoria de cunho comunitário, que alcança o Grande Pirambu e a Barra do Ceará, e lá nós desenvolvemos um projeto de atendimento ao público, ou seja, todas as demandas da comunidade poderiam ser solucionadas no âmbito do Ministério Público a partir da conciliação, ou então encaminhar para os órgãos de direito, se não fosse aquele espaço, o espaço de solução de conflitos. E aí eu conheci a realidade da Barra, uma realidade de fragilidade em relação às crianças e adolescentes, em relação à violência sexual. É uma área da cidade extremamente empobrecida, de menor Índice de Desenvolvimento Humano na cidade. Fiquei uma temporada lá e recebi o convite pra vir pra Infância, pra trabalhar no Centro de Apoio Operacional, que eu estou há dois anos e meio. No Centro de Apoio e também na Infância, como Promotora da Infância. Eu recebi o convite, as lideranças já me conheciam, foi o período que a Camargo Corrêa chegou para fazer a reurbanização da região oeste da cidade. Eu cheguei a participar de algumas reuniões de mobilização porque antes houve uma disputa. A comunidade queria participar desse processo, queria ser ouvida, dizer o que queria para aquela área da cidade. Em alguns momentos eu estive, outros não, e quando a construtora chegou para executar a obra que havia sido definida pela gestão à época, eu fui convidada para participar de um dos momentos do programa Infância Ideal. Eles já estavam na segunda etapa do projeto da Infância Ideal. Nesse período eles já estavam trabalhando o fluxo operacional. Foi quando eu conheci o consultor da ABMP [Associação Brasileira de Magistrados, Promotores de Justiça e Defensores Públicos da Infância e da Juventude], o Raul Araújo, e comecei a participar das reuniões. Nesse projeto eles tinham como objetivo, a partir de vivências, de discussões de casos, identificar o que era o sistema de garantia de Direito e qual a atribuição de cada um dentro desse sistema. Qual o papel do Ministério Público, da delegacia, frente à violação de direitos de criança e adolescente, qual o papel do conselho tutelar, qual o papel das políticas públicas, principalmente em relação à educação, à saúde, ao esporte, ao lazer, as políticas de juventude, da iniciação ao trabalho, do enfrentamento ao trabalho infantil, à violência sexual. Então foi um período que todos nós que nos conhecíamos assim de vista passamos a nos conhecermos enquanto atores e nos identificarmos enquanto rede. Acho que esse foi o ponto mais importante desse período: foi sabermos que nós temos um papel e que esse papel não é completo. Ele é incompleto, ou seja, a minha ação sozinha não resolve tudo. Ela precisa do outro pra se completar, e nesse sentido nós pudemos perceber isso de fato, porque nós analisávamos o caso e aí víamos que aquela criança, precisava ter acesso à educação, à saúde, ao acompanhamento psicossocial e ela precisava que essa família fosse olhada e protegida, e quem pode aplicar essas medidas é o Conselho Tutelar. Perceber a grandeza de cada instituição nesse processo. E foram reuniões constantes, a cada mês nós sentávamos. No final nós fizemos um seminário onde cada instituição ia dizer o que fazia e porque, e com quem contava.
P/1 – E me diz uma coisa, qual foi a proposição de vocês nesse projeto, qual foi a contribuição que vocês trouxeram, quais foram as ideias e como é que é a ação de vocês nesse projeto?
R – O que a gente pode perceber foi que as pessoas, na verdade, tinham noções dos seus Direitos, mas não conheciam como efetivá-los. Qual é o caminho, qual é o fluxo? Por isso que foi um projeto de fluxo. Como saber o caminho para chegar ao órgão certo pra fazer o meu Direito acontecer? Essa foi a proposição. Ao final dessa etapa, nós pudemos ver que havia uma necessidade de dar um passo mais à frente. E esse passo foi exatamente formar as pessoas que estavam nesse primeiro momento mas de forma mais ampla. Eu participei de todo o ano da operacionalização dos fluxos, por quê? Porque a gente tinha como, na vivência de promotora de justiça, dizer dos caminhos. No momento seguinte ele já foi mais direcionado para a formação de Direitos, do ECA, com professores, alunos, pais, servidores do Ministério Público, servidores das secretarias, de saúde, de educação, da assistência, da secretaria de representantes, da moradia. Porque nós sabemos que hoje, se nossas crianças estão indo pra rua, passa pela política habitacional e esse segundo momento foi com a parceria do Instituto Alana, exatamente na formação desses parceiros, que depois iriam replicar isso no seu dia a dia, na sua família, dentro da escola. Para que a professora saiba que quando acontece violência ela não está só, ela tem com quem contar. E quem é a rede protetora: “Com quem eu posso contar no Conselho Tutelar? O que o Conselho Tutelar vai fazer?” Então, como fazer essa abordagem com a família, para quem encaminhar. Porque a escola também é limitada na sua atuação, os professores não foram formados pra lidar com os problemas da sociedade migrando pra dentro da escola. Se hoje a escola passa por todas essas dificuldades de violência, de adversidade no relacionamento aluno-aluno, aluno-professor, aluno-servidor, pais e a comunidade escolar, é porque ela ainda não percebeu que esse menino que está na escola, ele está na comunidade. Ele não pode abstrair, ao entrar na escola, toda a sua vivência de comunidade, de família. Então, foi esse período que a escola teve a oportunidade de vivenciar esse custo de formação com o Instituto Alana. E depois disso nós vimos que precisaríamos também ter algo concreto, prático: “Terminou aqui, e agora?”. Foi quando surgiu o protagonismo juvenil, o projeto Promotores Legais Juvenis. Com dois focos, um foco é o protagonismo juvenil, de adolescentes e jovens, ou seja, essa causa é de todos, o estatuto diz, a causa é de todos, mas nós precisamos envolver quem está vivenciando a sua adolescência, a sua juventude, quem saiu da adolescência e está na juventude, como inserir nessa dinâmica? E aí pensamos nesse projeto de formação de adolescentes em Direitos Humanos de crianças e adolescentes, com uma metodologia que fosse motivadora. Porque falar de direitos parece até um pouco enfadonho: “Ah, você tem direito a isso, você tem direito àquilo!” “Mas eu não vejo isso vivenciado no meu dia-a-dia.” Isso acontece com pouca frequência, então foi quando entrou a parceria da Mudança de Cena, que tem uma metodologia diferenciada pra trabalhar com adolescentes e jovens. E nós firmamos uma parceria, a Camargo entra com os recursos financeiros. É um trabalho a três, e aqui o Ministério Público ficou com a atribuição, com a responsabilidade, juntamente com a escola que nós temos, a Escola Superior do Ministério Público, a Instituição Ministério Público, Infância e Escola, em organizarmos a questão da inscrição, da mobilização, da divulgação. A divulgação para o público juvenil e para o público externo, para dizer que temos formas diferentes de trabalhar com crianças e adolescentes. Muito interessante porque chamou a atenção da mídia. Não só da mídia local, mas da mídia do Brasil. Tive a oportunidade de falar com Brasília, rádios que são escutadas, ouvidas na região Norte. E o público não é só da região do grande Pirambu, da Barra do Ceará, mas de jovens e adolescentes a partir de 12 anos e até 21 anos de toda cidade. E foi uma mobilização muito boa, a mídia nos deu amplo apoio. Foi divulgado na televisão, no rádio. Só pra você ter uma ideia, por conta da divulgação, nós fomos convidados para termos um programa numa rádio local.
P/1 – Ah, que legal.
R – Direcionado para criança e adolescente, com essa proposta de protagonismo juvenil. Que a apresentação do programa seja feita por adolescentes. O diretor da rádio aceitou e nós estamos em fase de construção, já como consequência desse programa dos Promotores Legais Juvenis. E a outra área, o outro público dos promotores juvenis é o sistema de justiça e a rede sócio assistencial. De que modo? O sistema de justiça foi convidado como um todo para estar no projeto dos fluxos, mas só o Ministério Público permaneceu. Foi um convite que não teve feedback, então nós pensamos o seguinte: “Não vamos esquecer deles, vamos chamá-lo de uma outra forma, vamos convidá-los agora para um curso de formação.” Só que esse curso, é um curso de especialização multidisciplinar em criança e adolescente. Por que multidisciplinar? Porque nós não gostaríamos de ter só um foco jurídico, mas um foco na área Social, Psicologia, Saúde. Nós fizemos uma divisão de vagas, para juízes, promotores, defensores, delegados, que é o sistema de justiça, psicólogos, assistentes sociais, conselheiros tutelares e conselheiros de direitos. Porque é importante, para que essa multidisciplinaridade aconteça na área da infância, que nos conheçamos, né? Enquanto atores sociais, enquanto sujeito desse SGD [Sistema de Garantia dos Direitos], mas também conheçamos a história de vida e de trabalho de cada um desses atores, então essa é uma experiência nova aqui na cidade, nós não temos ainda. É o primeiro curso que vai ser oferecido com essa metodologia, e por ser tão diferenciado ele está sendo mais demorado para se efetivar. Ainda estamos numa fase de construção, de fechar os últimos detalhes para darmos início, mas é algo que está bem adiantado.
P/1 – E essa participação da Camargo é dessas duas pontas ou só com os jovens também?
R – Não, nas duas pontas. Qual é a participação? Um curso de pós-graduação, é um curso caro. Caro no sentido do salário da nossa rede sócio-assistencial. Temos a proposição de que haja multidisciplinaridade. As equipes técnicas que hoje estão tanto na rede privada, que é conveniada com o Estado ou com o Município ou com os servidores do município e do estado tem um salário muito baixo, que não passa de dois mil reais. O que inviabiliza pagar uma prestação de 350 reais num curso de especialização. Então a Camargo Correa, o Instituto entra exatamente nessa dinâmica, de pagar as vagas da Rede Sócio assistencial. Então a Rede Sócio assistencial e os conselheiros de direitos tutelares, com formação em nível superior que queriam fazer essa pós, vão ter a gratuidade. A partir de um termo de compromisso de ficar até o final e dessa devolução do compromisso de trabalhar em rede. Esse é o grande plus.
P/1 – Antônia, pra gente já ir finalizando porque a gente já está no seu horário.
R – Eu sei.
P/1 – Eu só queria entender uma coisa, você já consegue olhar pra comunidade, lá em...
R – Barra do Ceará.
P/1 – Qual foi o impacto que já teve essa ação de vocês lá?
R – É muito nova, tem uns 15 dias. O impacto é o programa de rádio. A rádio se interessou porque percebe que não tem uma programação direcionada pra esse público, o público jovem, que fale de Direito dos jovens. E como efetivar esses Direitos. Então isso já é algo bom e que já deu um resultado concreto. Nós agora já estamos formatando conteúdo da apresentação semanal desse programa. O que mais me surpreendeu foi a mobilidade da comunidade de mães. Um grupo de mães organizou um projeto e fez uma comissão. Foi há 15 dias atrás conversar comigo, no centro de apoio, porque queria uma alternativa para o segundo tempo na escola. Os meninos da Barra ficam o primeiro período na escola, e o segundo tempo eles estão fora. Qual é o medo dessas mães? Que o menino que fica no segundo tempo ocioso, na calçada, andando de bicicleta, sejam cooptados pelo mundo do crime: “Ah, tu está sem fazer nada? Vai deixar essa encomenda em tal canto.” Dos meninos serem cooptados, pelo mundo do tráfico, que é uma realidade nas nossas comunidades. Então elas fizeram um projeto tão singelo, mas tão lindo. Elas queriam algo pro segundo tempo, e eu disse assim: “O que é esse algo?” “Nós queremos esporte, nós queremos algo que os nossos filhos possam trabalhar com o corpo.” MMA [Artes Marciais Mistas] eles falaram, aí eu disse: “Tudo bem, então vamos fazer uma interlocução com a Secretaria de Esporte e de Juventude.” Eu pedi pra eles votarem, organizarem o projeto. Nós temos uma equipe técnica lá no centro de apoio, que deu o suporte, orientou, e esse mesmo grupo voltou pra comunidade, reorganizou, devolveu pra gente. Nós temos uma reunião agendada agora pra segunda-feira na Secretaria de Esporte com o Secretário de Esporte e o Secretário de Juventude, para discutir como vamos desenvolver esse projeto. Ontem eu estive com uma outra instituição que quer vir participar, porque eles trabalham com a linha da capoeira. E aí, aonde fazer isso, e eles: “Nós temos o Vila do Mar e vamos utilizar o espaço”. Então, as mães já tem o local que elas queriam. Como que foi que chegou ao Ministério Público? Porque como eu vou sempre à comunidade, as pessoas já tem um referencial do Ministério Público na minha pessoa. Eu acho que essas foram as duas ações de maior impacto até agora. E também outra coisa que eu estava esquecendo, eles fizeram um filme. O filme da história da Barra. Para apresentar agora no dia 18 de maio. E foi um filme super bacana, bem amador mas que conta a história de como começou essa articulação com o Instituto, como que foi mobilizada a comunidade pra receber o projeto dos Promotores Legais Juvenis, como é que eles se articulam com a política, do enfrentamento à violência sexual. Aqui a Rede Aquarela que faz. E como insere todos esses atores da rede de proteção.
P/1 – Antônia, porque criar um projeto para trabalhar com Promotores Legais Juvenis, porque você achou interessante promover a juventude, como ser promotor?
R – Porque me inquieta muito a “letargia legal”. Nós temos marcos legais maravilhosos. Temos os marcos internacionais, a própria Constituição Federal, o ECA, que são legislações belíssimas. Nós já temos o direito formal, posto, mas ele está distante da vida das nossas crianças, da maioria das crianças e dos adolescentes. Nós vamos fazer 23 anos de Estatuto, e eu percebo e sinto que ainda é muito pouco o que se tem hoje. Nós ainda temos uma realidade de violência. Quando a gente assiste A Vida é Bela, nós assistimos o filme que se passa em plena Segunda Guerra Mundial, mas aquela criança é extremamente feliz. Por quê? Porque alguém o protege da violência externa. E eu não sinto isso acontecer. O mundo adulto, por mais imbuído que ele esteja de proteger nossas crianças, ele ainda tem muitas limitações. Participando da Conferência Nacional dos Direitos de Criança e Adolescente o ano passado em Brasília, eu escolhi ficar no protagonismo juvenil. E eu percebi o quanto os jovens e os adolescentes anseiam por participar. Acredite, nesse grupo tinha uma adolescente autista, que em vários momentos se posicionou pra dizer o que queria. Um adolescente com necessidades especiais sente a necessidade de participar, de querer dizer o que acha que é bom pra sua vida, pra vida dos seus pares, imagine um adolescente que não tem essas limitações, um adolescente que está em ebulição no seu desenvolvimento. Eu acho que é uma das etapas da vida que pode ter, se inserir nessa dinâmica de já conhecer do seu Direito para militar no sentido de fazer acontecer. Porque nós teremos adultos com valores definidos “Eu quero isso pra minha vida” E isso acontece nesse processo da adolescência. Quando eu chego ao mundo adulto eu já sei o que eu quero e porquê. Se nós não trouxermos o adolescente pra essa realidade, ele vai se encantar com os apelos da mídia, do consumo, consumo que não é sustentável, que destrói o planeta, que prejudica todos nós. E quando o adolescente entra nessa seara, nessa dinâmica, ele vai ter uma compreensão de mundo "elastecida", macro, ele não vai ver só as suas necessidades enquanto pessoa. Ele vai ver a sua necessidade, vai compreender porque é que precisa e necessita daquilo, mas ele vai ver o outro, esse é o diferencial. Trabalhar com adolescentes e com jovens tem esse ponto especial. A outra coisa é que adolescentes e jovens são extremamente questionadores. E quando ele questiona as estruturas formais, e aí eu trago isso pra minha estrutura de poder, porque um órgão que tem uma atribuição, repercussão na vida da sociedade como um todo, ele nos renova. Trabalhar com adolescentes e jovem é se renovar, trazê-los pra dentro das instituições, pro sistema de justiça, para o Ministério Público, para a defensoria pública, é trazer o novo. É trazer o ECA como ar de, diria assim, como se fosse uma flor, que tem seus espinhos mas, que embeleza, que instiga a nós que estamos acomodamos já nessa fase de maturidade. Ter um olhar para a criança e adolescente pegando um pouco da experiência de vida deles, do início, da motivação maior. Todo jovem é destemido, é ousado, e nós adultos temos uma tendência a nos acomodar, então quando eles estão pertinho de nós nos motiva, nos alegra, nos desafia também. Porque eles nos desafiam muito, né?
P/1 – Bom, pra finalizar eu queria te fazer uma pergunta. Dentro desse seu trabalho e dentro desses processos de maturação, como você disse, maturidade e tal, qual o seu sonho hoje, Antônia?
R – Ah, como sonho de juventude, estou em processo de realização [risos]. De construção. Na minha juventude eu participei de movimento de Pastoral de Juventude, que a gente dizia que queria uma sociedade justa, livre e solidária. E eu não compreendi à época como buscar isso, ficava muito mais no plano do ideal. E eu percebo que essa sociedade justa, solidária e que todos tem a oportunidade se constrói com todos. Então, estou nesse momento da minha vida, em que eu sou mãe de criança ainda, me renova, um filho renova a gente. E estando ao lado dos adolescentes que estão me questionando, que estão também no processo de formação junto comigo, me ensinando, eu posso perceber que essa sociedade que a gente sonha é uma construção conjunta. E que é um sonho que se sonha junto, como diz o poeta, né? Todos nós temos que nos dar as mãos e percebermos nossa "incompletude", a nossa necessidade de estarmos ao lado. E o que mais me encanta na Justiça é a metodologia horizontalizada de se trabalhar. Eu não me vejo mais trabalhando nessa situação de verticalidade, de um poder que impõe, mas de um poder que conquista, de um poder que faz o outro compreender da necessidade de que ele existe para que possa acontecer algo muito maior, que é a garantia de direitos de crianças e adolescentes.
P/1 – Eu queria te agradecer em nome do Instituto Camargo Corrêa, da construtora Camargo Corrêa e do Museu da Pessoa a sua participação no projeto. Obrigada, Antônia.
R – Muito obrigada à vocês todos.
Recolher