Projeto Memória dos Bairros
Depoimento de Vandineide Cardoso Ribeiro dos Santos
Entrevistada por Marina e Cláudia
São Paulo, 29/09/2000
Realização: Museu da Pessoa
Entrevista número: MT_HV019
Transcrito por Marcília Ursini
Revisado por Luiza Gallo Favareto
P/1 – Vamos recomeçar, né? Pedir para você falar de novo seu nome completo, local e a data de nascimento.
R – Bom, Vandineide Cardoso Ribeiro dos Santos. Eu nasci em Inhambupe, Bahia, em quinze do um de 1958.
P/1 – E o nome dos seus pais?
R – Secundino e Zenólia.
P/1 – E o que eles faziam?
R – Lá no Nordeste, na Bahia, eles eram agricultores. Em São Paulo, papai era mordomo e a mamãe era doméstica, dona de casa.
P/1 – E você veio para cá com quantos anos?
R – Com sete anos. Entre seis e sete anos. Como eu faço aniversário no comecinho do ano, então... (risos).
P/1 – Vandineide, o que você lembra de Inhambupe? Como era a cidade? Descreve para a gente...
R – As maiores lembranças mesmo, acho assim: primeiro da casa da minha avó com quem a gente morava. Uma casa de sítio, simples, mas muito espaçosa. Depois o espaço externo mesmo para brincar, onde a gente podia brincar à vontade e criar os brinquedos ou então fazer gangorra de tronco de embaúba. Enfim... (risos). Fazer perna de pau. Lembro muito disso, e mais também, acho que as festas regionais. São João, final de ano, coisa das lapinhas que eles faziam muito, uma questão cultural super forte lá.
P/1 – O que é isso, lapinha?
R – São os presépios, porque no Nordeste eles chamavam de lapinha. Cada um fazia. Na verdade, o presépio é na sua casa e aí eles iam rezar durante várias semanas naquele presépio. Então eles falam: “agora é a fase da lapinha na casa de dona fulana”. Então a criançada ia para brincar, para se divertir, não para rezar e os adultos iam rezar. Então acho que isso marcou bastante a minha infância; as festas de São João, de São Pedro, enfim. As trocas que...
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Depoimento de Vandineide Cardoso Ribeiro dos Santos
Entrevistada por Marina e Cláudia
São Paulo, 29/09/2000
Realização: Museu da Pessoa
Entrevista número: MT_HV019
Transcrito por Marcília Ursini
Revisado por Luiza Gallo Favareto
P/1 – Vamos recomeçar, né? Pedir para você falar de novo seu nome completo, local e a data de nascimento.
R – Bom, Vandineide Cardoso Ribeiro dos Santos. Eu nasci em Inhambupe, Bahia, em quinze do um de 1958.
P/1 – E o nome dos seus pais?
R – Secundino e Zenólia.
P/1 – E o que eles faziam?
R – Lá no Nordeste, na Bahia, eles eram agricultores. Em São Paulo, papai era mordomo e a mamãe era doméstica, dona de casa.
P/1 – E você veio para cá com quantos anos?
R – Com sete anos. Entre seis e sete anos. Como eu faço aniversário no comecinho do ano, então... (risos).
P/1 – Vandineide, o que você lembra de Inhambupe? Como era a cidade? Descreve para a gente...
R – As maiores lembranças mesmo, acho assim: primeiro da casa da minha avó com quem a gente morava. Uma casa de sítio, simples, mas muito espaçosa. Depois o espaço externo mesmo para brincar, onde a gente podia brincar à vontade e criar os brinquedos ou então fazer gangorra de tronco de embaúba. Enfim... (risos). Fazer perna de pau. Lembro muito disso, e mais também, acho que as festas regionais. São João, final de ano, coisa das lapinhas que eles faziam muito, uma questão cultural super forte lá.
P/1 – O que é isso, lapinha?
R – São os presépios, porque no Nordeste eles chamavam de lapinha. Cada um fazia. Na verdade, o presépio é na sua casa e aí eles iam rezar durante várias semanas naquele presépio. Então eles falam: “agora é a fase da lapinha na casa de dona fulana”. Então a criançada ia para brincar, para se divertir, não para rezar e os adultos iam rezar. Então acho que isso marcou bastante a minha infância; as festas de São João, de São Pedro, enfim. As trocas que haviam mesmo entre essas pessoas nesse período. Cada um fazia um pratinho, levava para o outro. Apesar da distância porque sítio as casas não são tão próximas, mas mesmo assim, era um tal de troca de pratinho para lá, troca de pratinhos para cá. Então acho que essas são lembranças muito legais.
P/1 – E a festa de São João?
R – Então, era bem interessante a coisa das fogueiras, a criançada ficava pulando fogueira para ser comadre, compadre e os adultos falando: “vocês não podem brigar, agora que vocês são compadres e comadres vocês não podem brigar” (risos). Acho que era uma forma de controlar a briga da criançada. E aí a gente levava super a sério aquilo. Mas a coisa do assar batata doce, do assar milho verde, que era a fase da colheita desses produtos. Então tudo isso é muito legal relembrar.
P/1 – Olha, que legal! E, assim, a viagem de vinda para cá, você lembra?
R – Lembro, lembro assim.
P/1 – Como vocês vieram?
R – Nós viemos de ônibus com a minha avó porque meus pais já estavam aqui e era tudo, nossa, muito estranho para a gente. Porque à medida que o ônibus ia parando a gente ia tomando contato com outras pessoas e com outras culturas. Até a questão da alimentação para a gente. Então eu me recordo a primeira vez que eu comi pastel na minha vida. Foi em uma parada de Minas Gerais. Quer dizer, uma coisa maluca isso. Eu lembro do sabor do pastel, lembro das características do pastel, lembro da menina que vendia o pastel. Uma coisa assim... Há quantos anos, né? Eu estava com seis porque sete eu já estava morando em Guarulhos, estava chegando e a gente ficou um período lá na casa da minha tia em Santo Amaro até ir morar lá. Sabe aquela coisa de... Até arrumar um espaço, tudo isso, e era finalzinho de ano. Então o sabor do pastel, tudo aquilo, nossa, para mim foi uma coisa assustadora. Não era um sabor agradável, não era uma coisa agradável, era algo muito esquisito, era muito estranho (risos). E mesmo a viagem, muito cansativa. Depois, a chegada à São Paulo, tudo muito diferente, a gente super acostumado a uma quantidade imensa de vegetação, espaço imenso. Mesmo a cidade, a cidade de Inhambupe que a gente costumava a ir nos finais de semana, quando tinha as festas, tudo isso era completamente diferente. Então a calçada de paralelepípedo, as ruas calçadas dessa maneira, enfim, tudo muito mais tranquilo. Quando nós chegamos em São Paulo, eu me recordo que era, devia ser, umas seis horas mais ou menos, estava escurecendo já, e nós fomos para a casa do papai. A mãe Maria pegou um táxi na rodoviária, com o endereço do papai, e fomos procurar o papai, e ele trabalhava na Avenida Nove de Julho.
P/1 – Ah é?
R – Era mordomo em uma casa ali na Nove de Julho.
P/2 – Uma casa, uma mansão?
R – Uma mansão.
P/2 – Isso era que ano, mais ou menos?
R – Ai... 1964 mais ou menos. Era finalzinho de 1964. Isso mesmo. E era uma loucura aquilo, aquele trânsito. Me recordo que eu estava super cansada, uma coisa assim assustadora. E eu olhava as pessoas nos ônibus, as caras das pessoas eram completamente diferentes. E eu me recordo que a minha avó deu o endereço para o motorista de táxi, daí ele estacionou: “Olha, a senhora aguarda um momento aqui com as crianças que eu vou lá para ver se o número é esse mesmo”, que ele não podia parar em qualquer lugar ali, o motorista de táxi. E nós ficamos dentro do táxi esperando, e o rapaz demorou para vir, e a minha avó desesperada começou a ouvir apito, provavelmente era a guarda de trânsito, ela não estava acostumada e ela tinha pavor de São Paulo.
P/1 – Ela já tinha vindo para São Paulo?
R – Nunca, nunca. Mas ela tinha pavor. Ela veio porque ela não conseguia mais dar conta do sítio e das três crianças, porque a mamãe tinha vindo para cá e tinha trazido os meus irmãos mais velhos. E ela morria de medo daqui. Ela ouvia todas as histórias de violência; ela tinha pavor. Aí quando ela ouviu o apito, ela tinha medo do motorista estar chamando algum comparsa. O que ela fez? Tentou abrir a porta do táxi e não conseguiu abrir. Aí ficou desesperada, falou: “pronto, o cara trancou ainda a porta”. O que ela fez? Ela não teve dúvida; saiu pela janela, tirou um por um dos netinhos e botou na calçada (risos). É muito legal! Quando eu penso nisso, puta, é muito legal isso, porque é completamente diferente. Nordestino vem para cá com aquela perspectiva, aquela história da cidade grande que vai... Ela tinha pavor. Então ela ficava pensando em como proteger, na verdade, os netos, todo mundo aqui. Aí quando o motorista chegou com o meu pai, ele olhou assim, falou: “Por que a senhora está aqui fora?” “Estava esperando. Estava todo mundo cansado de ficar dentro do carro?” “Por onde a senhora saiu?” “Pela porta!” (risos) Ai, meu Deus, muito legal! E aí, assim...
P/2 – A sua cidade era longe da capital, de Salvador, não?
R – Olha, não sei quanto tempo... Não era muito longe até pelas características da região. Não era uma região muito seca. Então... Não sei quantos quilômetros, até preciso dar uma olhada nisso no mapa, não é muito longe, mas é mais próximo a Feira de Santana. Acho que o centro maior e mais próximo é a Feira de Santana.
P/2 – Mas era ainda na zona da mata? A zona da mata é perto...
R – É zona da mata. Aquela região é região de zona da mata.
P/2 – É mais fértil.
R – Isso, mais fértil. Então... Onde é que eu estava?
P/2 – Você estava saindo do táxi?
R – Sim, aí chegou o papai. Como já era tarde, ele falou: “Ah, vamos entrar então”, porque ele tinha que se organizar para nos levar na casa de alguém porque ele não podia ficar conosco lá onde ele trabalhava. Então, eu me recordo que nós entramos e veio uma das empregadas: “Ah, vocês estão com fome? Vocês não querem comer alguma coisa?” E veio servir esfiha para a gente. Esfiha aberta! Argh.
P/1 – Detestou!
R – Tudo a ver, né? Tudo a ver! Primeiro o cansaço. Acho que nada entrava, ainda uma esfiha aberta? Aquela massa que eu nunca tinha comido, aquela coisa azeda. Argh! Então...
P/2 – Como é que era a sua comida lá na sua terra? Vocês já perguntaram, que eu estava lá fora?
P/1 – Não.
R – Não...
P/2 – A que comida você estava habituada?
R – Feijão, não é? Farinha, verdura, frutas, carne. A minha avó produzia grande parte... Então ele produz uma parte, o que ele não consegue, na verdade, produzir ele vende o excedente, aí ele vai comprando o restante. Então ele compra a carne com o excedente da plantação do feijão, ele compra com o excedente de outras plantações. As verduras, isso ele produz, e aquilo que dá com mais facilidade, né? Então... Até pela região mesmo, como a gente estava falando. Então, o chuchu, a abóbora, pepino, melancia, enfim, essas coisas, couve.
P/2 – Macaxeira?
R – Macaxeira... A gente não chamava macaxeira. Até, assim, é interessante isso porque eu percebo que vários termos que se utiliza hoje como da Bahia não são daquela região. Então não se chamava mandioca de macaxeira. Mandioca era mandioca ou aipim, que é a mandioca que a gente cozinhava para comer como se faz a mandioca aqui. Não é? Lá a mandioca é a que se faz a farinha e o aipim é a mandioca que se come cozida. Mas não tinha esses nomes, macaxeira, nada disso. A mesma coisa da mainha, do painho, que a gente vê na televisão. É estigma mesmo que se coloca, porque naquela região nunca vi ninguém chamando mainha, painho. Minas Gerais sim, mas aquela região a gente chama mamãe, papai, tanto que eu carrego esse hábito até hoje, falar mamãe, papai, essas coisas.
P/2 – Bom, você estava aí...
R – Da questão da alimentação, né?
P/2 – Você estava comendo a esfiha.
R – É, é, eu não comi a esfiha.
P/2 – Não comeu, não?
R – Não, não. Aí depois, lembro que nós pegamos um ônibus e fomos para a casa dessa minha tia, que mora em Santo Amaro. Parece que assim, a pessoa que recebia todo mundo que ia chegando do Nordeste ou estava mesmo de passagem. Todo mundo que chega do Nordeste passava por lá até conseguir encontrar o seu espaço, o seu lugar. E aí já foi mais tranquilo porque aí já era a casa da tia, a gente já se sentiu mais à vontade, enfim. E aí foi a história mesmo de saber: “bom, para onde vamos”? Vamos ficar morando em Santo Amaro, vamos morar em Guarulhos, porque a família do meu pai morava naquela região, em Santo Amaro. Papai tinha casa lá. Quando eles vieram para cá, os dois se separaram. Meu pai e a minha mãe se separaram. Então mamãe morava em Guarulhos junto com a família da mamãe, os tios, tudo isso, e meu pai morava, estava mais ligado ao pessoal de Santo Amaro, que era a família da mãe dele, a família dele. Aí na casa do meu pai não dava para morar naquele momento porque estava alugada. Como ele trabalhava o tempo todo, ficava no trabalho, na folga ele ia para a casa do meu tio. Aí nós fomos morar em Guarulhos. A mamãe alugou uma casa e fomos morar. Ela já tinha um terreno também em Guarulhos, então fomos morar lá. Que mais?
P/1 – E aí você começou a ir para a escola? Quais eram as suas atividades quando você chegou em São Paulo?
R – Aí sim. Então foi a coisa de matricular todo mundo na escola. Quando a mamãe trouxe os meus irmãos, a história dela estar separada, então meu irmão mais velho ficou com um tio, a minha irmã ficou em um outro local com outro tio. Enfim, essas coisas. E aí a proposta da minha avó, até por isso que ela veio, era para juntar todo mundo, juntar os irmãos de novo, poder cuidar da gente, poder ficar conosco e que, inicialmente, a proposta era essa: ela vinha, ficava um ano até conseguir que as coisas se estabilizassem, se estabelecessem direitinho, e depois sim, aí ela voltaria para cuidar das terras dela, cuidar das coisas dela. Mas ela estaria sozinha, não teria uma responsabilidade com três crianças. Então aí, naquele período, não sei como funciona hoje porque eu nunca mais voltei, até preciso, é um terror pensar que... Mas, naquele período, os agricultores se ajudavam. Então na fase de plantação, no roçado da Maria, vai todo mundo plantar feijão no roçado da Maria. Aí a fase de plantação no roçado do João, vai todo mundo plantar feijão no roçado do João. É fase de colheita, vai todo mundo colher a da Maria, depois vai todo mundo colher... É uma coisa muito legal na verdade. Então ninguém paga trabalhador, eles se auxiliam nesse processo. Eu te dou dois dias, depois você me dá dois dias. É assim. Então daí o compromisso já era menor, na verdade. Só que ela foi ficando porque não tinha como, tinha que cuidar da gente, a mamãe tinha que trabalhar também, ela tinha que sair para trabalhar...
P/2 – Ela foi trabalhar de que?
R – De cozinheira. Então aí ela foi trabalhar de cozinheira e a minha avó que cuidava da gente. E ela trabalhava de cozinheira, mas não vinha ficar com a gente também. Ela acabava ficando lá na casa do meu tio também, porque papai também vinha nos visitar. Eles eram separados. Aí eles combinaram: a mamãe, ela dava material de escola, roupa, essas coisas; o meu pai, alimentação.
P/1 – Ah, que legal!
R – Muito legal, né? Eu tenho um super orgulho dos dois nesse sentido porque...
P/2 – Muito civilizados.
R – Muito, né? Muito. Aí eles vinham nos visitar há cada quinze dias. Então cada semana nós tínhamos um. Eles nunca se encontraram (risos). Muito legal, né?
P/1 – Eles não se encontravam?
R – Não se encontravam. Não se encontravam. Eu me recordo de uma vez que os dois se encontraram que foi muito interessante porque a mamãe era super alegre, era quinze anos mais nova que o papai. Super alegre, expansiva, então ela vinha, ficava cantando para a gente aquelas músicas dos festivais ela cantava todas. Era uma beleza. A gente ficava até a uma com a mamãe cantando. Uma delícia aquilo! E o papai não, já era quietão. Eu lembro que ele chegava aos domingos, a minha avó botava o almoço para ele, demorava para almoçar, demorava, e eu desesperada, com dó de deixá-lo lá, e desesperada porque ele não comia (risos). E um dia aconteceu, mamãe acabou vindo no mesmo dia que ele, e todo mundo ficou com a mamãe lá no quarto cantando, brincando e eu morrendo de dó de deixar o meu pai sozinho. Gente, umas coisas super malucas, né? (risos) E aí, o que mais?
P/2 – Bom, daí você começou...
R – Isso é horrível, gente. Isso é um terror o que vocês fazem com a gente.
P/1 – Aí, por que?
R – Porque a gente começa a recordar tudo. É um barato.
P/1 – Não é gostoso?
R – É, um barato, mas de repente, gravar é terrível, né? Vamos supor, você grava a emoção. Claro que isso é legal enquanto história de vida, mas, pô, a gente se expõe muito (risos).
P/2 – Pelo jeito você teve uma infância feliz.
R – Muito. Não...
P/2 – Está na cara.
R – Muito. Não, muito, muito feliz. Então apesar dessa coisa da migração, ter a avó ali o tempo todo cuidando, era muito legal. E mesmo pai e mãe, super responsáveis. Mamãe nunca precisou falar para o meu pai dar, sabe? Ter que dar a sua parte ou a minha avó. Pelo contrário, minha avó falava assim: “Dino, olha, está faltando, você precisa aumentar um pouquinho”. “Ah, dona Maria, esse mês não dá, mas eu vou ver direitinho se eu consigo aumento.” Então essa história mesmo, sabe?
P/1 – Que legal.
R – Ou então, pede para a mãe dele. Não! Se eles assumiram um compromisso, e foram até o final nesse compromisso. Uma coisa...
P/1 – E assim, vocês estavam morando em Guarulhos?
R – É. Aí foi quando a mamãe alugou a casa, tudo. Aí depois ela construiu. Acabou construindo, foi a coisa da autoconstrução, então...
P/1 – Como que é isso?
R – Os irmãos se juntavam todos lá e construiu a casa. Então foram os meus tios que construíram a casa da mamãe. Tinha um tio que construía melhor. Era até legal porque eles ficavam brigando lá. Quando um construía a parede ficava certinha; o outro, ficava a parede com a barriga (risos). Aí, barato. A parede toda barriguda. Ai meu Deus. O dono da casa pediu a casa e tinha que entregar. Falou: “Bom, aí não vou alugar uma outra casa. Vou aproveitar e vou construir”. Aí construiu primeiro dois cômodos, as paredes todas barrigudas. Depois, passou um período, ela melhorou, aí levantou, ampliou a casa, mas aí já foi outro tio e era uma guerra porque falava assim: “Eu vou ter que derrubar essa parede que o Miro fez que ela está toda barriguda”. Aí, o outro… (risos).
P/2 – E como é que foi o reencontro com seus outros irmãos? Tinha uns irmãos que já estavam aqui, não é isso?
R – Tinha. Então, com um dos irmãos foi mais tranquilo porque ele já morava com esse meu tio, que nós morávamos muito próximos em Guarulhos. E o outro não, a minha irmã que morava mais longe. Inicialmente foi complicado porque eles ficaram um tempo aqui, eram os dois mais velhos, não é, e a minha avó era muito… Quer dizer, era uma pessoa super carinhosa, mas era rígida, era um terror. E até a coisa do reencontro com a minha irmã, a minha irmã se readaptar a viver conosco de novo foi super difícil. Mas para nós irmãos, não. Para nós irmãos era tranquilo. Você tem... A Vanda e o Vando são os mais velhos de qualquer jeito. Então a minha relação maior era com os dois menores, que eu cuidava mais, enfim. Então acho que era mais, talvez, a dificuldade deles de adaptação do que nossa, porque éramos menores.
P/1 – Vocês estavam acostumados já.
R – Era muito mais tranquilo. Então, eu já era responsável pelo João e pela Vilma de alguma maneira. Então eles que tinham que se adaptar a serem responsáveis por mim agora, os dois mais velhos (risos). É isso.
P/2 – E como é que você foi para a escola, todo mundo foi para a escola?
R – Então, mas aí foi isso, chegamos aqui, a minha avó já matriculou todo mundo porque no Nordeste também era assim. Então... Tanto que quando a gente viajava final de semana para a cidade mesmo, a gente ia para a casa da professora que era parente, na verdade. Então ela botava todo mundo na escola. Para ela, escola era um valor fundamental. Ela botava todo mundo. Eu me recordo que eu tinha cinco anos e o meu irmão João estava com três anos e pouco, quase quatro, era todo mundo na mesma escola. Ia todo mundo para a escola, a professora dava a mesma coisa. Eu me recordo até que uma vez eu levei uma, uma... Como que é aquele treco? Uma palmada com aquela palmatória lá de madeira porque ela pediu para o meu irmão fazer uma coisa, ele não conseguiu fazer, quando ela saiu da sala fui correndo ajudar, ela voltou, viu eu ajudando, falou: “Não pode, ele tem que fazer sozinho.” Ela saiu de novo, fui correndo ajudar, quando ela voltou... Um horror!
P/2 – Fazia a mesma coisa com as idades diferentes?
R – Tudo igual, né? Era “a, b, c, d, e, f, g, i, m, n, o, p, q, e, s, t, u, v, x, z” (risos). Que era isso, né? Luís Gonzaga tem uma música que diz isso. Então, é muito legal isso.
P/1 – É uma música bacana.
R – Então, isso era um valor para a minha avó. Então, mesmo lá, todo mundo ia para a escola. Quando eu cheguei em São Paulo, na verdade, as cartas da minha avó, quando enviava para a minha família aqui, era eu quem fazia. Então eu não sei, na verdade, em que momento da minha vida eu comecei a ler e escrever. Não lembro desse... Só lembro que eu escrevia. Lembro, inclusive, de um amigo muito próximo da gente uma vez fazendo uma correção, falando: “Olha Neide, quando você tiver o “n” assim e o “h” grudado, você não pode botar o “n” aqui e o “h” na outra linha. Na verdade, eu aprendi, provavelmente, a história do construtivismo. Então a mamãe mandava livros daqui, mandava um monte de coisa. Minha madrinha também, que morava aqui, mandava um monte de coisa para a gente, livro de São Paulo, de outros estados. Então por livro a gente conhecia como era tudo. E, de repente, a gente começou a ler aquelas histórias todas, não sei como.
P/2 – E você fica em Guarulhos até que ano mesmo?
R – Até... É legal porque aí você faz a gente voltar (risos). Isso é legal. Eu fiquei em Guarulhos até 1980, quando eu casei.
P/2 – Aí quando você... Uma geral da vida em Guarulhos, você poderia dizer? O relacionamento de vocês com o pai...
R – Acho que assim: primeiro, desde o início era a diferença do espaço mesmo, que acho que foi isso que me marcou muito. O espaço que eu tinha no Nordeste e o espaço que eu tinha para morar lá, o quintal, o tamanho do quintal, tudo isso. Eu me recordo que uma vez na escola, acho que eu devia estar no segundo ano primário, a gente aprendia a trabalhar muito com artes nesse período e eu ia fazer um trabalho com artes que ia usar folha. Aí quando eu cheguei em casa, a gente tinha acabado de mudar para a casa da mamãe mesmo, para a casa da gente de verdade, eu procurei uma folha que eu pegar para tirar. Eu não encontrei no quintal, fiquei desesperada. “Puta, não tem uma planta na minha casa”. Então aquilo para mim foi uma crise nesse processo. Aí sim que a gente começou a plantar tudo em vasos (risos).
P/1 – Aí você começou?
R – É, aí a gente começou a plantar mesmo, a aproveitar o espaço. A gente tinha umas coisas muito legais porque a casa da mamãe era perto do cemitério e era muito interessante dar o endereço. Então, bom, “onde você mora?”. “Ah, fica em frente ao cemitério...”. Era o nosso referencial. E tinha uma tia, a esposa do meu tio, era muito nova. Acho que tinha quinze ou dezesseis anos, mas para a gente que é criança já é velha, não tem como. Então o que é que nós fazíamos: nós íamos no cemitério, e pegávamos as plantinhas dos defuntos e trazíamos para o quintal (risos). A gente chegava lá “ai, que linda, não sei o que”. Aí, ela falava assim: “Olha, depois a gente traz uma plantinha nova.” Então a gente fazia promessa para o defunto (risos). “Olha, eu vou levar agora, mas amanhã eu trago uma planta nova para você”. Às vezes a gente levava, às vezes a gente não levava, enfim. E aí a gente ia enchendo, na verdade, lá o quintal de planta.
P/2 – Em Guarulhos, a sua escolaridade foi até quanto?
R – Até a universidade.
P/2 – Você fez colegial...
R – Fiz ginásio, colegial e a faculdade lá.
P/2 – E que faculdade você cursou?
R – A UNG. Antes era Farias Brito, agora é aqui a Universidade de Guarulhos.
P/2 – Biologia?
R – Biologia.
P/2 – E como é que você conheceu o seu marido?
R – Na faculdade (risos).
P/2 – Ele era colega?
R – É, foi na faculdade porque eu comecei a fazer Biologia e ele começou a fazer Matemática. Só que o início do curso é básico. Exatas, o início era básico os dois primeiros anos. Depois é que fazia opção. Então ele estava na mesma sala que eu. Tinha o grupo do pessoal que morava na zona Leste, na faculdade, que morava em São Miguel e eu que morava em Guarulhos. E eu fiz amizade com a menina que era de São Miguel, que era do grupinho lá do meu marido, tudo isso. E a gente começou a discutir, formamos um grupo na faculdade, nosso grupo de trabalho, na verdade. E aí a gente estava discutindo por conta do grupo, por conta dos trabalhos. E foi assim que a gente se conheceu.
P/1 – E por que você escolheu Biologia?
R – Pois é, pois é, a história do início da vida, coisa que me fascinava. Me fascinava poder conhecer melhor os seres vivos, essa estrutura do ser vivo. Era uma coisa que sempre me fascinou. E a possibilidade de você poder trabalhar com isso, pesquisar.
P/2 – E aí conheceu ele. E aí começaram a namorar logo?
R – Não, nós éramos amigos. Era muito legal porque eu chegava na faculdade, me sentava lá, ficávamos conversando e ríamos como dois doidos. A gente não sabia porque, mas ele ria o tempo todo. A gente não via o tempo passar. Aí a gente começou a sair, ir ao cinema junto, eu estava inclusive saindo de uma paixão, daquelas paixões avassaladoras assim (risos), aquelas histórias todas. E eu participava de um grupo de jovem, nesse período, nesse período da faculdade.
P/2 – Que grupo, de igreja?
R – Grupo de igreja, igreja católica. E era na Vila Rosália, um bairro um pouco mais afastado do Picanço, mais afastado do centro até. E o meu marido morava na Penha. Quando nós começamos a sair juntos, mas como amigo mesmo, ele começou a participar também do grupo de jovem lá na Vila Rosália. E a gente foi se aproximando, se aproximado, enfim, aí começamos a namorar.
P/2 – Vila Rosália?
R – É, Vila Rosália.
P/2 – Ah tá. E quanto tempo vocês namoraram?
R – Um ano e meio.
P/2 – E depois casaram. Como é que foi o casamento?
R – Como assim? Como...
P/2 – Teve festa?
R – Foi, né. Porque o casamento... Como nós éramos do grupo de jovem, então foi na mesma igreja do grupo de jovem, com toda a moçada do grupo de jovem. Então quem cantou foi o pessoal do grupo de jovem, o mesmo padre que a gente estava acostumado o tempo todo, enfim. Foi uma festa e a gente estava super em casa com a história do casamento também.
P/2 – Foi um casamento tradicional, assim, com vestido de noiva?
R – É, vestido de noiva... Imagina, grupo de jovem, vestido de noiva, aquele convite de casamento que fala de Deus, do tempo, aquela história mesmo do sonho da religião, com padre na festa (risos). Enfim, casamento super dentro dos padrões mesmo da Igreja Católica naquele período.
P/2 – E aí vocês foram morar aonde?
R – Fomos morar na Penha. Nós reformamos uma casa lá do meu sogro nesse período e fomos morar lá. Um ano e meio depois, um ano depois, a gente acabou comprando uma casinha aqui na região Oeste.
P/2 – É aqui em Itaquera?
R – Não, é na Vila Nova Iorque, onde nós estamos.
P/2 – Ah, Vila Nova Iorque.
R – Nem era. Quando nós compramos não era ali. Nós compramos no Jardim Vila Carrão, que era o que o nosso dinheiro dava para comprar. Eu tinha 22 anos, meu marido tinha 22 anos, ele fazia faculdade... Ele saiu de Guarulhos, foi para a Fatec e era o que o nosso dinheiro dava para comprar naquele período. Então, compramos uma casinha lá, felizes da vida. Inicialmente, eu fiquei desesperada porque eu adorava a casa, mas eu detestava o lugar. Me dava uma tristeza. Quando eu ia chegando perto de casa me dava uma tristeza, me sentia muito sozinha. A distância da mamãe, a distância da minha sogra também. Aí depois, um belo dia assaltaram a nossa casa, que eu dava aula... Era uma doideira isso, depois do casamento também. Porque quando a gente resolveu casar... A gente não se encontrava, a gente não se via, na verdade. Porque eu ia para a faculdade, ele ia para a faculdade. Aí final de semana, no sábado, a gente tinha fundado o Grupo Direitos Humanos de Guarulhos também, que tinha a pastoral, tudo isso, e aquele período de Ditadura e nós fundamos o Grupo Direitos Humanos de Guarulhos. Então eu tinha as reuniões do Grupo de Direitos... Saia da faculdade no sábado, ia para a reunião do Grupo Direitos Humanos. Então só encontrava com ele depois da reunião do grupo. Aí no domingo, a gente se encontrava a tarde e ia para o grupo de jovem também. Então a gente ficava um pouco depois das reuniões do grupo de jovem, depois da missa. A gente quase não se encontrava. Então, vamos casar para ficar um pouco mais de tempo juntos. Aí casamos. Também era uma doideira porque (risos) eu fazia faculdade e dava aula. E ele fazia faculdade e trabalhava o dia inteiro na Eletropaulo também. Então, ele chegava em casa - ele tinha entrado lá com dezenove anos - meia noite e quarenta, e eu chegava onze e pouco. Aí que eu ia fazer o jantar, tinha uma pessoa que me ajudava, limpava a casa, lavava a roupa, aí que eu ia fazer o jantar, esperar. E no outro dia ele saía cedo de novo, eu também saía cedo para Guarulhos...
P/2 – Nisso nós já estamos em que ano, mais ou menos?
R – Ah, aí estamos em 1981. 1981? É, 1981, já estamos. Então...
P/1 – O que ele fazia? Qual é o nome dele?
R – Hilário.
P/1 – E o que ele fazia na Eletropaulo?
R – Nesse período ele era auxiliar de escritório. Ele entrou lá com dezenove anos como auxiliar de escritório. E aí ele estava na Fatec fazendo Construção Civil e era aquela doideira, era aquela correria mesmo. Então a gente mal se via.
P/2 – Você dando aula...
R – Eu dava aula como professor-aluno. Quando eu saí de Guarulhos vim para cá, aí eu me inscrevi aqui na região Leste como professora e peguei aula. Então, eu peguei aula em duas escolas; uma escola pertinho de casa e uma escola aqui, José de Oliveira Orlandi. E aí, nesse período, eu já estava grávida também. Estava no comecinho da gravidez. Então era uma correria danada e eu não dirigia ainda. Gente, era um horror. Que doidera isso. E isso daqui, imagina, isso daqui em 1982 era uma coisa assustadora, assustadora.
P/2 – Mas você se refere ao que exatamente?
R – Ao espaço. Assim, assustadora no sentido da ocupação. Tinha pouquíssimas ocupações. A escola teria que terminar as aulas às onze, ela acabava dez e vinte por conta da região. Como é que os professores saíam dali, iam para casa, os funcionários. Então, 22 e vinte ela parava as aulas. É aqui em cima. Não sei se vocês chegaram a ... Próximo ao Sesc.
P/1 – Não.
R – Na subidinha do Sesc, ali.
P/2 – Ali já é que bairro?
R – É Itaquera. É Gleba do Pêssego, Jardim Orlandi. Então, é...
P/2 – Gleba do Pêssego e o que você falou depois?
R – José de Oliveira Orlandi é o nome da escola.
P/2 – Ah, tá.
R – Então o professor que tinha carro ficava por último, mas tinha que levar todo mundo onde tinha um local de melhor acesso (risos). E toda essa região aqui em baixo era uma região de prostituição mesmo. A noite... Bom, hoje ainda é, são os motéis, tudo isso. Então tinha uma amiga que tinha um caminhãozinho. Ela ia de mercedinho, às vezes, dar aula. Quando ela saía era a única que estava lá, ela botava todo mundo no caminhão. Então a gente ia na frente, inspetores de alunos iam atrás, era uma festa aquilo. Dez e vinte.
P/1 – Ai, que divertido.
R – Aí, eu pegava o ônibus aqui embaixo, dez e trinta, para casa, mas era um terror porque mesmo depois, barriguda, os caras paravam, faziam proposta (risos). Uma maravilha. Aí depois eu acabei me efetivando, teve concurso, me efetivei, acabei pegando uma escola só, mas era lá em Guaianazes a escola que eu trabalhava, que eu peguei. É uma escola de COHAB, que foi um momento, inclusive, de organização sindical, de perceber que aquela seria a minha profissão. Antes disso, eu fiz estágio na CETESB [Companhia Ambiental do Estado de São Paulo]. Teve um período que era um terror, porque além de dar aula, além de fazer faculdade, ainda fazia estágio na Cetesb. Hoje eu vejo os meus estagiários aqui, eu falo: “Ah, vocês não sabem... Vocês não sabem o que é dureza. Aqui vocês têm uma bolsa. A gente fazia estágio sem bolsa, sem nada, com o maior sacrifício, enfim”. Aí percebi: “bom, eu vou dar aula mesmo, eu gosto de fazer isso, é uma coisa que realmente me satisfaz”. E aí tudo organização sindical. Comecei a militar no sindicato, batalhar para que a gente tivesse realmente...
P/2 – Que sindicato era?
R – Sindicato dos Professores, APEOESP.
P/2 – Sei. E ficava onde?
R – Bom, o sindicato na região central, mas a gente tinha as sedes regionais.
P/2 – A sede regional que eu pergunto, onde ficava?
R – A primeira sede regional ficava na Avenida Sábbado D’Angelo. Na verdade, essa primeira sede quem alugou fomos nós. Foi eu e um grupo que montamos a primeira sede do sindicato na região porque não tinha nesse período. A gente foi... Tinha uma mobilização já quando eu entrei, daí a gente foi reforçando essa mobilização, existiam alguns grupos até e aí nós conseguimos, até pela quantidade de associados, uma sede. Aí, nós criamos a sede. Eu fui, inclusive, a primeira tesoureira do bendito sindicato, enfim (risos). Mas acho que era um trabalho necessário. Acho que não dá para dar aula nesse país se você não se organizar, se você não puder, inclusive, mostrar para o seu aluno que você está ali, você acredita no que você está fazendo, mas que é fundamental uma valorização maior.
P/2 – Claro. E quantos filiados tinham?
R – Ai, não lembro disso, não adianta.
P/2 – Mais ou menos? É bastante, né?
R – Bastante, bastante.
P/2 – Bastante. Justificava uma sede?
R – Justificava, justificava. Essa região é uma região enorme, enorme. Nós temos, o que, em escola de Estado aqui já deve ter mais de cem escolas estaduais, pegando toda essa região.
P/1 – Quantas?
R – Mais de cem escolas estaduais, pegando toda essa região.
P/2 – De Itaquera?
R – A região Leste aqui, né?
R – Ah, deve ter, com certeza tem. Com certeza. Então é muita, nossa, é muita gente, é muito professor. Que mais?
P/2 – Que mais?
R – (risos) Eu fico divagando...
P/2 – Então você estava em um sindicato, estava dando aula e estava fazendo algum curso, na mesma época?
R – Nesse período eu tinha terminado a faculdade. A gente ia fazendo alguns cursos de formação mesmo, complementação. Então na Semana de Biologia, alguns cursos da USP, nesse período fiz Oceanografia. Enfim, a gente ia... Mas era de complementação. Eram todos cursos complementares.
P/1 – Vandineide, vamos aproveitar essa coisa da escola, de caracterizar o perfil do aluno aqui da região. Como é o perfil desse aluno? Classe social...
P/2 – De Itaquera também e falar sobre a COHAB.
R – Pois é, eu acho que teve um período que eu trabalhava na COHAB, eu dava aula nessa escola da COHAB, e dava aula... Já estava morando, inclusive, nessa região que eu moro hoje. Dava aula na Vila Formosa. Era o período que eu comecei a dirigir até. Eu saía daquela escola e vinha para casa no mesmo dia. E, na verdade, eram três escolas. Era uma escola na Vila Formosa e eram duas escolas aqui em Guaianazes; uma na COHAB, COHAB Prestes Maia, e a outra no outro bairro... Putz, esqueci o nome do bairro. Esqueci. É um bairro de Guaianazes muito pobre. E o perfil dos alunos completamente diferentes, enquanto características sociais mesmo. Na Vila Formosa eu tinha o aluno bem alimentado, o aluno que tinha apoio da família, que tinha atenção, tudo isso. Na COHAB Prestes Maia, a gente tinha o aluno pobre, mas o aluno também de uma família com uma situação financeira estável. Então morava em casa própria, o pai trabalhava, era operário ou de metalúrgica ou das fábricas de blocos ali ou da própria pedreira, porque tinha uma pedreira próxima ali. Então ele tinha uma vida estável financeiramente. Ele não era rico, mas ele tinha uma vida estável; ele tinha comida, ele tinha moradia, ele tinha tudo. E nesse outro... Nessa outra região era uma população paupérrima, onde você via o adolescente em um ano de um tamanho, no ano seguinte ele tinha crescido mas a calça era a mesma. Então ele tinha que ir tirando a barra e picotando...
P/1 – Ficava a marca (risos).
R – É, não, mas mais que isso, crescia muito. Então para não ficar muito feio, eles picotavam toda a barra e desfiavam porque aí ficava...
P/2 – Uma franja.
R – É. E não era franja como o vestido da gente faz hoje que é para poder sair arrastando toda a franja no chão. Era franja que estava lá em cima, nas pernas mesmo, que era para a situação poder ficar um pouco melhor, ficar com a aparência um pouco melhor. Então isso chamava muito a atenção. E até, assim, o tratamento mesmo que era dado a esses alunos. A mesma escola pública, mas uma escola que está muito melhor localizada, com uma população melhor, ela tem mais atenção, ela tinha mais verba, ela tinha tudo. E quanto mais afastada a escola mais, na verdade, abandonada essa escola era. Mas acho que, de qualquer maneira, independente dessa história das características sociais do aluno, de forma geral o aluno ia para a escola com essa história de tentar melhorar. A família mandava ele para a escola para ele melhorar de vida, entendeu? Sabe, claro quando você tem uma classe média, você tem também uma família que pressiona mais essa escola, que pressiona mais o professor, na outra não. Na outra você tem o pai que basta que vá para a escola, tendo o professor lá está acabado. Não importa o que o professor está falando, não importa o que ele está fazendo, não importa a qualidade; “meu filho está lá e tem professor”. O importante é não ter greve, o importante é o professor não faltar.
P/1 – É ter aula.
R – É ter aula. Agora, de forma geral, quer dizer, para mim, dar aula era uma coisa muito gratificante. Acho que até esse período todo que eu estou afastada de sala de aula, o que eu mais sinto falta é mesmo essa coisa do aluno, dessa aproximação, dessa proximidade com o aluno, independente de que série. Da quinta série ao colegial a gente tinha uma relação muito legal. Acho que aprendi muito com essa moçada, acho que deu para eles aprenderem bastante também comigo. A gente estabelecia sempre uma relação muito legal, de respeito, de confiança, de construção de conhecimento. Isso é muito legal, eu acho. Eu acho que realmente a escola só faz sentido mesmo porque tem o aluno ali e são eles que merecem tudo. Acho que... Infelizmente eu acho que naquele período, e hoje, o professor ainda não consegue perceber a importância do papel dele, o que é que ele tem na verdade nas mãos. A gente dá cursos para professores aqui e eu costumo dizer isso para eles: “Olha, eu sei que tudo cai em cima do professor. Tudo que a sociedade quer fazer: “não, é o professor, é o professor”, mas acho que o professor tem que ter consciência daquilo que é papel dele, do que ele pode e também do que ele não pode. O que ele não pode é também tirar toda a responsabilidade dele; “vocês me botam toda a culpa, mas eu não tenho nenhuma”. Você tem, tem alguma. Não tem todas, mas tem algumas. Então o que eu costumo dizer para o pessoal o seguinte: qual é o profissional que a população tem acesso de forma geral e com maior conhecimento nessas comunidades de periferia, e que fica mais tempo com essa comunidade? É o médico? Não é.
P/2 – Não.
R – É o professor. Não tem como, é ele o profissional com maior grau de conhecimento que essa população tem contato. Não é?
P/1 – É. Passa mais tempo.
R – Mais tempo. Então quem é que tem que estar discutindo com essa comunidade, quem é que tem que estar trabalhando com essa comunidade? Não é? Quem é que tem que ter senso crítico para estar visualizando todas essas pessoas? É o professor, não adianta. Por mais que a gente se exima dessa história, mas...
P/2 – Agora, aqui no Parque do Carmo, você está desde que data?
R – Desde 1992.
P/2 – Ou seja, oito anos.
R – Oito anos.
P/2 – Como é que você veio até aqui?
R – Pois é, eu dava aula aqui em frente. Eu me efetivei lá em Guaianazes, aí depois eu pedi... Não, não. Eu me efetivei aqui na COHAB II, que é uma COHAB mais próxima, e depois eu pedi remoção aqui para o Hiroshima, essa escola grande aqui em frente ao parque. Eu sempre, assim, todos os espaços que eram possíveis para eu levar os meus alunos eu levava. Então eu vivia buscando. Quer dizer, é fundamental que eles vivenciassem aquilo que a gente discutia em sala de aula. Então, o Hiroshima, com o Parque do Carmo pertinho, imagina! Eu via que aqui já tinha um trabalho, tinha até um herbário. Eu vinha aqui, trazia os meus alunos para cá, aqui tinha um aquário também, eu levava os meus alunos para o aquário. E é um terror, porque você não consegue dinheiro para ônibus, você... Imagina, alugar um ônibus saía muito caro, então eu trabalhava com um pessoalzinho de quinta série até o colegial. Teve um período que também magistério. Então o que é que eu fazia: eu ia levar o pessoal no aquário porque tinha um trabalho lá com animais aquáticos, então eu levava o pessoal de sexta série, porque o conteúdo eram os seres vivos, e o pessoal de segundo colegial, que o conteúdo também eram seres vivos. Mas aí eu preparava os alunos da sexta e do colegial durante um tempão para a gente ir nessas atividade. Por que? Porque nós íamos pegar ônibus de linha normal. A gente ia andar um pouco, pegava o ônibus de linha normal. E eu saia com duas salas.
P/2 – Nossa Senhora!
R – Então, uma sala de sexta... Só eu! Eu saía com uma sala...
P/2 – Quantos eram nas duas salas?
R – Sessenta crianças, às vezes mais. O colegial tinha mais gente, quarenta. Então eu saía com essa moçada. O que eu fazia? Eu ia preparando o colegial e pedia que eles adotassem uma criança na sexta série (risos). Então aí eu pedia para que eles adotassem. E pedia que as meninas também, que as crianças da sexta escolhessem alguém do colegial. E era legal porque, imagina, a menina de sexta série ela adora paquerar o menino do colegial. E o menininho de sexta série, imagina! Imagina o status dele de sair com uma menina do segundo colegial. Então as coisas casavam de maneira... E aí eu preparava, tinha que pegar autorização dos pais, todas essas histórias. Para atravessar a rua, pegava com os maiores, e o colegial também, e fazia as benditas correntes para não passar. Depois entrava no ônibus, o ônibus parava, ia lá falar com o motorista, esperava toda a criançada entrar. Porque aí para lá era sentido contrário, então estava vazio. Toda a criançada entrava, apertava todo mundo, daí eu ficava na frente olhando se todo mundo tinha entrado (risos). É muita loucura. Depois, quando descia, fazia a corrente de novo. Olha, gente, era ‘uó’. Mas, enfim, eles vivenciavam um monte de coisa. E trazia o pessoal aqui também no Parque do Carmo. E eu ficava de olho. Falei: “Puxa, acho que dá para fazer um trabalho muito legal aqui, muito.”
P/1 – Já paquerava aqui (risos).
R – É, já paquerava, já paquerava. Mas aí saiu um concurso para bióloga na Prefeitura. Saiu o concurso, tinha acho que eram 68 vagas, setenta vagas, alguma coisa assim. Aí tinha saído também, estava falando, saiu também o concurso de professora municipal. Aí eu prestei os dois, prestei para bióloga e de professora. De professora, saiu o resultado primeiro, aí eu passei no de professora. Aí depois, prestei o de bióloga também, passei, saiu primeiro o outro, daí eu entrei no outro, depois eu exonerei... (risos) E entrei como bióloga aqui. Aí quando eu vim para cá tinha uma coordenação e aí, como eu já trabalhava com escola, só atendia basicamente escolas aqui, fiquei responsável por essa coisa de agendar as escolas da região para o trabalho, e a gente foi ampliando. Tinha uma exposição já aqui que era um trabalho... Uma exposição pequena, a gente trabalhava por tema, quando eu entrei. Até uma exposição sobre som. Tinha uns painéis, a gente fazia umas brincadeiras com a criançada. Mas aí o que acontecia? A gente não conseguia dar conta de atender as escolas e a gente não tinha o retorno também do trabalho. Nós trabalhávamos como loucos agendando escola, não dava para receber uma escola inteira de uma vez, a gente ficava a semana inteira, às vezes, recebendo uma escola. A gente fazia a exposição e fazia a trilha com a criançada.
P/2 – Perdão, só para entender, qual é o seu cargo aqui? Ou desde o início foi mudando ou foi o primeiro cargo?
R – Bióloga e depois que eu assumi a chefia, assumi a coordenação. Assumi a coordenação tem... Oficiosamente, que a gente trabalhava sem cargo, há seis anos atrás. E com um cargo mesmo, ganhando para isso, há cinco anos atrás, tanto que eu acabei de incorporar.
P/2 – Obrigada. Agora, voltando, então você começou a organizar isso?
R – A gente recebia escolas e aí... Me recordo que até dezembro, 23 de dezembro, eu tinha escola agendada aqui para trazer aluno (risos). Tinha uma amiga bióloga, ela falou assim: “Nós precisamos segurar a Vandineide porque senão ela mata a gente de trabalhar” (risos). E chegou um momento que a gente trabalhava, trabalhava e não conseguia precisar os resultados. A gente não sabia se a escola continuava o trabalho lá, se a criançada tinha compreendido bem todo o processo. Aí nós resolvemos criar alguma metodologia de avaliação que era chamar todos os professores aqui no final de cada semestre para ver o que eles estavam fazendo, mas mesmo assim a gente começou a perceber que nós éramos guias turísticos dentro do parque. Tinham professores que vinham e se envolviam muito, agora tinham outros que vinham, largavam os alunos nas nossas mãos.
P/1 – Passear.
R – Então aí a gente estabeleceu uma metodologia do trabalho. Primeiro nós vamos receber o professor, vamos fazer um trabalho com ele um pouco mais consistente e depois nós vamos trazer os alunos. E foi aí que a gente começou os tais dos encontros mensais com educadores ambientais. Mensalmente nós fazíamos dois dias de encontro com todos os professores interessados e só podia, na verdade, agendar a escola quem fizesse parte dessa capacitação.
P/1 – Não agenda escola se o professor não tiver participado.
R – É, se o professor não tiver fazendo a capacitação.
P/2 – Mas o interesse da direção da escola é grande ou não?
R – Depende muito.
P/2 – Eles pressionam o professor para vir fazer a capacitação?
R – Depende muito, depende. Assim, o que a gente tem muito é professor se desdobrando para trazer o aluno, para vir aqui. Tem casos que ele abona para vir fazer a capacitação. Então tem outros diretores, não. Tem outros diretores que percebem a importância, que apoiam, mas, infelizmente, nem todos. A educação ainda está muito galgada nessa escola da sala de aula, do giz, apagador. Então nem todos compreendem esse papel. E mesmo aqueles que compreendem tem uma história aí que é a história legal, da responsabilidade. Eu contei para vocês como era levar os meus alunos para atividade extraclasse. Agora, imagina, o professor quando ele tira o aluno ele se responsabiliza pelo aluno totalmente. Então a direção também tem que se responsabilizar com esse processo. E legalmente ela não tem isso em lugar nenhum. Quer dizer, é coisa de risco próprio. Então é por isso que essa história do apoio não é uma coisa generalizada, depende muito da visão do professor, depende muito da integração que existe na escola, da capacidade do professor de convencer o diretor. Então de forma geral, o que a tem é assim, o trabalho acontece porque o professor está motivado. E uma coisa muito interessante nessa região é isso; quanto mais afastado você está mais o profissional começa buscar alternativas para fazer um trabalho de qualidade. Isso é interessante porque chegou um momento que nós começamos a dar, além desses encontros, a gente dava cursos para professores de educação ambiental e começamos um trabalho com a DREM. Isso era uma coisa da divisão, um projeto da nossa divisão.
P/2 – O que é DREM?
R – Delegacia de Ensino Municipal. Aí começamos um trabalho com eles. Então demos um primeiro curso lá no parque Ibirapuera e aí tudo bem, apareceu o seguinte: bom, vai ter que ser no parque Ibirapuera porque a DREM nos passou que os professores mais interessados no curso de educação ambiental era DREM um ou dois, que fica lá no centro. Aí falou: “bom, então vamos abrir a maioria das vagas para DREM um e dois”, acho que é isso, não me recordo, mas é alguma coisa, ou um ou dois, que fica lá na central, e abrimos algumas vagas para outras DREMs interessadas. Foi uma doideira porque a maioria dos professores eram aqui, DREM nove, DREM dez, que é Itaquera, São Miguel, São Mateus ou então do extremo Sul. Na verdade, daquela região central, que falaram que estava todo mundo mais mobilizado, acho que a gente teve um ou dois. O restante era o pessoal daqui, que se deslocava até o parque Ibirapuera para fazer o curso. Então quanto mais afastada é a região, mais os profissionais buscam mesmo alternativa para fazer um trabalho legal, um trabalho de qualidade.
P/2 – Dava para você quantificar, mais ou menos, todas essas coisas que você está dizendo para a gente ter uma ideia de...
R – O que, por exemplo, então?
P/2 – Por exemplo, quantas escolas veio ou vem por semana? Enfim, dar uma ideia de quantidade, tamanho.
R – Aí teria que pegar o material para dar uma olhada nisso porque de cabeça eu não me recordo.
P/2 – Não precisa ser precisa. Por exemplo, uma vez por semana vem uma escola?
R – Por exemplo, nós atendemos professores nessa capacitação hoje três vezes por mês. A cada atendimento que a gente faz são vagas para trinta professores. Geralmente, a gente pede o seguinte, se a escola quiser cem alunos, a cada grupo de 25 alunos tem que ter um professor responsável por conta da trilha. Então ele tem que ser capacitado antes. Se ela vai trazer cem alunos ela tem que mandar quatro professores para a capacitação. Se ela vai trazer 150 são seis professores e por aí vai. Então...
P/1 – Mesmo que não seja para a área de biologia?
R – Não, o nosso trabalho é um trabalho interdisciplinar. A gente quer mesmo... São todas as áreas de conhecimento. Então é de Matemática, é de Português, Ciências, Geografia, Inglês, Educação Física. Então muitos professores de Educação Física têm vindo trazer os alunos aqui. Então por aí dá para a gente ter uma ideia disso. Então a maioria das escolas vem com grupos de 150 a duzentos alunos. Então, ela tem que mandar entre seis e oito professores para a capacitação. Em uma capacitação nós temos, por dia, em média cinco... Entre quatro e cinco escolas participando. Então isso acontecendo três vezes por mês. E aí cada escola vai trazer a sua média de alunos. No mínimo 150 alunos. É uma quantidade bastante grande.
P/1 – E eles passam aqui por essa exposição?
R – Os professores... Primeiro a gente capacita os professores mostrando todo o espaço do parque. Depois, conta o histórico da ocupação da região, discute o histórico da ocupação do parque, juntando com o histórico da ocupação da cidade de São Paulo, do país. As condições ambientais dessa região, juntando com as condições globais, fazemos a trilha com o professor também. E aí toda essa história que a gente conta ele vai vivenciando através da trilha, e depois nós marcamos os alunos. Aí, na exposição os nossos monitores trabalham com os alunos, mostrando a história do... Todo o histórico, os aspectos do parque, as questões de poluição e depois o professor faz a trilha para que ele possa fazer, na verdade, essa integração com conteúdo de sala de aula e o conteúdo daqui. Porque a proposta é que tenha, que o professor faz um antes com esse aluno, um durante e depois. Então essa avaliação para a gente é fundamental. Então além desse trabalho com professores a gente também trabalha com outras instituições. Por exemplo, estamos com um trabalho hoje com o pessoal de SAS, que é Secretaria de Assistência Social, antes era Secretaria de... Como era? Era SEAB, SEAB não. Como que é? Ai, gente, esqueci. Essas secretarias vão mudando tanto que a gente acaba...
P/1 – Só sigla, né?
R – É. E com eles nós estamos trabalhando com pessoal de CJ, de Centros de Juventude. Então esses Centros de Juventudes são atendidos por SAS, eles fazem um acompanhamento, distribuem verba e assim por diante. Nós estamos com um trabalho de educação ambiental com esses profissionais, atendemos todos os monitores com o SAS Itaquera. Então estamos atendendo todos os monitores desses CJs, que são os educadores que trabalham com as crianças. Não sei se você sabe o que é CJ. São Centros de Juventudes onde eles atendem crianças em idade escolar. Acho que adolescente, se eu não me engano, de, não sei se de doze a dezessete anos incompletos ou de oito a dezessete anos. Enfim, pega a infância, uma fase da infância para a adolescência, e adolescente mesmo, e fora do horário de escola. Quando a criança não está na escola, está no CJ. Eles têm alimentação, eles têm atividade, têm reforço escolar, tem tudo. Então, nós atendemos esses monitores, capacitando também para eles integrarem a educação ambiental no cotidiano. Atendemos também, acabamos, inclusive ontem, um trabalho com cozinheiras e auxiliares de cozinha desses CJs porque a proposta é que o CJ no cotidiano integre as questões ambientais. Então diminuir a quantidade de lixo que produz através da utilização dos materiais. Fizemos com os monitores as coisas das bicicletinhas de jornal para a criançada fazer o seu próprio brinquedo. E até foi interessante que planejando a atividade a supervisora falava o seguinte: “Olha, é canudinho, as crianças sabem fazer. Eles estão super acostumados a fazer cestinhos, mas eles não fazem coisas para eles, eles fazem coisas para vender, para arrecadar dinheiro para o CJ”. A gente achou que era muito legal fazer com essa criançada, com esses monitores, oficinas de brinquedos com sucata para que essas crianças pudessem fazer os próprios brinquedos. E depois nós atendemos cozinheiras e auxiliar de cozinha, e diretor de equipamento também. Porque qual é a proposta? Que a auxiliar de cozinha, cozinheira, aproveitem ao máximo os alimentos para não ter desperdício - que aprenda a utilizar talo, a utilizar casca, utilizar semente - na alimentação do dia a dia do CJ para diminuir a quantidade de lixo. E aí com eles a gente faz toda a discussão das questões ambientais, como que está essa questão do lixo no planeta, por que é fundamental aproveitar ao máximo os alimentos. Quer dizer, não é fundamental aproveitar ao máximo os alimentos porque tem gente passando fome. Não é essa a nossa versão, tá bom? Não é aproveitar ao máximo os alimentos porque somos pobres, não é isso. Aproveitar ao máximo os alimentos porque a natureza demora muito para produzir. Então é fundamental que a gente seja racional no uso desses recursos da natureza. Por que nós temos que jogar cascas e talos se energeticamente são tão ricos?
P/2 - Desculpe eu interromper. Eu queria perguntar para você, que você falou passando rapidinho, que esse pessoal que frequenta o parque você tem uma equipe que fala do histórico desse parque, faz uma localização. Seria interessante gravar isso, esse histórico.
R – Uhhh...
P/1 – O que você sabe... Você estava contando para a gente que era uma fazenda.
R – Isso.
P/2 – É aquilo que você estava contando, lembra? Que a gente falou “não conta, deixa a gente gravar isso”.
R – Está certo.
P/2 – Você conhece a história, está bom?
R – Está bom, está bom. Mas, daí eu estava até concluindo (risos).
P/1 – Conclua.
R – Como é que era? Eu estava falando da questão do... Ah, dos trabalhos com outras instituições. Então com os cozinheiros e auxiliares de cozinha é essa a importância delas perceberem quanto de alimento se joga fora e que esse material é extremamente rico. Então tem discussão de quanto se produz de lixo na cidade, qual é a quantidade de lixo orgânico, qual a quantidade de lixo inorgânico, como é que a gente pode melhorar isso, para onde vai esse lixo.
P/1 – Que tratamentos você pode fazer com esse tipo de coisa que você normalmente jogaria fora, né?
R – Isso. E por que utilizar. Quer dizer, são altamente nutritivos e você pode fazer alimento de qualidade. Então em vez de ficar com discursinho, a gente vem, trabalha toda a teoria, mas esse povo vai para a cozinha com a nossa copeira, vai para a cozinha...
P/1 – Aquela cozinha ali, grande, que vocês têm?
R – É, isso. Vai para a cozinha com a moça que, na verdade, é da limpeza, mas que ela também está integrada no trabalho. Então, elas vivem... A gente vive testando receitas novas, pegando receita, enfim, modificando. O pessoal vai para a cozinha e faz tudo. Eles trazem... Antes a gente prepara, eles juntam... Lá no CJ eles juntam todas essas cascas, e trazem para cá e aí eles vão preparar tudo, preparar os pratos. Então eles não trazem almoço nesse dia, eles fazem, depois a gente come.
P/1 – Ai que legal!
R – É. É a possibilidade deles vivenciarem; “foi bom, é verdade, eu posso fazer, é gostoso, tem qualidade, não estou comendo lixo, se transforma em lixo depois”. Até o filé mignon se transforma em lixo se você não utilizar de maneira correta e no tempo correto.
P/1 – É verdade.
R – É isso que a gente tenta, na verdade, mostrar. O quanto é importante você valorizar. E a proposta é fazer mesmo a integração. Você trabalha com auxiliar de cozinha, com o cozinheiro e com o diretor porque o diretor tem que motivar também o auxiliar de cozinha e o cozinheiro a fazer. Mas você trabalha também com os monitores, que eles vão trabalhando, incutindo na criança essa história da reciclagem.
P/1 – Claro.
R – Então vai trabalhando nessa história da reciclagem, vai motivando a criança a experimentar aquilo também que professora está falando e estar pensando por que ela está fazendo tudo aquilo, por que ela está fazendo um brinquedo de jornal. Como que ela está cooperando...
P/1 – Não é meramente educação artística.
R – Não, a gente até discute isso. Existem artistas plásticos ou artistas muito melhores que nós. O nosso papel aqui é mostrar que qualquer ser humano pode fazer um brinquedo aproveitando esse material, brinquedo de qualidade. Qualquer ser humano pode aproveitar ao máximo os alimentos. Você não precisa ser iluminado. O planeta, hoje, precisa que todo mundo faça, não os mais iluminados. Então é isso que a gente trabalha com essas instituições. Para cada instituição está se estabelecendo um programa e a gente estabelece uma meta, quantas pessoas nós vamos atender, o que vamos fazer, como nós vamos avaliar. No final do ano esses CJs vão passar por uma avaliação para nós colocarmos o que eles fizeram a partir do trabalho aqui, como é que eles multiplicaram, como eles integraram isso no cotidiano, quais as dificuldades que eles sentiram e como que a gente pode continuar colaborando para que a gente planeje o ano que vem. Há propostas de trabalhos contínuos enquanto processos, não é uma coisa que começou hoje e amanhã terminou, está acabado, adeus. E a gente vai trabalhando. Assim, nós temos atendimento à instituições onde a gente vai planejando, esse atendimento à escola que já está, inclusive, personalizado mesmo, você atende primeiro o professor, discute com ele, discute a possibilidade de utilizar o espaço do parque para fazer educação ambiental e a gente atende a população que vista o parque. Então o museu tem essa proposta. Quer dizer, não dá para você encontrar a pessoa no parque e ficar fazendo um discurso para ela. Ou então encontrar uma pessoa jogando papel no chão e falar: “Não jogue no chão”. Ela vai te olhar e falar: “você é idiota, né?”. Então o que a gente faz: a gente, através da exposição, vai discutindo o que é esse parque, qual o histórico na verdade desse parque, como que ele se transformou em parque, quem que cuida, como se cuida desse parque, quais são os trabalhos desenvolvidos aqui, quais os profissionais, o quanto é complicado, na verdade, cuidar de um parque. Quem paga tudo isso é a população, por isso é importante que ela se aproprie. Um parque está dentro de uma área de proteção ambiental, que importância tem isso para nós que moramos em uma região urbana. Então a exposição tem o papel de estar o tempo todo discutindo com a população as questões ambientais do parque e da cidade. Então nessa exposição a gente conta o histórico da ocupação do Parque do Carmo. Então, primeiro mostrando que, como a maioria dos parques da cidade, isso era uma fazenda anteriormente. Inicialmente, uma fazenda ocupada por uma ordem religiosa que veio para cá para apaziguar os índios que habitavam aqui. Esses índios eram hostis a cidade de São Paulo que acaba de ser fundada. Então eles atacavam a cidade.
P/1 – Tinha o conflito.
R – Tinha o conflito. Então por isso, o governo fez o que? Ele doou essas terras para essa ordem religiosa vim apaziguar os índios da região. E aí, pelos registros, nós tínhamos aqui... Pelos registros porque aí algumas pessoas vêem, discutem, enfim, mas mesmo quando discutem não trazem materiais. Então a gente se apoia no material de pesquisa que a gente tem aí, que eram os índios caguaçus, os índios itaquerus e os índios guaianases. Então veja que tudo isso é muito rico para você recuperar com essa população o seu próprio histórico. E esses índios perceberam que eles estavam sendo expulsos da cidade, eles começaram a atacar essa cidade que se fundava, que se formava.
P/1 – Estava nascendo, né? Isso que é interessante.
R – Que estava nascendo. Os índios guarus, que também habitavam aquela região Norte da cidade, também foram expulsos de toda aquela região, enfim. E aí essa ordem religiosa fica aqui até o começo do século. Nesse período, ela produzia frutas, verduras, legumes. Toda essa região fazia parte do cinturão verde da cidade. Acho que isso vocês já coletaram como informação. Até por isso...
P/1 – Mas, pode recuperar também.
R – Até por isso, o engenheiro Artur Alvim trouxe, nesse período, no final do século passado, a estrada de ferro para cá que era para poder circular essa produção de hortifrutigranjeiros. Então, no começo do século, o governo queria que essas terras também produzissem café porque, na verdade, as terras produtoras de café no Estado já estavam esgotadas. E essas terras eram virgens na produção de café. E terra com característica, inclusive, de produtora de café. Aí ele começa estimular os produtores da região a plantarem café. A igreja não tem... O trabalho dela não é com monocultura. Então a ordem religiosa sai daqui e as terras são vendidas para o Bento Pires. Era Bento Pires de Campos. E o Bento Pires tinha uma companhia, chamada Companhia Agrícola e Pastoril, ele veio para cá para plantar café na região. Continuou essa produção de hortifrutigranjeiro, mas em uma escala menor, e começou a produzir café. O Bento Pires morreu no final da década de quarenta e aí a fazenda é comprada pelo Oscar Americano de Caldas Filho. Nesse período que o Bento Pires começou a plantar café, também você tem a chegada dos imigrantes japoneses ao país. Muitos desses imigrantes japoneses vem para essa região e vem para cá justamente para produzir café, vem para trabalhar nesse fazenda e em outras fazendas também. Quando eles chegam aqui, o japonês não está acostumado com monocultura, ele estava acostumado no Japão a arrendar pequenos pedaços de terra e plantar tudo, aqui ele trabalhava como escravo. Um trabalho semi-escravizado. Ele não se adapta a esse trabalho de monocultura. Aqueles japoneses que vão conseguindo arrendar pequenas propriedades, pequenos sítios, pequenas casas, pequenas chácaras, eles vão se mantendo e começam a produzir frutas, flores. Vem pêssego principalmente. Aí se cria na região a Estrada do Pêssego. É justamente uma área de chácaras arrendadas de forma geral por esses japoneses e que produzem pêssego. Na fase de floração eles fazem a coroação da Rainha do Pêssego, enfim.
P/2 – Só uma pergunta, arrendadas de quem? Você sabe quem era o proprietário?
R – Não, vários... Na verdade era assim: vários fazendeiros da região arrendavam pequenas propriedades, mesmo essa fazenda aqui, a gente não tem ideia do quanto, mas até pela proximidade com as chácaras, provavelmente parte dela foi arrendada também por ele. E era um momento também de mudança. Quer dizer, São Paulo começa a ficar também muito urbano, a industrialização, tudo isso. Muitos fazendeiros também começavam a se desfazer das suas fazendas, era um bom negócio até arrendar pequenos pedaços de terra para esses japoneses.
P/1 – Qual é o tamanho da fazenda aqui, a área?
R – Olha, hoje a área tem nove milhões de metros quadrados ainda, a área da APA [Área de proteção ambiental]. A fazenda era maior que isso.
P/2 – APA?
P/1 – Nove milhões de metros quadrados.
R – Hoje, a Área de Proteção Ambiental, que é uma área de reserva aqui, é uma área protegida por lei que é onde está o parque, onde está a vegetação mais densa, ela tem nove milhões de metros quadrados, e a fazenda era muito maior que isso. Pelos registros aqui, a fazenda, essa Fazenda do Carmo, ela fazia divisa com a Fazenda Savoy City. A Fazenda Savoy City é onde hoje está o bairro Parque Savoy City, ali próximo ao Shopping Aricanduva. Então tinha a divisa, Fazenda do Carmo e Fazenda Savoy City. Aí ela dava a volta, contornava lá pela Avenida Líder, Estrada de Itaquera e a divisa dessa fazenda com a outra era justamente o riozinho que tem próximo ao Santa Marcelina. Não sei se vocês conhecem essa região, mas próximo ao Santa Marcelina onde está a Estrada de Itaquera.
P/1 – O hospital?
R – É. Aí contornava a Estrada do Iguatemi, está certo? Uma parte de São Mateus... Tudo isso era a área da fazenda.
P/1 – Nossa, enorme!
R – Então, era uma área imensa, uma área muito grande, onde tem hoje a Maria Luiza Americano, esse bairro aqui Jardim Nossa Senhora do Carmo, esse bairro em frente aqui, tudo isso era parte da fazenda. Legal, as pessoas vão ver mesmo esse bairro em frente aqui (risos). Mas vocês vão transcrever (risos).
P/1 – Não se preocupe, tem edição, tem revisoras de texto (risos).
R – Você se comporta como qualquer... Não tem como, né? (risos) Você vai se empolgando.
P/2 – Mas a história das freiras você já contou, das carmelitas, que eu não estava aqui?
R – Já. Então, a ordem, ela veio para cá para apaziguar os índios...
P/2 – Ah, foi aquele pedaço?
R – Isso.
P/2 – Que bárbaro!
R – Que mais gente?
P/1 – E quando que virou Parque do Carmo assim, aberta a comunidade como está hoje...
R – A própria história do Oscar Americano é muito interessante. Quando ele compra a fazenda, no início da década de cinquenta, ele não quer produzir nada aqui. Ele não quer plantar café, ele não quer produzir leite, nem frutas, nem nada. Então ele transforma... Porque ele, na verdade, era um empreiteiro, ele era presidente da CBPO, Companhia Brasileira de Projetos e Obras, que é uma empresa que, até hoje, faz grandes obras para a prefeitura de São Paulo.
P/1 – Ele era presidente da CBPO?
R – Presidente da CBPO.
P/1 – Que é uma empresa particular, ou...
R – É uma empreiteira. Não, é uma empreiteira particular. A casa dele é uma mansão no Morumbi... Ele é um grande construtor em São Paulo, parece que o Palácio do Governo é construída por ele, até essa coisa das construções em mármore, tudo isso parece que é características das construções até... Além da época, mas também de obras do Oscar Americano. Então, quando ele compra a fazenda, o que ele faz? Ele quer transformar a fazenda em uma área de lazer para ele e sua família passar o final de semana. Então, todo essa estrutura da casa foi ampliada com o Oscar Americano. Isso era uma casa de fazenda, mas fazenda produtora, fazenda que trabalhava, que produzia café, uma fazenda de trabalho. Quando o Oscar Americano compra a fazenda, o que ele faz? Amplia a casa principal da fazenda, então transforma, na verdade, em um espaço amplo, uma varanda super ampla, tudo isso. Ele constrói a casa também, dos hóspedes. Então, aquela casa grande... Eu estou olhando o horário porque também...
P/1 – Não, a gente está acabando.
R – Então, ele constrói a casa dos hóspedes que é aquela casa em frente ao lago. Onde os seus hóspedes ficavam quando vinham visitá-lo. Ele constrói a casa das crianças que é o espaço que os hóspedes vinham para cá e as crianças e as babás ficavam aqui, na casa das crianças junto a casa dos empregados domésticas da fazenda. O lago é um lago artificial que ele construiu também. Ele aproveitou as nascentes do terreno e construiu um lago artificial para ele, pra família e os amigos praticarem esportes náuticos. Então remo, natação, a piscina que é uma piscina de mergulho. Na verdade, ele deu mesmo a fazenda, características de uma área de lazer maravilhosa. E aí parte da fazenda, ele loteou também. Então, o Jardim Nossa Senhora do Carmo aqui, ele foi loteado pelo Oscar Americano ainda vivo.
P/2 – Que bairro é esse...
R – Jardim Nossa Senhora do Carmo se chama. Quando foi loteado na década de setenta, sessenta, por aí, final de sessenta, início de setenta, ele foi loteado como Morumbi da Zona Leste.
P/1 – Ah é?
R – Porque os lotes, ele loteou, mas assim, ele fez lotes grandes que permitissem casas também, padrões médios, não é? Padrão completamente diferente do restante do bairro de Itaquera, que era para não...
P/2 – E ainda estão aí as casas?
R – Estão. Quando vocês saírem aqui vocês dêem uma olhada. São casas maravilhosas, fabulosas, são mansões, na verdade. Era para não desvalorizar as terras dele também. Você ia ter uma favela grudada no... Então, parece que ele tinha um papel muito interessante aqui na região. Ele fornecia condução para as pessoas saírem do bairro e ir para o centro de Itaquera. Então a gente vai ouvindo vários relatos da população que a gente vai anotando. Produzia leite na fazenda, o excesso diz que ele doava. Aí, vem a história: “Não, porque o Oscar Americano era muito bom, a mulher dele era muito ruim”. Mas como a gente está em uma sociedade machista, é sempre assim, né? O homem é sempre bonzinho, a mulher é sempre uma megera (risos). Então, dizem que ela não deixava ela dar as coisas, mas era ele quem dava. Enfim, não sabemos até que ponto essa história é verdade, mas é muito legal ir ouvindo esse relato.
P/1 – A percepção das pessoas.
R – É. Quando o Oscar Americano morre, então início da década de setenta, a família vende a fazenda. Vende porque a população acha que doou, vende a fazenda para a Prefeitura.
P/2 – Vende?
R – Vende. A fazenda foi vendida.
P/2 – Foi desapropriada?
R – Vendida, vendida. A gente tem os registros de venda, tem tudo. E é interessante que a população acha que a fazenda foi doada para a Prefeitura por um japonês. “Aqui morava um japonês, esse japonês morreu e a família doou a fazenda para a Prefeitura”.
P/1 – É isso que está no imaginário?
R – Da população. E é muito legal porque a população também encontra prova disso. Tem o Monumento em Homenagem a Imigração Japonesa aqui junto ao casarão, a população vem, fala: “Olha o túmulo do japonês que morreu e doou a fazenda para a Prefeitura” (risos).
P/2 – Que loucura, é uma lenda.
R – É muito interessante. É uma lenda, mas veja, foi isso que foi espalhado. A gente foi descobrindo isso a partir do trabalho com a população, de pesquisa...
P/1 – Deixa eu só dá uma pausa aqui... Faz parte da técnica!
R – Faz parte da técnica. Ela fica com os olhinhos aí dela todo curiosos aqui, né?
P/1 – Está tão interessante! Então vamos recuperar; você estava falando do japonês que o pessoal acha que é o doador das terras, tem o túmulo dele e prova.
R – Isso, e prova. Eles têm a prova... Pode falar?
P/1 – Pode.
P/2 – Então estava dizendo que... Volta um pouquinho. A população acha...
R – Que a fazenda foi doada por um japonês, que o japonês morava aqui, morreu e aí a família doou as terras para a Prefeitura. E aí eles encontram a prova disso. Então, tem um monumento aqui, que é o Monumento em Homenagem a Imigração Japonesa...
P/2 – Quem mandou fazer esse monumento?
R – O prefeito, prefeitos de várias épocas aqui.
P/2 – Ah, prefeito.
R – Eu falo um pouquinho disso. E aí quando elas vêem esse monumento porque parece mesmo um túmulo, aquela coisa de jardim japonês, não sei que, ela fala: “Olha aqui o túmulo do japonês.” E tem várias coisas escritas em japonês ainda; “Olha aqui o túmulo do japonês que morreu e doou a fazenda para a Prefeitura.”
P/2 – Reforça, ainda.
R – Reforça... Prova, na verdade, toda a lenda. Então o que a gente tenta é, na verdade, desmistificar, mostrar que não, a fazenda ela foi comprada pela Prefeitura depois da morte do Oscar Americano, a Prefeitura pagou o preço da época, até não vai nem se discutir se foi muito caro ou não, mas era mesmo preço da época, está certo? E que...
P/2 – Comprou para fazer o que, a Prefeitura?
R – Para transformar... Transformar em parque. Parte da área da fazenda transformaram em parque e a outra parte ficou com a COHAB, tanto que a maioria da área da APA do Carmo, na verdade, é da COHAB. Só que como é que surgiu a APA do Carmo? A fazenda era imensa, como eu falei para vocês anteriormente, e aí, além da fazenda, eles construíram, tinha também aqui a Usina de Compostagem de São Mateus. E a Prefeitura também fez um aterro sanitário, que era o Aterro Sanitário de São Mateus. Ficou ali próximo da Avenida Aricanduva. E tudo isso nessa área de mata, junto a essa área de mata. Aí, a população da região ficou indignada com a história do aterro sanitário por conta do cheiro, os caminhões de lixo que iam chegando, a própria usina de compostagem, que nessa fase de compostagem do composto orgânico produz também um cheiro terrível. A população fez o que? Começou a se organizar para fechar o aterro sanitário, que a população chamou de lixão, nem aterro eles chamavam. Chamavam de lixão. Então, acampou, ficou vários dias em frente a esse aterro, não deixavam os caminhões entrarem e aí, nesse período que eles ficam vários dias acampados, eles começam também ficar de olho na área verde e começam a perceber que essa é uma área verde muito interessante para a região.
P/1 – Que lindo!
R - Então além de fechar o aterro sanitário, essa população também começa a fazer o que? Começa a sensibilizar políticos da região, vereadores, deputados. Tentar comprometer esses políticos da região com essa causa ambiental, que era para transformar esta área toda de vegetação em uma área de proteção ambiental. Então, o parque já estava, na verdade, implantado, mas essa outra área não. Era área verde da COHAB e o papel da COHAB é construir moradia, está certo?
P/1 - Eles iam desmatar tudo e construir os prédios?
R – Então, a população se organiza para isso. Aí eles conseguiram criar, na verdade, uma lei de transformação dessa área em área de proteção ambiental. Essa lei...
P/2 – E a COHAB não construiu, então, com essa lei.
R – Não, não construiu. Até hoje não construiu nada. Tanto que dentro dessa área de proteção ambiental tem uma área de moradia. Então a gente tem empresas dentro dessa área, nessa área nós temos bairros onde as pessoas estão morando ali. Esse bairro começou com o loteamento da COHAB e depois com uma ocupação. Então, você têm áreas regularizadas e áreas não regularizadas. Essa população... É um barato isso, gente. A história daqui é bárbara, né?
P/2 – Mas, desculpe, qual é mesmo o nome desse bairro que ficou híbrido, ficou COHAB, proteção...
R – Hoje eles estão todos dentro da área de Proteção Ambiental do Carmo. Eles estão dentro da APA. E esse bairro se chama Gleba do Pêssego. Eles chamam de Gleba; é a Gleba do Pêssego. Mas essa Gleba está dentro da área de proteção ambiental, que era parte da Fazenda do Carmo. Ou então, quando a COHAB compra as terras o que ela faz? Ela loteia uma parte, ela começa a vender os terrenos. Demora muito para continuar isso. O que a população faz? Ocupa, ela ocupa áreas que são possíveis de serem ocupadas e áreas de risco também. E tem toda uma mobilização dessa população, por conta do lixão, para transformar essa área também em uma área de proteção. E esses moradores que chegaram, que estavam ocupando, eles também começam a se organizar. Eles se organizam e pressionam a COHAB, e fazem um acordo com a COHAB, que desde que a COHAB...
P/2 – Isso em que época, mais ou menos?
R – Eles começaram essa negociação, na verdade, no início da década de noventa. Toda essa discussão no lixão, ela começa no final da década de setenta. Então 1979, essa negociação com o lixão e essa população continua mobilizada, organizada, e na Gleba eles começaram, fizeram um acordo com a COHAB. Isso, início da década de noventa, que se a COHAB regularizasse a situação de quem estava ali, eles não deixavam ninguém mais ocupar porque eles queriam, na verdade, morar em uma área bonita como essa. Eles reconheciam o valor da área, eles reconheciam o patrimônio que eles tinham ali. Então eles faziam um acordo; eles não deixavam mais ninguém entrar, não deixavam ninguém destruir, desde que a COHAB regularizasse a situação de quem estava ali já.
P/2 – Quem que organiza essa população para fazer...
R – Eles têm um movimento de moradia. Eles têm associações, são várias associações...
P/2 – São várias associações?
R - São várias associações. Essas associações lutaram também junto para transformar toda a área em área de proteção ambiental. Isso é bem interessante. E nesse projeto de lei que transformou a área em área de proteção ambiental também prevê um conselho. Quer dizer, você transforma em área de proteção ambiental, mas quem cuida? Quem gere? Historicamente, as APAs, quem gere é o Estado.
P/2 – APA é uma sigla de que? Associação...
R – Área de Proteção Ambiental. Proteção Ambiental. APA. Em uma área de proteção ambiental cabe moradia, cabe indústria e cabe área de reserva. Então, você tem um zoneamento em uma área de proteção ambiental, onde é que pode ter moradia, onde é que pode ter indústria, que tipo de indústria, que tipo de moradia, onde que não pode mexer, onde que você tem que recuperar. Tudo isso é o zoneamento. Só que além de prever esse zoneamento, a legislação também prevê o que: um conselho, que foi uma briga desse pessoal todo. Tinha que ter um conselho, um conselho gestor dessa área. E esse conselho gestor tinha que ter a participação da população, do Estado, do Município e das Universidades. Um conselho tripartite. Então três do Estado, três da Prefeitura e três da população. E não a população individualmente, mas ela organizada em ONGs, que você tem uma representatividade, um poder muito maior dentro desse conselho, e um representante de Universidades. Então, nada pode acontecer dentro dessa área se não passar por esse conselho.
P/2 – E está funcionando?
R – Está funcionando.
P/2 – Legal?
R – Legal, legal, legal. Na verdade, é um dos poucos conselhos de APAs que funciona.
P/2 – E onde é a sede?
R – Aqui (risos).
P/1 – A Universidade, que Universidade está?
R – Inicialmente foi a Universidade de São Paulo, mas vai se fazer uma reunião, porque como o membro não tem aparecido, para ver se a gente consegue Universidades mais próximas.
P/1 – Que estão mais envolvidas com o bairro.
R – E são mais envolvidas...
P/2 - E com expectativas boas, com... Por exemplo, vai dar certo esse movimento aqui?
R – Sim, com certeza. Porque, assim, esse conselho... Porque veja, as APAs são gerenciadas pelo Estado, de forma geral. Está se brigando hoje para se conseguir uma APA Municipal, que é a Capivari-Monos, lá na região Sul da cidade, já está na Câmara, tudo isso, mas de forma geral as APAs são estaduais. Quem coordenada é o Estado e tem que fazer a gestão com o Município para manter toda a área. Mas o mais interessante de tudo isso é assim: o Município não pode construir nada aqui dentro se não passar por esse conselho. O Estado não pode construir nada aqui dentro se não passar por esse conselho. Então tem três representantes do Estado, três da Prefeitura e três da população. Agora, representante do Estado é funcionário público, representante da Prefeitura é funcionário público também e técnicos. O poder que a gente tem frente ao poder político é nenhum. Você tem o teu trabalho técnico. Você justifica tecnicamente, mas infelizmente, nesse país o político ainda é mais forte que o técnico. Se é um projeto de governo você pode justificar tecnicamente como você quiser que você dança. Você vai para outro lugar, enfim.
P/2 – Eles arrumam justificativa.
R – Eles arrumam justificativa. Agora, o interessante nesse conselho é a população porque quem é que vai contra essa população? Nós já tivemos momentos aqui onde deveríamos ter trinta pessoas na reunião, nós tínhamos trezentas. Porque a população, essas organizações da população, bom, é uma questão interessante, eles juntavam todo mundo e traziam para cá.
P/2 – Quer dizer, é uma população aqui participativa?
R – Participa... Principalmente essa pessoa do movimento de moradia, porque assim, nós temos três ONGs participando efetivamente do conselho e tem três ONGs que são suplentes. Então, uma ONG é movimento de moradia, que é da Gleba do Pêssego, outra ONG é movimento ambiental, as outras duas ONGs são movimentos ambientalistas; uma é a Sociedade Ambientalista da Zona Leste e a outra é Movimento em Defesa do Vale do Aricanduva. E cada uma delas tem uma outra ONG suplente. Quando tem uma reunião do conselho cuja pauta é complicada... Imagina uma pauta se for a Gleba do Pêssego, por exemplo. Eles estão lutando ali que é para poder regularizar. COHAB tem que urbanizar toda a região, tem que fazer um projeto ali para tirar, as pessoas que estão em área de risco têm que sair dali. Você não vai regularizar dentro de uma APA pessoas em área de risco. Essa pessoa tem que ir para outro local, mas você tem que discutir para onde vão as águas pluviais ali. Está caindo dentro da mata, mas vai destruir. Então ela tem que ter um projeto para isso, esse projeto passa todo pelo conselho. Se o conselho demora para avaliar, essa população se organiza, vem aqui, bate, entendeu...
P/1 – Cobra.
R – Cobra, sabe, “vamos sair do conselho e vamos botar faixa”. É muito legal. Está dando super certo isso. Essa história dos piscinões que a gente ouve na televisão o tempo todo. Dois piscinões têm interferência dentro da APA.
P/1 – Ah é?
R – Dois piscinões. Então teve que passar pelo conselho, e o conselho entende o que de piscinão? Nada. O que o conselho fez? Começou a chamar... Porque a lei também prevê isso, começou a chamar técnicos de várias áreas, de Universidades locais, para vir discutir o piscinão enquanto proposta para diminuir as enchentes, para ver se era viável ou não. Quer dizer, você vai se posicionar. Tem uma interferência na APA, mas tem uma interferência na vida da população também que sofre enchente o tempo todo. O que a gente faz?
P/2 – Onde tem enchente aqui?
R – Ao longo do rio Aricanduva, principalmente Carrão. Depois do Shopping Aricanduva ali, de forma geral, tem muita enchente em fase de chuva. E o piscinão parece que vai resolver um pouco a vida dessas pessoas. Não resolve especificamente aqui, mas vai resolver para lá. Então, tudo isso passou pelo conselho. O que o conselho fez? Depois de trocentas mil reuniões... Não eram reuniões tranquilas. Você traz um técnico, traz um geógrafo da Universidade, você traz... E aí o cara vem, ele discute porque é isso, traz o cara da empresa responsável pelo piscinão, ele vai explicar porque piscinão, que tipo de piscinão é esse, onde é que interfere, onde não interfere. Aí o conselho deu um parecer favorável. Mas o que ele fez? Ele exigiu contrapartida desse poder público; “Tudo bem, você vai construir piscinão, vai construir em uma área que vai pegar algumas arvorezinhas da APA, mas vamos ter que ter alguma ação na área para impedir que essa área seja destruída. Então vai ter que ter o cercamento dessa área, essa área tem que ser cercada. Enquanto a área não for cercada, a obra não pode começar acontecer.
P/1 – Nem começa.
R – Não, as coisas têm que andar paralelamente. Tem que ser paralelo tudo isso. Então é isso. Hoje tem todo um trabalho aí que é mesmo de viabilização de verbas, como que é vai... Como é que é... Para que a área seja protegida. E o que garante isso é a população, não tenha dúvida.
P/2 – É, porque aqui é um centro de participação, que está formado aqui dentro. Agora, você...
R – Por que está aqui? Assim, na verdade, o conselho não é para estar aqui. A gente está brigando para que esse conselho saia daqui. Ele tem que ser independente do Estado e do Município, só que quem coordenada o conselho é o Estado, a coordenadora do Estado. A Secretaria Executiva é do Município e a própria lei diz o seguinte: o conselho tem que estar instalado onde está a Secretaria Executiva. E a Secretaria Executiva sou eu (risos), e eu trabalho aqui. Então por isso o conselho está aqui. Mas a nossa briga é para que ele saia daqui, para que tenha um outro espaço dentro da APA para que o conselho funcione mais independente possível do Centro de Educação Ambiental, porque não somos as mesmas coisas. O conselho representa a Prefeitura, a Secretaria Executiva e aqui não, aqui eu sou uma técnica de educação ambiental. Então, às vezes, a gente tem situações muito conflituosas. Você tem ocupação na região, daí a COHAB retira a pessoa que está ocupando e o advogado entra casa adentro procurando a Vandineide, fala que foi a Vandineide que mandou. Quer dizer, que poder! Nenhum, né?
P/2 – Queria que você fizesse tipo um resumo. O que tem no parque? Quais são os equipamentos do parque? Tem um lago...
R – Isso, tem um lago, tem um playground, o parquinho, tem a churrasqueira, são vários espaços para fazer churrasco junto aos eucaliptos. Tem a mata, essa área de mata. Isso é a nossa maior riqueza, na verdade. Isso aqui é uma reserva de Mata Atlântica...
P/2 – Tem trilha para caminhar?
R – Tem trilha. Essa reserva da Mata Atlântica, claro, tem animais silvestres de Mata Atlântica. Então aqui tem bicho-preguiça, tem tatu, tem gambá, tem macacos, tem cobras, aves, enfim.
P/2 – Onça?
R – (risos) Onça eu acho que não. Não sei se tem jaguatirica aqui. A gente não tem esses relatos.
P/2 – Quanto é a área de mata?
R – Olha, a área inteira são nove milhões de metros quadrados. Agora, essa...
P/2 – São quantos alqueires, mais ou menos?
R – Ai, gente, não me perguntem, não façam essas transformações porque eu não sei.
P/2 – Esquece, esquece.
R – Eu sei falar em quilômetros e metros.
P/2 – Quanto que é, metade da área de mata, da área total?
R – Boa parte é mata. Acho que sim. Pegando a área de parque, acho que bem mais que a metade, bem mais.
P/2 – Que mais tem? Tem peixe?
R – E aí tem o trabalho... Então tem um lago e nesse lago tem os peixes. Não pode pescar, claro. No lago, a gente tem animais domesticados. Gansos, patos, tem marrecos, mas esses marrecos são aves migratórias que vêm do Sul na fase do frio para se reproduzir aqui. Que mais? E aí tem o trabalho de educação ambiental que acaba sendo outro equipamento dentro do parque. No trabalho de educação ambiental temos o Museu de Meio Ambiente onde a gente vai atender essa população que visita o parque, escolas, como eu falei, instituições, como eu falei também. Que mais? Ah, tem um trabalho com Terceira Idade que acho até um trabalho que um administrador deve estar coordenando, deve estar mais próximo dele, que é uma chamada Praça Doce que as pessoas da Terceira Idade têm umas barraquinhas onde eles vendem doce no final de semana. Não sei como está isso agora, mas teve um período que tinha essa...
P/2 – Ah é, eles vendem?
R – É, tinha essa Praça Doce. Isso. Na verdade, é um parque super completo porque você tem uma área de mata nativa, você tem a questão da água, você tem a questão do lazer.
P/2 – Agora, a gente já está, acho que estamos acabando...
P/1 – Estamos acabando (risos).
P/2 – Qual é o aspecto que você mais gosta do bairro e o que você menos gosta?
R – Do bairro?
P/2 – Bairro. Itaquera, de Itaquera.
R – Sabe que é super difícil para mim falar de Itaquera porque o que eu conheço muito de Itaquera, essa minha relação com Itaquera, é a relação com o parque, essa história do parque estar no bairro de Itaquera. Então é difícil assim. Eu não sei dizer, por exemplo, o que eu não gosto em Itaquera. É, por exemplo, eu não gosto de fazer compra em Itaquera. Não é uma coisa que eu goste. Mas, assim...
P/2 – Por que?
R – Porque eu percebo que quanto mais afastado você está do centro você é pior tratada. Essa questão de cidadania é uma coisa barra, é uma coisa terrível, né? Você vai fazer compra em um local mais central, você tem muito mais atenção, você percebe que existe uma preocupação do que você quer, com a qualidade. Você vai se afastando, parece que essa preocupação vai diminuindo. Você é obrigada a comprar o que tem. Eu acho que essa questão de cidadania, que daí eu acho que não é só [em] Itaquera, acho que todos os bairros afastados devem ter isso. Acho que essa questão de cidadania em Itaquera, em qualquer bairro afastado, ela tem que ser... E é um trabalho que a gente tenta aqui também, acho que ela tem que ser ampliada. Acho que... Eu tenho pavor dessa história do transporte em Itaquera. Quando eu vou para as reuniões no centro que eu tenho que pegar metrô para voltar para cá, se for final de tarde eu me sinto altamente desrespeitada, altamente.
P/2 – No metrô?
R – É, porque quando eu desço no metrô Itaquera... Transporte é um terror. Desceu do metrô, gente, é um terror. As filas são imensas para tudo, as pessoas são tratadas como lixos. Você tem lá policial ajudando a organizar fila, empurrando para cá, empurrando para lá. Ou gente com jalequinho empurrando para cá, empurrando... Você não tem informação, você não tem placa para você poder olhar onde é que está o seu ônibus. Você tem que sair procurando informação para as pessoas, você não tem lá, bom, “terminal X”, não é? Você chega no metrô Tatuapé, você vai olhando plaquinha; daquele lado tem ônibus para Guarulhos, tem ônibus para não sei aonde. Você chega no metrô Itaquera, você não tem essas placas indicando onde é que você tem ônibus para a COHAB Tiradentes, onde é que tem para a José Bonifácio, onde é... Você não tem isso. Você desce, você sai igual a uma doida procurando onde é que está. E a população lá se matando para conseguir entrar no transporte. Então...
P/2 – Você pega metrô sempre? Está se referindo ao metrô?
R - Essa coisa do transporte. Você desceu do metrô você tem que ter uma outra condução...
P/1 – Para ir para o seu destino.
R – Para te levar para o destino, porque aquilo não é lugar nenhum.
P/2 – Eu entendi.
R – Não é tudo metrô, ele está em um bairro, está dentro do bairro. Você desce no metrô Tatuapé, você atravessa a rua você está na [Rua] Tuiuti, você está... Você desce no metrô Itaquera, você não está em lugar nenhum (risos). Você desceu ali, você não está em lugar nenhum, gente! É uma coisa assustadora. Então isso é o que eu posso falar mais dessa história de Itaquera.
P/1 – Para onde que você gostaria que fosse o metrô, se ele fosse para algum lugar, vamos dizer assim, que fosse para algum lugar?
R – Só no centro de Itaquera, quer dizer, onde está o bairro ali, onde está a movimentação, onde está o comércio. Um local que as pessoas descessem do metrô, você está no bairro de Itaquera. Se você mora no centro, ótimo; se você não mora no centro tem um ônibus que leva para o bairro mais afastado. Quando eu desço no metrô Tatuapé, eu estou no Tatuapé. Se eu quiser ir ao Tatuapé, eu vou andando. Se eu quiser ir para a Penha, eu pego um ônibus. Se eu quiser... Entende? É isso, porque ali não tem. Eu acho uma situação de desrespeito total às pessoas que moram aqui. Agora, acho que uma coisa legal em relação ao bairro... Eu estou falando como alguém que não mora no bairro, alguém que... Agora, uma coisa que eu acho legal é que as pessoas de Itaquera ainda conversam. Existe uma coisa de bairro, das pessoas estarem conversando, de um conhecer o outro. E existe um carinho das pessoas que moram no bairro pelo bairro. A gente percebe isso aqui na exposição. As pessoas estão ali enraizadas no bairro.
P/2 – Elas amam o bairro, né?
R – Elas amam o bairro, elas têm uma afinidade com o espaço onde elas estão. E parece que isso é um sentimento em relação a toda a região Leste. A gente sente isso, essa história de região Leste, “zona Leste somos nós”. É um monumento que parece que está presente em todos os bairros da zona Leste. Eu não sei, não consigo ver isso na região Sul. Pode ser que tenha, mas eu não vejo, não sinto esse movimento todo. Acho que isso é uma coisa muito legal. Isso também vai facilitar o que? Recuperação de cidadania, porque se as pessoas conversam, se as pessoas têm uma relação afetiva com o bairro e tudo isso, certamente elas vão estar lutando para melhorar esse bairro, para ter condições de vida melhor.
P/2 – E pelo que você está dizendo, eles têm uma capacidade boa de organização.
R – Muito, muito grande. Acho que uma capacidade de mobilização muito grande.
P/1 – Legal.
R – É bem legal.
P/2 – Agora, de toda essa experiência que você tem tido de vida aqui, da sua profissão, do seu trabalho, o que você tiraria, assim... O que você usa como filosofia para levar isso tudo adiante?
R – Pois é, acho que trabalhar com educação ambiental é ter que se realimentar o tempo todo também. Acho que isso não tem muito jeito. Primeiro é a crença que é possível a gente ter um país onde tenha cidadania, onde tenha qualidade de vida, onde a gente consiga preservar os recursos naturais, trabalhar esses recursos naturais de forma racional. Quer dizer, nós trabalhamos em uma área de Mata Atlântica onde é o ambiente nesse planeta de maior riqueza em termos de biodiversidade. Então, você pega o mundo inteiro, está todo mundo de olho no Brasil, nos países desenvolvidos, por conta da biodiversidade. Hoje não são mais as armas atômicas que preocupam. O que preocupa hoje é a escassez desses recursos.
P/1 – É verdade.
R – Não é isso? Então, o que mais me motiva a trabalhar aqui é essa possibilidade, inclusive de estar discutindo com a população, ampliando na população essa consciência de toda riqueza que nós temos no país, na região. Porque, olha, é um pedacinho onde nós temos o que: nove milhões de metros quadrados, mais de 50% disso aqui é Mata Atlântica, gente. É reserva de biodiversidade. Nós temos um espaço aqui que dá para mostrar para a população o que é a qualidade de vida, o que é ambiente preservado, o que é a biodiversidade. A gente não precisa fazer discurso. Você traz a população aqui, você vai em um pedacinho da horta e na horta você mostra, cinquenta plantas diferentes. Isso é biodiversidade, em um pedaço pequeno. Enquanto você está mostrando a planta, aparece um esquilinho correndo ali, passa uma ave cantando. Quer dizer, você não precisa fazer discurso. Você tem a prática aqui. Então, acho que estar nesse ambiente preservado, nesse ambiente rico em biodiversidade é uma motivação para estar divulgando isso, para estar ampliando a consciência das pessoas.
P/2 – Que bárbaro! E você tem algum sonho, mesmo difícil imaginar o que seja, mas...
R – Adorei essa (risos).
P/1 – Qual é seu sonho? (risos)
P/2 – É, seu sonho, um sonho que você queira realizar.
R – De qualquer maneira, né? Enquanto profissional ou enquanto ser humano.
P/1 – Qualquer um.
P/2 – Qualquer sonho, pronto.
R – Pois é. Primeiro, é ver essa área preservada mesmo. Essa coisa assim de mantê-la, manter tudo que tem aqui em termos de biodiversidade, ter essa população realmente participando e ampliar o grau de cidadania.
P/2 – Está ótimo.
R – Acho que é isso.
P/1 – Está jóia. Obrigada pela entrevista.
P/2 – Obrigada.
R – De nada.
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