Projeto Kombiblioteca Poética
Depoimento de Michel da Silva Ceriaco Almeida (Michel Yakini)
Entrevistado por Karen Worcman e Jonas Worcman
São Paulo, 21/05/2015
Realização Museu da Pessoa
KOM_HV013_Michel Ceriaco Almeida da Silva (Michel Yakini)
Transcrito por Karina Medici Barrella
MW Transcrições
P/1 – Michel, queria começar a entrevista pedindo de novo o seu nome completo, a data e o lugar de seu nascimento.
R – Meu nome é Michel da Silva Ceriaco Almeida e nasci em 17 de junho de 1981, em São Paulo, bairro de Pirituba.
P/1 – E qual é o nome dos seus pais?
R – Minha mãe chama Maria Eliza da Silva e meu pai é Milton Sebastião Ceriaco.
P/1 – Eles são aqui de São Paulo também?
R – Nasceram em São Paulo, os dois.
P/1 – Os dois?
R – Sim.
P/1 – Então a sua família já está em São Paulo há muito tempo?
R – Não (risos).
P/1 – Então o que você pode...?
R – A família da parte da minha mãe vem uma parte da Paraíba e outra parte de Pernambuco, nessa história da migração nordestina mesmo, ali no anos 60, 70. E a família da parte do meu pai, o meu avô é de Extrema, interior de Minas Gerais, e a minha avó é da região do interior de São Paulo, São José do Rio Pardo, por ali. Mas ali acabam se encontrando nesse bairro.
P/1 – Em Pirituba?
R – Em Pirituba.
P/1 – Você conheceu seus avós?
R – Sim.
P/1 – Conta um pouco o que eles faziam.
R – Os pais da minha mãe, o meu avô, ele chegou em São Paulo, ele trabalhou como gari no primeiro momento.
P/1 – Esse é da parte da sua mãe.
R – Isso. Ele trabalhou como gari e a minha avó sempre trabalhou em casa, né? Eles vieram de pau de arara pra São Paulo e foi naquele primeiro momento que veiram os primeiros, aí vai trazendo os familiares e tal, se estabeleceu uma parte da família aqui. Eu sei que a minha avó veio de pau de arara grávida do meu tio mais velho e como meu avô conseguiu esse trabalho eles conseguiram se estabilizar de uma forma até rápida em São Paulo. Só que logo depois se separaram também.
P/1 – Seus avós?
R – É, meus avós se separaram. A memória que eu tenho maior deles é separados. E aí a minha avó passa a morar em Pirituba com a família, próximo dos filhos, e o meu avô vai morar em Carapicuíba, já com uma outra família também, uma filha, na verdade, que ele tem fora do casamento, então ele vai morar com ela e eles passam a viver separados. Então a minha maior memória é mais da separação.
P/1 – Você lembra dessa separação?
R – Não, não lembro.
P/1 – Você lembra deles separados, é isso?
R – É, pra mim já é memória mais separados. Eu lembro deles terem aquele princípio de separação que ainda estão se encontrando muito e que por isso então ainda você percebe que tem uma união, mas que ao longo dos anos realmente foi distanciando. E a minha avó conta, a maioria das histórias que eu sei dessa história deles é por parte da minha avó por causa da proximidade do bairro, então tinha mais contato com ela. Tenho, ela ainda é viva, meu avô já faleceu, mas ela conta que o motivo deles irem pra São Paulo é porque de fato estavam passando pela seca no Nordeste, estava muito difícil a situação lá de vivência, então estavam vindo pra São Paulo naquela época em que os caminhões vinham a rodo. Já da parte do meu pai, meu avô já tinha outra esposa quando eu tenho memória. Ele já era separado da minha avó, mãe do meu pai, já estavam em Pirituba. Eu sei que o meu avô tem um histórico como comerciante em Minas Gerais e aí depois vem pra São Paulo morar em Pirituba porque é um bairro que no início estava também com começo de venda de lotes, essas coisas, aí ele apostou morar lá. Mas logo se separou da minha avó, minha avó resolveu ir embora e aí ele ficou morando lá com os meus tios.
P/1 – Ele é que criou os filhos?
R – Sim. A minha avó foi embora porque também tinha um histórico de violência, tal.
P/1 – Ele batia nela?
R – Sim.
P/1 – Isso tudo é história que te contaram, você não viu essas...
R – Por várias pessoas, várias pessoas contaram. Eu não sei porque eu não era nem vivo (risos).
P/1 – Você não tinha nascido.
R – É. Mas aí se confirma porque várias pessoas contam, vizinhos e familiares.
P/1 – Que o quê? Que ele batia nela?
R – Que um dos motivos dela ter ido embora era os maus tratos que ele tinha com ela.
P/1 – Ela largou os filhos então?
R – Num primeiro momento ela levou um tio, mas depois esse menor voltou. Ela só levou a filha mulher com ela, uma das, a outra ficou, levou a mais nova, que aí viveu com ela até o fim da vida. Mas aí o meu avô ficou com os outros filhos e uma mulher também, uma tia. Eu sei que meu avô aqui em São Paulo trabalhava como motorista de ônibus. Aqui ele não conseguiu seguir como comerciante, faliu, não sabia trabalhar com empreendedorismo, acho (risos). E aí ele faliu o comércio que tinha e foi trabalhar de motorista de ônibus. Minha avó foi embora, quando eu me reencontrei com ela foi em Mogi das Cruzes. E meu avô desde então tinha já uma outra esposa, que aí é a memória que eu tenho dele com ela, de companheirismo, de estar morando junto, ela que cria meus tios, meu pai, tal. E ela eu sei que já era moradora da região, ela é uma senhora que já tinha uma família estabilizada na região lá, descendente de portugueses me parece.
P/1 – E aí, então, de alguma maneira sua mãe encontra com seu pai nesse bairro. Você sabe como?
R – Sim. Meu avô, ele tinha um histórico também de uma prática religiosa ligada à Umbanda e então o meu pai foi o único filho que de alguma maneira se desenvolveu também nessa linha de prática religiosa. E aí meu pai se iniciou num terreiro próximo da minha casa e então ele estava já dando consultas, ele incorporava já os seus guias. E uma das minhas tias, irmã da minha mãe, ela estava passando por uma questão que ela achava que era emocional, não sei. Mas ela tinha um problema (risos), que aí então indicaram ela a ir lá no terreiro pra tentar ver se ajudava ela. E a minha mãe foi com ela até lá pra ver se ajudava ela nesse sentido, e lá ela conheceu meu pai porque ela foi junto levar a minha tia, mas meu pai atendia, então ela um dia se consultou com ele e passaram a ter um contato, e aí passaram a namorar e foi...
P/2 – De que santo era o terreiro?
R – De que santo?
P/2 – É.
R – Ah, Umbanda, que aí você vê várias entidades juntas, tem exus, caboclos, boiadeiros, pretos velhos, são essas as entidades que são presentes. Eu estou dizendo porque eu sei porque meu pai pratica.
P/2 – Você sabe quais ele incorpora?
R – Exus, caboclos, pretos velhos, erês, foram os que eu já vi.
P/1 – E aí então eles começaram a namorar e casaram.
R – É, eles começaram a namorar (risos), não sei se um namoro desses tradicionais (risos), mas começaram a se namorar e aí nessa a minha mãe engravidou e eles resolveram viver juntos. Num primeiro momento de ir morar na casa do meu avô, pai da minha mãe. Mas porque tinha um problema de aceitação também. O meu avô, o da parte da minha mãe, não queria e meu avô por parte do meu pai também não queria.
P/1 – Você sabe por quê?
R – Porque os dois são negros (risos). E a rechaça era essa. O pai da minha mãe falava que ia sujar o sangue da família e o pai do meu pai falava a mesma coisa (risos).
P/1 – Mas porque os dois eram negros?
R – Eu vejo que sim, hoje eu analiso assim, porque pela fala deles, os dois dizerem: “Não vai vir aqui ela porque ela sujar o sangue”, e o outro falar a mesma coisa (risos).
P/1 – Mas os seus pais são que cor?
R – São negros.
P/1 – Os dois?
R – Sim. São negros.
P/1 – Não estou entendendo direito isso, não.
R – É porque são famílias mestiças que às pensam que são brancas também.
P/1 – Então eles têm uma cor parecida com a sua?
R – Um pouco mais escura.
P/1 – Os dois mais escuros?
R – Os dois mais escuros.
P/1 – Que seus avós eram mais negros?
R – Da parte da minha mãe, o meu avô principalmente. A minha avó já não, a minha avó é branca. E a minha avó por parte do meu pai, minha avó é negra retinta e o meu avô já pele mais clara.
P/1 – Mas claramente essa era a questão, a cor?
R – Eu entendo que sim porque... aí também é uma leitura minha, eu percebi que essa era a causa que batia. E isso vai gerando outros adjetivos, tipo, sujar a cor, maconheiro (risos). Tem várias coisas. Vagabunda. Isso tudo vai virando outros adjetivos.
P/1 – Tinha a coisa da Umbanda também?
R – De alguma forma sim, também. Vai batendo nisso. Apesar que o meu avô na época, ele faleceu sendo evangélico, mas na época eu também sei que ele frequentava terreiro.
P/1 – O pai da sua mãe?
R – Sim. Eles tinham essa prática em comum. Mas tudo vai batendo nesse sentido, de você ter um rechaço pelo que aquela pessoa representa também.
P/1 – E aí eles tiveram quantos filhos?
R – Só eu.
P/1 – Só você?
R – Cada um tem filhos de outros casamentos, de outros momentos.
P/1 – Então você nasceu na casa do seu avô?
R – Na casa do meu avô, sim.
P/1 – E aí, como era essa casa? O que você lembra dela?
R – Poucas memórias. Porque depois eu fui pra casa do outro avô. Essa casa eu tenho pouquíssimas memórias, eu só lembro que era uma casa bem povoada porque a família inteira estava lá da parte da minha mãe, basicamente as irmãs todas lá ainda, o irmão. Então ali estava o fluxo do tio, das tias, dos namorados, casados, recém-casados, eu lembro disso. E aí alguns primos. Minha irmã mais velha, já estava nesse convívio.
P/1 – Uma irmã mais velha?
R – É.
P/1 – Mas você não era só você?
R – É, mas a minha mãe já tinha uma filha (risos).
P/1 – Ah, a sua mãe já tinha outra filha.
R – Já tinha uma filha, de outro casamento anterior. A gente já tinha ali uma prática de convivência, mas que eu lembro pouco porque com quatro anos a gente foi pra casa do meu avô por parte do meu pai.
P/1 – Por quê? Você não sabe.
R – Porque com a separação dos meus avós a casa lá foi desmembrada mesmo e cada um buscou seu rumo. E o meu avô construía espaço pros filhos dele ficarem em barracos de madeira lá e aí todo mundo ia lá (risos). E nessa meu pai falou que era uma boa ir pra lá com a minha mãe. Resolveram ir, foram, então a gente começou a morar na casa deles.
P/1 – E de lá você lembra?
R – De lá eu lembro bem mais assim.
P/1 – Como é que era?
R – Que é porque é a minha casa hoje também.
P/1 – Ah, você está lá até hoje?
R – É, estou lá até hoje.
P/1 – Como que é essa casa? Descreve, se ela é grande. Como ela era nessa época?
R – É um terreno que pega de uma ponta da rua até a outra rua e que na época tinha uma casa do meu avô, construída de alvenaria, que era uma mistura de casa e terreiro também, porque lá também tinha giras de Umbanda. E aí, em volta tinha muitos barracos que moravam os filhos, entre eles meu pai e minha mãe, e também tinham algumas pessoas que moravam de aluguel.
P/1 – Eram várias casinhas, vários barracos?
R – Vários barracos.
P/1 – No mesmo terreno.
R – No mesmo terreno.
P/1 – E quais são as suas primeiras lembranças dessa casa? Se você fechar o olho, o que te vem?
R – Primeiras lembranças. O chão de terra batida pra pisar, que é interessante, eu sinto falta, inclusive.
P/1 – Nesse barraco era chão de terra?
R – Era. De uma situação complicada, de entender, já perceber naquela época que meu pai e minha mãe tinham dificuldades com grana, já dava pra perceber, que refletia no jeito que a gente se alimentava. Mesmo eu não tendo dimensão que se alimentava mal, mas já dava pra perceber que era uma coisa que, a divisão é bem feita. E do lance também da minha mãe estar trabalhando quase todo o tempo.
P/1 – O que ela fazia?
R – Ela trabalhava numa seção de uma empresa chamada Novelspuma, que trabalhava com fábricas de espumas e coisas afins.
P/1 – Ela trabalhava o dia todo lá?
R – O dia todo porque fazia muita hora extra. E o meu pai desempregado.
P/1 – Seu pai era desempregado. Ele tinha profissão?
R – Depois ele se tornou bombeiro civil, mas naquele momento não, naquele momento ele estava desempregado e um tempo depois ele virou cobrador de ônibus na empresa que meu avô trabalhava. Depois de um tempo ele ficou desempregado. Ele tinha uma dificuldade de ficar nos empregos naquele momento.
P/1 – Você sabe o motivo? Ele bebia, ele era bravo?
P/2 – Não era ele que atendia?
R – Sim, sim. Ele atendia nos terreiros também. E também fazia as consultas em casa. Mas pelo emprego eu não tenho ideia do que seja, não tenho ideia. Mas sei que tinha um ponto que era escolaridade também. Porque eu lembro quando ele foi fazer o curso de bombeiro civil, em algum momento teve que ter um diploma mínimo lá não tinha.
P/1 – Ele tinha ido à escola em algum momento?
R – Eu sei que a formação dos dois na época não passava da quarta série primária, que na época era o primário. Minha mãe parece que tinha completado e ele não. E aí então eles tinham essa dificuldade também. Só que a minha mãe teve essa regularidade de um emprego e ele não teve. Depois ele conseguiu fazer esse curso de bombeiro civil e aí se tornou o primeiro emprego dele mais longevo. Que aí é quando você percebe, você analisa: “Não, realmente aquela época era mais difícil”, porque você vai conseguindo ver que tem outras coisas que vão vindo.
P/1 – E o que você lembra que era difícil?
R – Ah, alimentação...
P/1 – O que você comia?
R – Comia arroz, feijão, chuchu, ovo. Basicamente era isso.
P/1 – Todo dia?
R – Muitas vezes. Eu lembro que uma das coisas que modificou quando você muda o sabor das coisas muda porque você começa a comer outras coisas.
P/1 – Tipo?
R – Carne.
P/1 – Carne.
R – É uma forma de você pensar, mas realmente. E a repetição também. Ou também a divisão das coisas, como se divide as coisas.
P/1 – Por exemplo?
R – De não poder muitas vezes repetir alguma coisa porque tem que guardar pro próximo porque não tem pra todo mundo em abundância, a hora que você quiser parar. Tem um tanto e o tanto acabou. E outras dificuldades, você saber que você sempre usa roupa usada de alguém que vem e dá porque trabalhou em algum lugar e aí alguém que tem... entendeu, sempre isso, nunca está usando roupa nova, roupa da Fundação Bradesco (risos). De onde vem essas roupas?
P/1 – E você lembra de você pensar nisso ou é algo?
R – Não, depois eu vou começando a pensar nisso.
P/1 – Hoje pensando, né? Na época...
R – Não só hoje, mas quando eu vi que o meu pai melhorou de situação e começa a ter outro acesso em casa, aí você vai começando a perceber e fala: “Nossa, então era isso. Não era uma situação normal, era porque não era possível”.
P/1 – Isso que idade assim que isso mudou na sua vida?
R – Eu acho que a partir dos 12 anos.
P/1 – Até os 12, por exemplo, tinha televisão ou não?
R – Tinha TV.
P/1 – Você assistia TV?
R – Assistia.
P/1 – Muito?
R – Sim.
P/1 – O que você gostava de ver?
R – Naquele momento? Esses programas infantis, Bozo. Desenhos, desenhos que passavam, vários desenhos.
P/1 – O que você realmente gostava de fazer? Como que você lembra na sua infância até os 12 anos?
R – Eu gostava também, sempre gostei e gosto até hoje, de estar na rua jogando futebol. Sempre.
P/1 – E você podia, você era livre, você saía?
R – Sim. Tinha um cuidado, mas eles deixavam, sempre queriam saber onde estava, com quem estava, mas acontecia de ir, ou depois ia escondido e depois aparecia, tinha várias coisas que possibilitavam fazer. Mas eu gostava de jogar, principalmente. Além de outras coisas, né? Depende do que patota que você está fazia (risos).
P/1 – A relação maior sua era com seu pai ou com seus avós, com sua mãe?
R – Nesse primeiro momento mais com a minha avó e com a minha irmã. Porque o meu pai, eu lembro também, que ele estava sempre na rua, minha mãe sempre trabalhando. Então a minha avó, mãe da minha mãe, que ficava com a gente e a minha irmã mais velha.
P/1 – E você gostava de ficar com ela ou ela era muito brava?
R – Não, a gente se dava bem. Brigava bastante, mas se dava bem. Ela foi referência pra mim pra várias coisas. Como ela é de outra família, ela por exemplo introduziu em casa leitura, por exemplo, que era uma coisa que meu pai e minha mãe nunca trouxeram, não tem hábito de leitura.
P/1 – E ela tinha?
R – Ela tinha. Eu já lembro dela alfabetizada e já trazendo gibis.
P/1 – Ela trazia gibi.
R – Ela começou a incentivar eu a ler, me mostrar e aí você começa também ter a prática. Aí quando eu já estou alfabetizado também já começo a me desenvolver, não só na escola, mas também porque minha irmã começa a me incentivar nisso. Normalmente, não por uma prática dela, mas de dividir o que ela tinha lá, gibis. E aí a gente descobre que tem um tio, irmão da minha mãe, que também tinha uma coleção de gibis da Turma da Mônica e esse meu tio também colecionava revistas de futebol e foi um universo que a gente foi indo meio junto.
P/2 – E os livros em si? Chegaram nessa época também pra você?
R – Não, não. Minha irmã lia mais revista, HQ. E essas revistas de futebol eu me lembro que eram as leituras mais longas. Livros não.
P/2 – Histórias orais, tipo as lendas africanas na Umbanda, essas coisas?
R – Tinha algumas coisas que meu pai tinha de livros que eu sei que ele não lia, mas que eram livros da prática da Umbanda, que eu não me recordo bem o que abordava, mas não eram mitologias, eram como se fossem rezas, as rezas, coisas do tipo.
P/1 – Você ia no terreiro com ele?
R – Sim, eles montaram um lá na minha casa depois. Já tinha o do meu avô, quando meu avô foi embora pra Minas de novo, ele volta pra Minas e aí a minha família passa a ficar na casa. Eles fazem um acordo e meu pai compra a casa dele pra ele poder ir embora e fazer outro sonho lá em Minas. Então eles ficam na casa, a gente fica na casa e o terreiro sai de dentro da casa, mas depois é montado no quintal. Então eu ia todos os dias que tinha, quando meu pai atendia em casa eu também estava sempre lá ajudando, acendendo charuto pro exu dele (risos), essas coisas do tipo. A gente sempre estava tomando passe, adorava sempre tomar os passes. Assistir também o canto, essas coisas, sempre gostei de ver, de querer aprender a tocar atabaque, essas coisas.
P/1 – E ele te ensinava alguma coisa pra você entrar no terreiro ou não?
R – Bem tranquilo.
P/2 – Você chegou a ter uma vocação pra isso, incorporar?
R – Naquela época não, estou percebendo que está tendo agora (risos). Naquela época era bem tranquilo.
P/1 – Vamos voltar lá. Enquanto isso como era quando você entrou na escola, qual que era a relação sua com a escola?
R – Na escola? Eu entrei no pré com seis anos numa escola que é uma escola que a minha mãe chegou a estudar também, na época chamava Escola Municipal de Primeiro Grau General Henrique Geisel, é o nome da escola. Mas enfim, nem sabia o que era isso. E eu passei a estudar nessa escola no pré. Eu me lembro que a primeira vez que eu cheguei na escola eu fiquei um pouco assustado porque eu via muita criança chorando, tipo: “Não quero!”, eu falei: “Caramba, será que vai acontecer o quê?”, mas eu encarei e fui, fiquei meio assim, mas fui e passei a gostar da escola também. Era bacana porque a escola não é tão perto da minha casa, era uma distância de uns dez minutos andando, então aí eu conheci outras pessoa que não aqueles que estavam no convívio lá da minha vila, lá, eram outras crianças. E você vai aprendendo outras coisas também. Eu gostava de ir, nesse primeiro momento pra mim era bom. E aí eu estudei nessa escola depois, primeiro ano, fui alfabetizado lá e conheci várias pessoas que são meus amigos até hoje lá também. E a escola, eu sempre percebi depois olhando que nesse início eu tinha um encantamento pela escola muito bom, de gostar de ir.
P/1 – Você tinha alguma professora que te marcou?
R – Sim, várias (risos).
P/1 – É? Me conta alguma história de alguma bem marcante.
R – Bem marcante? Uma das mais marcantes é a professora Bernardete porque ela é uma professora que me alfabetizou e eu me lembro desse lance de começar a decifrar palavras com ela. E ela tinha uma disciplina estranha, dessas ainda que colocava atrás da porta pra cheirar a porta depois de você fazer alguma coisa, tal. Mas eu via êxito, eu via que ela tinha alguma coisa que saía, que eu ia pra casa com uma novidade sempre, com ela.
P/1 – Você aprendeu a ler com ela?
R – Aprendi a ler com ela.
P/1 – Você lembra de quando você foi aprendendo a ler, como é que foi?
R – Nesse lance de juntar as sílabas mesmo, de começar. E aí começar, sair da escola já identificando a rua nas placas e aí, mas ainda empacava em alguma coisa (risos). Quando você olha, as palavras são mais difíceis, aí você volta na escola e isso foi um momento interessante. Eu lembro também que na terceira série tinha uma professora que eu não recordo o nome que eu ia buscar ela na casa dela porque ela morava na rua da escola, então, tinha um lance da gente chegar na escola e buscar ela antes. Até que teve um dia que a gente foi buscar ela e ela faltou, então ela não saiu da casa (risos) e a gente ficou lá esperando e ela não saiu, todo mundo faltou na escola (risos) porque não conseguiu ver o horário dela sair da casa. E aí pra não voltar pra casa e não falar pra minha mãe que eu não tinha entrado pra escola eu fiquei pela rua mesmo com os amigos lá até da a hora da escola, depois você volta normalmente (risos). Mas tinha esse lance. E eu lembro que na frente da casa dela tinha um pé de romã que era esperar ela e pegar o romã, aqueles que amarram a boca (risos). E aí a gente ficava fazendo isso. E era uma professora que eu lembro que ela tinha uma prática mais amável, diferente de algumas outras que além de serem professoras que a gente tinha um apego, um afeto, mas também era uma disciplina complicada, beirava a violência, às vezes, uma coisa mais rígida. E essa professora, eu lembro que ela conquistou pelo amável.
P/1 – E com os seus pais ou seus avós, você tinha uma relação de violência, eles batiam, como era?
R – Eu creio que comparado ao que eu via de alguns amigos meus e amigas era tranquilo porque tinha os momentos também, já cheguei a apanhar, essas coisas, tranquilo, mas nada que chegava no ponto de chegar na escola e ver colega de sala com o corpo todo marcado porque acabou de ser espancado em casa. Essas coisas eu não passei, de você ver colega chegando em situações ruins, então, não achava isso pesado. O meu pai tinha um pouco mais de, eu acho que ele era menos controlado com isso, às vezes reverberava mais na minha irmã, também.
P/1 – Ele batia nela também?
R – Teve alguns momentos que eu acho que foi pesado, da gente estar jantando e quebrar prato na cabeça, do nada, essas coisas. Isso marcou, dá um estalo, de estar eu brincando com ela, de repente eu sei que ela está lá com a cara ensanguentada porque ele tacou um alicate na cara dela, coisas desse tipo.
P/1 – Especialmente com ela, mais com ela do que com você?
R – Especialmente com ela.
P/1 – Por que com ela?
R – Não sei se é porque eu conseguia fugir ou se é porque tinha uma questão com eles, ou dela ser mulher. Tem várias coisas que eu fico hoje pensando, agora, naquela época não conseguia medir.
P/1 – Mas ela era filha dele?
R – Também não. Tem essa questão também.
P/1 – E a sua mãe, o que ela, como ela?
R – Ausente nesse momento, trabalhando.
P/1 – Sempre trabalhando?
R – Nesse momento ela não estava. Na janta estava, mas como é que contorna também? (risos) Difícil, né?
P/1 – Mas ela sabia, isso era uma coisa presente na vida de vocês, era normal?
R – É naturalizado, né? Dá treta, dá problema. E eles brigam por isso, mas sempre acaba passando depois, a família vai levando em frente. Nunca chegou num outro caso extremo de ter que ir pra outra instância disso, ou causar uma separação entre eles de vez, a não ser depois, mais a frente, mas quando a gente era maior. Mas acontecia. E aí você também vai olhando isso, vai olhando casos em volta e vai pensando, você vai chutando por baixo. Eu falei: “Nossa, não está acontecendo muita coisa não, porque dos vizinhos é muito mais louco”.
P/1 – Você lembra de alguma história que você achava tudo normal ou alguma história te chamou muito a atenção?
R – Em que sentido?
P/1 – De algum amigo seu estar muito machucado, alguma coisa desse tipo?
R – Então, esses da escola eram os que eu mais conseguia entender, de presenciar, porque você vê no corpo, né? Você via no corpo, então era coisa que eu olhava que estalava, não era como essa de eu ir para a escola e às vezes ter passado por uma repreensão e ninguém perceber a não ser que eu falasse. No caso dos amigos, muitos eu via que estava marcado no corpo mesmo. E vai acontecendo outros casos que a gente sabe porque vai se comentando, principalmente, não só a violência física, mas também da ausência dos pais, muitas mães que estão ali criando seus filhos e os pais não estão presentes, ou ignoram. E aí vai ocasionando outras violências, essas crianças passam a comer mal, passam a se vestir mal por causa disso também, aí a mãe está sempre fora. E alguns deles acabavam indo pra minha casa também, nesse sentido que eu até via e olhava e falava: “Caramba, ainda acaba sendo um lugar de acolhimento pra alguns porque...”. Eu lembro que tinha um amigo mesmo que um tempo a minha família cogitou adotar ele, que era de uma, é um amigo meu até hoje, ele chama Paulo e esse meu amigo a mãe dele trabalhava também com a minha mãe na empresa de plásticos lá e tal, e a gente se encontra, na escola a gente se encontra também e passa a ter uma relação muito próxima.
P/1 – Você com ele, ficou muito seu amigo.
R – Demais. Demais. E como também a mãe dele estava também sempre fora, mas não era como eu que de repente tinha a avó, ou o meu pai estava por ali às vezes, alguma coisa, ele estava sempre mais só. E tinha os irmãos, as irmãs. E ele ia pra minha casa e a gente ficava lá. E eu percebia que muitas vezes era porque também ele estava com dificuldade de outras coisas, quem é que ia dar comida pra ele? Aí ele acabava dormindo e eu lembro que um tempo cogitou, quando a mãe dele engravidou em um outro momento, cogitou dele vir morar mesmo de vez, mas acabou não acontecendo. Mas a gente sempre acompanhou essa ausência da mãe dele que teve vários filhos, são cinco, seis filhos, e nenhum deles é do mesmo pai e nenhum pai esteve presente nessa casa, sempre engravidava e aí por um momento, a não ser um que acabou sendo assassinado também. E aí então a gente foi vendo isso e você vai usando como comparativo às vezes, né? Você olha e fala assim: “Tranquilo, posso estar em algum momento comendo menos, ou alguma coisa que não está chegando, mas tem um vizinho que está numa situação muito mais complicada”. Você vai tendo essas dimensões também.
P/2 – E tinha algum modelo positivo, que você olhava assim e: “Nossa, tem alguém que está muito massa”.
R – No bairro?
P/2 – É.
R – Só quem estava envolvido com criminalidade, que a gente achava que tava.
P/1 – Que era melhor? Você achava que eles estavam bem.
R – Porque eles ostentavam mais coisas, estavam na rua comendo sempre, o lanche não sei o que lá. E sempre com carro ou moto, que era coisa também que você não via muito naquela época as pessoas terem. Ou quando as pessoas tinham um carro era sempre um carro velho, caindo aos pedaços e os caras apareciam com um carro muito valorizado pra época, motos, roupas. Daí você imagina que eles estão melhores. E os filhos desses caras também parece que estão melhores.
P/1 – E você ficava pensando: “Puxa, por que meu pai não está nisso?”, te dava vontade de entrar pra esse mundo?
R – Depois mais velho deu, naquele momento criança, não. Não deslumbrava, deslumbrava olhar assim, eu ficava olhando os carros, olhava, mas nunca... meu pai cercava muito isso, como o meu pai sempre estava nas ruas então ele não deixava também. Quando ele percebia que estava se aproximando ele dava uma bronca, falava alguma coisa para não se aproximar, sempre cercava isso. E ele sabia muito mais coisas assim, às vezes ele sabia de coisas que eu estava fazendo, não porque eu contava, mas ele já estava sabendo porque ele estava sempre nas ruas, então as pessoas contavam coisas que eu estava fazendo. Se eu cabulasse aula ele sabia, cobrador do ônibus contava pra ele.
P/2 – Ele atendia as pessoas do bairro?
R – Sim, muito. Até hoje. E esse lance de querer, depois, mais adolescente. Nessa época de criança, não, não passava, era só mais querer estar com os amigos, brincando.
P/2 – Queria saber na escola, nesse mundo, o que te encantava mais?
R – Da escola?
P/2 – É.
R – Era as amizades mesmo. De estar junto com amigos, de reencontrar amigos. Amigos, era isso, nessa fase primeira.
P/2 – Nenhum assunto, nenhuma história?
R – Da escola? Eu não me recordo de nada que me pegava para eu poder ir lá e falar: “Quero ir hoje porque hoje vai ter isso”. Talvez o pão com salsicha (risos), que tinha um dia que quando você sabia que era o pão de salsicha e o Toddynho, aquele dia era o dia especial, daí acho que dava uma motivação pra ir (risos), no mais não. Não lembro de nada que... ah, campeonato de futebol também, educação física, essas coisas. No mais não, era mais os amigos mesmo.
P/1 – Daí você entrou na adolescência, o que foi mudando na sua vida?
R – Na adolescência? Tem esse lance que eu percebi que a minha família foi melhorando uma situação porque meu pai conseguiu um emprego melhor. Ele foi trabalhar de bombeiro no Jockey Club de São Paulo, que eu não tinha nem dimensão do que era, mas depois descobri que era um lugar que tinha gente de, se eu pensava que aqueles caras que estavam na minha rua tinham dinheiro (risos), mas depois eu vi gente que tinha muito mais dinheiro, que tinha coisa que eu nunca nem tinha olhado. E às vezes eu ia lá porque o meu pai, quando tinha festas lá do Jockey Club ele deixava eu lá, ele trabalhava e falava: “Ó, vai lá e se vira”, então eu ia lá e me envolvia de jogar bola com aqueles moleques, me envolvia de ficar lá, me envolvia de ficar olhando corrida de cavalo, essas coisas, enquanto ele estava trabalhando. E em casa melhorou muito a situação nesse sentido, ele começou a poder comprar coisas pra gente que não acontecia, então comecei a ter roupa, por exemplo, que já não era presente. E isso até pra minha irmã porque a minha mãe passou, trabalhando junto os dois, a minha mãe passou a trabalhar mais em casa, ela saiu do trabalho, passou a trabalhar mais em casa, mas começou a inventar coisas também pra fazer em casa. Daí num primeiro momento enquanto meu pai trabalhava, a minha mãe apostou em vender coisas na rua. Eu moro numa rua que tem feira aos sábados, então num primeiro momento minha mãe falou: “Então vou fazer maria mole e você vende na feira”, então era isso que eu e minha irmã fazíamos no sábado (risos).
P/1 – Vocês iam na feira.
R – É, ia na feira vender maria mole. Depois passou a vender bolo e maria mole. Aí depois a minha mãe começou a ir no Brás, a gente pegava o trem, ia no Brás, comprava doce e vendia doce, doce mesmo, primeiro pé de moleque, paçoca, depois começa a chegar chocolate, essas coisas assim. Ela começou a fazer isso assim. E aí começa a desenvolver outra chegada de dinheiro, mesmo que é o mínimo, mas é diferente. Isso foi uma das coisas que melhorou muito assim, eu me lembro. Em relação a mim (risos), eu percebi que a escola cada vez menos foi interessante, tinha menos vontade de ir, porque eu já percebia que pra ir lá cultivar amizade eu não precisava estar lá, então eu comecei a ter uma prática de ir só para eu fazer meu pai e minha mãe acharem que eu estava indo, mas eu já não ficava mais também, ia embora e dali ficava até o horário da aula e depois ia pra casa, então a escola já não estava mais sendo interessante. Eu comecei a ter a ideia de que eu queria ser jogador de futebol, isso era uma coisa que colocava na minha cabeça desde aquele momento e fui tentando buscar meios pra isso, de ver quem é que jogava e aí ia atrás da pessoa, e ia jogar num time do bairro e começar, tentar me desenvolver nisso, isso era uma coisa que eu estava buscando, muito. Muito. Você começa a ter também outras intenções, se apaixona também. Você também quer ter coisas, por mais que seu pai começa a comprar uma coisa pra você, uma roupa, mas você fica olhando o que tem mais também, você começa a querer almejar outras coisas.
P/1 – E isso você sentiu. Aí que te deu vontade de entrar, por exemplo, pro tráfico? Te deu essa vontade.
R – Não, não, foi mais pra frente ainda. Mas não foi tráfico, não, eu nunca tive vontade de traficar nada, nada.
P/1 – E qual era o pessoal...
R – Nunca achei que tinha que traficar nada. Esse lance foi mais pra frente, tem a ver com futebol também. Na verdade eu jogava bola, muito, mas eu tinha muitos amigos mais velhos e o futebol tem o lance da idade também, não é só talento, tem idade, tem sorte, tem tudo, tem tramóia, tem tudo. Tem abuso, tem tudo também (risos).
P/1 – Você queria ser jogador.
R – Queria. E eu tinha vários amigos que eram mais velhos. E uma das práticas que os amigos buscavam era de repente ter um RG falso, também era uma das coisas. Mas mais no primeiro momento nem passava pela cabeça, eu ia e queria jogar, não sabia de nada disso, você vai descobrindo depois. Mas isso foi fundamental pra mim porque o futebol me fez sair do meu bairro, né?
P/1 – Por quê?
R – Porque o futebol faz você ir pro outro bairro, que é uma coisa que vários não fazem, a gente só vive na nossa rua e na escola. Nossa rua, na escola, tem gente que não passa da esquina, né? Eu não sei o que é, de fato, é porque você não tem, você não tem uma visão pra poder mudar as suas andanças mesmo, você não consegue. Mas o futebol começou a levar eu para outros bairros, pra meninos que eu encontrava igual a mim, que você identificava, você olhava e via, eles falam igual a você, são do mesmo tamanho, são parecidos no jeito, mas são de outro bairro. Aí depois você começa a ir pra outras cidades também. Por causa do futebol. Ele motivou eu a conhecer outras coisas. E eu comecei a ter outras referências além do meu bairro. Eu já saía do bairro de ônibus, sozinho, coisas que várias meninos da minha idade não faziam, ia até Pinheiros aqui, jogar bola, no Pequeninos do Jockey, por exemplo, com 13 anos. Pegava o ônibus seis da manhã e ia até aqui o Pequeninos do Jockey. E o meu pai e a minha mãe me apoiavam porque eles sabiam que de repente estar no bairro não era legal, nesse período era um momento muito ruim, de que muitas vezes era um momento que estava morrendo muita gente, né? Muita gente jovem. Dificilmente você crescendo você imaginava que você ia ter mais que 30 e poucos anos, por exemplo, você não tinha muito isso de ficar pensando: “Nossa, quando eu for velho”, não tinha muito essa memória, você não ficava pensando nisso, quer dizer.
P/1 – Não?
R – Não, porque você via muita gente morrendo antes já, porque estava muito, muito violento mesmo, estava acontecendo muitos assassinatos, muitos, todos os dias. E vários momentos que eu saía pra ir jogar futebol eu me lembro de encontrar poças de sangue também da madrugada. Aí depois quando você volta você descobre que foi, você sempre sabe que é alguém próximo. Então você descobre muitos amigos também, e isso foi me motivando também a ir pra outro universo e não a me seduzir pro tráfico, por exemplo, e também meu pai e minha mãe apoiar isso também, acho que eles ajudavam porque “tudo bem, quando eu não estou vendo ele está lá, é outro momento”.
P/2 – Mas por que esses assassinatos estavam tão fortes?
R – Porque eu lembro que sempre você via a polícia junto nesses negócios de atacar as pessoas que estão, de repente, envolvidas com criminalidade, então, acontece muito tiroteio, ou às vezes as pessoas se atacando muito também. Daí você está num lugar, de repente abaixa as portas porque tem alguém morrendo ali na frente, tem que baixar a porta rápido e todo mundo ficar lá até que tudo acabe, aí depois todo mundo sai e você vê quem foi. Daí no outro dia você vai no velório, na sede do bairro comunitária que só servia pra fazer velório. Me lembro que a sede só servia pra isso, todas as semanas você ia lá visitar alguém que estava morto.
P/1 – Eram meninos, meninas?
R – A maioria jovens, homens jovens.
P/1 – Mas um matava o outro também, tinha gangue?
R – Não sei se gangue, mas eles se matavam também.
P/2 – Era por assalto?
R – Não sei, rixas também. Assalto, não lembro de tantos casos com assaltos, eu lembro que eram casos de rixas, não dá pra saber o que é, muitas coisas. Você não sabe o que é.
P/2 – E era com arma de fogo?
R – Arma de fogo.
P/2 – Desde o princípio.
R – Sim. E eu lembro que tinha também muita coisa de linchamento, tinha também bastante. De nessa época de ser mais novo, de estar numa faixa de uns dez anos e da janela da minha casa ver uma pessoa sendo linchada. Um dia depois do ano novo, de repente um cara passa correndo e de repente quando ele está chegando na rua, na subidinha, ele não aguenta mais correr, vem uma galera e lincha ele até ele ficar estirado lá. Eu lembro dessas coisas. Mas você nunca sabe muito o motivo, você só vê. Ou então do nada você está na sua casa, de repente lincharam alguém lá na frente, você vê um monte de sangue lá, tal. Agora no futebol não, no futebol eu lembro que eu via outras coisas, eu ficava no universo de outras pessoas, de outras intenções. Então não me seduzia ficar muito naquele, eu tinha medo.
P/2 – Você torcia pra que time?
R – Eu torço pro São Paulo (risos).
P/2 – São Paulo? Que década era isso, mais ou menos?
R – Eu acho que comecei a torcer pro São Paulo em 85, por causa de um tio meu, irmão do meu pai, que ele já gostava de futebol e ele tinha um lance que quando ele chegava do trabalho à noite ele me levava num bar sempre lá, pra ficar bebendo, jogando carta. E eu ficava lá, ele comprava refrigerante, eu ficava lá, ele deixava eu ficar jogando bilhar sozinho, ou às vezes ele jogava comigo. E aí então, ele era uma referência. E tinha o lance do futebol que ele falava muito do São Paulo, São Paulo, até que ele me convenceu que era São Paulo (risos).
P/2 – Você chegou a ir no Morumbi?
R – Várias vezes, vou até hoje.
P/2 – Essa época que você está descrevendo é a época do Raí?
R – Sim, é. Exatamente. Peguei uma época boa. Aí o meu tio ia também, mas ele era isso, ele me levava pro bar e pro futebol. E o irmão da minha mãe também jogava futebol de salão. Então ele sempre estava me levando, aí acho que isso sempre me trazia essa memória de bola, futebol, esporte, os amigos e tal. Agora no bairro era já mais complicado, você estava na rua, daí sempre está alerta, sempre está esperto, sempre está esperto pra baixar a cabeça ou entrar dentro da porta de aço.
P/1 – E existia o livro em alguma forma aí?
R – O livro? Eu acho que até então ainda é as revistas e os HQs ainda, demais ainda. Aí eu lembro que minha irmã já estava trazendo as HQs de terror, ela lia o Cripta do Terror, Monstro do Pântano, Mirza. Ela trazia pra casa muito e a gente lia. Eu lembro que eu gostava muito do Flávio Colin, que tinha um traço muito específico de desenho. E eu gostava das histórias dele. Acho que isso que começou a me dar a ideia de ler história, por exemplo, de entender palavra escrita e ficção, acho que foi nesse universo. E no mais o livro em si eu não lembro como é que chega, eu acho que depois já, quando eu já estou fora da escola que eu começo a me interessar em pegar os livros, daí sim eu vou atrás dos livros. Mas ele não chegou de repente, eu vou indo e vou buscando isso.
P/1 – Você então, na escola você fez o segundo grau inteiro.
R – Fiz.
P/1 – E aí, o que aconteceu? Quando você descobriu a poesia ou isso veio mais tarde, como é que foi?
R – Não, nessa época que eu fui pensar em fazer alguma outra coisa ilícita pra poder sobreviver melhor porque aí não tinha...
P/1 – Quando você estava no segundo grau?
R – É. Porque aí não tinha muito o quê, na escola eu não lembro, eu não tinha esse lance de “Ah, vou pra faculdade”. Que faculdade?
P/1 – Não te aparecia isso na cabeca?
R – Não sei nem o que é isso. Eu lembro que o máximo que você pensava, eu nem sabia que os professores tinham faculdade, pra falar a verdade, só sabia que o professor de Educação Física tinha feito Educação Física, eu não tinha ideia que um professor que fazia outra ciência lá tinha faculdade, não era nítido isso. Mas eu comecei a pensar em no máximo fazer Educação Física. Ah não, nada a ver, tal. Mas e aí, você precisa ter grana porque também tem várias coisas, se você não tem alguma coisa material, você não namora, você não é respeitado. Ir pro tráfico não queria. Futebol não estava virando, não tinha sorte, não tinha talento (risos), não tinha desenvolvimento pra isso, comecei a ver outras coisas que também não me agradavam. Porque no futebol você vai indo e indo pra esses outros caminhos de viagem de outros times você vai descobrindo que tem cara que alicia moleque também, sexualmente inclusive, que não é dito, mas você entende, vê e conhece, sabe que rola e isso vai te afastando também mais, você vai ficando um pouco mais... Mas eu com alguns amigos uma vez a gente pensou em como é que a gente fazia pra adulterar a idade deles, principalmente, porque já eram maiores de idade, e tentar, já mais velho ir para algum time. Nesse momento aí meu pai também tinha, no meio do caminho ele acabou sendo preso também porque ele também se envolveu num ilícito anteriormente.
P/1 – Ele fez o quê?
R – Ele se envolveu no tráfico de drogas e ele foi preso num momento. E aí ele foi preso, pegou pena, ficou preso durante três anos na Penitenciária do estado, que hoje é a penitenciária feminina. Então aí, nesse tempo...
P/1 – Ali no Carandiru, então?
R – É, no Carandiru, mas não lá na Casa de Detenção, no complexo atrás. Na época ainda tinha a Casa de Detenção. Ele ficou ali preso, ele tentava me ajudar de lá, eu ia visitar ele, eu lembro que ele tentava me ajudar, ele escrevia carta pros clubes, não sei o quê. Mas além disso eu conheci outras pessoas, não conhecia só pessoas: “Ah, vou lá, escrevo uma carta e vou lá no Clube Nacional”. Eu conhecia gente que fazia documento falso, né?
P/1 – Isso porque você precisava parecer mais velho?
R – Os amigos, mais novos.
P/1 – Você precisava parecer mais novo?
R – É. Eu não, os amigos. Eu estava nesse molho porque começou a conhecer gente e aí você vai indo, né? Eu estava com 18, 17, estava na faixa ainda que dava.
P/1 – E você estava fazendo peneira?
R – Estava. Mas aí num determinado momento, como eu já, por conta de ler bastante eu escrevia, por exemplo, cartas, essas coisas eu escrevia. Então eu conheci uma pessoa lá no bairro que foi através do meu pai, inclusive, que ele falsificava documentos. Falsificava documentos. E aí ele perguntou pra mim se eu conhecia alguém que estava querendo fazer pra jogar futebol porque ele podia até empresariar, não sei o quê, tal. Aí eu me aproximei dessa pessoa e levei alguns amigos juntos. Mas a gente jovem também, a gente acabou caindo num puta lero e no final das contas a gente estava trabalhando pro cara, já fazendo documento falso, indo nos centros de Poupatempo, onde é Poupatempo agora lá na Luz, indo tirar documento falso, e futebol cada vez menos. Aí a gente começa a fazer o que a gente aprendeu a fazer também nesse momento, a gente fala: “Não, então”, já tinha facilidade de entender esse processo de palavra, não sei o quê, documentação, estrutura. Daí a gente combinou e falou assim: “Quer saber, vamos deixar esse maluco de lado e vamos fazer nós e vende”, entende? Então o que me atraiu no início não foi tráfico, foi uma coisa ligada a outra coisa, que era do estelionato mesmo. Mas aí deu errado (risos).
P/1 – O que aconteceu?
R – Deu errado.
P/1 – Me conta a história de quando deu errado.
R – Deu errado porque vendemos umas certidões falsas uma vez, a gente foi vender uma para um vizinho lá próximo e aí ele (risos), ele foi tirar o RG com a certidão falsa, aí ele ficou nervoso, a mesária percebeu e chamou a polícia. E aí a polícia veio, ele estava com uma certidão de Alagoas. A gente tinha um carimbo lá da cidade de Alagoas chamada Murici. E a gente também tinha o carimbo de uma outra cidade, esqueci agora, não sei se era Presidente Juscelino o nome da cidade, que era também de Alagoas. Ele foi pêgo, a gente mais inocente ainda foi atrás dele na delegacia (risos), aí o delegado já sabia, ele já tinha falado, daí o delegado recolheu a gente, deu um surrupio na gente e deixou a gente lá de molho.
P/1 – Você ficou lá quanto tempo?
R – Algumas horas e aí depois eles algemaram eu e o meu amigo e levaram a gente aqui no centro, no RGD, instituto lá que cuida dessas partes dos RGs e tal, e depois a gente foi pro terceiro DP no Centro, lá na Rua Aurora e aí eles comprovaram que esse meu amigo era de maior e eu era de menor, levaram esse meu amigo preso, ficou preso lá durante a noite. E nisso, buscando também as documentações todas, e principalmente por causa da cidade, eles chegaram no cara também que era o que tinha milhões de RG com essa cidade, pegaram esse cara. Só que aí ele pôs um advogado, e aí tirou o meu amigo, tirou ele e eu não cheguei a ser preso porque eu teria que ter ido pro SOS Criança na época, não fui, eles liberaram na madrugada. Só depois a gente foi responder. Fui num julgamento lá do SOS Criança, me lembro disso. E aí nesse momento que eu acho que eu tive um alerta que esse não era o meu caminho, eu falei: “Não dá”, já via o meu pai já, toda semana que ia visitar ele, ele estava lá, sempre com um hematoma na cara, fingindo que está tudo bem, mas com aquele medo. Era uma época que a cadeia, quando você tinha alguma desavença eles arrancavam a cabeça mesmo, toda semana tinha essa história. Ele falava isso muito. Toda vez que eu chegava lá, ele estava lá: “Da hora, mas a cadeia vai virar, cadeira vai virar”, então eu fiquei vendo assim, meu, não dá. Pra ficar nessa não vale a pena ter aquela migalha que os caras acabam tendo, não vale a pena. E aí eu acho que eu fui tentando me despertar pra outras coisas. E aí eu acho que entra esse lance mais dos livros porque os meus amigos também, alguns deles já estavam indo também pra essa prática de andar de skate, de articular com movimento punk. E o movimento punk tem um lance também muito ligado ao conhecimento, aos zines, aos livros e aí eu acho que eu comecei a me aprofundar mais, nesse momento, nessa transição de não querer ir pra esse lado obscuro que não sabia no que ia dar, mas que eu via que muitos amigos não passavam dos 30 nunca. Isso foi uma análise que eu fiz: “Mano, não dá, ninguém fica longevo nisso nunca. Ninguém, ninguém, dificilmente”. E também de não querer ser, sei lá, de simplesmente ter que trabalhar só no mercadinho do bairro que nem eu trabalhei um tempo e não ter muita perspectiva também.
P/1 – E aí?
R – Aí, até que uma vez eu arrisquei um outro trampo, que o meu tio trabalhava em Santo Amaro, irmão do meu pai, ele trabalhava numa empresa que trabalha com telefonia, instalando cabos telefônicos subterrâneos, aéreos. E como eu estava com esse problema com a polícia, lá, esse negócio, então rapidamente tinha que arranjar um emprego porque era importante chegar lá com emprego na hora do julgamento. Daí então ele falou: “Beleza, tal”, eu lembro que ele falou uma coisa meio assim: “Mas lá não é carregar papel higiênico no mercado não, meu” (risos). Eu falei: “Tá bom, vamos lá”. Aí a gente foi e era um trampo que tinha senhores, eu lembro que a maioria deles era de 40 a 50 anos, senhores analfabetos que às vezes trabalhavam das sete da manhã de um dia até às sete da manhã do outro, alcoolizados até o último, movidos a cachaça sempre, quando não de outras coisas pra aguentar o trampo. E eu fui me meter nisso e comecei também, mas eu lembro que um dos senhores lá, ele no processo do trampo teve uma vez que eu errei, eu era ajudante dele e eu errei um negócio, eu tinha que entregar pra ele na escada uma ferramenta e eu errei (risos). Ele pegou, didaticamente jogou na minha cabeça o negócio (risos), mas me falou assim: “Você já ouviu falar em caneta?”, na boa, porque eu já começava a ler livros na hora do intervalo do almoço, ele percebia que eu estava lendo, aí ele falou assim: “Você conhece caneta? Então, procura isso, procura isso que é melhor pra você”. E foi um toque que ele me deu, na verdade o cara dizia: “Na boa, isso daqui não é o seu caminho, você não percebeu ainda? Não tem ninguém aqui da sua idade, não tem ninguém aqui na sua situação”. E aí que eu dei sorte também porque nesse mesmo momento a minha família estava envolvida já com outras coisas. O meu pai mesmo, depois de ter saído da prisão, tal, ele se envolveu com o lance das rádios comunitárias, que também estava tendo muito naquele momento, vários bairros, estava tendo muita rádio comunitária. E o pessoal do bairro montou uma, meu pai e esse meu tio também que eu fui trabalhar com ele se envolveram nisso, e começaram a fazer programas, organizar e tal, tal. E um dos meus amigos um dia chegou pra mim e falou: “Olha, eu estou sabendo que o seu pai e o seu tio estão lá, queria saber se você pode falar pra eles para eu fazer um programa lá, estou interessado e tal”. Eu falei: “Legal”, só que ele pegou e falou assim: “Então, mas eu queria que você fizesse comigo”. Eu falei: “Caramba, fazer com você o programa? Não sei” “Não, vamos, tal”. Eu falei: “Beleza”. A gente conseguiu um horário na rádio e eu fui fazendo o programa com ele. E aí que eu fui percebendo também, fazendo o programa fui percebendo que era mais importante estar melhor preparado, lendo, que eu tinha que falar, então eu falei: “Meu, não dá pra falar qualquer coisa”, e quando você vai falar um tema, ou você chama alguém pra conversar, você tinha que estar melhor preparado. Isso também fui percebendo assim. E você vai encontrando pessoas nesse caminho também que vai te dando outras dicas, outros toques, né? Então eu fui buscando o desenvolvimento nesse meio, cada vez mais. E vendo outras realidades com outros amigos, alguns não viveram mais, outros conseguiram, mas em outros caminhos. Eu me apaixonei por esse lance de rádio, de ler e escrever muito também, comecei a me articular com pessoas que estavam fazendo isso no bairro, que estavam fazendo música, que estavam fazendo rádio também. E aí você vai criando um outro ciclo de convivência dentro da sua própria moradia, da sua própria vila.
P/1 – O que te apaixonou no programa rádio? O que você começou a ler, escrever, onde foi?
R – Esse lance de você estar fazendo uma rádio e de repente um vizinho seu ligar lá e pedir uma música e você conhecer a pessoa e saber que você está tocando a música que o seu vizinho quer. De você entrevistar o seu vizinho porque ele é músico, porque ele canta um rap. E aí quando ele está na rádio ele fala pra mãe dele ao vivo: “Mãe, eu falei pra você que eu ia conseguir” (risos), na rádio que só passava na rua, ali, não tinha uma transmissão tão grande, mas você sentia que as pessoas se sentiam bem e isso me ajudava muito. De de repente colocar umas discussões que eu via que não batia lá, de falar uma programação cultural na cidade. Porque aí eu comecei por já ter facilidade de sair do bairro, eu saía pra cidade, eu ia em outros espaços. Eu já enfrentava as filas lá do Fiesp pra ver teatro, de tempos já.
P/1 – Isso do nada?
R – Ah, porque você está passando pelos espaços e você vê e aí você entende, já sabe o código. Já teatro não é uma palavra do nada, é uma palavra que você já entende, você já viu, de repente, um teatro de rua do movimento anarcopunk, então você sabe o que é teatro. E aí quando você entende que tem um teatro, e que tem uma programação, e que tem um lance que você pode entrar de graça, aí você começa a decifrar. E você decifra outros a partir desse porque chega outros na sua mão também. E na responsabilidade de tentar levar isso pra rádio, achando também que tinha alguma questão com isso, mas, o bairro mesmo você falando ele não tem ideia, porque tem que ser na presença, se não for na presença. E nisso eu pensei, então se tem que ser na presença vamos fazer aqui então, na rua de casa.
P/1 – E o que você foi fazer em respeito a isso?
R – De perceber que quando era menor, uma das coisas que eram bacanas que aconteciam, que meu pai também era envolvido, era o lance das equipes de baile também, que tinha. Tinha muitas equipes de baile e essas equipes de baile faziam os bailes, eles alugavam salão, um salão grande, e faziam os bailes, esses bailes tinham programação toda semana, sempre ia alguém cantar, ou tinha os DJs que iam lá e faziam. E algumas vezes nos domingos eles colocavam umas caixas na rua e faziam o som lá na rua, então isso me deu a primeira referência da rua, de como um cara fazia isso na rua. Só que depois isso foi, por conta até daquela violência que eu contei antes, muita gente morria nos bailes também, muita gente. Quase toda semana tinha assassinato nos bailes, então os bailes foram acabando sendo banidos. Quem organizava desistiu porque ficou criminalizado e também começaram a exigir mais pra que esses bailes acontecessem. E aí não consegue, não tem segurança, não tem alvará, não tem nada, e então vai acabando. Isso na cidade toda acabou, né? E aí então lá no bairro eu vi que do som que tinha das equipes de bar e que ficavam tocando samba, soul, funk, começou a ter também a presença evangélica também, então passou a não ter mais o som do soul, mas passou a ter a pregação, porque talvez a pregação seria a solução pra aquele estado de crimes e violência. E isso me incomodava porque eu não sentia aquilo como algo que era celebrativo como antes, que a gente podia chegar lá do nada, era diferente, não era convidativo, eu não gostava. Eu pensei então: “Pô, a gente tem que ocupar de novo”, aí como eu já estava sendo também parte dessa forma de atuar e tal eu falei: “Então vamos fazer na rua”, e eu estou pirando em falar do pessoal do teatro na Paulista, mas na boa, ninguém vai lá, mesmo que seja de graça, tem que fazer o negócio aqui. E a gente vai procurando pela rádio mesmo as pessoas que estão fazendo, um grupo vem e fala: “Eu faço um rap” “Você conhece mais alguém que faz?” “Tal pessoa faz”, e se organiza no seu bairro, começa a organizar no seu bairro, vai começando a ver como criar formas pra isso, de tentar ver: “Aquele cara que tem a caixa de som, vou conversar com ele” “Ah, eu vou ali na Prefeitura ver se eu consigo alguma coisa”, quase nada sempre (risos), mas você tenta. E aí você tem os grupos. E aí você tem alguém que tem alguma coisa, você junta e começamos a fazer coisas na rua.
P/1 – Qual foi o primeiro evento? Como foi? Que deu algum impacto?
R – Que deu algum impacto? A gente fez um evento, eu me lembro que em 2002 a gente fez um evento que chamava Festival de Cultura Popular. A gente juntou o pessoal do movimento anarcopunk, que eu trocava cartas com eles, já, de ter ido aos eventos, de pegar zines, livros, essas coisas.
P/1 – Dudu Pererê?
R – Não conheço. Eu me lembro do pessoal que eu cruzo ainda, o Johnny, que é ali do Rio Pequeno, tem outras pessoas que eu não vejo mais, Tali.
P/1 – É um pessoal aqui de São Paulo?
R – É, de São Paulo, São Paulo mesmo. O movimento anarcopunk de São Paulo, o MAP que eles chamam. E na época tinha também outra casa, agora não me lembro qual era o nome da casa. Movimento Ambiental... não me lembro. Mas me aproximei desse pessoal e aí também no bairro os grupos de rap e com o pessoal que fazia um som de baile que tinha equipamentos. O pessoal da rádio. Da subprefeitura a gente conseguiu um tablado. A gente organizou esse festival e a ideia era fazer com que fosse uma noite de música, a gente passou pessoas do bairro pra vender comida e o que eles quisessem. Na verdade ele falou: “Meu, se tem alguma coisa pra ocupar, ocupa”, eu lembro que apareceu gente pra vender comida, eu lembro que os indígenas lá, os guaranis, fizeram barraca pra vender artesanatos, também se apresentaram lá. E aí foi um sábado e um domingo fechando a rua. Eu lembro que a gente fez algo que naquela época era difícil, que não terminou com tiroteio, por exemplo, então foi bacana, de ver que o pessoal veio, veio tranquilo, a gente fez até um horário. No outro dia de manhã rolou debates de você chamar pra falar na questão, por exemplo, lá eu moro em frente tem um rio não canalizado, então é um lugar que dá situação complicada de moradia e tal e naquela época estava falando que ia ser desapropriado, até hoje está falando, mas nunca foi. Eu lembro que teve um professor da região que estava mais a par disso, daí ele foi lá e fez um papo com o pessoal. E foi um sábado e um domingo de atividades aberta, na rua, e depois continuava na rádio porque toda semana a gente trazia alguém pra bater um papo, pra tocar um som ao vivo, pra chorar porque a família estava ouvindo na rádio, essas coisas (risos). E aí nesse momento eu comecei a perceber que existia isso nas faculdades, aí comecei a conhecer professores, daí que eles foram me explicar que o professor de História faz História e aí você vai entendendo melhor. Daí que um desses professores, chamado Alex, ele começou a me incentivar pra estudar. Ele também é de movimento anarquista e ele começou a me incentivar: “Por que você não estuda? Por que você não tenta?”, e ele foi me explicando algumas coisas e nessa época já existia também lá perto da minha casa o CEU, que é o Centro Educacional Unificado, então já consegui ir lá e ler livros e ver revistas muito mais assim. E internet também. Daí ele me deu um toque desse lance de vestibular, então eu consegui ver vestibular de cursinho popular, fui estudar dentro da Faculdade de Medicina um cursinho, então foi nesse sentido que fui pra outro desenvolvimento, me desenvolvendo nisso, mas pensando que a ideia era essa, tinha que ir lá no bar e tentar levar a semente também que você me deu aqui (risos) pra lá, entendeu? É nesse sentido.
P/1 – Aí você fez o vestibular?
R – Fiz, fiz.
P/1 – Fez pra quê?
R – Eu fiz pra Ciências Sociais. Eu não sabia o que eu ia fazer, no começo eu falei: “Eu vou fazer”, porque eu estava chegando e não tinha ideia nem do que o vestibular exigia ou o que o cursinho ia me exigir, mas eu lembro que eu cheguei no cursinho e falei: “Nossa, mano, tá difícil”. Eu lembro que eu tinha facilidade com Humanas e redação, agora Exatas estava muito difícil, então eu tinha dificuldade de saber qual era a área que eu podia. E no final do ano eu lembro que o que pegou pra mim, e que era que eu estava envolvido mais, era a palavra cultura, nesse sentido de pensar a cultura só como órgão ligado às artes, por exemplo. E aí eu vi que tinha, a palavra que mais ligava com isso em faculdade era antropologia. E aí eu vi que antropologia fazia parte do curso de Ciências Sociais e aí me interessei nas Ciências Sociais. Eu fazia o quê? Eu trabalhava, na época já tinha trocado de emprego, já tinha saído daquele emprego que eu falei antes, do meu tio. Eu fui pra uma outra área de Telefonia que já era que mexia com computador, de atendente, já era outra coisa. Daí eu entrava lá sete da manhã, saía de lá às três da tarde, subia até a Faculdade de Medicina da USP, ficava lá estudando até às sete, das sete horas até 11 horas eu fazia o cursinho e depois voltava pra casa. No outro dia, cinco e meia de novo e assim ia indo. Eu fiquei fazendo isso durante um ano pra tirar o atraso (risos) do estudo. E nesse meio tempo eu trabalhando também na Telefônica, na época era Telefônica, eu também estava com acesso à internet, tal. Eu não sei se hoje é prática, mas naquela época tinha umas redes de bate papo, eu não sei se hoje tem isso ainda. Então era febre lá onde a gente trabalhava e você conhecia pessoas, tal. E nessa época eu conhecia uma pessoa que morava em Curitiba. E aí a gente um dia se conheceu e por conta de ter conhecido, o nome dela é Luciane, a gente se conheceu e um dia ela me convidou pra ir pra cidade dela, e eu fui até a cidade dela, entendeu? E lá ela me deu outros códigos.
P/1 – Lá em Curitiba?
R – Sim. Ela me deu outros códigos. Ela me mostrou, por exemplo, o prédio da Universidade Federal do Paraná e foi me explicando coisas: “Então, isso aqui, não sei o quê, tal. E é assim, tem uma prova”. E eu: “Ah, tá” (risos). Aí eu arrisquei prestar o vestibular lá e passei no vestibular lá. Nessa época eu estava bem próximo dela e a gente casou e ficou junto, juntamos. Eu morei um pouco antes com ela lá, já, antes do vestibular, depois eu voltei pra cá, daí quando passei ficar lá.
P/1 – Lá você foi fazer Ciências Sociais.
R – Fui. E a minha família aqui, tal, minha mãe e meu pai já não estava mais juntos, separaram mesmo, definitivamente. E aí eu morava com a minha mãe, mas eu fiquei um tempo longe dela.
P/1 – Mas lá você vivia de quê?
R – Lá num primeiro momento eu vivi de seguro desemprego (risos), que foi o que eu tive que fazer foi arriscar total, e depois, num outro momento, eu fiquei como bolsista na faculdade, foi tudo muito calculado: entrar na faculdade, acabou o seguro desemprego, conseguir a bolsa, miséria e depois procurar bicos, trabalhos. E aí eu trabalhei em telemarketing, trabalhei no Museu Oscar Niemeyer, por exemplo, foram os trabalhos que eu mais fiz lá. Então eu fazia isso, trabalhava, estudava e morava num bairro próximo também, Santa Felicidade.
P/1 – E foi uma experiência, o que aconteceu com isso? Você ficou lá um tempo?
R – Eu fiquei lá dois anos. Eu já tinha morado um tempo antes do vestibular, fiquei alguns meses, depois eu fiquei dois anos. Nesse meio tempo a gente se separou lá também, aí eu fui morar numa república com algumas pessoas que eram de vários estados. Voltava pra cá às vezes, me distanciei desse lance da rádio porque eu percebi que eu não ia conseguir dar conta de estudar e fazer isso, e aí eu me afastei. Eu me afastei muito do bairro também, nesse momento, mas sempre refletindo isso, eu achava que uma das coisas que motivava era porque eu ia na subprefeitura, na Prefeitura na época e eu tentava coisas lá e eu não conseguia, e eu sentia que uma das coisas que eles tiravam sarro porque eu não dominava os códigos, de não saber de repente entregar um documento, ou de não entender a estrutura. E aí eu falei assim: “Cara, eu preciso estudar porque estão rindo da minha cara”. Então estudando eu achei que abriu várias portas nesse sentido, de entender mais. O que mais me fascinava era por exemplo entender como eram os debates, como esses professores, é uma preparação que eles têm de ficar fazendo os debates, criar eloquência, argumentação. Aí eu só observei, mas comecei a praticar também. E aí já lendo em outro nível, já muito mais fundo.
P/2 – Você estava lendo o quê?
R – Nessa época muita Sociologia, Antropologia, demais, porque era o que eu estava estudando. E daí você entra e fala: “Eu quero ser o melhor da sala, eu quero tirar dez”. Então eu estava lendo demais, desde “Argonautas do Pacífico Sul”, Durkheim, “O Suicídio”, entender por que as pessoas se suicidam (risos) na Europa onde está tudo tranquilo, essas coisas. Weber. Essas leituras eu estava fazendo de ficar trancado no quarto, acho que foi até por causa de um momento desses que eu me separei, porque eu fiquei insociável, eu achava que eu tinha que correr atrás do que eu não estava conseguindo ter no mesmo nível das pessoas que estavam lá, que já vinham de uma escola que estava num nível diferente, chegavam lá já com outra preparação também. Eu me aprofundei muito nessas leituras e depois num segundo momento me envolvi com movimento estudantil também. Porque aí, logo as pessoas perceberam que eu já tinha facilidade de comunicação, eles percebem rapido, né? Muito rápido. Começaram a perceber, então, começaram a me chamar, tipo: “Então, vai ter tal coisa, você não quer participar?”, e eu: “Quando vou, vou de cabeça, é foda, não estou a fim, estou querendo estudar aqui, preciso terminar e voltar, tenho uma par de coisa pra fazer, não vai, não sei o quê”. Já estava muito interessado em Literatura, eu já lia um pessoal que fazia aqui a Literatura. Na época não tinha muitos saraus, tinha no máximo a Cooperifa e o Binho, mas eu já li os autores, já era amigo do Buzo, principalmente. Eu era amigo dele já, então a gente já se encontrava. Então eu já estava em outro interesse.
P/1 – Mas como se deu esse contato com os saraus, com o Buzo?
R – Porque nesse processo de busca também quando eu estava na rádio, aí eu fui indo, o primeiro que eu lembro foi que meu pai na época, depois dele ter saído da cadeia ele foi trabalhar com material reciclável, meu pai juntava material reciclável e vendia. Então um dia ele chegou com uma revista, Época se não me engano, antiga, e eles já sabendo que eu estava escrevendo, tal, ele me mostrou uma matéria do Ferrez: “Você já viu isso aqui? Que tem um cara no Capão Redondo que escreve, que estourou com livro, tudo e tal?” Eu li aquilo e falei: “Pode crer”. Aí que eu saquei que ele escrevia na Caros Amigos. Eu vi inclusive que era o mesmo cara, eu já li os textos dele lá. Então eu lia os textos dele, eu já li os livros lá também e aí eu descobri que tinha uma galera, não era só ele. E o Buzo, eu não conheci ele porque eu fui atrás dele, o Buzo mandou uma carta pra mim. Porque o Buzo também era dos zines. E como a gente trocava cartas entre os zineiros, eu era zineiro também, já por conta do movimento do anarcopunk. Então o Buzo escrevia cartas pros zineiros, ele era meio febrão nesse negócio. E eu lembro que chegou uma carta dele num determinado momento, era o Alessandro, não tinha negócio de Buzo, era o Alessandro. “Oi, eu sou o Alessandro”. O Alessandro mandou uma carta falando do lançamento do primeiro livro dele, que era o lance do Trem: Baseado em Fatos Reais, se não me engano. Eu falei: “Ah, que dá hora, o cara vai lançar um livro, ele trabalha na zona cerealista”. Eu liguei pra ele no dia: “E aí, Alessandro, recebi, mas não vou poder ir” “Não, dá hora”. Então a gente começou a conversar muito, entendeu? Quando eu conheci ele pessoalmente ele já estava com o livro, estava indo pras cabeças, a gente se encontrava, almoçava, pegava os livros dele. Então eu fazia um seminário na Sociologia e um trecho de um livro de alguém, eu lia um poema, já fazia essa. E no movimento estudantil eu aprendi a entender o que é esse lance da escolinha política (risos), se quer aprender o que é um político no Brasil vai pro movimento estudantil que você vai ver onde eles nascem, por exemplo (risos). Simplesmente assim. É só você olhar lá hoje, eu vou lá no Paraná, volto pra lá às vezes pra fazer algumas atividades, eu encontro lá com o amigo da Sociologia que é candidato a prefeito, que é o candidato a vereador, até o governador, o assessor adjunto de não sei das quantas, tudo gente que estudou comigo, entendeu? Entendi essa máquina indo lá, eu não conseguia compreender só em Pirituba. Então isso vai te chamando, vai te chamando. Você passa da esquina e se você estiver atento dá pra descobrir o mundo, dá pra descobrir, mas tem que tomar cuidado porque a onda é grande também.
P/2 – O que você diria que foi o que mais mudou a sua visão de mundo depois que entrou na faculdade?
R – Na faculdade? Eu acho que foi ter disciplina com leitura e escrita, eu percebi que tinha que ter, não tem como você ser bom numa parada que você quer estudar, divulgar e falar sobre ela se você não tiver disciplina. Não dá pra enganar muito tempo, nem professor universitário engana muito tempo, né? Chega uma hora que você percebe que eles são ruins também, quando eles enganam. Como você percebe que eles são bons. Outra coisa foi entender a estrutura política mesmo, por que o bagulho anda e por que não anda. Não é porque ninguém exige, porque tem uma estruturinha, fechadinha, só alguns, não tem como, não vai mudar nada, os caras não vão abrir porque isso já é reproduzido no movimento estudantil. Eu aprendi também a me relacionar na prática mesmo com diversidades. Que é muito interessante você descobrir isso no movimento anarcopunk, mas tranquilo, na teoria até, em alguns momentos, no zine. Mas e na prática, quando você encontra as pessoas do outro estado, quando você encontra as pessoas que têm outra orientação sexual? Quando você vai viver com mulher que não é sua namorada dentro da mesma casa. Essas coisas de quebrar estruturas que a gente vive nos bairros por conta de ser às vezes conservador mesmo, você vai tentando quebrar, entendeu? Mas você descobre também que o pessoal pratica porque está confortável, é o lugar que eles podem, eles não precisam trabalhar, não precisam estudar, não precisam ter medo de morrer, então dá para experimentar bastante, é por isso.
P/1 – Esse conhecimento com pessoas que eram de outra classe social, na verdade, né?
R – E de outros grupos raciais.
P/1 – De outros grupos raciais.
R – Gênero.
P/1 – E isso te fez pensar assim: “Puxa”, o Brasil além do seu bairro. O que mudou a sua visão de mundo?
R – Acho que fortaleceu a minha identidade, eu passei a criar uma identidade maior com o que eu sou, com o meu bairro, de entender melhor o porquê que o pessoal não vai lá no teatro na Paulista, passei a entender mais na prática mesmo. Então fortaleceu a minha identidade. E eu passei a entender também que eu tinha uma importância, não de ser soberbo, eu nunca achei que era legal as pessoas chegarem, que nem uma vez vieram me entrevistar e falaram assim: “É legal você divulgar que você conseguiu”, falei: “Não, isso aí é zoado porque fica parecendo que eu sou especial”. Na verdade é falar o porquê as pessoas não conseguem, que quase eu não consegui também, é uma exceção, não é porque eu sou especial. É porque está preparado pra poucos realmente conseguir o acesso, isso fortaleceu muito. Pensar o Brasil ajudou porque além desses núcleos eu também lá na faculdade, eu conto isso até para um amigo hoje, que ele está na dúvida de fazer o vestibular, ele falou: “É lá que você pode ir pra outros lugares muito simples, porque tem as saídas, o movimento estudantil, o congresso, então você sai muito pra outros estados”. Eu comecei a ver outros Brasis também, não só com o pessoal de lá. E aí eu acho que isso ajudou para eu poder trabalhar na rua com mais tranquilidade, né? Sem me amedrontar com os choques, com os conflitos, entender que isso é comum e que eu teria que estar sempre aberto pra tomar, porque você tem que sempre estar aberto no aprendizado. Se eu chegasse lá também falando: “Agora eu já fiz, beleza, agora eu sei de tudo”. Vem comigo. Não vem comigo, não. Na real você tem que pensar: “Meu, na minha vila se eu estudo aqui na faculdade em algum momento que tem uma cultura que valoriza os mais velhos, que eu me identifico com ela, então quando eu volto pro meu bairro eu tenho que pensar nisso”, tem isso também. Aí isso foi me ajudando nas minhas práticas, eu fui começando a incorporar isso também.
P/1 – Essa coisa de cor, por exemplo, lá no Paraná. Você sentiu algum choque de as pessoas, lá tem muita gente descendente de alemão, né? Como você se sentiu em algum momento discriminado? Que vivência você tem?
R – Eu percebi que, inclusive eu comecei a perceber que eu já passava em São Paulo e não sabia (risos). Porque em São Paulo vivendo no bairro, num lugar que é majoritariamente negro, você às vezes não se dá conta se está rolando isso, que você não sabe que você mora naquele bairro porque é uma exclusão que também tem a ver com a questão racial. Então esse conflito não é discutido, ele é vivenciado, mas não é discutido. Lá no Paraná já é bem demarcado, ainda mais morando num lugar que é na rua da universidade, no centro do lugar, Santa Felicidade que é o bairro italiano, os bairros são muito marcados etnicamente também, né? Você vai ali é o bairro ucraniano, você vai ali é o italiano, você vai ali é não sei o quê. E na Copa do Mundo o pessoal estoura fogos pra Alemanha, não estoura para o Brasil, às vezes (risos), tem uma coisa bem marcada. E aí então eu percebia que em algumas andanças declaradamente isso era praticado. Eu, por exemplo, saía da universidade e ia para o museu trabalhar, o Museu Oscar Niemeyer você passa lá pelo Bosque do Papa, por um parque lá que é de um bairro, Centro Cívico, é um bairro que de alguma forma está mais estruturado. Isso foi da hora porque depois pra não ficar achando que é esquizofrenia, teve amigos que eu levei lá e a gente passou por lá e aconteceu a mesma coisa. As pessoas cospem no chão mesmo quando te vê. Cospem no chão. É uma forma de dizer, você está andando na mesma via que eu, estou caminhando, você não pode ficar aqui. E eu tinha passado por isso e depois lembro que indo outros amigos, alguns amigos foram pra Curitiba, daqui do bairro, e aí eu lembro que aconteceu. Você vê uma presença muito mais nítida dessas pessoas que se identificam como nazistas ou carecas, vê gente atacando. Moleque adolescente atacando moleque. Tipo, moleque do Hip Hop correndo do moleque careca, que já está com a vestimenta, ele já está numa ideologia, outra está em outra e eles se chocam. Aí o moleque corre lá pra moradia estudantil porque senão os moleques vão pegar ele. A gente vê isso muito. Na universidade já é um negócio dos caras deixar as cartas no café falando de todos os lances dele, aí você tem que ficar atento.
P/1 – Tipo que carta no café?
R – Por exemplo, tem a cantina da faculdade. Aí então lá é o lugar de circulação das ideias também, as pessoas deixam o jornalzinho x, não sei o quê, vira e mexe aparecia um jornal nazista, né? Na boa assim, pra você pegar e saber mesmo. Eu não passei por isso, mas teve amigos meus que foram atacados, de estar andando na rua e os caras tacar aquelas – por sorte foi isso – bala de paintball. São ataques que são acontecendo. Não cheguei a ver ninguém sendo morto, não me lembro disso, como acontece aqui em São Paulo, mas eu lembro que era presente, era até mais comum de ver isso, fazia parte do convívio. E você sente que o pessoal, diferente do meu bairro que as pessoas às vezes têm dificuldade de falar a palavra negro e se identificar com isso, lá não, as pessoas demarcam muito: “Você é negro, né? Você sabe que você é negro”, essas coisas assim. Eles já demarcam muito mais racialmente, não só socialmente, eles têm essa. Porque a identidade dele se firma nisso, então, eles identificam você também.
P/2 – E qual era a sua postura em relação a isso?
R – A minha postura? Eu me fortalecia entre os que eu via que tinha a mesma discussão racializada, por exemplo, então me aproximei dos negros que eram da faculdade, que muitos são amigos meus até hoje. E a gente, então, criava redes de solidariedade, inclusive para discutir questões pra poder se fortalecer, entender. Mas eu também tinha um lance que eu não gostava muito de ficar só nesse núcleo, eu gostava de circular e provocar os choques em outros. Porque eu lembro que eu só consegui ter um amigo gay lá, então tipo, mas se eu ficar só no grupo dos negros, aí ele reclamava: “É, o pessoal lá fala dos negros mas eles não aturam viado”, ele falava pra mim, e fala até hoje. Mas pra mim era da hora andar com ele porque eu achava que tinha a ver com isso também, eu tinha que falar: “Mano, como é que eu vou falar da minha parada se eu não estou junto com outras também na hora de dar troca e tal?”. Tem dificuldade. E quando você faz analogia você consegue entender que você vai entender uma olhando a outra. Eu não vou entender a questão do feminismo porque muitas eu não vou passar, aliás eu não vou passar por essas questões mas eu posso entender quando eu fizer uma analogia com o racial, e aí pelo menos entender pra não multiplicar essas práticas de machismo e tal, é uma forma.
P/1 – E você terminou a faculdade?
R – Não.
P/1 – O que aconteceu?
R – Aconteceu que por conta de eu voltar muito pra cá também, já no momento do movimento estudantil, eu vi que o movimento estudantil não tinha nada a ver com o que eu imaginava, não era uma coisa que eu achava que estava buscando de fato o que a bandeira diz, aí então me desiludi e isso me afastou da faculdade porque eu também percebi que a faculdade, na que eu estava, na Ciências Sociais era tudo muito repetitivo e eu vi no final que é mais doutrinamento do que de fato o conhecimento pra você se emancipar. Eu falei: “Meu, eu não vou ficar num lugar que daqui a pouco vou estar carregando guarda-chuva pro orientador”, sabe? Isso aí pra mim não vira. Comecei a ver as pessoas que chegavam nisso e eu falei não dá. Comecei a conflitar com isso, também o movimento estudantil não me seduziu mais, então eu comecei a me seduzir a voltar e aí eu voltava, qualquer oportunidade que eu tinha, ônibus que vai passar pra ir pra São Paulo. “Vou, quero ir!’. Comecei a voltar, voltar, voltar e aí você vai começando a reviver o seu bairro. E nesse momento eu me aproximei de um pessoal que era de um grupo de rap na época e foi aí que eu conheci minha segunda esposa, a Raquel, que é hoje a parceira do Sarau, e a gente se conheceu aqui numa dessas voltar. Então aí eu ainda estava lá na universidade, tal, ela foi comigo pra Curitiba, viveu um tempo lá também, a gente viveu lá na república, tudo. Mas aí eu logo me desliguei. E o ponto fundamental desse desligamento, um ponto chave foi porque num dia num conflito eu estava em casa e eu não consegui voltar, que era na época que estava tendo o maio de 2006, que estava tendo as matanças muito fortes aqui, que o pessoal chamou de ataques do PCC, mas que na verdade nos bairros estava sendo um negócio louco, escurecia e ninguém podia sair, você não sabia quem matava, quem morria. E numa dessas eu fiquei em casa, não voltei. Minha mãe ficou um pouco preocupada: “Você vai pra rodoviária agora pegar ônibus? Deixa quieto”, eu peguei e não voltei. Mas aí a professora de um grupo de estudo que eu participava, de uma iniciação científica, me cobrou que eu não fui na reunião, que era para eu ter voltado e falou assim: “Ah, então escreve uma análise sobre isso”. Eu falei pra ela: “Na boa, eu não vou fazer essa Sociologia. É uma coisa séria, eu vivi isso, sou morador, eu não vou falar disso. Não vou mesmo”. E aí eu tinha uma história, uma prosa, umas cem páginas que eu tinha escrito de memórias, eu falei pra ela: “Lê isso daqui, então, faz o grupo estudar isso daqui. A gente não estuda literatura indiana pra saber como é a realidade de Bombaim, não sei o quê? Então vamos ler agora de Pirituba, vamos ver?”. E eu mandei pro grupo de estudo no e-mail, mas aí chegou no dia do encontro ela me descascou, né? Ela falou: “Você não está entendendo, você acha que é assim, que você põe o que você quiser? E se você não percebeu ainda, a universidade é pra formação de elite, se você não está a fim, então você se retira”. E aí eu peguei e me retirei porque eu me exaltei. Ela falou: “Vocês vêm muito armado” “Armado do quê?” Então a gente se conflitou e aí acho que ela conseguiu o que ela queria que era me mandar embora (risos). Nesse contexto, eu já estava também nesse pensamento de voltar, eu achei que também eu estava na hora de voltar mais próximo da minha mãe. Estava me relacionando com uma pessoa que era daqui. Estava com muita vontade de viver essa parte da efervescência cultural de São Paulo mesmo, das periferias, então eu estava cada vez menos lá e mais aqui, daí voltei.
P/1 – E aqui você começou a escrever, organizar sarau? O que começou?
R – Sim. A gente voltou primeiro pra rádio. No começo eu não estava muito motivado já voltar assim, mas aí o primo da Raquel, o Ulisses, do rap também, ele falou: “Vamos voltar, vamos fazer alguma coisa”, daí eu falei: “Vamos voltar com a rádio então”. Aí a gente voltou com o programa na rádio, só que ali logo ele desistiu, daí ficou eu e a Raquel. Só que a Raquel também é muito ligada à música, só que ela também já escreve, tal, já escrevia na época. E ela também já tinha essa ligação com literatura, então a gente começou a percorrer esses lances dos saraus mesmo. Eu já sabia de alguns, a gente: “Vamos ali, vamos ali, vamos vendo”, e a gente achou que era por bem fazer alguma coisa não só na rádio, mas na prática de novo, de rua de novo. Vamos de novo pra rua? Aí no exemplo do Sarau da Cooperifa, de ver que era simples assim. É grandioso, mas é simples, na grandiosidade que é simples. Por causa de ser no bairro e de você ver que não tem necessidades mirabolantes pra ser feito a não ser de você ter disciplina pra fazer todas as vezes que tem que ter, algumas coisas que a gente percebeu. E a gente falou: “Pô, vamos fazer um lá, replicar um lá”. E a gente frequentava também já um outro espaço com o Sérgio Vaz na época, que era o Sarau do Rap, que aí era uma coisa também que a gente tinha uma ligação diferente, a Cooperifa é muito diferente porque é muita gente, né? Mas o sarau do rap era uma coisa de 20 pessoas, então tinha um contato diferente já com o Vaz também. E aí a gente apostou em fazer em Pirituba um sarau, então a gente deixou a rádio como locutor, continuou como parceiro, mas montou o sarau em si. E aí o meu tio, o santista, que é o mesmo tio que me indicou esse trabalho que eu fiz na Telefonia, ele também já na rádio, como coordenador e tal, ele é o dono do bar que recebe o sarau desde então.
P/1 – Qual o nome do sarau?
R – Bar do Santista.
P/1 – O sarau é Bar do Santista?
R – É. E o sarau chama Sarau Elo da Corrente. E aí então a gente passa a fazer o sarau porque nesse momento eu já estou com livro, eu tinha publicado já um livro de contos.
P/2 – Calma, de onde vem o nome Elo da Corrente?
R – Vem de um trecho de um verso do rap, que é do grupo que a Raquel cantava, do primo dela e de um outro menino, o Júnior, que o nome do grupo é Alerta ao Sistema. Então tinha um refrão de uma música que dizia assim: “Cada elo da corrente/ guerreira é valioso/ sou linha de frente na defesa do meu povo”, era um refrão que tinha. Aí a gente pegou esse trecho e achou que cabia de dizer Elo da Corrente. Foi nesse nome.
P/2 – Você falou que você já tinha um livro de contos publicado.
R – Tinha.
P/2 – Como se deu a publicação do livro?
R – Esse livro foi tirado das narrativas que eu tinha apresentado lá no grupo de estudo, eu resolvi não fazer uma prosa longa e falei vou recortar em contos. Chegando aqui em São Paulo eu comecei a identificar como é que eu podia publicar e aí já também no lance da internet descobri que tinha formas de publicação independentes, de edição de autor e que tinha algumas empresas que faziam. A primeira que caiu comigo foi uma lá do Rio de Janeiro, chamada Câmara de Jovens Escritores. E aí eu vi que era isso, você mandava o trabalho, eles faziam toda a parte que necessitava de editoração e você recebia os exemplares pagando um valor. E eu dei uma sorte (risos), que na época eu estava procurando emprego e não tinha o dinheiro pra pagar a publicação, mas aí eu arranjei um emprego lá em Santo Amaro pra trabalhar novamente no telemarketing porque eu estava voltando e estava precisando de uma grana, tal e num primeiro momento eu estava trabalhando com material reciclável também, mas não estava virando muito. E eu fiz uma entrevista numa empresa e passei. Eu não sei o que aconteceu, eu não fui trabalhar nessa empresa, mas eles me depositaram um mês de salário sem eu trabalhar, eu não sei o que aconteceu (risos), você entende? E quando eu fui ver: “Puta, está um dinheiro aqui”. E eu peguei esse dinheiro e tome nos livros (risos). E foi isso. Eu fiz alguns exemplares na época, 200 exemplares, e a gente fez um lançamento no bairro pros familiares, pros amigos. E foi só isso, eu nunca mais fiz esse livro, ele só tem isso girando por aí. E foi uma coisa pra iniciar o sarau também, daí então o sarau passa a ter um start daí.
P/2 – E você lançou o livro no sarau?
R – Sim.
P/2 – Você lembra do primeiro sarau, como foi?
R – Sim, que foi o lançamento desse livro. Primeiro conversamos com o Santista: “Santista, estamos a fim de fazer o sarau, não sei o quê” “Ah, não sei o quê, mas vamos lá”. Aquela ideia, vamos lá que já aconteceu outras vezes de você falar e a gente foi, então vamos lá. Aí a gente fez o quê? Organizou um convite básico e foi entregando pras pessoas, deixando no bar, chamando amigos e pensando: “Aquele ali faz música, o cara ali recita rap, poesia, tal”, e chamar os parentes também. A gente combinou uma noite e fizemos um, é muito parecido com o que acontece agora, é um microfone e as pessoas vão lá, se inscrevem e falam o texto e eu falei trechos do livro, eu declamei um conto, li um conto. Não vendi nenhum livro, eu dei os livros, quem estava lá levou o livro e pronto (risos). Foi assim.
P/1 – Esse livro que está aqui é esse livro?
R – Não, não, esse daqui é outro. Esse daí não existe mais, nem eu tenho. Esse daqui é outro, esse daqui é de agora, do ano passado. E o Bar do Santista é esse aqui. É esse espaço aí, que é um botequinho, não cabe mais do que 15 pessoas.
P/1 – E isso aqui é um DVD que mostra as pessoas falando.
R – É, é um DVD que foi feito quando a gente tinha cinco anos, a gente está fazendo oito agora, e que mostra as pessoas.
P/1 – Oito anos tem esse ano.
R – Oito anos.
P/1 – E na verdade você escreve conto.
R – Eu sou mais da prosa, mas eu tenho livro de poesia também, mas as duas publicações, eu tenho três publicações, duas são de prosa e uma de poesia. E aí então esse daí são de crônicas e hoje em dia eu estou escrevendo muito mais prosa também.
P/1 – Hoje você está mais fazendo prosa.
R – Mais fazendo prosa. Porque aí escrevo também, quinzenalmente eu escrevo no Brasil de Fato, crônicas, então daí tem essa regularidade que eu preciso estar sempre publicando crônicas inéditas, então, a minha prioridade é escrever crônica, entendeu?
P/2 – Você poderia falar algum verso seu, ou algum conto, já que...
R – Sim. Acho que eu tenho um que é bacana, que é um que sempre magnetiza lá no Bar do Santista, que é assim: “Por aí muito senhor/ Esses chamados de dotô/ Dizem que nossa poesia/ É limitada, um horrô/ Pois digo que esses cabra/ Que nunca pegou na enxada/ Dizem que sabe de tudo/ Mas num sabem é de nada/ Esses “donos da verdade”/ Num conhece a realidade/ Vivida pelos caboclo/ No sertão e na cidade/ Só ficam em gabinete/ Entre quatro paredes/ Enquanto nóis clama justiça/ E eles fingem que num entende/ Diz que nóis num sabe lê/ Quanto menos iscrevê/ E que o nosso linguajar/ É difícil compreendê/ Pois deixe que eles insista/ Em fazer grossa vista/ Pois nóis se fortalece/ Aqui ou no bar do Santista/ Pois é ali que tá nossa gente/ Povo lindo e inteligente/ Pelo amor e pela arte/ Mais um Elo da Corrente/ Gente que sabe o que quer/ Homem, criança e muié/ Que não deixa esses dotô/ Nos tratar como qualqué/ E essa gente de muito dinhêro/ Empresário, político e banquêro/ Que concentra toda a riqueza/ Lavando no estrangêro/ Esses tão iludido/ Pensam está bem protegido/ Mas quando abrirem o zóio/ O bolo vai está dividido/ Pois nesse grande momento/ Expandimos conhecimento/ Lendo os nossos próprios livros/ Que hoje tamô escreveno/ E esses mesmos livro/ Que um dia nos foi proibido/ Hoje nos dá o poder/ De sermos reconhecido/ Muda a real de figura/ Fazendo literatura/ Eleva nossa auto-estima/ Renasce nossa cultura/ Valoriza nossa história/ Resgata nossa memória/ Ignorada na iscola/ Hoje conduz a vitória/ Salve nossas correria/ Lutando no dia a dia/ Muita paz e liberdade/ Pra todas periferia/ Sentimento que mina/ Pros herói e pras heróina/ Que mantêm a resistência/ Feito Solano e Carolina/ E os meus verso fica por aqui/ Mas num vamô desisti/ Pois a luta continua/ Mesmo até depois do fim”. É um verso, poesia que a gente fala lá e que acho que também dá um retrato meio da minha história e do sarau também.
P/2 – Pra quem não sabe o que é um sarau, como você explicaria o que é um sarau.
R – Hoje, pensando 2015, né? Que a palavra sarau é de miliano. Mas o sarau hoje, na periferia principalmente, que é onde tem um berço louco, é um encontro de pessoas que estão interessadas em livre expressão, em se reunir pra celebrar a palavra. E essas pessoas se encontram lá pra vários motivos: pra falar poesia, pra cantar música, pra dançar, pra falar das coisas que acontecem no cotidiano, sejam elas tristes ou não, pra denunciar. É um lugar também que a gente pratica ouvir e ser ouvido. E eu acredito que essa é uma função fundamental do sarau, seja ele acontecendo em bar ou não, mas é o lance de ouvir e ser ouvido e você ter a livre expressão, não ter texto, ninguém vai lá pra perguntar qual é o texto que você vai ler, você tem a liberdade de chegar lá e falar qual seja, sem que tenha uma mediação anterior do texto, entendeu? É nesse sentido acho que é a contribuição que eu mais admiro do sarau (risos).
P/1 – Você acha que quem frequenta sarau que vocês organizam hoje?
R – Hoje? Moradores na maioria.
P/1 – Moradores jovens, moradores mais velhos?
R – A maioria são mais velhos.
P/1 – Ah, é?
R – Sim.
P/1 – Tipo, por exemplo, sua mãe vai no sarau?
R – Minha mãe já foi, ela não gosta. Minha mãe não gosta muito de sair. Ela gosta do sarau, do que a gente faz, mas ela não gosta de ficar lá no bar e tal. O meu tio é o dono do bar, é o familiar que mais frequenta. Meu pai às vezes também aparece por lá. Mas são moradores do bairro que fazem poesia.
P/1 – É?
R – Sim.
P/1 – Você acha que, por exemplo, você mesmo falou que na época que você começou a fazer a rádio não tinha, as pessoas não iam no teatro na Paulista, mas também não tinha nada lá, que isso foi um jeito que você queria trazer coisas pra rua.
R – Sim.
P/1 – Então, você acha que isso mudou e que as pessoas começaram a ir, aceitou? O que mudou? O que começou o pessoal a frequentar isso?
R – Sim. Eu acho que fisicamente o bairro não mudou quase nada, a gente também não está nessa, não é a nossa função essa, a gente está numa parte que é promover versação de poesia, então a gente dá conta disso. E aí tem algumas mudanças sim, que eu acho interessante. A das pessoas que já frequentam e estão há anos frequentando, elas mudam muito. Elas passam a transitar mais na cidade mesmo, porque começam a ir sozinhas em outros saraus; elas começam a projetar trabalho, publicação, né? Elas saem de um processo que o sarau normalmente quando a pessoa chega a primeira vez ela começa lendo de cabeça baixa, com o livro na cara. E ao longo que ela vai participando do sarau ela vai buscando a postura que, sabe, a gente vai também ficando menos corcunda (risos). Isso é nítido, eu vi, em todas as pessoas que vão lá eu vi o início de cada uma delas, a não ser os que já vinham com alguma outra preparação ou que já vêm de outros saraus, o que começaram ali frequentando ali, mesmo que já escreviam, saíam daqui pra ir pra casa, entende? Isso é uma mudança que a gente fica feliz. E o outro do interno é a gente aprender também a convivência dessas diferenças de idade, de entre estar com homens e mulheres na mesma participação do sarau em si, não naquela situação do bar que o homem está e a mulher não está, entende? Lá a gente criou um movimento que todo mundo pode ter o mesmo pé de participação e a mesma chance de voz, isso eu percebi que está mais tranquilo.
P/2 – Até porque a sua mulher organiza contigo, né?
R – Ela é ex-mulher, não é mais a minha mulher. A gente também teve um processo de separação ao longo desse processo, mas eu e a Raquel, a gente organiza junto, então também tem esse ponto, ela sempre foi uma pessoa que é linha de frente da organização então isso facilita pra poder por outra discussão também, pra dar outra cara pro sarau, que não seja só de homens ali fazendo. E a outra coisa também é que a gente aprendeu a não ter uma, não sei se eu posso falar, não regras, ideologia fixa e que a gente propague ela entre as pessoas que chegam. Na verdade a gente experimenta a versação e livre expressão. Então, os debates acontecem, os temas vêm às vezes, às vezes não, mas eu percebi que até quem não concorda com a opinião que eu possa falar lá mesmo sendo organizador não se sente mal, não vai lá e não volta mais. Se a gente entra numa discussão, por exemplo, que a gente acha que a polícia é violenta no bairro, tem um senhor que frequenta e que ele é pai de polícia, e ele acha que é de boa participar porque ele sabe que se ele falar a respeito disso ele vai ser respeitado. Pode ser contestado, mas vai ser respeitado. Isso eu acho que está rolando há tempos já e a gente está mais tranquilo pra conviver entre as diferentes ideias assim, entende? De não ser assim: “Se você pensar diferente então não cola aqui porque aqui todo mundo pensa assim", é fazer monoideologia, essas coisas. A outra coisa é que virou referência no bairro, entende? Então o bairro respeita o sarau porque entendeu que o sarau traz algo positivo pro bairro, a gente já ganhou o mundo, a gente ganhou o mundo com o sarau. Então isso as pessoas percebem por que vem pessoas de outros lugares, até de outros países lá, por que passa na televisão. As pessoas acabam entendendo que tem alguma importância e respeitam, se não participam respeitam, porque a maioria não participa.
P/1 – A maioria dos moradores não participa.
R – Dos moradores.
P/1 – Como é o sarau pros jovens?
R – Os jovens no Sarau Elo da Corrente eu vejo que são poucos que participam.
P/1 – Ah, é?
R – São poucos. Também depende do que a gente vai falar jovem, será que eu sou jovem? (risos) Eu sou um dos participantes, mas eu digo assim, os jovens você está falando talvez o adolescente?
P/1 – Os outros jovens além de você. Você é jovem e aí você vê.
R – Tem gente da minha faixa etária.
P/1 – Da sua faixa etária que você estudou.
P/2 – Da minha?
R – Da sua, ainda aparece um pessoal, mas eu digo adolescente de escola não, mas eu creio que é por alguns motivos. Primeiro porque o bar é muito pequeno, então ele não é aconchegante mesmo, vai lá normalmente quem vai lá pra recitar. Lá não é um bar que você chega pra colar e comer a melhor gastronomia de São Paulo e tomar, não tem isso, numa boa, mas é um bar de ficar de pé e ouvir poesia. Então não é atrativo nesse sentido. E outra coisa é porque ainda o pessoal não, tem gente que não acha legal colar num boteco à noite. Tem algumas pessoas que acham importante o sarau, mas já me disseram que não têm coragem de chegar lá e ver o recital, vê de longe, ouve de casa, do outro lado da rua, pela caixa que está reverberando. Mas de alguma forma a gente dialoga com esses jovens porque tem coisas que batem em escola, professores, a gente vai fazer público em outros lugares que não só no bar, né? Então tem um diálogo. Os livros impressos, que também foi parte do trabalho, a gente criou um selo editorial, então esse selo publica livros e eles chegam em outros lugares, né? Então você vai na biblioteca do CEU Vila Atlântica, até esses tempos atrás, faz um tempo que eu não vou, tinha lá uma estante Autores do Bairro, então tem vários autores que são do sarau, que publicaram seus livros a partir dali. E aí as professoras fazem trabalhos com os jovens que estão na escola e eles também leem os livros. E em alguns momentos a gente faz ações que não são sarau, faz ações pra crianças, festas pras crianças, ou alguma ação na rua, que aí então não fica restrito só a quem pode ir no bar e naquele horário pra participar do sarau. E aí a gente dialoga desse jeito com esses públicos, entendeu? E eu percebo também que esse respeito e essa referência ajuda o bairro também a entender o que a gente fala, o que a gente diz, porque quando assiste a uma matéria sobre a gente, ou quando lê um livro, de alguma forma está também se comunicando com a gente de algum modo, não no sarau, mas lendo o que a gente escreve, ouvindo o que a gente fala na TV já é alguma coisa, isso é uma forma de diálogo também. Em muitos momentos eu saquei que hoje em dia é respeitado, é uma iniciativa respeitada e quem participa do sarau também é visto de forma respeitada no bairro, positivamente, não porque imprimiu no medo, ou porque é soberbo, é porque as pessoas acham que faz algo que é bacana, contribui.
P/2 – E o bairro continua violento?
R – Sim, violentado eu diria, né? Eu acho que esse lance do violento é até, se eu falei isso eu falei errado, é violentado, porque mesmo se você pensar que as pessoas se matam, mas elas se matam porque tem uma condição posta ali, inclusive até de chegar um monte de arma de fogo, de você entender que se tem a infraestrutura que hoje está muita gente viciada em drogas no espaço, na rua lá e tal, é porque aquilo não surge lá, né? Não é lá que está a refinaria do lance.
P/1 – Lá tem muito crack?
R – Muito. Demais. É o que mais tem agora.
P/1 – E os seus amigos da escola, tua turma, onde é que estão? Eles vão no sarau? O que eles são?
R – No sarau? No sarau às vezes, alguns. Não tem nenhum amigo meu da época da escola que frequenta o sarau. Alguns já passaram por ele, alguns ficaram um tempo, poucos. Alguns estão em outros caminhos, que estão com família ou não. Outros morreram assassinados, principalmente os que morreram. Alguns morrem até hoje, do nada você sai na rua hoje tal pessoa se foi. Mas a maioria eu até entendi que a maioria hoje dos que eram da minha turma eu ainda vejo viva, eu vejo e encontro o brilho no olho deles. E eu temia isso porque eu via os contemporâneos dos mais velhos, de uma geração um pouco mais velha, da geração de repente da minha irmã, que eu via que já tem essa dificuldade, de reconstruir memória com os vivos. A minha geração acho que ela conseguiu sobreviver mais.
P/2 – Passou dos 30.
R – Passou dos 30, exatamente. Passou dos 30, está acontecendo mais. Mas ainda é violentado porque o espaço ainda é isso, mora de frente pro córrego, ainda bem atendimento ruim nos serviços básicos.
P/1 – As pessoas trabalham?
R – A maioria.
P/1 – Em quê?
R – Fora do bairro muitos fazem serviços subalternos, limpeza, atendimento, cobradores, açougueiros, pedreiros, coisas desse tipo. Ou os que são mais independentes têm um boteco. Ou um cabeleireiro. Ou viraram pastores de igreja também. Também tem uma galera que foi sobreviver por isso, né?
P/1 – Tem muitos dos seus amigos que ficaram evangélicos?
R – Vários. Vários. Que inclusive me convidam até hoje para eu ir, pra ir na igreja e tal. E muitos foram por medo de morrer. Tinham medo, ficaram apavorados e resolveram ir pra um lugar que eles entendem que é seguro. E estão lá até hoje. Hoje eu não sinto medo neles, mas eu sinto que eles se estabeleceram lá, né?
P/2 – E os terreiros?
R – Os terreiros cada vez menos presentes. Eu lembro que quando eu era menor, nesse momento de pequeno, que meu pai também estava ali na organização de um você ouvia todos os dias alguém tocando um atabaque e tinha um terreiro. Hoje é bem menos. Porque aí também tem esse fluxo, muito dessas pessoas não são mais da mesma crença, a maioria vira evangélicos praticantes também. Porque nesse processo eu me lembro muito bem quando começou a chegar mais forte esse discurso do neopentecostal dizendo que era demoníaco mesmo, chegou forte isso. E não chegou como hoje que em alguns espaços reclamam que chegam violentando, quebrando lá os altares e tal, mas chegou pelos praticantes, os praticantes começaram a trazer essa mensagem que vinha de dentro das igrejas: “Isso não presta, isso é demoníaco, isso é só pro mau”, e tal tal tal. Daí você vai ficando até com vergonha de ser da prática, porque ninguém está concordando, então.
P/1 – Seu pai, por exemplo, como ele?
R – Ele continua, até hoje ele pratica.
P/1 – Ele não virou evangélico?
R – Não, ele pratica até hoje, ele ainda atende na casa dele. Ele hoje está em outro terreiro, mas ele tem feito as práticas desde sempre.
P/1 – Sua mãe virou evangélica?
R – Não, mas ela frequenta igreja evangélica.
P/1 – E ela não fica incomodada que ele pratica?
R – Às vezes.
P/1 – Eles brigam por isso?
R – Não. Mas ela me fala (risos). Porque eles são vizinhos, né?
P/1 – Ah, eles não são mais casados.
R – Não são mais, separados.
P/1 – Algum deles se recasou?
R – Ele sim, ele vive com uma companheira. Minha mãe depois disso teve uma relação só, mas ela não continuou então ela vive só, vive comigo e com a minha filha.
P/1 – Você mora lá com ela?
R – Moro. Numa outra casa, mas no mesmo espaço, no mesmo quintal.
P/1 – E aí, você com essa coisa você sente que lá é o seu lugar, você pretende ficar lá? Qual é a sua visão do seu espaço na cidade?
R – Eu gosto de lá porque lá é o espaço que eu nasci, hoje eu moro lá desde sempre, apesar de ter mudado em um momento. Hoje eu crio a minha filha lá também, que no meio desse processo do sarau, inclusive, eu e a Raquel tivemos uma filha também.
P/1 – E ela mora contigo?
R – E ela mora comigo.
P/1 – Quem cria ela é a sua mãe?
R – Sou eu, a minha mãe e a mãe dela (risos), somos nós três. Mas em alguns momentos as pessoas, todo o meio que a gente vive, né?
P/2 – Você disse que tem uma onda com o seu nome, né?
R – É, o lance do nome é porque o nome da minha filha é Yakini e o meu nome de trabalho também é Michel Yakini. Mas o nome é porque eu usava Michel da Silva, até no meu primeiro livro está. Mas é que quando ela nasceu eu resolvi adotar o nome dela, ela me rebatizou, uma intenção até mesmo de pensar, é ideológico também, porque eu pensando na minha identidade, eu entendi que quando a gente chega aqui no Brasil, nesse momento de escravidão e tal, um dos processos que aconteceu foi que retiraram os nossos nomes. Então eu batizei, eu e a Raquel batiza ela com um nome africano, qe é Yakini, que significa verdade, e aí ela me batiza, entendeu? Ela faz o contrário comigo, ela me rebatiza. E aí então eu passo a ter um nome que eu me identifico e que também é uma homenagem a ela, é isso. Então eu gosto desse lugar, eu continuo atuando lá, entende, e vejo essa importância. Se eu for ficar lá pra sempre eu não sei porque pode mudar, as coisas podem mudar, também não tenho isso: “Nossa, eu só posso ficar no bairro”. Não, posso mudar também. Mas hoje eu moro lá e por morar lá eu acredito que eu tenho que contribuir praquele bairro. Uma das minhas funções como morador eu acredito que não é só ir lá, dormir, passar na rua e comprar no mercado, mas é também movimentar a energia do lugar que eu moro, né? Então eu penso nisso, nesse sentido eu falo: “Então vamos fazer alguma coisa”, assim como outra pessoa não faz nada, o outro faz, e assim vai indo, cada um faz do seu jeito.
P/2 – E a sua forma é o sarau.
R – A minha forma é o sarau, principalmente, além de outras.
P/2 – Você poderia dizer um pouco pra gente como é fazer o sarau antes de apoio de política pública e depois? Se o seu teve apoio de política pública e tal.
R – Teve. Quando a gente começou a fazer o sarau já existia alguns apoios, mas a gente no primeiro ano não teve apoio de política público porque começando, fazendo um trabalho. Por referência de outros coletivos, de outros saraus a gente viu uma possibilidade também, então no segundo ano a gente já conseguiu uma política pública pra publicar livros, principalmente. A gente fez um projeto pra publicar obras dos frequentadores do sarau e uma antologia comemorando um ano de encontro. Foi bom porque a gente trouxe outro acesso pro bairro, que é de você gestar dinheiro que normalmente não tem, a gente nunca está gestando um dinheiro pra poder fazer melhorias, sempre tem que esperar, o poder público, a gestão pública vir e tentar fazer algo, mas nunca rola também. A gente entendeu que foi importante porque fortaleceu a iniciativa, criou um registro, uma antologia, por exemplo, é um registro bacana. A gente percebeu que não era importante ficar só nisso também, de ficar dependendo da política pública como financiamento porque esse não era o nosso fim, né, a gente não começou pra ficar pegando política pública, dinheiro. A gente começou pra organizar um encontro. Então hoje a gente faz essa mescla, tem ano que a gente busca esse projeto, tem ano que não. Esse ano, por exemplo, a gente decidiu não vamos nos inscrever em nenhum edital porque a gente só vai girar o sarau, encontrar as pessoas e a gente faz assim. Mas sempre quando acontece dá possibilidades maiores. No ano passado mesmo a gente conseguiu fechar a rua de novo, mas numa estrutura fora do comum, colocamos palco profissional, artistas de grande nome, a melhor estrutura possível com ambulância, banheiro químico, coisa que nunca ninguém viu lá, entendeu? Se a pessoa não consegue ir num show da Virada Cultural porque ela não sai do bairro, mas ela teve uma lá do mesmo nível, do mesmo nível, porque a gente conseguiu através de um dinheiro público, senão também não conseguiria. E dificilmente a gestão pública, seja lá qual for, ia colocar algum evento daquele nível naquela rua, que não é uma rua de interesse para criar um evento daquele nível. Então por isso que é importante também, né, dialogar com esse acesso.
P/2 – Você poderia me dizer um pouco como funciona as redes de sarau? Por exemplo, que influência tem os outros saraus no seu sarau e o seu sarau nos outros saraus?
R – Eu acredito que no início quando a gente startou os encontros a influência foi que deram a referência, o exemplo de como fazer, de que era possível e a gente confiou pra fazer. E naquele primeiro momento, acho que nos primeiros três anos, a gente se preocupou e fez sistematicamente a visita do que acontecia de sarau em qualquer lugar da cidade a gente foi, pra visitar e fortalecer mais de uma vez, e também tentar propor a troca de visita. Não de chegar e ficar cobrando: “Você nunca foi lá no meu”, mas de ir lá e automaticamente ser uma pergunta, qual é o dia, porque se eu fortaleço aqui você por ir lá e fortalecer também. Porque o início é difícil, o bairro estranha, não é tão simples como agora, né? Agora está respeitado, mas também já teve dificuldades. No início as pessoas têm dificuldade de entender o que é fazer um sarau num bar, parar o convívio do bar pra poesia, fazer silêncio. Ou de tocar instrumentos que são instrumentos que também são usados na religião, atabaque, por exemplo, e as pessoas encararem com simplicidade. Demorou um tempo, mas quando as pessoas vinham de outro bairro, e a gente saber que esse feito era causado quando a gente ia em outro também, aí parece que cai naquele ditado do santo de fora, que aí o santo de fora é o que faz milagre, ele valida você. Se você ver o seu vizinho, ah, não vale nada isso daqui. “Mas você veio da Zona Sul, cara? Nossa! Por que você está aqui? Então tem alguma coisa boa aqui”, aí o cara sente que tem a ver. Isso foi mudando. Então a gente trocou muito. Depois, ao longo dos anos, a gente foi pensando que também, por conta até de ampliar as atividades lá a gente encontrou até menos tempo pra poder circular, porque também a demanda de lá aumentou. E os nossos trabalhos também, a gente projetou trabalho pessoal, então isso vai criando outros acessos, outras coisas. Hoje a gente não está tão nessa troca de intercâmbio, mas a gente está sempre se falando, sempre sabendo o que está rolando, sempre recebendo essas pessoas em algumas ocasiões, principalmente lançamento de livros de outras pessoas dos saraus, e também indo em outros saraus nesses momentos. E esporadicamente indo nos outros. O que influencia nos outros eu não sei de fato, aí teria que perguntar pros outros mesmo. Eu sei que muita gente aponta como referência, eu vejo que dificilmente se você falar hoje de sarau literatura em São Paulo difícil não citar o Elo da Corrente ou as pessoas do Elo da Corrente. É isso que eu percebo. Agora eu não sei se no planejamento, a não ser por exemplo do Sarau da Brasa que é um sarau mais próximo, na Brasilândia, que foi criado um ano depois e eles declaradamente falam que tem uma força de influência muito grande da gente, mas a gente também se influenciou muito deles, porque a gente também era jovem naquele momento de sarau, era um ano depois deles só. Então a gente se alimentou muito.
P/2 – E de conteúdo, você nota? Como é o conteúdo do sarau? De livros lidos pelos públicos, declamados?
R – No Elo da Corrente?
P/2 – É.
R – No Elo da Corrente tem uma predominância de textos que são ligados à chamada literatura negra, por exemplo. Diversos que puxam pro cordel também. É um pessoal que está mais ligado a esses temas, ou a essa estética, é o que predomina. Mas vem de tudo. É que a gente também puxa mais essa linha, né? A gente sempre liga o sarau com uma identidade nordestina, negra, pra não ficar parecendo que a periferia é um lugar que surgiu do nada e que agora é legal. A gente chegou pra mostrar origens dela também, que tem a ver com as origens da nossa família. A gente se olhou e falou: “Quais são as nossas origens?”, então as nossas origens têm a ver com a história da periferia, ela surge por conta que era o local que restou pra essas famílias colarem-se, é nesse sentido. Tranquilo?
P/1 – Eu queria te perguntar, você tem um sonho?
R – Sonho? (risos).
P/1 – É.
R – Vários deles já foram conquistados, os que estão por vir, sei lá, estou esperando até, eu não fico pensando nos sonhos, mas eu fico esperando coisas diferentes aparecerem, maiores. Mas eu quero falar dos que já aconteceram, que acho que esses são mais bacanas. Eu sinto que o sonho maior foi o de conseguir ter força pra constribuir no bairro até hoje sem fraquejar, sabe, sem desistir dessa prática, que o Elo da Corrente é um sonho, um sonho contínuo. E não desistir dele, muitas vezes ter dificuldades e às vezes até olhar e falar: “Nossa, não”, mas sempre ter encontrado força em algum momento pra continuar com ele é um sonho realizado, é um sonho realizado. Os outros são de conquistar espaço com o trabalho também, então eu consegui atingir outros lugares e outros mundos por conta desse trabalho também, de ir para outros países.
P/1 – Com seus livros?
R – Com os livros e com o sarau, isso também, eu sempre acreditei que esse trabalho podia me levar a isso. Porque eu olhava e falava, nossa, a faculdade era uma possibilidade, mas e agora, e o trabalho na comunidade? Será que a comunidade pode me levar pro mundo também? Levou, está levando. Isso está vivo. Então são sonhos que eu estou vivendo. Agora os que estão por vir é de repente (risos), da minha filha ter um bairro mais bacana pra ela viver, dela não estar daqui a 30 anos falando das mesmas coisas que eu, para ela poder estar falando de outras coisas, de não estar reproduzindo ainda os mesmos problemas e as mesmas... eu tenho esse sonho. Quando eu olho pra ela eu olho e falo: “Putz, eu queria que a Yakini pudesse crescer aqui e já ter outras preocupações, mas não as mesmas, que algumas pudessem acabar, que elas pudessem diminuir”, é isso. Uma delas é ela crescer e saber o que é uma faculdade, não esperar ter 20 e tantos anos pra saber o que é faculdade. Dela poder escolher o que ela quer fazer e não se ver como uma menina que vai pra escola e todo mundo já desconfia que daqui a pouco ela vai estar grávida, então nem liga pra educação dela também. Essas coisas assim.
P/1 – A Yakini está com quantos anos?
R – Cinco. Vai fazer seis agora.
P/1 – Mas você acha que isso vai estar melhorando ou piorando com a coisa da droga?
R – No seio da família, sim, eu já sinto que ela está bem mais amparada. O desenvolvimento que ela tem hoje eu não tive. Ela pede para eu ler história pra ela todo dia, já nem eu estou mais insistindo com isso, ela pede, entendeu? Ela já tem uma proximidade com esse lance de ler e escrever que eu não tinha. Então isso eu já sei que desenvolve muito mais assim. Ela já frequenta espaços que eu nunca frequentei, espaços culturais. Ela conhece pessoas que eu nunca conheci, pessoas que hoje são importantes referências em várias coisas que fazem, educadores, artistas, homens e mulheres grandiosos. Ela já tem contato com pessoas que, homens que namoram homens, mulheres que namoram mulheres, e ela já está começando a ver diferente, com mais tranquilidade, já está num processo. Isso eu acho ótimo, eu já sei que vai fazer a maior diferença pra ela na frente, eu não sei o que vai acontecer, mas eu acho que ela já está num repertório diferente. Então eu dou conta desse seio, mas do bairro é difícil. Do bairro é difícil porque pouca coisa muda, passou 30 anos eu estou lá com 33 anos, às vezes eu ainda vejo algumas pessoas falando a mesma coisa que 30 anos atrás sobre alguns temas, porque são educados basicamente por TV e a TV não mudou discurso nenhum ainda (risos) dessas pessoas, tem isso assim. Mas no seio, sim. A minha mãe já entende mais o que eu faço, já não acha que é porralouquice.
P/1 – Ela achava que era porralouquice?
R – Ela pensava que não entendia o porquê você está fazendo: “Por que você está preocupado em fazer coisa na rua? O povo não quer saber de nada.” Sabe essas coisas que às vezes você fica pensando? Mas hoje ela sente que tem a ver, tem uma caminhada, virou uma profissão também, então é diferente.
P/1 – E essa é a sua profissão atual, é disso que você vive?
R – Direta e indiretamente, porque eu trabalho no Ministério da Cultura, por exemplo, então esse trabalho só se desenvolveu por causa dessas correrias, eu fui convidado a trabalhar no Ministério da Cultura por isso. Eu também trabalho como educador, então eu faço cursos e palestras, e vendo os livros, e é assim que eu me viro, né?
P/2 – Você pode falar um pouco de como é vender livro?
R – Vender livro (risos). Tem o lado da hora de vender livro que é de você vender na presença, não é aquelas da vitrine, de você não saber quem comprou seu livro, você conversar com a pessoa, entregar na mão, tal, isso é ótimo. Mas eu sinto falta também de não ter melhor distribuição, do seu livro não poder chegar em outro estado, em outro país porque você não tem o acesso da grande editora, isso pra mim é complicado também. Então eu queria praticar as duas coisas, mas essa outra a gente quase não tem acesso. Não é só por falta, tem gente que diz que é por falta de qualidade, mas eu sei que não é, já sei que não é, mas tem a ver com o perfil que a grande editora busca mesmo pra publicação. Então tem esses dois lados, há o lado bacana, que é o que eu mais gosto, que é de estar junto, tipo sábado mesmo eu vou lá, um amigo me escreveu falando: “Ó, é o seguinte, eu levei seu livro lá que fala sobre futebol, então tem dez encomendas aqui num time de futebol de várzea”, daí ele me convidou pra jogar e já vender dez livros lá. Você tem coisa mais da hora? (risos) Eu já vou levar a chuteirinha, vou jogar uma bola com eles e ainda vou vender dez livros (risos) de encomenda! Olha que coisa da hora! O que tem a ver com futebol, livro? Eu fiquei super feliz, fiquei super feliz. Só que ao mesmo tempo é isso, você tem que batalhar pra chegar em outros lugares também, porque eu quero ser lido aqui e quero ser lido na China, quero ser lido em qualquer lugar, entendeu? Não quero ser lido só no meu bairro. E aí também quero buscar para escrever algo que dê para ser lido aqui e ser lido na China (risos), é nesse sentido.
P/2 – Quem são suas referências literárias?
R – Literárias? Tem várias. Mas depende de cada projeto também. Tem autores que eu leio sempre, mas depende de cada projeto. Nesse livro, por exemplo, do futebol, eu entrei num mergulho em autores como Armando Nogueira, Eduardo Galeano, Mário Filho, Nelson Rodrigues, porque escrevem sobre futebol. Plínio Marcos. Eu escrevi e mergulhei muito neles. No trabalho de poesia, por exemplo, isso sempre está nos livros também, você lendo os livros você vai ver as referências lá, mas no trabalho de poesia, por exemplo, eu estava lendo muito Manuel Bandeira, eu estava lendo muito Solano, Solano Trindade. Eu estava lendo muito Corsino Fortes, que é um poeta de Cabo Verde. Ondjaki, que é um angolano. Agora eu estou desenvolvendo uma prosa longa, então aí eu persigo muito Paulina Chiziane, aí eu persigo muito Tony Morrison, são os textos que eu... E gosto também de ser autores que não têm nada a ver comigo, mas que escrevem bem, mas que eu não me identifico com o texto no sentido dos temas mesmo, que eu não vejo só tema, eu vou buscar a estética deles. Agora por exemplo no lance de escrever crônicas, o autor que eu mais estou lendo é o Antonio Prata, porque eu acho que ele tem uma estética louca pra escrever. Os temas dele eu não sei, ele escreve sobre o menino que nos anos 70 já tinha telefone em casa, já tinha empregada, essas coisas. Isso não me interessa, o que me interessa é a estética, ele resolve bem os textos dele, em uma página e meia. E eu preciso disto, então estou dialogando com os textos dele. Eu gosto de ler o Antonio Prata nesse sentido. Plínio Marcos, João Antonio demais também, são autores que eu gosto de ler, gosto de discutir. Tem vários, o Machado que é foda também, você tem que ler sempre. É isso. E os africanos de linda portuguesa também Pepetela é um que eu gosto demais. Porque estudei na USP, depois fui fazer Letras na USP e estudei muito os africanos de língua portuguesa, aí conheci uns prosadores muito bons. Luandino Vieira. O próprio Mia Couto, o Ungulani, que são moçambicanos. São essas as referências.
P/2 – A gente já está meio fechando, mas eu queria perguntar qual foi o sarau mais emocionante que você já foi?
R – (risos) Que eu já fui? Do Elo da Corrente, todos os que acontecem ele é o mais emocionante, o próximo tenho certeza que vai ser o mais emocionante, e o anterior foi o mais emocionante. Dificilmente eu vou... agora tem alguns momentos que você destaca. Eu destaco, por exemplo, quando a gente fez um ano de atividade foi muito bacana porque a gente fechou a rua de gente, mas não porque tinha uma festa pra fechar a rua, mas porque não tinha mais como por gente naquela rua (risos). E era uma comemoração de um ano, uma antologia, foi marcante. Teve um momento bacana também que movimentou muita gente em torno do sarau no bairro e fora dele, que foi também quando teve a ida lá do Gog, que é um rapper de Brasília também, então ele fez questão de lançar o livro lá e foi bacana essa noite também. São dois momentos. O momento inicial quando eu lancei o livro nem se fala (risos) porque esse momento foi o que deu o pontapé e eu fiquei emocionado. Tem pessoas, familiares meus, que só foram nesse sarau e não foram em mais, então eu lembro disso, tenho fotos com carinho. Agora os outros saraus, nossa! É difícil eu não ir num sarau e não sair de alma lavada (risos), quando você vai parece que sempre tem alguma coisa que deixa você melhor no final, você sai leve, né? Sempre assim. Mesmo às vezes sendo pesadas as discussões, mas você sai de lá, nossa, fortalecido, você fala: “Meu, hoje foi bem louco”. Seja porque foi de êxtase ou seja porque a gente discutiu pesado um tema que é difícil discutir ou essas coisas.
P/2 – Rola um debate sobre temas também?
R – Várias vezes rola. Em alguns rolam, em outros não, mas muitas vezes rolam.
P/2 – E sobre o quê? Tipo raça, gênero.
R – Sim, raça, gênero, violência, economia, política. Você vai no Binho e ouve até sobre saúde agora (risos). Depende do sarau, né? Alguns tem um foco, outros tem outro. Alguns promovem debates também ao longo, ou durante, ou fora. É isso.
P/2 – E se você fosse pedir algo à Poesia hoje, o que você pediria?
R – Pedir algo à Poesia?
P/2 – Pedir assim, entidade da Poesia que...
R – Ah sim, pra ela nunca deixar de estar do meu lado (risos), me olhando. Para ela nunca deixar de falar comigo. Eu peço isso diariamente pra Poesia, pra ela sempre falar comigo, sempre estar do eu lado, sempre soprar (risos).
P/1 – Michel, pra gente terminar, você contou a sua história desde que você era pequeno e até agora, isso te fez pensar aí alguma coisa diferente, olhando a sua história de vida? Te fez alguma reflexão?
R – Várias, né? (risos) A de que tem, eu estava contando um pouco antes a de que a gente escolhe, escolhe o que a gente quer contar de fato, tem história que a gente não quer tocar e nem resvala nelas, outras a gente resvala e não aprofunda, isso significa que é porque tem coisas que a gente não tem tanta relevância, a gente vive intensamente, mas nem tudo é relevante (risos). Sempre quando acontece esse processo, não agora, a primeira vez que foi um lance tão longo, tal, mas me faz ver que minha vida é algo positivo na maioria dos acontecimentos. E às vezes em meio aos escombros, mas, de boa, eu já consegui sorrir nos escombros, sem às vezes as pessoas entenderem, mas vale é vale também, dá pra sorrir no escombro. Se o escombro não tivesse caído sobre mim eu teria ficado debaixo dele por iniciativa própria, porque eu teria medo de ficar sem sorrir e aí você procura um pra jogar em cima de você, então eu senti que eu estou conseguindo também sorrir pelos escombros e muitas vezes olhar ele com tristeza, mas sem deixar de estar de pé, sabe, de cabeça erguida. Eu quando conto a minha história eu sinto isso, que eu estou conseguindo estar de cabeça erguida, isso pra mim é importante, eu já não estou corcunda, já vale, porque é condicionado a ficar sempre assim, posição de submissão e não olhar no olho das pessoas, a gente sempre tem essa questão. Então confirmou isso (risos). É isso.
P/1 – Obrigada.
R – Obrigado vocês.
FINAL DA ENTREVISTA
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