Projeto Kombiblioteca
Depoimento de Ayrton Felix Olinto de Souza (Zinho Trindade)
Entrevistado por Jonas Worcman e José Santos
São Paulo, 16/04/2015
Realização Museu da Pessoa
KOM_HV004_Ayrton Felix Olinto de Souza (Zinho Trindade)
Transcrito por Karina Medici Barrella
MW Transcrições
P/1 – Uma boa tarde, Zinho. Queria começar a entrevista perguntando o seu nome completo, data e local de nascimento.
R – Meu nome completo é Ayrton Felix Olinto de Souza, no RG (risos). Quando eu nasci, tendo um problema de família e minha mãe falou que não ia colocar o Trindade no meu nome (risos). Aí eu tenho dois registros, um com Ayrton Felix Olinto de Souza, que é o que está no RG e na certidão que eu fui achar depois, antes quando eu fui registrado, está Ayrton Felix Olinto Trindade de Souza (risos). Dezoito de maio de 1973.
P/1 – E você nasceu onde?
R – Embu das Artes.
P/1 – E quem te deu o apelido?
R – Minha mãe. Um avô meu se chamava Ayrton, pai da minha mãe, e o meu bisavô, que na verdade era casado com a minha bisavó, que não era meu bisavô de sangue, se chamava Felix. Em homenagem a eles meu nome ficou Ayrton Felix. E aí era Ayrtonzinho, Felizinho, eu sei que ficou só Zinho assim, pronto (risos).
P/1 – E qual o nome dos seus pais e que atividade que eles fazem ou faziam?
R – O meu pai se chama Vitor Israel Trindade de Souza, o nome artístico dele é Vitor da Trindade, e ele é músico. A minha mãe se chama Mari Pereira Olinto, dona Mari como eu costumo chamar, e ela é dona de casa.
P/1 – E dos seus avós? Você conheceu seus avós?
R – Eu conheci minha avó paterna, está aí até hoje, minha avó materna também. O meu avô materno eu conheci, mas tive pouco contato. E o meu avô paterno não, mas o meu pai também conheceu muito pouco. O nome do meu avô paterno era Jorge de Souza, meu pai teve pouco contato com ele e ele era percurssionista e bailarino. E o avô que eu cresci chamando de avô na verdade é um dos oito maridos da minha avó, o último, que se chamava Aurino Bonfim e era artista plástico, então, ele que eu conheci como avô. Ele faleceu já tem um tempinho, uns oito anos.
P/1 – Ele era casado com qual avó?
R – Com a minha avó paterna, dona Raquel Trindade de Souza, dona Raquel. E por parte de mãe era dona Eva e o seu Ayrton, só que eu não tive muito contato com eles porque a minha mãe é gaúcha, o meu pai é carioca, eles se encontraram no Embu no final dos anos 70 e acabaram casando e minha mãe não ia muito pro sul, eu convivi mais com a família do meu pai, no caso, até hoje tenho muito pouco contato com a família da minha mãe.
P/1 – E como é o seu convívio com a dona Raquel?
R – Pô, é muito bom. Minha avó, eu trabalho com a minha avó, eu vivo com a minha avó, eu vou na casa dela roubar o almoço (risos). Dona Raquel é uma figura espetacular. E o convívio com ela é de muito aprendizado, aprendi muita coisa do que eu sei de cultura popular, de poesia, tudo assim, foi por conta da minha família. A minha avó é uma guerreira que aprendeu tudo com meus bisavós, tataravós. A minha avó, na verdade, aprendeu com os avós dela tudo o que ela sabe. O meu tataravô se chamava Manuel Abílio Pompílio Trindade, que é o pai de Solano Trindade. E a minha tataravó se chamava Emerenciana. A minha bisavó que casou com meu bisavô Solano se chamava Margarida da Trindade, que eu cheguei a conhecê-la, inclusive ela fazia aniversário junto comigo, no dia 18 de maio também. Ela faleceu no final dos anos 90.
P/2 – Você pode dizer quem é o Solano Trindade?
R – Solano Trindade foi pintor, teatrólogo e foi conhecido também como “poeta do povo”, foi um dos maiores poetas negros que o Brasil já teve e tem uma poesia muito viva. Foi um grande agitador cultural, foi uma grande figura. Solano Trindade, 1908-1974.
P/2 – Como isso repercutiu na sua vida, essa trajetória dele?
R – Quando eu era criança eu não tinha muita noção porque você é criança, você só sabe que seu bisavô escrevia livro (risos), era a única coisa que eu sabia. Pra mim isso também era uma coisa muito normal. E que tinha um teatro com o nome dele. Uma vez na escola uma professora até falou pra mim: “Você é bisneto do Solano Trindade, vamos ler uma poesia do seu bisavô na escola”. Eu fiquei meio assim, pra mim não era nada demais na infância. Depois, quando eu fui ficando mais velho, lendo as poesias, trabalhando mais, fui dar mais importância para o trabalho do Solano. Quando você é criança... eu cresci meio num teatro, então, era tudo normal.
P/1 – Zinho, conta um pouquinho pra quem não conhece da sua avó, a trajetória dela, o que ela faz.
R – A minha avó, dona Raquel Trindade, nasceu em 1936, no dia 10 de agosto, em Pernambuco. De Pernambuco viveu um tempo no Rio de Janeiro, aprendeu sobre a nossa cultura popular, maracatu, coco, jongo com o meu bisavô. Trabalha com dança há anos, é coreógrafa, também artista plástica, assina os quadros dela Raquel Trindade, a Kambinda. É uma pintora primitiva, como ela gosta de falar. Já escreveu alguns livros, um livro sobre a história do Embu, outro sobre os orixás, foi professora da Unicamp. E ela foi professora da Unicamp com notório saber ainda.
P/1 – Que legal!
R – É. E dona Raquel tem um grupo de teatro, ela montou esse grupo – quem na verdade montou esse grupo foi o meu bisavô junto com a minha bisavó e o sociólogo Edison Carneiro, não lembro a data agora, mas anos 40, se chamava Teatro Popular Brasileiro, que a ideia era trabalhar com o povo, né? O Solano Trindade tinha uma frase que era “Pesquisar na fonte de origem e devolver ao povo na forma de arte”. Ele montou esse grupo popular com trabalhadores, trabalhando esculturas do Brasil, tinha gente de todo tipo, tinha, sei lá, médico, advogado, lixeiro, batuqueiro, todo mundo fazia parte do grupo. Era um grupo de 30 negros, eles viajaram o Brasil inteiro, fizeram Europa, Checoslováquia, a antiga União Soviética. E depois quando meu bisavô faleceu, em 74, em 75 em homenagem a ele a minha avó montou o Teatro Popular Solano Trindade, que está fazendo 40 anos agora. Ela começou com esse trabalho lá no Embu das Artes, que a minha avó veio Recife, Rio de Janeiro, viveu um tempo no Rio, depois veio pra São Paulo e já foi morar no Embu com meu avô, porque na verdade o grupo foi inteiro, vieram fazer um espetáculo em São Paulo, foram conhecer a cidade do Embu a convite do mestre Assis, e aí chegando lá se encantou pela cidade e acabou todo mundo ficando lá, um grupo de 30 artista lá.
P/1 – É mesmo?
R – É.
P/1 – Foi assim, apaixonaram e?
R – Foi (risos). Foi engraçado porque tinha uns artistas na época no Embu. Tinha o Sakai, o Cássio M'Boy e o Assis. O Assis era mineiro, tinha ido pro Embu e aí não lembro quem falou pro Assis conhecer o trabalho de Solano, já que ele fazia algumas esculturas, ele era um escultor, artista plástico também, então falou: “Vai conhecer o Solano Trindade que ele tem uma temática negra, você vai se aproximar mais as suas esculturas do negro e tal, você é um escultor negro”. Ele sabia que o Solano ia se apresentar em São Paulo, era aniversário de São Paulo, ele foi lá, conversou com o Solano, tal, convidou pra conhecer o Embu. E o Solano foi, onde ele ia ele levava a galera junto, né? E aí que começou também o movimento artístico no Embu. Embu antes se chamava só Embu, depois que ficou conhecido como Embu das Artes.
P/1 – Ah, é?
R – É. Porque aí com esses 30 artistas, eles começaram a fazer várias festas e divulgar o trabalho, começaram a expor seus trabalhos, que tinha a Feira da República aqui, então eles falaram: “Vamos fazer aqui, colocar nossos trabalhos na rua”. Isso nos anos 60. E começou cada vez ir mais artista também, a República estava meio lotada também. Tinha muita gente que estava vindo do resto da América, tinha gente vindo da Argentina, do Chile, do Uruguai, tinha a ditadura, então a galera meio que vinha pra cá e vinha trabalhar com arte, acabou indo muita gente para o Embu e começa o movimento artístico no Embu. Começou com o Solano, mestre Assis, Sakai, Cássio M’Boy, Wanderley Ciuffi, Potiguá. E todos esses artistas começaram com seus trabalhos lá e a minha família ficou lá também. A minha avó, em 75, começou esse trabalho com o Teatro Popular Solano Trindade e que tem até hoje lá. A gente tem o teatro lá onde a gente trabalha com as culturas populares, tem as oficinas, o grupo se apresenta também em vários locais de São Paulo, Brasil afora, sei lá, onde for a gente se apresenta. A gente tem oficina, tem cursos, teatro. Já não é também mais um barracão como era antigamente, é um teatro mais sofisticado, um prédio mais bonito e tal. E eu trabalho lá também, ja dei oficina, já ajudei muito no teatro, ajudo na parte de canto, nos espetáculos junto com a minha avó, porque a minha avó já está cansadinha pra cantar, então eu seguro o canto nos espetáculos e faço parte da diretoria do teatro também, sou vice-presidente hoje do Teatro Popular Solano Trindade, a minha avó que é a presidente e eu estou ali acatando as ordens dela (risos).
P/2 – Na frente do teatro tem um terreiro também, não tem?
R – Não, não, ali é a casa da minha avó, é só a casa, tem a casa dela, é do lado, na verdade. Essa história do teatro é muito engraçada porque quando a minha avó decidiu montar o teatro, o primeiro prefeito lá do Embu, ou o segundo, não sei, estava bem no comecinho, ele doou o terreno pro teatro, uma concessão na verdade, não falou: “Tô, é de vocês”, durante 50 anos o terreno é do Teatro Popular Solano Trindade, depois tem que renovar de novo, falta só dez pra renovar. E aí ele deu o terreno e o material pra construir tudo. Só que algum vereador na época, não sei, o cara roubou o dinheiro. Ele roubou o dinheiro e sobrou só pra telha. Então eles compraram todas as telhas e a minha avó construiu um prédio de pau a pique. Era bem grande mesmo a estrutura, mas era de pau a pique. E ali que o pessoal ensaiava, ensaiou até... cara, o barracão acho que caiu em 97, eu acho, 96, 97. A gente derrubou na verdade, estava caindo já. Mas eu passei a infância brincando naquele barracão ali, em festas folclóricas que tinha na época. Minha avó fazia sempre as festas lá, eu corria lá no meio, brincava lá e tudo o mais ali no meio do teatro. Aí em 90 e pouco caiu e em 2000 o Assis, ele era Secretário de Cultura, ou Turismo, eu não lembro, só que ele que fez a ponte com o governo pra construir o primeiro prédio. Que novamente alguém passou a mão na grana e fizeram, era uma construção rústica e fizeram tipo uma caixa de fósforo, uma coisa bem diferente do que era. O teatro várias vezes caiu a parede, já sofreu muita coisa esse teatro, né? E em 2010 a gente sofreu uma nova reforma, agora que a gente fez ele parecido, que a gente que pediu, desenhando e tal, que foi um outro apoio com o governo e a prefeitura e o teatro, porque o teatro não tem a ver com a Prefeitura, apesar da Prefeitura apoiar o teatro tem toda uma diretoria e tal. E em 2010 foi reinaugurado o teatro novo e está aí, estamos lá.
P/1 – Vamos falar da sua infância no Embu. Qual é a sua lembrança mais antiga de infância?
R – Cara, eu tenho umas lembranças que é impressionante (risos). Eu tenho várias, várias lembranças. Eu nasci no Embu no dia 18, já não foi tão fácil nascer porque eu nasci de oito meses, então pra nascer eu já dei trabalho (risos). Eu nasci com oito meses, fiquei um tempão na incubadora, acho que três, quatro meses, por aí, internado, ainda formando o pulmão direito, tal, mas nasci, estamos aí (risos). E às oito e meia da noite do dia 18 de maio de 83. Eu tenho a lembrança, falou lembrança de infância, eu me lembro o dia que meu irmão nasceu, que eu fui visitar ele no hospital. Consigo lembrar a roupa que eu estava usando (risos).
P/1 – É mesmo?
R – É. Usava uma sandália de couro antiga, que eu acho que nem tem mais, uma sandalinha de bebê, um shortinho e uma camisetinha. O meu irmão é um ano e pouquinho mais novo que eu, então eu consigo lembrar, eu tenho essa imagem. Tenho imagens, flashes, da casa em que a gente morava.
P/1 – Descreve um pouquinho essa casa.
R – Pô, a casa que a gente morava em Itapecerica, que era do lado do Embu. Que essa casa que minha mãe mora até hoje, essa casa foi comprada pro Solano Trindade porque ele estava muito doente no final dos anos 60 e juntou Elis Regina, Roberto Carlos, acho que o Jorge Ben também, eles fizeram um show, a grana do show ia ser doada pro Solano pra comprar uma casa pra ele lá no Embu. Só que aí eu acho que o empresário roubou o dinheiro, não sei.
P/1 – Tem sempre alguém...
R – Ficou só um pouco da grana, mas também o Embu estava muito caro também, com esse pouquinho não dá, então comprou a casa em Itapecerica, que era mais barato. A minha mãe mora nessa casa até hoje, a casa eu lembro que quando eu era pequeno ela era uma casa velha. Eu lembro que ela era bem velha e ela não tinha forro, ela tinha uma varanda, o muro era bem baixo, era um muro de um metro, assim, e a casa tinha dois quartos, sala, cozinha e banheiro. Como ela era bem velha chovia bastante dentro da casa, tinha bastante goteira.
P/1 – Vocês são dois irmãos?
R – Dois irmãos. Na verdade éramos, agora tem mais. Do mesmo pai e da mesma mãe é só eu e meu irmão, mas é um atrás do outro. Só que a minha mãe teve mais uma filha de um outro casamento, que é a Lara, e o meu pai teve mais quatro, quatro meninas. Quatro ou três, por aí. Maria, Júlia e Olímpia. É, são três, três meninas, cada uma de um casamento, cada uma é com uma esposa. Vem eu, meu irmão – eu sou o mais velho, aí a Olímpia. A Olímpia é de um rolo que o meu pai teve, ele foi descobrir que era pai dela, sei lá, cinco, seis anos atrás, que ele descobriu que era pai da Olímpia, descobriu pelo finado Orkut (risos). Essa minha irmã, a mãe meio que abandonou, deixou num orfanato e sumiu. Por causa de umas comunidades de família no Orkut ela achou uma irmã dela que contou quem era a mãe, que aí descobriu quem era o pai. O meu pai hoje em dia já está tudo certo, já registrou, mas pra ele foi uma surpresa muito grande descobrir que tinha mais uma filha por aí (risos).
P/1 – Então você passa a infância em Itapecerica?
R – Não, em Embu, porque é do lado, a distância acho que não dá nem cinco quilômetros de Embu para Itapecerica. Minha mãe mora no primeiro bairro de Itapecerica. Eu lembro que pra ir pra escola era a rua de cima, então o prezinho... o legal é que como era do bairro eu cheguei no prezinho e já conhecia uns dez moleques, já tinha uma ganguezinha no prezinho, porque já tinha uns três da minha rua, dois da rua de trás, que era tudo amiguinho ali. Eu fiquei nessa escola em Itapecerica, eu lembro que a privada dela era igual essas de Exército, que é no chão.
P/1 – Que você agacha.
R – É. E eu lembro também que quando eu cheguei no prezinho a professora falou: “Você sabe como escrever seu nome?”, eu: “Sei” “Escreve aí”, eu escrevi Zinho (risos). Eu não sabia escrever Ayrton, mas eu cheguei no prezinho sabendo escrever Zinho. Eu lembro da dona Maria dessa escola, que era uma senhora que vendia doce, tinha aqueles doces antigos, um armário de madeira com vidro que os doces ficavam dentro, doces que nem existem mais. Doce de banana com uma casquinha tipo de sorvete, uma tampinha vermelha em cima. Tinha uma professora, a professora do prezinho a gente chamava ela de professora Helena e ela era muito legal, às vezes quando a gente aprontava ela falava: “De costas pra parede” (risos), ia pro canto e ficava olhando lá pra parede, no armário. Eu fui várias vezes para esse cantinho, pensar na vida. Eu estudei nessa escola até a segunda série. Na segunda série eu queria morar com meu pai, meu pai e minha mãe já estavam separados, então eu pedi pra ela para morar com meu pai. Ela cansou de tanto eu ficar: “Quero morar com meu pai, quero morar com meu pai”, e fui morar com meu pai, no Embu já. Meu pai morava no Embu, numa casa no meio do mato. Eu vivi nessa casa até os 13, 14 anos, depois eu me mudei.
P/1 – E dentro ainda das memórias de infância, de que você brincava com seus amigos?
R – A gente brincava de muita coisa. Ali em Itapecerica eu era mais molequinho, então era bonequinho, pega-pega. Mas a minha mãe não deixava eu ir muito pra rua, ela deixava os meninos vir brincar em casa, mas não deixava a gente ir pra rua, ela tinha medo. Ali no bairro a gente saía pouco, ela não deixava eu ir no campo jogar bola, não deixava um monte de coisa, minha mãe era meio noia com esse negócio não pode ir pra rua. “Ah, esses moleques são muito...”, porque tinha muito moleque na rua, era uma rua que era cheia de criança, então a minha mãe não deixava eu e meu irmão brincar muito na rua com a molecada. Em compensação, quando eu ia pra casa da minha avó a rua também era cheia de moleque lá, então quando a gente ia pra minha avó a gente ficava lá. Eu brinquei mais na rua onde a minha avó mora do que na própria rua que eu vivia na época, tanto que eu vivi nessa rua até os sete anos, depois com sete eu já mudei pro Embu, então dos sete pra frente que eu fui brincar mais na rua da minha avó. Porque como eu morava no meio do mato, tinha um vizinho aqui e o outro vizinho estava a quase um quilômetro (risos), então eu ia pra casa da minha avó e adorava, pegava a bike, ia por dentro, pelo meio do mato até a casa da minha avó e passava o dia lá na rua brincando. Aí lá os moleques, nossa, a gente tem até um grupo no Whatsapp que os caras todo dia ficam lembrando brincadeira de quando a gente era criança.
P/1 – Tipo o quê?
R – Cara, a gente tinha as brincadeiras fantásticas. A gente tinha pula sela, pega-pega, esconde-esconde, polícia e ladrão. Só que era tudo muito... corrida de barquinho, essa é uma das coisas porque na rua em que a minha avó mora tem um rio e esse riozinho é um corregozinho, então a gente fazia os barquinhos de papel, colocava lá em cima e ia apostando corrida, o barquinho que chegava primeiro lá embaixo. Tinha as equipes e tudo o mais, então era bem legal essa corrida de barquinho. E tinha os barquinhos reservas, você só podia trocar o barquinho reserva quando o seu ficasse preso ou afundasse (risos), você tinha que colocar o seu barquinho no mesmo lugar que o outro parou. A gente jogava taco, rouba bandeira. Cara, a gente brincava acho que de tudo, futebol, porque tem uma quadra na frente, andava de patins, de bicicleta, de skate. Uma das brincadeiras que a gente mais gostava era o Programa do Tio Bolão (risos). O Programa do Tio Bolão era o seguinte, tinha um cara, um gordão, que falava: “Ó o frox”, ele pegava o nosso nariz e apertava assim. Falava: “Olha o frox” e ia embora. E esse cara morreu. Um dia os caras entraram na casa pra ver o cara morto, o cara estava peladão na cama com umas bolas desse tamanho assim. Aí os caras: “Cara, ó o bolão, bolão” e começou a chamar o cara de tio Bolão, “Morreu o tio Bolão”. Na época também tinha o Programa do Faustão, as Pegadinhas do Faustão e aí a gente fazia umas pegadinha também na rua, porque como era uma rua que tem as pontes e o riozinho, o que a gente fazia? Muito moleque junto, cara, não vai pro céu. Os moleques pegavam e colocavam, normalmente era eu que ficava ali. Era uma caixa, ficava dentro de uma caixa com um monte de lixo em volta, bem na ponte. E aí o cara vinha descendo lá do morro, de cima, quando ele entrava na nossa rua os caras assoviavam (assovia), está chegando. Está chegando perto da ponte, aí quando vai chegar na ponte (assovia), era a hora que eu saía de dentro da caixa. Era bem na hora que o cara pisava na ponte, eu saía e: “Ahhhh”, com uma máscara, ou às vezes a gente pintava a cara e tal e o cara saía correndo, bicho. E já teve caso do cara largar a namorada e saiu, esse dia, coitado (risos). Aí os moleques tudo saíam na rua: “Vem cá, vem cá, é uma pegadinha, uma pegadinha”. Às vezes chamava e a pessoa não vinha, às vezes a pessoa vinha, às vezes a pessoa estava correndo ainda, falava: “Dá uma olhada no muro”, tinha um buraquinho no muro: “Ali tem uma câmera escondida, você está participando do Programa do Tio Bolão” (risos). E aí saía assim, e a gente: “Dá um tchauzinho pra câmera”. Tinha uns que davam um tchauzinho pro muro, às vezes tinha um que dava uma botinada, um tapa na gente também. A gente fazia muita molecagem nessa rua. Tipo, colocar uma caixa com uma pedra pra vir gente na rua chutar e ter pedra. Amarrar uma carteira e puxar, ficava escondido no mato e puxava quando alguém fosse pegar. Tudo era na ponte. Colava uma moeda na ponte (risos), o cara ficava tentando tirar a moeda. A gente não podia ver passar bêbado na rua, a gente sempre oferecia quentão, mas na verdade não era, os caras mixavam num copo e dava pro bêbado e falava que era quentão. Teve um que tomou uma vez e reclamou, cara, foi muito engraçado isso. A gente pegou e falou: “Meu, toma um quentão” “Quentão, quentão!”, catou, na hora que ele tomou assim a gente começou a dar risada, ele olhou pra gente (fala berrando): “Vocês estão rindo, né? Vocês acham engraçado, falar que é quentão e dar cerveja quente pra gente!?” (risos). Como ali na rua de cima passava ônibus, às seis horas da tarde, que o ônibus vinha lotado, cada um roubava um ovo de casa, se escondia no meio do mato e na hora que o ônibus passava a gente jogava o ovo lá na janela do ônibus (risos).
P/1 – Como é que é? Muito moleque junto não vai pro céu.
R – Não vai pro céu. Os moleques eram terríveis, cara! Pra você ter ideia tinha os apelidos e tal, nossa cara. Que aí briga na rua, de brigar e sai a mãe de um, a mãe de outro. Tinha um que a gente zoa até hoje, que a avó dele falou (fala berrando): “Fábio! Fábio!”, e a velha vinha igual uma doida e ela defendia sempre o Fazão. Eu sempre brigava com ele, mas os moleques na rua brigavam muito também, era muito moleque. Graças a Deus está todo mundo bem, todo mundo inteiro, ninguém se foi, está todo mundo na rua lá.
P/1 – Zinho, você falou também que você foi criado um pouco no teatro, é isso?
R – É, porque o teatro fica nessa rua, o teatro é na frente. Então a gente, por exemplo, ia brincar de pega-pega. Era um barracão na época, então as janelas eram abertas, era de pau a pique. Então: “Onde vale?” “Vale até a quadra ali e o teatro”, esconde-esconde vale o teatro, polícia e ladrão vale o teatro, o morro, a cadeia era no portãozinho do Junê, ali, e valia isso. A gente sempre brincava no teatro, a única coisa que não podia era mexer nos figurinos, não podia pegar o figurino porque senão dava briga com a minha avó. Nem mexer nos instrumentos. Mas quando era o horário de ensaio eu via lá os instrumentos, o figurino. A minha avó ia se apresentar e eu também ia, era pequeno, mas eu tinha a minha roupa para a gente criança e ia lá pro teatro, pras apresentações, ficava tocando agogô, que o agogô é levinho, é pequenininho e fazia (cantando): “Agogó”, quando vai começar o maracatu. Tum, tum, tumtum, tum tum, tum. Tocava o agogô e tal. Depois quando eu fui ficando mais velho já não queria mais o agogô, queria o surdo, a alfaia, mais pesada. Via aqueles negões fortões catavam lá o bagulho Tum Tum Tum. E eu, magricelinho, quase envergando pra tocar o surdo, ficava com o braço todo arrebentando, mas não queria, comecei a tocar o surdo com 12 anos, 13 anos. Aí mesmo sendo franzino eu queria o surdão. O pessoal: “Não, fica no agogô, pega uma caixa” “Não, eu quero o surdo, quero o surdo”.
P/1 – Cara, mas você tem uma memória incrível, não é? Impressionante. Então vamos falar agora de memória de livro e leitura. Você aprendeu a ler na escola ou você aprendeu em casa?
R – Eu aprendi meio que nos dois, eu lia um pouco em casa, um pouco na escola. O que me incentivou muito a ler foi revistinha, Turma da Mônica, Chico Bento, Cascão, gostava muito de ler história do Cascão, Chico Bento e me interessei muito por isso. Meu avô Aurino também tinha um bar lá em Embu, chamava Mais Embu, era um dos bares mais frequentados que tinha lá e ele tinha um acervo enorme de revistinha no bar. Tinham jogos lúdicos e tal, revistinhas e tal. Eu pegava e ficava lá lendo revistinha. E aí eu lembro que eu li muita revistinha. O primeiro livro que eu li foi A Bolsa Amarela.
P/1 – Ah, da Lygia?
R – Eu tinha sete anos. Depois eu peguei O Pequeno Príncipe, logo depois da Bolsa Amarela. Depois eu li também um outro desses de história para criança, mas eu não gostei muito, era de animais, um livro aí pra criança, só que eu já não me interessei muito. Revistinha eu também não gostava de Marvel, gostava de Turma da Mônica, isso que eu gostava de ler. E lia também alguns livros pra criança, assim, mas eu não pegava nada muito comprido pra ler.
P/1 – E histórias? Você ouvia histórias da sua mãe, da sua avó quando era pequeno? Tinha esse hábito?
R – Não, não tinha, na verdade era tudo meio que vivência. Na verdade eu nem sei como eu sei cantar coco, a minha avó não ficava lá: “Ó, vamos cantar essa aqui, vamos cantar essa agora”, é de tanto viver aquilo, quando eu fui ver eu estava cantando. Vai cantar um jongo, qualquer coisa, para mim era normal. Eu ouvia aquilo, por exemplo, entrava no ônibus, o show era lá em Piracicaba, os caras iam tocando até Piracicaba. No outro dia tinha um show em Campinas, você entra no ônibus, pequenininho. Eu lembro que o que eu gostava era da bagunça no ônibus, pessoal tudo batucando.
P/1 – Você acompanhava isso tudo?
R – É, eu cresci acompanhando tudo isso. E o meu pai músico, então meu pai também ia fazer show. O meu pai trabalhou um tempo no Ventoforte, então eu ficava correndo pelo Ventoforte igual um doido vendo peça, fuçando, o Ilo sempre brigando com a gente. “Vocês fuçaram o figurino não sei onde”. Você chegava lá, entrava numa sala, estava cheia de arma e roupa, assim, o figurino de um espetáculo. Pegava as arminhas. Aí vem um ator doido: “Cadê a arma!?” O filho de não sei quem pegou e levou o negócio pro lado lá, então era uma bagunça, mas eu gostava. E vivia tudo muito perto. Quando eu era criança queria ser palhaço, então era todo cheio de fazer as coisas de circo. Até a foto minha do prezinho é vestido de palhaço, aquela que você tira, todo mundo que tira com a roupa da escola e tal, está o nome da escola, a bandeira da escola, o mapa mundi e eu vestido de palhacinho.
P/1 – Você tem essa foto?
R – Eu tenho essa foto. Eu não, minha mãe, ela não deixa nem pôr a mão nessa foto.
P/1 – Fotografa ela e manda pra gente.
R – E era isso, cresci meio querendo ser palhaço, meio vivendo no meio do teatro, e já queria fazer peça também. Com dez anos já não queria mais ser palhaço, queria ser ator (risos). Aí que meu pai falou: “Se quer ser ator vai trabalhar com teatro”. Eu ia, fazia alguns espetáculos. Eu lembro que eu fiz o filho da Medeia, tinha uns 11 anos. Com dez anos também participei do filme Sábado, como figurante. O filme Sábado acho que é do Ugo...
P/1 – Ugo Georgetti.
R – Isso, do Ugo Georgetti. Eu e o meu irmão. O meu irmão passou mal no set de fimagem. Toda vez que ele ouvia a palavra corta ele comia um hambúrguer. Tinha hambúrguer lá e tal, ele, “corta”, hambúrguer, “corta”, hambúrguer, no outro dia ele não foi filmar (risos). E foi isso, comecei a trabalhar com teatro também, com dez, 11, 12 anos. Aí entrei pro Circo Acrobático Fratelli, comecei a fazer aula com eles de circo e ajudava os caras em apresentação. Os caras às vezes iam fazer apresentação pra criança e eu ia junto, fazia umas coisinhas. Comecei a ajudar os caras meio que em produção de espetáculo. Aí fui ficando um pouco mais velho, com 13, 14 anos os caras já me penduravam a 30 metros de altura para colocar um gancho e soltar. E assim também já fazia as coisas com teatro, lá do Embu. Aí vem a adolescência também...
P/1 – Antes da adolescência, como é que foi a sua iniciação musical? Foi com o agogô?
R – Cara, eu tenho um problema com a música, eu nunca pretendi trabalhar com música, não era o meu plano esse. A música veio, sei lá, a música já estava aí, eu nem sei. O meu pai queria que eu tocasse, cara, mas eu parei de tocar depois que ele me deu uma bronca, fiquei anos sem pegar num instrumento. Ele falou: “Toca aí, meu!”, ele deu um ‘toca aí’ que eu larguei. Acho que era uma pandeiro que eu estava tocando, aí ele me deu uma bronca porque eu não fiz o exercício direito e eu parei de tocar. Eu tinha uns oito anos, aí não toquei mais, parei. A única coisa que eu tocava era o agogô porque o agogô já estava tocando desde pequenininho, então ia pro espetáculo e não sabia o que fazer, pegava só o agogô. Eu fiquei sem tocar um tempão, um tempão. Com 12, 13 anos veio esse negócio de querer tocar o surdo, aí comecei a tocar o surdo. Mas nunca fui de tocar não, não toco até hoje. Brinco assim.
P/2 – E a poesia? Já escreveu algum poema nessa idade?
R – Eu escrevia algumas coisas e na verdade a minha aproximação com a música vem com o rap. Porque a partir do momento que eu comecei a cantar rap, entrou na fase da adolescência, comecei a fazer umas rimas, a brincar, escrever e tal e aí começou. Eu lembro que a minha primeira letra que eu tentei fazer foi depois que eu li uma matéria sobre o massacre do Carandiru. Eu li essa matéria sobre o massacre e fiquei impressionado: “Vou escrever uma letra sobre isso”. Mas já fazia umas rimas na escola, brincando. Escrevi.
P/1 – Você lembra?
R – Não, não lembro. Eu devo ter guardado, cara, eu devo ter guardado, mas não lembro. E aí fazia uma rimas, era ano 97, 98, estava entrando no primeiro colegial e aí comecei a fazer rima. Eu comecei a rimar, mas sempre brincando. Eu fiquei brincando de fazer rima até os 21 e com 21 que eu comecei a trabalhar sério esse lance de MC, de pesquisar, de procurar saber sobre o rap e tudo o mais. E aí começaram os trabalhos. Que eu tive uma fase meio conturbada na adolescência, foi dos 16 aos 18, eu dei uma atrapaiada aí. Mas depois eu mudei o rumo de novo, com 20 anos eu me arrumei, no caso. O problema era droga, cara, molecão, você acha que você pode tudo. E aí eu me perdi nesse mundo, fiquei um bom tempo perdido. Fiz um tratamento e depois do tratamento eu voltei a ter uma vida normal.
P/1 – E você voltou já mais ligado no rap.
R – Já mais ligado no rap. Na verdade eu voltei até meio perdido porque como eu fiquei um bom tempo, até os 14, 15 anos eu tinha uma meta, a meta era trabalhar com Arte, fazia teatro, eu fiz capoeira, tipo, dos sete anos até essa idade, 15, era meio que também era do esporte, fiz circo com o pessoal do Fratelli um tempão, fazia judô, andava de skate. Eu fui jogador de hóquei praticamente profissional também.
P/1 – É mesmo?
R – É (risos).
P/1 – Hóquei de patins?
R – De patins. Então nessa época eu tinha tudo isso, era o esporte e a arte. E aí me perdi nesse caminho e eu só fui retomar tudo com 20 anos, que foi depois que eu saí da clínica. Eu saí em 13 de fevereiro de 2003. Eu entrei dia 28 de dezembro de 2001, passei o ano novo já internado.
P/1 – Você ficou esse tempão lá?
R – Eu fiquei esse tempão porque o tempo era nove meses que você fica, aí quando deu nove meses eu achei que eu ia ser monitor, que eu ia trabalhar com isso, eu queria trabalhar e tudo o mais, então eu fiz um curso um tempinho a mais para trabalhar. Eu já saía normal de visita, não ficava o tempo todo lá, mas aí eu fiquei fazendo esse curso, quando acabou eu fui fazer uma última saída para voltar, já pra trabalhar e nessa saída eu não voltei. Eu arrumei uma namoradinha lá e aí fiquei namorando e desencanei. E aí fui trabalhar, foi aí que eu voltei meio perdido, porque aí eu fui, precisava trabalhar, né cara? Eu já tinha parado os estudos, eu parei no primeiro colegial e fiquei três anos no primeiro colegial, repeti uma, duas, terceira vez me mandaram embora. De lá pra cá eu não estudei, então completo, completo eu só tenho até a oitava série, o segundo eu nunca completei. E aí eu peguei e fui trabalhar de garçom. Porque como meu avô tinha bar, quando eu era moleque eu ajudava no bar dele, então eu tinha uma noção de bar. Fui trabalhar de garçom num restaurante de uns amigos que tinha na época, depois fui trabalhar de barman no bar do reggae que era de um amigo meu, e nesse bar o legal foi que eu aprendi muito sobre reggae, eu não conhecia nada de reggae. Escutava reggae 24/48. Foi uma fase bem legal porque eu não nenhuma responsabilidade nessa época, eu já morava sozinho, era tudo bem tranquilo, a minha vida era acordar, ir por bar e depois ir para alguma festa, era isso que a gente fazia. Mas o legal é que eu conheci muito de reggae, eu não tinha quase noção nenhuma e eu conheci muito, até procurar ler livro de reggae, história e tudo o mais, conheci muito sobre o reggae e fiquei trabalhando nesse bar um tempão. E nesse bar também a gente fazia algumas festas, então tipo a galera ia tocar no bar, iam músicos, o Jai Mahal foi tocar, uma galera aí do reggae que toca no Brasil hoje em dia, a banda Veja Luz, mesmo na época chamava Varal Roots, os caras tocavam lá todo domingo. E além de trabalhar no bar eu era o apresentador da galera que ia tocar, então apresentava a festa e fazia algumas participações com as bandas fazendo rima, então, aí que eu comecei também a divulgar o meu trabalho, no caso, e trabalhar como apresentador e fazendo rima. E depois, em 2004 esse bar fechou. Quando o bar fechou eu fui trabalhar em Moema, numa pizzaria, de ajudante de barman, foi o primeiro registro que eu ganhei na carteira, fiquei feliz pra caramba, tinha registro na carteira, tinha assistência médica, ganhava cesta básica. Ganhava bem ainda, eu arrumei com um parceiro lá do Embu, eu lembro que quando eu fazia alguma coisa no bar ele falava: “Só podia ser embuense, ô praga!!!”. Eu ganhava bem só que era o seguinte, eu morava no Embu, eu entrava no serviço seis da tarde e saía entre uma, duas, três da manhã. Só que pra chegar em Moema saindo do Embu às seis da tarde eu tinha que sair do Embu às quatro, então eu saía do Embu às quatro e quando eu saía do serviço em Moema eu tinha até às duas e 20 pra estar em Pinheiros, ali no Largo da Batata, pra pegar o último. Se eu não pegasse esse das duas e 20 eu ia pegar só às quatro e 45. Então, esse das quatro e 45 eu chegava em casa cinco e meia, seis horas da manhã, dormia até às duas da tarde, tomava banho, almoçava e ia trabalhar, já era quatro da tarde. Então a minha vida começou a ficar só isso. E nessa época eu já estava frequentando os saraus, eu já estava indo no Sarau do Binho.
P/1 – Ah, é? Como é que era o Sarau do Binho?
R – Cara, o Sarau do Binho foi o primeiro sarau que eu tive contato fora os saraus que eu conhecia. Porque como a minha família tinha muita ligação com poesia eu sempre fui em sarau, só que eu ia em alguns saraus que eram diferentes do que eu conhecia. O sarau era uma coisa mais, como é que eu posso dizer? Mais elitista. Era um sarau de pessoas intelectuais, você via que eram professores doutores e artistas que tinham um trabalho que não era ligado com a periferia, né? Ou até tinha, mas era diferente. E eu lembro que eu mesmo, eu até cheguei a fazer alguns saraus no Embu, moleque. Eu lembro que eu ajudei a organizei, inventamos lá eu e mais três amigos, isso eu tinha 14, 15, 16 anos, que era o Sarau Cara de Pau. Eu tenho o flyer guardado até hoje, convidava um monte de artista lá do Embu pra falar. E os artistas do Embu eram aquela coisa, eles não tinham uma ligação com a periferia direto porque o cara morava lá no Embu, ele era escultor, ele era artista plástico, vivia no meio da natureza e tal, e era diferente. Eu cheguei no Sarau do Binho, foi uma ex-namorada minha que morava no Santo Eduardo, que é do lado do Campo Limpo, e essa minha ex-namorada era ex-namorada também do Gaspar Z'Africa Brasil. O Gaspar ia no sarau, ela conheceu através do Gaspar e me falou: “Tem um sarau lá, você que gosta de poesia, dessas coisas, vou te lavar lá no Binho, lá tem o pior pastel da cidade”. Eu falei: “Pô, vamos lá então”. Saía lá do trampo, um dia saí do trampo e a gente foi lá no Sarau do Binho. Eu cheguei no Sarau do Binho, lembro que era o bar na esquina, estava lotado de gente, muita gente. Numa mesa logo na porta do bar estava o Sérgio Vaz, Marcos Pezão, o Jairo Periafricania, o Mavot e mais alguém, os caras sentados na mesa, bem na porta, do lado de fora. O bar tinha um monte de mesa, um monte de gente sentada comendo o pior pastel. Eu cheguei e tinha alguém lá que sabia que eu era bisneto do Solano, eu não lembro quem agora, mas alguém falou: “Não, ele é bisneto do Solano”. Logo quando eu cheguei. Era alguém que me conhecia porque nessa época como eu já fazia as rimas e tal tinha alguém lá que já sabia, eu não lembro quem. Na hora que o cara falou eu lembro que o Pezão, o Sergio Vaz, os caras levantaram da mesa e vieram falar comigo. O Pezão adora o Solano, né cara? O Pezão principalmente. “Porra, garoto”, aquele jeitão dele lá, “que bacana, eu vou recitar ele”. Já pegou, já pediu pra recitar um poema e já recitou um Solano. E aí o sarau naquele dia virou meio que um especial Solano Trindade.
P/1 – É mesmo?
R – Todo mundo começou a recitar Solano Trindade. Aí eu recitei também e tal e aí o Binho falou: “Pô, venha mais”. E eu gostei. “Vou começar a frequentar sempre”. E o bar era maravilhoso, o sarau no bar lá, cara. Eu comecei a frequentar o Sarau do Binho. Naquela época não tinha quase nenhum sarau ligado à periferia, tinha Cooperifa e o Binho. Só. Lógico que tinha outros saraus e tal, mas da quebrada, da periferia, pode falar o que for, que eu me lembro só tinha o Binho e a Cooperifa. E eu lembro até que nesse mesmo dia o Jairo, ele pegou e falou: “Pô bicho, você tem que conhecer o Sarau da Cooperifa, você tem que ir lá e tal, é numa quarta-feira”. Eu ainda demorei pra ir na Cooperifa, uns três meses indo no Binho, até ir na Cooperifa. Quando eu fui na Cooperifa eu lembro que eu fui com uma amiga minha que morava ali perto, ela conhecia a Piraporinha. Eu lembro que a gente foi até por dentro, fez o caminho da M’Boi Mirim, a gente foi por dentro. Eu curti a Cooperifa e comecei a frequentar também. A Cooperifa era bem menor do que é hoje, até o Bar do Zé Batidão não tinha teto de gesso, era bem diferente. O Bar do Binho também, o Bar do Binho com o tempo foi mudando também. E eu lembro que na Cooperifa o tratamento foi 100%. Eu cheguei, aí eu já conhecia o Sérgio Vaz, o Jairo, o Pezão. O Pezão ainda estava junto na Cooperifa firme e forte, que depois ele se afastou um pouco, mas os fundadores da Cooperifa é o Pezão e o Sérgio Vaz, eles que começaram com esse trabalho lá no Taboão. E o Bar do Binho também, eu cheguei bem no começo do Bar do Binho.
P/1 – Você pegou o primeiro Bar do Binho?
R – Não, o primeiro é antes, o primeiro era perto da delegacia, ali no Campo Limpo, o primeiro é antes. Eu peguei o segundo bar que foi o bar que ficou conhecido mesmo, que já é na época de 2004, 2005, foi bem na época que eu fui, eu devo ter ido ele devia estar fazendo sarau ali há uns dois, três meses, no bar novo. Eu fiquei frequentando, até hoje eu frequento.
P/1 – Ah, é?
R – É rapaz, eu peguei, segunda-feira agora eu estava no Binho. E o Binho virou parceiro, é amigo, a gente participou do Donde Miras junto, a gente já fez um monte de projeto junto, participo da Antologia do Sarau do Binho, a que teve agora, a nova que vai ter. O meu dentista é perto da casa do Binho, eu passo na casa dele para almoçar. O legal é que os saraus cresceram muito, cara, de um tempo pra cá. Isso eu estou falando em 2004, aí 2005. Em 2006 já tinha mais saraus, eu lembro que em 2006 já tinha Sarau da Brasa. Não sei se eu estou me enganando, acho que já tinha sim, eu acho que o Elo da Corrente já tinha em 2006, o Sarau da Brasa, se não tinha em 2006, em 2007 é certeza que ele já tinha.
P/2 – Burro.
R – Não, o do Burro é mais novo. O Burro acho que é 2008, 2009 já. Mas foi nessa época que começou esse negócio de sarau a dar uma expandida. Eu sei que de 2010 pra cá, cara. Antigamente você podia contar assim: separa sua segunda e quarta que tem sarau. Depois é segunda, quarta e quinta, que era o do Elo da Corrente que era lá em Pirituba. Depois o da Brasa, que é de sábado. Aí apareceu um lá, como é aquele sarau que tem lá na Cidade Ademar, lá? Sarau do Ademar. Aí vem o Sarau do Ademar. Depois eu já comecei a ficar meio tonto, hoje em dia eu já não tenho mais noção, eu sei que tem sarau todo dia. O Sarau do Buzo mesmo é 2008. E eu sempre frequentei esses saraus, sempre procurei, tanto que o meu livro eu lancei em quase todos os saraus que eu pude.
P/1 – Vamos falar do seu livro Tarja Preta.
R – Tarja Preta.
P/1 – Você ficou quanto tempo fazendo esses poemas?
R – Cara, Tarja Preta eu saí escrevendo. Eu guardo muita coisa, eu escrevo tudo a mão, eu tenho esse problema, eu não uso muito a tecnologia, eu não confio na tecnologia.
P/1 – Ainda bem.
R – Então eu faço tudo à mão. Como eu faço tudo a mão também guardo tudo, então eu tenho uma pasta lá em casa com todos os poemas. O que eu posso fazer, você vai pegar papel de tudo quanto é jeito lá, é papel de pão, é guardanapo, é boleto bancário, é conta, é documento sério, tudo com coisa escrita e vai pra esta pasta. E eu fui juntando, juntando, juntando e eu queria lançar um livro. Teve uma época que a galera começou a lançar livro. Porque também lançar livro não era como hoje, não, era mais complicado, né, cara? Ter um parceiro pra lançar. E os primeiros livros que eu lembro que começaram a sair foram Edições Toró, Allan da Rosa, os que já tinham, que era o Binho, o Sérgio Vaz, o Buzo, o Ferrez. Allan da Rosa, Berimba. O Berimba mesmo, agora você falou, o Berimba eu lembro, 2006. Teatro Oficina. Participei de um disco de um grupo chamado Revista Bixiga, Revista do Samba, que meu pai faz parte desse trio aí e eu participei do disco deles que era uma união do pessoal do Teatro Oficina, do Revista do Samba e do Teatro Popular Solano Trindade. E do pessoal da Vai Vai. Então era Revista Bixiga Oficina do Samba, que era o nome do CD. Eu participei do CD, gravei uma faixa lá junto com o Thiago Beats e o lançamento era no Teatro Oficina, isso em 2006. Eu fui no Teatro Oficina pra participar desse show, tal, participei do show. Acho que foram três dias de show, casa lotada, tinha muita gente trabalhando nesse disco e aí eu conheci nesse dia o Berimba e o Caco. Os caras não podiam ver uma vernissage, né cara? (risos). Maloqueirista, né, meu? Já via os caras lá filando uma boia, cara de maloqueiro. Eu também meio maloqueiro e tal, fui trocar ideia com os caras, os caras falaram: “Pô, legal suas rimas aí, tal”. Eu vi eles com um livretinho na mão e eu falei: “Pô, e esse barato aí que vocês têm na mão?” “As poesias maloqueiristas, tal”. Uns livretinhos assim, cara, com um carimbinho da Maloqueirista, coisa bem, pra vender assim. E na época eu estava querendo fazer isso porque, como eu falei, eu trabalhava nesse restaurante, mas o que aconteceu? Era mó difícil vender um trabalho, eu tinha um trabalho que era rima e beat box, que eu fazia as rimas e o Thiago Beats, que trabalha com o Slim Rimografia hoje, fazia o beat box. E eu tinha vendido um show na sexta e outro no sábado, eu cheguei pro meu chefe e falei: “Ó meu, libera aí sexta e sábado para eu fazer esse show porque eu consegui vender”. Eu consegui vender o negócio, é difícil, eu lembro que era 300 reais cada show, pra mim era uma puta grana: “Vou ganhar trezentinho, cantar aí sexta e sábado, pô, que da hora”. E o cara falou: “Não, está louco? Você é embuense, você é burro, né? Eu que sou mineiro e você que é burro, né?” Eu falei: “Mineiro não é burro” “Você é muito burro, cara! Movimento! Não vai”. Eu falei: “Mas chama um sub” “Não, está maluco?! O sub vai ficar meio perdido, vai nadar no bar. Sexta, está maluco”. Quarta-feira. Aí eu falei: “Beleza”. Deu quinta-feira eu não fui trabalhar.
P/1 – Nem avisou, nem nada?
R – Não fui trabalhar na quinta, nem na sexta, nem no sábado, nem no domingo. Segunda a casa não abria, terça era a minha folga do mês, voltei só na quarta-feira. E aí, meu. “O que aconteceu?” “Estava doente” “Doente, você foi tocar que eu sei” e não sei o quê, não sei o que lá. “Você fica aí lendo esses livros”. Eu lembro que, ó o livro que eu tinha lá, O Rastilho da Pólvora, que foi um dos primeiros livros, coletânea, de periferia, o Sérgio Vaz e a galera da Cooperifa que ajudou a fazer, estava com esse livro aí. “Você fica com essas ideias de livro”. Eu li, ficava embaixo do balcão do bar assim. “Isso aqui, meu, você tem que escolher, você quer trabalhar com Arte ou você quer ganhar dinheiro?” Eu fiquei a noite inteira trabalhando e pensando nisso, né, cara? Trabalhar com Arte ou ganhar dinheiro. E eu lembro também que a Kiki, que é dona do Centro Cultural Rio Verde, uma das donas, ela ia comer sempre no restaurante. E aí tinha um mano que trabalhava comigo, o Vitão, que ficava fazendo beat box e eu umas rimas quando não tinha mais clientes. Só que ela ia com um amigo dela e eles ficavam tomando lá, comendo, mas até uma hora que já não tinha mais ninguém. Às vezes só tinha eu e o meu brother lá, porque a gente, ficava um garçom, ele era garçom, eu era do bar; o chefe do bar ia embora, então ficava eu e ele e o gerente. A cozinha fechou e só. Aí a gente ficava lá em cima lá, fazendo umas rimas, um beat box, um dia ela ouviu, ela pegou e falou: “Meu, você não é pra estar aqui, não, meu, você tem que botar esse negócio pra funcionar”, falou pra mim e pra esse meu amigo, o Vitão. “Vocês dois têm que fazer isso em outro lugar”. Ela até deixou o telefone dela e falou: “Pô, me liga um dia aí se você quiser fazer alguma coisa, eu te levo pra conhecer umas pessoas”. E falou que lá não era pra mim. E bem nesse dia que o cara falou para eu pensar ela estava, mas ela nem falou nada, ela senta lá no balcão e fala: “Faz uma rima pra mim”. Eu fiz uma rima pra ela e tal, mas fiquei trabalhando e pensando, cara. Eu cheguei pro meu gerente e falei: “Na moral, quero ir embora. Não quero ficar trabalhando pros outros, aqui não tenho nem vida, cara”. Depois desse dia eu falei: “Vou trabalhar só com Arte, mesmo que eu passe fome, que eu me dê mal e tal, aceito qualquer coisa ligada a Arte, mas fazer coisa que não vai adiantar, ficar lavando copo aqui não vou mudar minha vida nem a de ninguém”. E aí, beleza. Ele falou: “Trabalha mais 15 dias aí, a gente faz um acerto, você já trabalhou um bom tempo aí também, você vai ter seu seguro e é isso”. Eu fui, fiquei quatro meses segurado, até hoje eu só tenho essa assinatura na carteira, auxiliar de barman (risos). E aí que eu comecei a correr atrás mesmo, porque eu comecei a correr atrás pra vender o meu trabalho com o Thiago Beats, que era freestyle e beat box. Então apresentava festa, fazia festa, inventei uma festa, chamava “Batida do Coração”. Eu tenho a primeira matéria de jornal guardada lá, dia 26 de maio de 2006, a primeira Batida do Coração. Eu convidei uns 15 grupos pra tocar, olha a viagem.
P/1 – Quinze!? (risos)
R – Cara, não tocou nem metade porque a metade não conseguia chegar, mano não dava conta de deixar um e buscar o outro, cara! E tocou, sei lá, metade assim da galera. Mas aí que eu comecei a vender os primeiros shows pros primeiros eventos, mas nessa época era muito legal porque eu ia pro show, não tinha nem dinheiro pra ir pro meu show, chegava pro motorista, mostrava o flyer pra ele e falava: “Tá vendo esse cara aqui, o nome dele? Sou eu, viu? (risos) Porque eu não tenho dinheiro, na volta eu vou ter. Se você me liberar agora, deixar eu passar por baixo agora, na volta...” Nossa, eu passei muito por baixo, cara. E aí era isso, porque chegou uma época também que eu não tinha mais como me manter, porque não era todo dia que eu conseguia vender um show, quando vendia era muito barato. Quando eu fazia uma festa dava tanta dor de cabeça que no final da noite sobrou 100 reais. Paguei todo mundo, mas eu consegui cem reais. Foi bem sofrido, não ter grana pra nada. E toda grana que eu recebia também já ia tudo embora. E aí que eu conheci o Berimba, lembro que eu vi eu falei: “Vou começar a escrever umas poesias também, vou sair pra vender, porque aí vou ganhar um trocadinho, pelo menos se eu vender dez poesias a um real já fiz dez contos. São dez contos, já tenho uma grana”. Dez contos tantos anos atrás dava pra você fazer alguma coisa. Eu comecei, inclusive um pessoal do Resta Maloqueirista estava começando, eles me chamaram pra participar, eu acho que eu participei da primeira Resta. E aí o Berimba virou meu parceiro, o Caco. E em 2007, 2008 a galera começou a lançar livro, que antes como eu falei tinha só essa galera que tinha livro. E depois começou a lançar o Akins Kinte junto com a Elizandra Souza lançou o Punga, acho que foi 2008. A Edições Toró começou a lançar a galera, lançou o Daniel. A minha ideia era lançar com a Toró, tanto que cheguei no Allan da Rosa e falei: “Tenho umas poesias lá, tem como lançar?”, só que aí ele falou: “Meu, a gente está sem ter como lançar, a gente não tem verba porque a gente já lançou o Daniel, o Sílvio Diogo, a Dinha, o Akins Kinte, a Elizandra, então a gente não tem grana”. Eu peguei e falei: “Bom, vou continuar escrevendo, vamos ver o que acontece”. Em 2009, um dia trocando ideia com o Berimba, ele falou: “Meu, vamos lançar um livro?”, do nada. “Vamos” “Me manda suas poesias”. E em 2008, olha que engraçado, parece que eu sabia que ia lançar o livro em 2009, porque em 2008 eu peguei tudo o que estava solto nas minhas folhas e passei tudo pro computador, dei um tapa nas poesias. E em 2009 o Berimba falou comigo e eu já estava com uma cota boa de poesia. Eu mostrei, o Berimba foi em casa, ficou lendo as poesias, deu algumas opiniões e tal. E nessa época também eu estava trabalhando bastante no Rio, então eu ia pro Rio de Janeiro recitar poesia, sei lá fazer o quê. Como eu falei, às vezes ia apresentar uma festa, às vezes ia cantar, às vezes ia, sei lá, vivia no Rio, acho que toda quinta, 15 dias aqui, 15 dias lá. E aí eu peguei e falei: “Pô Berimba, me ajuda aí”, ele falou: “Precisa de alguém pra diagramar”. Eu conversei com o Nelson Maca, que eu tinha conhecido o Maca na Cooperifa, conheci o Maca, troquei uma ideia com ele muito rápida, fui fazer um trabalho na Bahia e aí acabou que a gente se aproximou na Bahia, nesse trabalho ia participar do Fórum de Performance Negra lá na Bahia. Porque no meio disso também, de 2006 a 2011, 12, eu trabalhei com a Companhia de Arte Negra Capulanas, como ator. Então, trabalhando com as Capulanas eu também era ligado ao teatro negro. Fui nesse encontro na Bahia e lá eu conversei com o Maca, conheci o Maca e aí eu falei com o Maca aqui de São Paulo, do Rio, não lembro onde eu estava: “Maca, tem como você ver o livro, tal?” “Manda aí, vamos trabalhar, vamos fazer e tal”, e ficou essa conexão, o Maca na Bahia, eu no Rio, o Berimba em São Paulo. Eu cheguei em São Paulo o livro já estava bonitão, prontinho.
P/1 – Então, fala algum poema.
P/2 – Eu ia falar, já que você falou do negro, pra você falar do poema do Negro, já que você dessa coisa assim. Ele está no livro?
R – Está. Vamos lá.
P/2 – Se quiser guardar isso pra depois.
R – Pode recitar um depois? Ia recitar um curtinho.
P/1 – Tá.
R – A Batalha. “Quantas vezes não me senti um nada; Um mísero nada; Um cigarro morrendo, queimando, lentamente; São nesses momentos que derrubamos o Golias que nos habita.”
P/1 – Nossa!
R – É. Essa fase foi engraçada, essa fase depois que eu decidi trabalhar só com Arte. Mas foi boa também, eu conheci muita gente, fiz algumas oficinas, comecei a dar oficina no teatro também.
P/1 – E isso com o Tarja Preta publicado.
R – Não, não, antes. O Tarja Preta foi 2010. É da fase que eu comecei a trabalhar, depois que eu saí do meu emprego de barman eu fazia de tudo, de tudo mesmo, eu saí atirando pra tudo quanto é lado. Qualquer coisa ligada à Arte pode me chamar. “Precisa de um cara pra apresentar um evento”, precisar, eu apresento. “Ah, precisa de um ator”. Foi legal porque eu fiz algumas pontas em alguns filmes, entrei pras Capulanas. Pras Capulanas foi bem legal porque elas falaram assim: “A gente precisa de alguém pra escrever uma letra sobre capulanas, mas tem que ser meio de rap, MC”. Eu falei: “Eu escrevo”. Escrevi. “E agora, quem vai cantar?” “Não, eu canto” (risos). E aí elas pegaram e me chamaram pra fazer parte da companhia, porque o espetáculo era sobre Solano Trindade, era “Solano Trindade e Suas Negras Poesias”, só que só ia ter mulher no espetáculo. E acabou que elas acabaram me contratando e de quebra contrataram meu irmão. Foi meu irmão e as quatro meninas trabalhando esse espetáculo, tanto que a gente ganhou nessa época, 2006, nós ganhamos o VAI, o VAI era 18 mil na época. E eu lembro que a gente ficou todo feliz quando ganhou o VAI, depois a gente foi ver, cara, a grana só dava pra fazer o trabalho mesmo, não dá pra se manter assim. Eu falei: “Nossa, tem que trabalhar mais, cara”. Mas foi bom, que as meninas deram um duro danado mesmo, as Capulanas. Elas ganharam o VAI, depois ganharam o ProaC, depois o Fomento, ganharam o Fomento de novo. Hoje em dia elas estão muito bem. Eu só participei desse espetáculo, mas nesse espetáculo eu fiquei quatro anos trabalhando com elas direto. E aí também fazia os lances de rima e tal, inclusive a poesia Negro nasceu de uma discussão com as Capulanas. Tinha uma parte que cada um tinha que dar um depoimento. E era pra falar da cor, né? Tudo era ligado à cor. E aí me perguntaram qual era a minha cor, eu falei: “Sou negro, sempre soube que eu sou negro”. Mas aí no meio da discussão veio tudo isso, que aí eu fui lembrando quando eu era pequeno, quando chegava pra minha mãe e falava: “Mãe, que cor eu sou? Pai, que cor eu sou?”, e daí que nasce a poesia, vou recitar ela agora. Posso fazer direto pra câmera?
P/1 – É, faz direto pra câmera.
R – Se eu faço pra vocês eu fico tímido (risos).
P/1 – Não, faz direto pra câmera.
R – (declama cantando) “Quando eu era pequeno eu não sabia, eu não sabia, eu não sabia, não; Quando eu era pequeno eu não sabia, eu não sabia, eu não sabia, não; Não entendia a cor, qual o valor; O porquê brigar e o porquê amor; Minha mãe me chamava de mestiço; A professora já dizia moreno; A vizinha falava mulato; E o meu Pai achava tudo engraçado; E minha avó já dizia; Negro; Então que cor eu sou; Negro; E o tambor chamou; Negro; E tudo mundo é; Negro; Então sinta a condição; Sou negro, sou raça, sou cor; Com a benção dos Orixás que nos abençoou; Sou negritinho, negralha, bamba, malungo; Eu vim da Serra da Barriga e trago muito amor; Minha cultura é milenar e atravessa o tempo; Arrebentando as correntes, voando com o vento; Candomblé, quizumba, macumba, fortalecimento; Agradeço todo dia poder para o povo preto; Sou negro como o Malcolm-X, Felá Kuti, Jomo Kenyatta, Múmia; Abu-Jamal; João Candido, Anastácia; Ganga Zumba, Zumbi, África Bambaataa; Mestre Irineu, Chico Rei, Elesbão Dandara; Solano Trindade, Mestre Assis, Aurino Bonfim; Mestre Bolinha, Conde, Cuti, Bimba, Luíza Mahin; Mandela, Mãe Menininha e o grande Tim; Acan, Polano, Cruz e Souza, Martin Luther King; Sou até o fim; Então que cor que eu sou?; Negro; E com muito amor; Negro; E o tambor chamou; Negro; E todo mundo é; Negro; Movimento Black Power, Rap, Samba, Funk, Soul; Grafite, Break, MC, DJ, conhecimento; Panteras Negras, Pixinguinha, Jackson; Hip Hop, Cultura de Rua é o movimento; Mandigueiro, Guerreiro, Quilombola, Nagô; Resistência, povo lindo, batuque Banto; A Justiça Xangô contada pelos Griôs; Caifazes, Bronx, Harlem, Kingston; Cartola, Castro Alves, Clementina de Jesus; Jovelina Pérola Negra, Zé Ketti, Macus; Spike Lee, Geraldo Filme, Lia de Itamaracá, Zulu; Rosa Parks, Garrincha, Bispo Tutu; Grande Otelo, Mussum, Benê, Chica da Silva; Kool Herc, Bob Marley, Mercedes Batista; Margareth Menezes, Ruth de Souza, Nação Cambina; E brindamos a vida; Então que cor eu sou?; Negro; E com muito amor; Negro; E o tambor chamou; Negro; E todo mundo é; Negro”. É isso aí.
P/1 – Ô, maravilha!
R – E aí eu recitava essa poesia, eu fazia ela no espetáculo. Corria prum lado, pro outro recitando, pulando, ainda falava pra galera: “Quem é negro aqui grita rô”. Teve até uma cena engraçada, uma vez eu fui fazer no Sacolão das Artes esse espetáculo e tiveram várias cenas porque a gente ganhou um edital também que chamava “Pé no Quintal”, do ProaC. Então a gente fez 30 espetáculos em vários quintais das periferias de São Paulo. Foram 30 entre a Zona Sul, Leste, Oeste, e sempre era uma quebrada diferente, um quintal diferente, em alguma comunidade. E aí no Sacolão eu estou lá recitando essa poesia, lá no maior pique, pulando prum lado e pro outro, usava terno todo branco e tal. E de repente uma menininha sentadinha assim, estava lá quietinha assim. E aí eu: “Que cor eu sou?”, ela balançando os pezinhos, olhou pra mim e falou: “Macaco!” (risos). Na hora eu travei, cara! Deu uma travada assim, meu irmão, na época vinha me acompanhando com um pandeiro e eu ia cantando. Ele ficou tocando o pandeiro e eu travei, não me mexia, parei. Coloquei a mão na cabeça, esqueci o texto, fudeu, cara. E aí eu comecei a rodar assim, aquele silêncio, todo mundo olhando. Eu peguei, voltei de novo no refrão, acabou. Aí o pessoal, depois que acabou o espetáculo: “O que aconteceu, meu? Travou ali”. Eu falei: “Acredita que a menininha me chamou de macaco no meio?” (risos) E tudo isso foi discutido depois, porque sempre tinha um bate papo depois do espetáculo, aí a gente conversou sobre isso, como é importante fazer esse espetáculo. Inclusive até tem um livro sobre esse espetáculo porque foram quatro anos e a gente fez um livro sobre esse espetáculo.
P/1 – Como é que chama?
R – Capulanas... não lembro agora. Os Quintais Que Passei, eu não lembro o nome do livro agora.
P/1 – Como é que foi o processo de criação desse texto?
R – Eu fui lembrando de coisas da infância, da escola, e aí também eu fui pesquisando. Porque como eu sempre li muito sobre cultura negra, e muita história também que eu aprendi com a minha avó, então, sei lá, fui pesquisando mesmo, foi um processo.
P/1 – Você demorou muito tempo?
R – Demorei, demorei. Eu lembro que eu demorei bastante tempo porque na casa da minha avó tem meio que uma biblioteca só de cultura negra, então eu fiquei lendo um monte de coisa, procurando revista, coisa assim, líderes negros, estudando a história de cada um. Por exemplo, você pega Elesbão Dandara, porque muita gente confunde Dandara, foi uma guerreira, uma rainha? Não, não foi. Na verdade era Elesbão Dandara. Elesbão Dandara foi da Revolta dos Malês, ele foi um grande guerreiro e fatiaram o corpo dele. Não é essa palavra fatiar, como é que é?
P/1 – Esquartejar.
R – Esquartejaram o corpo dele, espalharam e tal. E muita gente se confunde no nome, tanto que se você for procurar registro sobre a Dandara guerreira, que muita gente acha que tem, não tem nada. Foi um mito, na verdade, que na verdade é Elesbão Dandara. E aí eu fui estudar o seu Elesbão Dandara, Revolta dos Malês, Revolta da Chibata, aí pega João Cândido. O Caifazes, por exemplo, Caifazes era um movimento que era a favor da liberdade dos negros, mas era um movimento montado por jornalistas brancos da época, de 1800, eles tinham até um jornal que se chamava Caifazes. São Luíza Mahin. Você vai estudando tudo isso. Chico Rei, que foi rei lá e aqui, que montou toda uma comunidade ligada a ouro, tal. Então você vai estudando. Zumbi. E tem coisas atuais que eu falo, Abu- Jamal, então foi um processo escrever essa poesia.
P/1 – Muito elaborado.
R – É, deu trabalho. Aí você tem que saber ligar um ao outro. Por exemplo, “Cartola, Castro Alves, Clementina de Jesus; Jovelina Pérola Negra, Zé Keti, Macus”, é todo uma coisa que você, tipo, eu fui juntando, eu acho que eu refiz essa letra umas três vezes. Foi uma das letras que eu mais demorei para escrever, foi essa e Nossa Cultura. Nossa Cultura eu demorei bastante também.
P/2 – Quer aproveitar o gancho?
R – Posso fazer. A Nossa Cultura é (declama cantando): “Salve, salve, Zumbi dos Palmares; Salve, salve ao Mestre Pai João; Mãe Preta Rainha Nzinga; A Chico Rei, minha saudação; África liberdade, minha terra amada eu vou lutar; Da Trindade eu sou herdeiro, sou filho do gueto; Quero guerrear; Sem medo vamos lutando; Mostrando a coragem pra batalhar; Na paz, no dia-a-dia, a babilônia vamos derrotar; Salve Solano Trindade, Zumbi dos Palmares e meus Orixás; Maracatu Recife é cultura Popular; A Arte da nossa rua é difícil copiar; Eu sou é brasileiro e com orgulho vou cantar; Oh! meu leão Coroado; Oh! minha Kambinda sagrada; Oh! meu leão Coroado; Oh! minha Kambinda sagrada ; Quero ver o Gongue e o Djembê abençoar; O toque, a cantiga, batida quebrada pode misturar; Mameluco, Mandingueiro, tem jogo certeiro, pode derrubar; Quando toca o Berimbau na Capoeira tem que jogar; Tradição é cultura e tem que respeitar; Favela é favela em qualquer lugar; Se der falha, meu amigo, o bicho vai pegar; Periferia, Zona Sul, e vamos caminhar; Oh! meu leão Coroado; Ah! minha Kambinda sagrada; O quê? Oh! meu Leão Coroado; Ah, minha Kambinda sagrada; Meu leão coroado da Tribo de Judá; Rastafari, Moçambique, Mina, Angola, Jamaica; Etiópia, Cabo Verde, Cuba, Ruanda; Quenia, Senegal, Guiné Bissau, Gana; Brasil, Nigéria, Congo; De Nagô a Banto; Repente Seguimento, origem Africano; Bahia, Pelourinho, Salvador; Na Senzala do passado, Negro Lutou; Pernambuco, Paraíba, Ceará, Maranhão; Cultura popular que estremece o chão; O chão que treme, a Kambinda Sagrada; O chão que treme, salve Mãe África; Oh! meu leão Coroado; Oh! minha Kambinda sagrada”. E aí vai.
P/1 – Maravilha.
R – Essa deu trabalho também porque Kambinda é uma palavra em kimbundo que significa, kambinda com k, negra velha que sabe das coisas. Cambinda com c é uma nação de maracatu do Recife. Leão coroado também é uma nação de maracatu do Recife, assim como Leão Coroado também é Jah, Rasta. Então, essa ligação, esse duplo sentido, e o nome dessa poesia é Nossa Cultura.
P/2 – Você quer aproveitar então e...
R – Eu só queria falar uma coisa dessa poesia, que a intro que eu faço que é “Salve, salve, Zumbi dos Palmares; Salve, salve ao Mestre Pai João”, essa “Mãe preta rainha Kambinda, Chico Rei minha saudação”, esse pedaço, essa intro não é minha, é do Gaspar do z’África Brasil. Ele que criou e aí ele pegou, ele fez e me falou: “Ó meu, fala da sua avó, Kambinda”. E aí eu peguei e falei: “Pô, posso usar esse trechinho aí?”, ele falou: “Pode”, desse trechinho eu desenvolvi toda essa letra, Nossa Cultura.
P/2 – E já que você falou da Kambinda sagrada você falar um pouco do Sarau da Kambinda.
R – Sarau da Kambinda. Sarau da Kambinda a gente começou ele há dois anos, vai fazer dois anos agora em julho, e comecei pra fortalecer a poesia lá no Embu. O Embu, apesar de ser conhecido como a cidade de Embu das Artes, a arte lá com o tempo se perdeu muito. Ela foi muito forte, muito resistente, movimentos e tudo lá até os anos 90. Depois dos anos 90, com o industrianato e tudo o mais, e os próprios artistas, o tempo foi passando, faleceram muitos, tem pouquíssimos hoje dos anos 60, porque o tempo passa, né? Então se perdeu muito. Com isso eu falei: “Pô, vou fazer um sarau aqui no Embu”. Fiz em homenagem à minha avó, a gente faz lá no Teatro Popular Solano Trindade, é uma vez por mês, toda primeira quinta do mês, às oito horas da noite. Sempre tem o lançamento de um livro, alguma apresentação especial de teatro, dança, música, mais o lançamento do livro. E a galera do Embu, os jovens hoje e os antigos, todo mundo se encontra lá pra recitar poesia. E é bem bacana, a minha avó participa, eu, o pessoal da cidade ali, a gente ainda está crescendo, quero que cresça muito mais esse sarau, mas está sendo algo muito importante que está rolando lá no Embu. E o Sarau da Kambinda é muito bom fazer isso, se eu soubesse já estava fazendo o sarau lá antes. Mas é porque antes eu também não tinha tanto tempo, eu fiquei um tempo sem morar no Embu, eu saí do Embu em 2009, voltei pro Embu em 2014, então, apesar de trabalhar no Embu não é sempre que estava. Aí decidi, sei lá, vou fazer, depois que eu mudei pro Embu definitivamente eu falei: “Bom, é isso, vou começar”, voltei com o sarau. Não, em 2013 eu voltei pro Embu. Desde quando eu voltei com o Embu eu voltei com o sarau.
P/1 – E o que ele é diferente? Qual é o toque diferente dos outros saraus?
R – O Sarau da Kambinda acho que tem uma cara de casa de vó, né cara? Eu acho que minha avó está sempre lá, tem uma coisa meio de casa, todo mundo que vai lá fala: “Me senti meio que na minha casa”, porque tem um sofá, tem umas cadeiras. Eu faço apresentação lá, mas é porque eu sou metido a apresentador mesmo, aí é uma coisa que tem em quase todos os saraus, tem até sarau que está mudando essa coisa de ter um apresentador, mas eu gosto de apresentar. E como também normalmente quem vem no Sarau da Kambinda convidado, ele vem de fora, então precisa de alguém pra apresentar, pra mostrar e tal, não é uma coisa meio que a paulistânia. Normalmente quem vem é uma pessoa de São Paulo que está indo no Embu, sendo recebido pelas pessoas do Embu, onde todo mundo se conhece e ele não conhece ninguém, então, eu acho que eu faço meio que essa ponte pra apresentar essas pessoas, pra poder estar falando do trabalho e tal.
P/1 – E quem você já levou lá?
R – Cara, o primeiro sarau foi o lançamento do livro do Sarau do Binho e o livro da minha avó, sobre os orixás. O primeiro sarau foi o Binho. Segundo sarau eu já não lembro mais quem foi no segundo? Foi o... eu acho que foi o Akins, o Akins Kinte.
P/2 – Que ganhou o Festival de Poesia no ano passado.
R – Que ganhou o Festival de Poesia ano passado. E eu estava apresentando o Festival de Poesia, era apresentador do Festival, foi um barato apresentar este festival, inclusive, muito bom. Eu não lembro se foi o Akins, porque depois... eu acho que foi, mas não tenho certeza. Eu sei que já foi o Binho, o Akins, o Jonas, o pessoal da Maloqueirista, o Berimba já foi junto com o Jonas e o... quem era o?
P/2 – Eu não fui nesse dia, não, eu fui com a Jennifer.
R – Ah, você foi no dia da Jennifer? Eu já estou me confundido, já. Porque depois que começa a vir um, outro, outro, você meio que perde a noção. Ah, eu acho que depois do Binho não foi o Akins, foi o Pezão. Foi o Pezão. Foi o Binho, Pezão, Akins, depois... eu não vou lembrar agora todo mundo, mas já foi bastante gente, já. Já foi o pessoal do Maloqueirista, já foi o Giovani Baffô, já foi a Jennifer, já foi um rapaz lá do Embu, já foram alguns grupos se apresentar como Revista do Samba, Orixá, a Companhia Sansacroma. Tem uma vez por mês esse sarau.
P/1 – Na primeira quinta, é isso?
R – Primeira quinta. Só o ano passado ele não aconteceu do mês de abril. Na verdade do final de ano até junho ficou parado, porque na verdade ele ia voltar em abril porque o carnaval acabou em março, ia voltar em abril. Em abril deu aquela chuvarada, caiu o teto do teatro e aí meio que sofreu uma reforma. Encheu a calha lá, caiu, molhou tudo, então essa reforma demorou um tempo. Até rolar essa reforma, foi voltar em junho. E esse ano aconteceu a mesma coisa, só que esse ano a gente fez o sarau de março, só não fez o agora de abril. A gente voltou depois do carnaval, fevereiro teve o carnaval, então voltamos em março. Não, a gente fez em fevereiro, verdade, só não rolou em janeiro. Fizemos em fevereiro, em janeiro não rolou, teve fevereiro, março, agora abril caiu o teto de novo, no mesmo lugar, a mesma calha, tudo de novo. A gente não fez esse mês de abril, mas agora maio vai ter, ainda não sei direito quem vai ser o convidado, tudo indica que vai ser a Roberta Estrela D’alva, que ela já estava pra ir desde abril, mas pegou dengue, também caiu o teto, então...
P/1 – Você tem 30 anos?
R – Trinta e um, pra fazer 32 agora dia 18 de maio.
P/1 – Nossa, 30 anos você já agitou à beça, hein? Impressionante! Nós estamos indo pro fim da entrevista.
R – Pô, eu nem te falei do Donde Miras!
P/2 – Fala, fala, então.
R – O Binho deve ter falado, né?
P/1 – Ele falou, mas fala a sua...
R – Eu vou pegar o gancho dele, né? O Donde Miras é um projeto bem engraçado que começou no Bar do Binho. Conversando com o Serginho, tal, ele já deve ter contado como começou, ele com o Serginho com essa ideia de lançar o livro bilingue e viajar pela América Latina, vai de bike, vai de carro, vai de moto. Não, vamos a pé. Eles ficaram com essa discussão, aí um dia eu estou lá no Bar do Binho conversando com o Peu, aí o Binho e o Serginho chamam a gente de canto: “Vocês iriam fazer uma caminhada cultural pela América Latina a pé?” (risos) Eu falei: “Eu vou” “Então vambora” “Mas vocês vão mesmo?”, o Binho falou: “Vai mesmo? Se tiver, se acontecer você vai?” “Eu vou, não tenho nada a perder”. Beleza, passou um tempo. Um dia o Binho fala: “Olha, a gente está movimentando o negócio” “Beleza, conte comigo”. Aí férias, final de ano, vou pro Rio de Janeiro. “Ô Zinho, a gente vai precisar ficar no teatro tal dia que a gente vai sair com a caminhada tal dia do Campo Limpo, você vai estar no teatro?” Eu falei: “Pô, eu vou estar no Rio, cara”. Ele falou: “Tem como alguém receber a gente no teatro?” Eu falei: “Ó meu, minha avó vai estar lá, ela recebe vocês e eu chego do Rio no dia que vocês vão chegar no teatro. Mas eu não vou estar de manhã, vou chegar à tarde”. Ele: “Não, beleza”. Eles chegaram, a caminhada chegou no Embu. Eu cheguei do Rio correndo pra receber. “E aí, dormiram bem?”, acho que eles chegaram na noite, dormiram já, eu peguei eles já no outro dia tomando café da manhã. “Pô, legal”, só que eu estava meio que fazendo uns trabalhos e tal, meio que uma correria e eu falei: “Bom, vou acompanhar vocês até Itapecerica. Vamos até Itapecerica, chegando lá a gente faz o sarau, eu durmo lá, de manhã quando vocês forem pra São Lourenço da Serra eu volto pro Embu”. Beleza. Fui com eles, rolou o sarau em Itapeceria, acabou o sarau a gente foi pra uma escola, dormimos, tocamos violão à noite, conversamos, tomamos umas cachaças. No outro dia acordamos oito horas da manhã, vai pra pegar a BR. A minha mãe mora bem na BR, a casa dela é beirando a BR, o bairro, e a casa dela é quase na BR, você escuta, caminhão parece praia lá. E aí eu peguei e falei: “Vou passar na minha mãe”, de manhã, eu passei na minha mãe. “Mãe, tudo bem?”, acabei que na minha mãe eu peguei uma pasta de dente, uma escova e eu falei: “Vou com vocês até São Lourenço” (risos). Aí fui até São Lourenço, chegou em São Lourenço eu falei: “Bom, estou pertinho do Embu, cara, vou até Juquitiba”. Fui até Juquitiba, aí em Juquitiba eu tive que voltar pra Embu pra pegar roupa, aquelas coisas. Voltei, de Juquitiba pra Embu dá uma hora, voltei, peguei o que tinha que pegar e fui embora com os caras até Curitiba. Eu voltei umas duas, três vezes pra fazer algum trabalho.
P/1 – Que foi um mês, não é isso?
R – Foi um mês caminhando. E a primeira caminhada foi a maior aventura de todas porque a gente fez São Paulo – Curitiba a pé, São Paulo – Cananéia, São Paulo – Botucatu e a última foi Santos – Paraty.
P/1 – Você foi em todas?
R – Fui. E aí a primeira foi a mais legal porque ninguém tinha noção de nada, ninguém. No começo a gente aceitava qualquer um. A gente caminhava até a cidade, chegava na cidade, fazia o sarau, dormia, acordava de manhã e ia pra próxima cidade. Isso era uma loucura porque era muito cansativo. E às vezes tinha erro de cálculo, a gente estava programado pra andar 20 quilômetros, andava 40. E aí você chegava na cidade com as pernas já borbulhando de cansaço, só o pó, já tomou chuva, vento, sol, tudo e ainda tinha que apresentar o sarau. Quem que era o apresentador do sarau?
P/1 – Você (risos).
R – Apresentador do sarau, cara. Depois com o tempo foi passando, a gente foi ficando profissional, o apresentador do sarau tinha uma vida de rei lá, né cara? Tinha gente que ficava até brava porque o cara tem que chegar cedo pra apresentar o sarau, então às vezes o pessoal estava no meio da caminhada, o carro de apoio vinha, me pegava. Do ponto que estava, se faltava uma hora pro sarau ainda não tinha chegado no local, o carro de apoio me pegava, levava, eu furava a fila pra comer, fulava a fila do banho porque o sarau tinha que começar na hora. Mas isso era lá na frente, que a gente já estava meio esperto com toda a caminhada. Mas no começo, nossa, eu era um dos caras que mais se dava mal (risos) porque às vezes eu estava chegando na cidade, a galera comeu e eu tinha que apresentar o sarau, porque tem que começar o sarau. Era eu, o Jesus, o Binho, sempre se dava mal, perdia o tempo de banho, perdia tudo pra apresentar o sarau. Mas era muito divertido porque eu podia estar com o cansaço que fosse, na hora que você chegava na cidade, montava, colocava o telão. Já começava que a gente chegando na cidade já era uma coisa diferente. O pessoal olhava você, cabelo diferente, umas roupas diferentes, montando. Chegava a montar uma estrutura, parecia o circo chegando na cidade, né? Montava aquele telão, aí uma bicicleta, uma mesa com livro, fazia um varal com as camisetas que a gente ia vender. E fora as histórias que a gente ia aprendendo no meio do caminho, tal. Foi uma coisa assim, os quilombos, os lugares que a gente passou. Tem muita história nessa caminhada, história de amor e briga. Eu gosto mais das de briga (risos). Tinha umas histórias, tipo, brigar na BR assim: “A gente vai andar por tal lado” “Não, vamos andar” e o grupo se dividia: “Reunião!”. Tipo, tinha um carioca mesmo que falava assim: (fala imitando a voz da pessoa) “Consciência pessoal! Consciência! Uma salsicha por pessoa, hein? Ó a consciência. Uma salsicha por pessoa. Eu estou vendo, hein? Está escondendo a salsicha aí, hein? Está embaixo do feijão, eu sei que tá, hein!” (risos) Porque era uma coisa assim, a gente, a primeira caminhada a gente ia fechando as conversas meio na raça, não tinha nenhum apoio. A gente vendia as camisetas, a grana era revertida pra gasolina pro carro de apoio e pra comida. Tinha cidade que apoiava com comida, tinha cidade que não, tinha cidade que passava comida. Às vezes tinha um grupo que vinha andando separado, às vezes chegava por último e não tinha comida, então tinha que ter essa consciência. Mas era...
P/1 – Bem legal esse projeto.
R – Era sensacional. Já no final a gente já estava calejado, já estava esperto. As últimas caminhadas, tipo Paraty, já estava pá-pum, bateu, voltou. Ia lá, fazia o que tinha que fazer. E depois a gente também era assim, ia caminhando até a cidade, chegava na cidade dormia, acordava no outro dia e tinha o dia inteiro livre, à noite era o sarau. Dormia, acordava no outro dia e aí ia andar. Só a primeira que foi. Pela primeira batidinha era só bolha no pé, né?
P/1 – Zinho, eu estou preocupado com seu compromisso, o Jonas vai encerrar.
R – Nossa, gente! Meu Deus do céu!
P/1 – Já passou?
R – Eu já virei abóbora há seis minutos.
P/1 – Então Jonas, encerra aí.
P/2 – Não pode falar mais nada?
R – Não, eu posso falar, se não enrolar muito.
P/2 – Eu ia te perguntar da relação... eu estava aqui segurando pra perguntar várias vezes, da relação com o Candomblé.
R – Pô meu, a relação com o Candomblé. Eu vou no Candomblé desde criança com o meu pai. Meu pai é Ogan, minha avó tem 30 anos de santo, então ela pode ser mãe de santo, mas ela não é, não tem o ilê. Mas ela joga búzios. Eu cresci vendo minha avó virar no santo, essas coisas, minha mãe também. Minha mãe teve a cabeça raspada, hoje em dia é da Igreja Messiânica. Eu acredito sim nos Orixás, eu acredito na Umbanda, eu acredito na Igreja Católica, eu acredito no Budismo, eu acredito no Seicho-no-Iê. Eu acredito um pouco de tudo assim, cara, não tenho religião, tenho um pouquinho de cada uma. Tem hora que eu acho que tem exagero em uma, eu tiro, exagero na outra eu também tiro. Mas pego um pouquinho o que eu acho legal pra mim de cada uma.
P/2 – Você já recebeu orixá?
R – Nunca recebi nada. Só vi pessoas recebendo. Quando eu era criança tinha um cara no Embu, que foi a única coisa mais espiritual, forte. O nome dele era Dunga, e o Dunga tinha uma família, a família dele morreu num acidente, ele virou morador de rua, só que era um cara muito estudado, era um cara bem preparado, se não me engano ele era jornalista, inclusive, antes de virar morador. E ele vivia lá na Praça do Embu e ele gostava muito de criança. Então quando era moleque, seis, cinco, sete anos, eu ia brincar na feira lá do Embu e sempre conversava com o Dunga. E o Dunga, inclusive o Alexandre Kadunc que foi um jornalista, ele tem até um livro que são frases de pessoas embuenses e tem algumas frases do Dunga nesse livro. E o Dunga faleceu um certo dia, não sei quando, e beleza. Um dia eu estou na minha casa em Itapecerica e aí eu ouvi alguém me chamando no portão, saí lá. E aí era o Dunga. O Dunga me deu uma flor, eu não sei o nome dessa flor, mas é uma flor vermelha com um negocinho amarelo, assim, é uma flor meio que mato, dá em tudo quanto é lugar. E aí ele pegou e me deu essa flor. Ele apareceu no portão e falou: “Oi Zinho, tudo bem?” “Tudo bem. Você por aqui? Legal” “Só vim te trazer esta flor aí, que você continue firme e forte”, foi algo assim. Não me lembro as palavras dela, certamente, mas eu lembro dele sorrindo e me dando a flor.
P/2 – O Dunga.
R – Aí eu entrei todo feliz pra dentro de casa e falei: “Ó mãe, o Dunga acabou de vir aí no portão e me deu uma flor”. Minha mãe quase caiu dura no chão (risos). O cara tinha morrido há três meses já (risos).
P/1 – É mesmo!?
R – E a minha mãe ficou espantada, cara. Eu estava com seis, sete anos. E aí ela pegou e falou: “Inclusive eu estava conversando ontem”, ela estava conversando um dia antes com o Kadunc, que já faleceu também, sobre o Dunga. E aí um dia depois recebi a flor dele e tal. Eu cresci meio que vendo as coisas assim. Eu lembro quando eu era moleque, com uns quatro, cinco anos, assim, chegava pra minha avó e falava: “Ô avó” e ela: “Eu não sou sua avó, meu nome é Pozinho”, estava com o erê, né cara? Então o erê que falava: “O meu nome é Pozinho. Sua avó? Está me tirando, moleque?” Eu sou criança igual você e vem me chamar de vó? E você ia brincar com sua avó que na verdade era um erê, comer caruru em festa de erê, que em casa sempre teve, tal. A ligação foi sempre muito tranquila com o Candomblé. E em casa cada pessoa é meio que de uma religião. Minha avó tem uma filha que é budista, tem outra filha que é crente, o meu pai já é do Candomblé, a minha avó também, a minha mãe da Igreja Messiânica, inclusive os filhos é tudo meio misturado. O meu pai mesmo tem uma filha alemã. O meu outro primo lá é americano. Aí tem um primo meu que é japonês, que aí é japonês e preto, o black samurai. Então é toda essa mistura. A minha avó fala que lá é a ONU (risos). A nossa família é tipo a ONU, então a gente tem que respeitar tudo, né, cara? Então eu nunca tive esse lance de ter o preconceito, inclusive em casa foi tudo muito aberto assim, religião, sexualidade. Sempre teve gays na casa da minha avó, então não cresci com esses preconceitos que a sociedade implanta na gente, não teve uma coisa assim. Então eu sempre respeitei todas as religiões, todos os costumes e tudo o mais. E é isso. Teve até uma história engraçada quando eu era moleque, teve duas, duas bem engraçadas. Com a minha avó esse lance de espiritualidade, né? Uma era quando a minha mãe, com a minha mãe quando eu era pequeno eu tenho pequenos flashes, que descia um preto velho na minha mãe e o preto velho, só que era só eu, meu irmão e a minha mãe virada no preto velho, então ficava só eu e meu irmão em casa com o preto velho, porque não era minha mãe. Minha mãe virava no preto velho e ficava fumando charuto, trocando ideia comigo e com meu irmão e ficava nós dois trocando com o preto velho sei lá quanto tempo até o preto velho ir embora, mas só tinha a gente lá, né cara? Isso eu lembro da minha mãe. Agora da minha avó, ou era virada no Boiadeiro, pegava o berrante, tocava o berrante, trocava uma ideia, tal, ou com erê. Só. Que é o Pozinho, que é o erê da minha avó.
P/2 – Fala erê pra quem não sabe o que é.
R – Erê é uma entidade do candomblé, criança. É uma criança que desencarnou, esse é o erê. E aí eu lembro que um dia, cara, a minha tia, eu tenho uma tia que eu não converso com ela, na verdade ela implica comigo desde criança, que é a Dadá (risos). Ela me perturbava muito quando era criança, porque na verdade o meu pai é muito mais velho do que ela, acho que é 20, quase 30 anos de diferença, e ela é quase da minha idade. Então ela era a queridinha, eu nasci, meio que passou o foco pra mim e ela meio que me perseguiu durante anos acho que por isso, cara (risos), porque perdeu o foco mas tudo bem. Aí um dia ela estava me perturbando, ela perturbava mesmo, ela judiava. Minha avó olhava pro lado, ela catava, dava um beliscão daqueles de deixar até marca. Minha avó olhava pro lado e ela pegava o meu cabelo e dava uns puxões, arranhava e tal, estava lá meio me judiando assim. E aí minha avó estava com câncer na época, no intestino, ela nem sabia que estava com câncer, inclusive. Ela falava: “Dadá, para de perturbar o menino”. Eu na cama e ela lá, me cutucando. Eu (fala choramingando): “Ah vó”. Ela: “Dadá, para de perturbar o menino”. Aí minha avó estava indo pro banheiro, ela parou. A pasta de dente numa mão, a escova na outra e ficou parada assim. Aí eu: “Vó”. E ela paradona. De repente minha avó virou e (faz grunhido). Eu nunca tinha visto, né, cara, ela veio no Exu Caveira, cara! E o bicho já veio que veio brabo, brabo, brabo, brabo, né cara? Ele já veio já (fala com voz grossa): “Escuta aqui, menina, você não mexe com a minha moça! Que a minha moça está doente, você fica perturbando o menino! Se você continuar perturbando o menino eu vou acabar com a sua raça porque você vai acabar com a minha moça, que você está dando muita dor de cabeça pra minha moça!” E não sei o quê. Eu lembro que a voz era, tipo (fala com voz bem grossa e bravo) “Escuta aqui, menina! Eu sou o Exu Caveira”. Nossa, nessa hora, cara, eu encostei no canto da cama, assim, minha tia estava brigando comigo, me perturbando, eu me escondi atrás dela, com medo assim. E ele pegou e falou um monte pra ela, pra ela parar de me perturbar e tal. E aí eu lembro que um dia, passou, a minha avó voltou, perguntou quem era e tal, aí falou: “É seu Exu Caveira”, eu nunca tinha visto exu, né? Aí um dia eu estava na cama da minha avó, eu ficava na cama com ela, ela deitada e eu na ponta da cama vendo televisão. De repente ela estava ali e já fez (grunhido) “Ah”. Na hora que ela fez “Ah”, cara, em segundos, eu levantei, abri a janela, pulei e saí correndo (risos). Minha avó voltou, acho que ela tinha dado tipo um catarro, alguma coisa. Eu tchum, eu voltei ela estava rindo já (risos). E uma outra foi quando... Todos os filhos do meu pai nasceram no dia 18, com exceção do meu irmão que nasceu no dia 17.
P/2 – Caramba, mano! Fala rapidão.
P/1 – Então você fecha a história que a gente te interrompeu.
R – O que acontece? Um dia eu estou lá na casa da minha avó, tinha uns 11 anos. E estou no quarto, ela está com visita na sala, aí começa o Jornal Nacional. “Vamos falar hoje uma matéria sobre o Solano Trindade”. Eu falei: “Pô, vou lá na sala lá avisar a minha avó que vai passar uma matéria sobre o meu bisavô pra ela vir assistir”. Na hora que eu entrei na sala assim minha avó está parada. Quando a minha avó estava parada, estatelada, cara, aí ia vir alguma coisa. Ela está lá parada e uma moça que ela estava conversando já parada assim também, uma parada de frente pra outra. Eu peguei, nem entrei na sala, já fiquei meio que atrás da cortina só olhando assim. E aí de repente a minha avó olha pra senhora que estava na frente dela e fala: “Oi mãe”. Na hora que falou ‘oi mãe’, eu já falei: “Vixi maria. Entro ou não entro agora?”, ela pegou e falou: “Oi mãe”, e a mãe dela: “Minha filha!”, começou a chorar e tal, a filha falou: “Não chora, não fica assim, se você ficar desse jeito, nervosa, você vai ficar doente, eu estou sempre do seu lado, a gente já jávai se encontrar”. E a frase de sempre, né? “Não faça nada de mal pra ninguém que um dia a gente vai se ver”. Falou isso com a mãe dela e foi embora. A minha avó já volta meio fraca, querendo um copo com água e tal. Nesse dia eu já acreditava em vida após a morte, depois desse dia eu fiquei acreditando mais ainda, porque a menina que faleceu eu conhecia também, a mãe dela eu também conhecia. A menina tinha acabado de falecer, morreu muito jovem, acho que com 21 anos em um acidente de carro besta. Então isso foi uma coisa que me pegou muito. Depois disso, hoje em dia minha avó faz (barulho de grunhido), eu fico sentado, esperando vir, se é que vem alguma coisa, de boa. Quando vem, dependendo de quem vem normalmente pra falar é o Pozinho, então o Pozinho é bem tranquilo, o Pozinho pede um guaraná, um docinho, ele troca ideia de boa. Eles já não vêm mais tanto na minha avó pela idade, então ele só vem pra avisar quando é uma coisa que preocupa muito, que ela está muito preocupada no caso. E se ela está com algum problema de saúde, então o Pozinho também vem e avisa. A minha avó é de Obaluaiê, então é por isso que quando está com algum problema de saúde Obaluaiê, o orixá, meio que cuida aí das doenças e tal, então a minha avó recebe o seu Obaluaiê, ele não fala nada, é um orixá, então o Pozinho fala por ele, né? E quando é pra dar uma bronca em alguém, que é uma coisa mais pra bater de frente, aí vem o seu Exu Caveira mesmo. Mas a gente troca ideia, hoje em dia eu já troco ideia de boa (risos). Hoje em dia eu já não corro mais.
P/1 – Zinho, foi super legal conversar com você, você tem muita história mesmo. Daqui a 20 anos, quando você estiver com 51 você tem que voltar pra gente fazer outra rodada. E a gente sempre tem uma pergunta pra terminar que é: O que você achou de ter contado a sua história de vida aqui no Museu da Pessoa?
R – Gostei muito de contar a história. Eu gosto de contar história, eu gosto de falar, apesar de falar pouco ou muito, às vezes, depende do dia. E uma honra estar aqui contando história. É muito bom a gente contar história, a gente estar inteiro, vivo, pra contar história. Que muita coisa a gente aprende e quando a gente conta história a gente passa também. Até contando história a gente aprende (risos). Tem até uma frase de um amigo meu, ele fala assim: “Quem não tem dinheiro conta história” (risos). Então é isso, eu gostei muito do convite, obrigado vocês por estar aqui hoje. E é isso, espero que essas histórias fortaleçam. Eu até gostei de falar mais sobre poesia e tal.
P/2 – Tem uma outra pergunta de encerramento que é: Qual foi a coisa mais bonita que a poesia te trouxe?
R – Cara, a poesia me trouxe tanta coisa que eu já nem sei. A poesia vive me trazendo coisa. Viagem, trabalho, amigos. Pô, eu lembro, sei lá, você está lá na Argentina, por exemplo, na feira do livro. Aí você vê o cara que você trombou há dez anos lá no Sarau do Binho, aí o cara olha pra você e fala: “Olha pra onde a poesia trouxe a gente”. Aí você está lá na Bolívia, ó onde a poesia me levou? À Bolívia, pra Argentina, pro Uruguai, pro Quilombo do Vaporanduva, pro Quilombo do Campinho, pra Cananeia, pra Iguape, pra Botucatu. Cada vez te leva para um lugar, é um presente que você tem. Poxa vida, você vai trabalhar com o que você gosta, está viajando, está conhecendo, e tudo isso graças a poesia. Fora os trabalhos, sei lá. Até jogar bola, eu não jogava bola há um tempão, me chamaram pra jogar um time de futebol e poesia. Aí você chega lá um monte de poeta, você vai ver o goleiro, o Michoni, com um óculos fundo de garrafa. Pedro Tostes era o outro goleiro. Gordinho, com óculos também. Você vai ver os atacantes. Zagueiro, Vítor Rodrigues, marca-passo no coração (risos). Só a poesia pra te proporcionar isso, né cara? Você está num time de futebol só de poeta, onde todo mundo é perna de pau. Pô, que legal que todo mundo é perna de pau, porque aí você não vai ser o único que é perna de pau do time. Esse conhecimento que a poesia leva. E as histórias, cara, é cada história. Até no prório Donde Miras, que a gente fazia sarau todo dia na caminhada, todo dia numa cidade diferente. Eu, por exemplo, não sabia nada sobre o Cururu, que é um repente em moda de viola, se podemos dizer, fui conhecendo, pesquisando com o Donde mesmo, no baixo Tietê. Ou você chegar um dia, por exemplo, se você for ver eu tenho a oitava série, né? Mas dou palestra em faculdade. Como assim? Graças à poesia, né? Quando eu lancei o Tarja Preta eu lancei em várias faculdades, eu nem sei, mas lancei em faculdade no Rio, na Bahia. O Tarja Preta é um dos livros que é bastante lido em cadeia, muito trabalhado dentro de cadeia porque eu trabalho com essa gíria de cadeia, então, essa linguagem que se fala na cadeia, eu tenho isso no meu livro, você encontra fácil. Então às vezes eu dou um livro para uma pessoa toda culta, conhecedora e tal, e ela talvez nem entender a poesia porque a poesia está numa linguagem que só quem foi preso entende, mas foi uma coisa proposital que eu fiz porque normalmente o cara está preso, ele não tem vontade de ler porque não fala a linguagem dele, aí quando ele pega algo que está falando a linguagem dele, ele vai procurar saber, ele vai procurar ler. Eu tenho alguns parceiros aí...
P/2 – E como você acessou a linguagem deles?
R – Vivência, cara. Porque quando eu tinha essa fase conturbada que eu pulei ela, eu conheci muita gente, ainda conheço, mas hoje em dia não tenho tanto contato, mas muita gente que vivia entrando e saindo de dentro da cadeia. Então acabou que eu conheci meio que a linguagem dos caras. Eu nunca fui preso, já quase fui (risos), mas não fui. Mas nisso eu conheci, tinha bastante menino na minha época no Embu, o Embu apesar de ser das Artes, ele é dividido em dois, tem uma parte que é uma grande periferia e outra parte que é o Embu das Artes bonitinho, pra turista ver. Essa parte que é periferia tem muitos jovens lá que, infelizmente, já nem estão mais aqui, muitos morreram, e teve uma época que era muito tenso. No meio dessa tensão aprendi até a convivência mesmo, trocando ideia, as gírias. O cara vivia lá no rolê com a gente, o moleque era preso, ficava seis meses na Fundação Casa, antiga Febem. Aí o moleque voltava, ele voltava cheio de vícios, falando as gírias e tal, e a gente perguntava: “O que é isso, o que é isso?”. Chegou uma época que eu comecei a perguntar tudo, quando eu comecei a descobrir que era uma outra linguagem, eu comecei a perguntar tudo: “Como é isso? Como é isso?”. E é, tipo, pão: marrocos. Por exemplo, marmita, que é distribuída, que num lugar chama marmita, em outro chama quentinha, lá os caras chamam de blindado. Banheiro é boi. O cara fala: “Dá licença, eu vou aqui no boi”. O que é a grade eles chamam de capa. Não tem essa gíria cola na grade, você vê hoje o moleque: “Cola na grade aí”, mas não se fala cola na grade, é cola na capa. A capa é a grade, na verdade. Cama é jega. O tatu, o que é um tatu? É fazer um buraco pra sair do outro lado. O cara vai fazer a Teresa, é amarrar as cordas pra escalar. Muda tudo o nome. O que é o mundão? Mundão é aqui, onde a gente está agora, é o mundão. Mas os caras estão do outro lado do mundão. Do outro lado do mundão onde que é? No mundo dele. Aqui é o mundão, lá é um outro mundo. Eu tenho até uma poesia que chama Mundão.
P/1 – Quer terminar com ela?
R – Não, não, acho que não.
P/1 – Quer terminar com algum outro poema?
R – Eu vou procurar um aqui que é... cadê (folheando). É que eu não lembro a página, aí eu tenho que ficar procurando aqui. Essa aqui, eu vou recitar essa aqui. A Trilha. (Declama): “A trilha da minha vida só eu posso guiar; sou um touro livre, sem rédea pra me segurar, sem algemas pra me prender; sou um pássaro sem as asas quebradas; mas já fui um touro a ir para o matadouro; já tive algemas e já me esqueci o que era voar; mas a trilha da minha vida só eu posso guiar; hoje eu sou poeta”.
P/1 – Legal! Muito obrigado aí, Zinho.
R – Eu que agradeço.
FINAL DA ENTREVISTA
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