Projeto Memórias da Literatura Infanto-Juvenil
Depoimento de Anna Flora
Entrevistada por Thiago Majolo
São Paulo, 03/06/2008
Realização: Museu da Pessoa
Entrevista número: MLIJ_HV009
Transcrito por Rosângela Maria Nunes Henriques
Revisado por Natália Ártico Tozo
P/1 – Então Anna, pra começar eu quero que você fale o nome completo, o local e a data de nascimento.
R – Meu nome é Anna Flora Ferraz de Camargo Coelho, eu nasci aqui em São Paulo no dia 11 de julho de 1959 e eu passei a minha infância inteira aqui... Pode ir falando?
P/1 – Pode.
R – Eu passei a minha infância inteira aqui na Vila e em Pinheiros e até muito legal, porque aqui o Museu eu me lembro que aqui era um bairro que era tudo terra e tinham várias... Era um bairro cheio de casas e cortiços, essa casa era um cortiço imenso e o bairro... Ali onde é o BNH [Banco Nacional da Habitação] era um campinho de futebol de várzea e os meninos aqui do bairro jogavam muito bem o futebol, tinha um time que chamava Leões do Morro que eles jogavam, eles acabavam... Eles ganhavam todos os campeonatos, eles eram daqui da Rua Natingui e jogavam onde era o BNH e meu irmão... A gente morava do outro lado que era mais perto da pracinha Morás e quando meu irmão vinha jogar futebol com os Leões do Morro sempre perdiam. E aqui era muito interessante, porque eu passei a minha infância aqui e eu ia à igreja com meus pais aqui da Cruz Torta e tinha festa de São João na rua. Eu morei na Rua Hermes Fontes que é pertinho da Mourato Coelho, porque meus avós moravam na Mourato Coelho e depois eu vi o bairro ir mudando, porque era um bairro de classe média, não era um bairro de estudantes, de artistas, na época da ditadura é que passou a ser. Os estudantes vieram morar aqui porque eles foram expulsos do residencial da USP [Universidade de São Paulo], porque a polícia toda hora fazia batida policial lá. E os aluguéis da Vila eram mais baratos, então eles vinham pra cá, não...
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Depoimento de Anna Flora
Entrevistada por Thiago Majolo
São Paulo, 03/06/2008
Realização: Museu da Pessoa
Entrevista número: MLIJ_HV009
Transcrito por Rosângela Maria Nunes Henriques
Revisado por Natália Ártico Tozo
P/1 – Então Anna, pra começar eu quero que você fale o nome completo, o local e a data de nascimento.
R – Meu nome é Anna Flora Ferraz de Camargo Coelho, eu nasci aqui em São Paulo no dia 11 de julho de 1959 e eu passei a minha infância inteira aqui... Pode ir falando?
P/1 – Pode.
R – Eu passei a minha infância inteira aqui na Vila e em Pinheiros e até muito legal, porque aqui o Museu eu me lembro que aqui era um bairro que era tudo terra e tinham várias... Era um bairro cheio de casas e cortiços, essa casa era um cortiço imenso e o bairro... Ali onde é o BNH [Banco Nacional da Habitação] era um campinho de futebol de várzea e os meninos aqui do bairro jogavam muito bem o futebol, tinha um time que chamava Leões do Morro que eles jogavam, eles acabavam... Eles ganhavam todos os campeonatos, eles eram daqui da Rua Natingui e jogavam onde era o BNH e meu irmão... A gente morava do outro lado que era mais perto da pracinha Morás e quando meu irmão vinha jogar futebol com os Leões do Morro sempre perdiam. E aqui era muito interessante, porque eu passei a minha infância aqui e eu ia à igreja com meus pais aqui da Cruz Torta e tinha festa de São João na rua. Eu morei na Rua Hermes Fontes que é pertinho da Mourato Coelho, porque meus avós moravam na Mourato Coelho e depois eu vi o bairro ir mudando, porque era um bairro de classe média, não era um bairro de estudantes, de artistas, na época da ditadura é que passou a ser. Os estudantes vieram morar aqui porque eles foram expulsos do residencial da USP [Universidade de São Paulo], porque a polícia toda hora fazia batida policial lá. E os aluguéis da Vila eram mais baratos, então eles vinham pra cá, não tinham condições de morar naqueles casarões do Alto de Pinheiros, aí foram mudando o bairro e foi ficando com a cara de vocês assim. Vinham muitos artistas, vinha um pessoal mais alternativo, mas foi muito legal quando eles foram chegando na década de 1970, porque o bairro era um bairro que parecia uma cidade caipira, igual Piracicaba nos anos 1960, então tinha procissão, aí tinha os velhinhos portugueses que faziam... A festa de São João era na rua e tinha quermesse na Igreja do Calvário e tinha lojinha, a padaria, não existia supermercado naquele tempo. Então eu fui vendo o bairro mudar, foi muito legal, foi até quando teve a mudança no bairro que eu fiz o livro Os Argonautas, que é sobre a Vila Madalena junto com a campanha da anistia, pode mostrar?
P/1 – Pode, claro.
R – Olha, o livro é esse aqui. Eu vou na Mitologia Grega, misturo com o mito dos argonautas, com a história da Vila Madalena e a campanha pela anistia que foi nos anos 1970, principalmente porque a Vila abrigou uns jornalistas importantes, porque eram os jornais que combatiam a ditadura e eram uns jornalistas que eram muito perseguidos pelo DOPS [Departamento de Ordem Política e Social], pela polícia, então tinham vários jornais que a sede era na Vila Madalena. Tinha o jornal Movimento que as pessoas sempre entravam escondidas numa casinha que todo mundo entrava escondida assim, era um jornal bem interessante. Eram uns pasquins, uns jornais bem pequeninhos, tinha o Versus, tinha o Movimento, o Ex-, esses jornais foram muito importantes para ajudar a criticar a ditadura.
P/1 – E essa lembrança você tem?
R – Claro, esse livro foi todo feito em cima da lembrança que eu tenho do bairro aqui, inclusive aparece aqui essa coisa do futebol de várzea, tinham vários campinhos de várzea. Todo esse quarteirão dos prédios do BNH eram campinhos de várzea e tinha a estrada da boiada que a gente ainda via uns bois assim, umas vacas. Por exemplo, a Vila Ida era um bairro que já era periferia, a empregada lá de casa morava na Vila Ida e era longíssima, a gente tinha que levá-la de carro, tinha muita lama.
P/1 – E era ali na Diógenes, não é?
R – Isso, era muito longe, era bem... Era lá, como se fosse fora de São Paulo.
P/1 – Conta um pouco dos seus pais, os nomes deles, o que faziam e a sua casinha?
R – Meu pai era carioca, ele era economista e minha mãe era professora, só que minha mãe depois de um tempo que trabalhou como professora... E eu não sei exatamente porque o meu pai veio pra São Paulo, isso tem a ver com os meus avós, porque meus avós eram portugueses e eles saíram do Rio e vieram pra São Paulo. Meu pai conheceu minha mãe no IBGE [Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística], porque ela foi trabalhar como secretária no IBGE e ele era economista do IBGE, ele trabalhava com Estatística. Aí eles se casaram e vieram morar aqui em Pinheiros. Então daí nasceu meu irmão – eu tenho um irmão mais velho – e aí eu nasci e era legal, porque a família inteira morava no bairro, então eu ia visitar meus avós, eu tinha muito esse relacionamento familiar de ter essa independência de ir à casa dos parentes a pé desde criança. Então eu sempre andava muito pelo bairro, porque na década de 1960 não era perigoso uma criança andar na rua, a gente brincava na rua. Por exemplo, eu montava circo na Mourato Coelho com a Aspicuelta onde hoje são aqueles bares, a gente fazia circo ali, fazia teatro, então tinha muito isso, jogar futebol na rua, eu brincava muito nessa pracinha aqui na Morás e a gente brincava sozinhos, não precisava os pais acompanhar. E então era uma infância muito gostosa que parecia de cidade do interior e meus pais também deixavam, não tinha essa coisa do pai fiscalizar muito, nem da mãe fiscalizar. E não só nas brincadeiras, mas isso também tem a ver com a cabeça dos meus pais, mas também em relação a leituras, por exemplo, na década de 1960 quando eu era criança alguns pais tomavam conta ainda dos filhos, eu não, meu pai me deixava ler o que eu quisesse. Então isso me ajudou também a gostar de ler, porque não tinha essa coisa de ficar tutelando; às vezes eu acho que a tutela da família muito em cima mesmo quando quer ajudar às vezes atrapalha.
P/1 – O que você lia nessa época?
R – Eu lia... Quer ver essa coleção, eu ganhei essa coleção do Monteiro Lobato que tinha sido da família dos meus primos mais velhos, tanto é que essa capa é bem antiga, é do André LeBlanc e ainda tem a assinatura de 1958 do meu primo que morava aqui também perto da Rua Morás. E isso foi muito legal, porque eu herdei deles toda coleção de Monteiro Lobato. Então eu adorava ler Monteiro Lobato e eu pegava os livros de Lobato e eu tinha um saco de fantasias, então eu fazia teatro com as crianças da rua e depois eu fui fazer Mestrado em teatro aplicado à educação ideal, são muitos anos de teatro pra criança. Quando eu dava aula de teatro pra criança numa escola eu escrevia umas histórias em caderno, mas caderno assim de... Sabe caderno que a gente arranca e fica a bolinha assim, fazia tudo à mão. E um dia a Ruth Rocha foi lá ser entrevistada, porque ela já era uma autora conhecida, eu nem estava no colégio nessa época do... Nessa época não, nesse dia não era dia de eu dar aula de teatro lá e uma das professoras que mostrou uma dessas histórias rabiscadas em papel assim de caderno e ela gostou e me telefonou dizendo que queria me apresentar para uma editora e foi assim que aconteceu. E sabe como é que foi? Quem estava coordenando a coleção era a Fany, o primeiro livro meu quem estava coordenando a coleção era a Fany, foi da Editora Escrita. Mas foi assim, eu fui... Tinha um saco de fantasia que eu me fantasiava, fantasiava as pessoas da família e fazia teatro. E teve um professor que depois eu estudei... Primeiro das escolas aqui do bairro, tinha um colégio logo depois da Teodoro Sampaio que chamava Machado de Assis perto do Fernão Dias, esse colégio fechou, todo mundo do bairro estudou lá. E aí depois mais tarde eu fui para o Mackenzie e no Mackenzie eu fui aluna do Naum Alves de Souza, o Naum Alves de Souza que é diretor de teatro começou a carreira dele dando aula de teatro pra crianças e de Artes. Ele marcou muito a minha infância, foi fundamental, ele e a irmã dele que é professora de Artes Plásticas que também mora aqui em Pinheiros numa vilazinha perto da Teodoro.
P/1 – De onde vinha esse saco de fantasia? Era da sua mãe?
R – Esse saco de onde que vinha? Era assim: eu pegava uns vestidos velhos da família, porque a família era muito grande, minha mãe tinha sete irmãos e todos tinham filhos e eram casados. E tinha um lado, uma tia minha veio de uma família que tinha grana, era a família Amaral que era da Tarsila do Amaral e elas tinham umas tias, umas fazendeiras que tinham uns vestidos que era uma coisa chiquérrima que elas passavam pra gente, entendeu? Que era a ala pobre da família, então a gente usava os vestidos assim da tia Liça, às vezes usava pra casamento, mas aí não servia eu colocava no saco de teatro, então o meu saco de teatro era chiquérrimo. Tinha uns vestidos velhos, mas tudo de Paris, da Itália, porque eram uns vestidos de bailes das tias ricas que elas não usavam, elas usavam duas ou três vezes e davam.
P/1 – Como era essa infância cheia de primos?
R – Fantasias. Foi isso, era um saco de fantasia que foi muito interessante, porque depois eu cresci e fui fazer História na PUC [Pontifícia Universidade Católica] e quando eu fui fazer História na PUC eu gostava de História, mas eu não... É gozado, porque foi uma fase que eu comecei... Ah, quando eu estava fazendo História na PUC o meu saco de fantasia ficou meio guardado assim dentro do armário, mas eu conheci um livreiro que tinha uma livraria na Cardoso de Almeida que chamava Zé Livreiro, que ele também foi muito importante na minha vida, porque ele fazia reuniões – eu não sei de onde ele conseguia – com umas pessoas incríveis, então eu conheci a Cora Coralina falando do livro dela; imagina eu com dezoito anos num sarau assim com a Cora Coralina! Aí quando o Gabeira foi anistiado, o Gabeira foi à livraria, a Marilena Chaui foi falar do livro dela, um pessoal fera! O José Paulo Paes. Eu não sei aonde que esse livreiro... Ele ia atrás de umas pessoas, porque também acho que naquela época talvez as pessoas fossem mais disponíveis, também não era tão difícil ou talvez ele tivesse o contato com as pessoas, mas eu nunca consegui entender direito como que ele conseguia levar tanta gente interessante na livraria. Aí ele me convidou... Uma das senhoras que frequentava a livraria era uma professora de teatro e ela me convidou para dar um curso ali na livraria com as crianças do bairro. E aí foi ficando assim e nessa escolinha que eu comecei a dar aula de teatro a diretora era uma parente minha e então também facilitou as coisas, então foi assim que eu comecei com a arte. Eu acho que a profissão da gente às vezes é a profissão que escolhe a gente, não é a gente que escolhe a profissão, porque eu tive dificuldade de escolher a profissão. A primeira faculdade que fiz foi de Direito, mas eu não gostava de Direito, no segundo ano fui pra História. Agora eu tive a sorte de conhecer uns professores muito legais mesmo na História, eu conheci um professor que me marcou muito, um professor anarquista chamado Maurício Tragtenberg, então eu ia assistir as aulas dele e ele me deixava assistir aula na Pós, entendeu? E foi uma pessoa que me marcou muito e isso é legal, quer dizer, eu tenho sorte com professor legal assim, eu encontro professores legais na minha vida.
P/1 – Voltando só um pouquinho na sua infância e esses professores de colégio... Quando era criança teve algum que marcou? Que influenciou leitura? Como é que foi?
R – O professor Alves de Souza marcou muito, porque ele trabalhava com arte e ele deixava a gente criar muito e ele me incentivava a levar o saco de fantasias para o Mackenzie, então eu também fantasiava as pessoas no recreio e fazia teatro com as pessoas, porque eu adorava o teatro e eu participava do teatrinho do Dia das Mães, porque eu acho que a infância da gente tem esse lado meio brega que faz parte da infância de todo mundo e que também é uma delícia fazer jogral no Dia das Mães, fazer cartãozinho para o pai com purpurina “querido papai hoje é seu dia”, eu acho legal também, porque é uma coisa super carinhosa...
P/1 – E com os avós, qual era o nome deles e como era esse contato?
R – Meus avós? Era um contato ótimo, minha avó chamava Arminda e meu avô chamava Cláudio, eles eram agricultores em Portugal e vieram como imigrantes com a guerra e a minha madrinha chamava, imagina, Maria dos Anjos, ela morava com eles, ela era viúva. Eles moravam numa casinha na Mourato Coelho aqui perto da Cardeal e eles eram pessoas muito simples, meu avô nem sei se fez ginásio e ele trabalhava numa fábrica de perfumes, mas quando eu nasci, porque meus pais me tiveram já com... Minha mãe me teve já com 44 anos, então na verdade meus pais eram velhos e meus avós quando eu nasci já eram aposentados. E minha avó cozinhava super bem, fazia uma bacalhoada que era uma delícia, portuguesa, e eu tinha uma relação muito carinhosa com eles, eu ia sempre a casa deles e fazia doce, aquela relação de avós mesmo.
P/1 – E era por parte de mãe?
R – Por parte de pai, porque os avós do lado da minha mãe que era de Piracicaba eu não conheci. E o lado da minha mãe era um lado mais requintado, porque era... Eu sei que meu avô em Piracicaba tinha tido muitas fazendas, eu tinha uns tios que davam aula lá na Esalq [Escola Superior de Agricultura "Luiz de Queiroz"], na faculdade de Agronomia. Era um pessoal assim, mais quatrocentão. A família do meu pai que era mais pobre. Aí nas minhas férias eu ia pra Piracicaba, então eu tinha também esse contato igual você me falou que teve contato com fazenda em Itu, eu também passava a minha infância em contato com a fazenda, com o mato, com esse lado.
P/1 – E como é que era lá?
R – Era muito bom, era muito gostoso, porque eu percebia que as pessoas contavam muitas histórias e o jeito de contar era diferente, então depois quando eu fui ler Guimarães Rosa que eu fui percebendo que o jeito de contar... Que talvez a linguagem que ele use não seja só invenção dele, é a linguagem das pessoas mesmo, você deve ter percebido isso quando você foi para o interior do Piauí, não é? Eu percebia também isso, o jeito de contar, as coisas são diferentes, até quando a gente ia pra Piracicaba que é aqui pertinho o jeito do caipira, contar é muito mais rico com imagens, figuras e certas palavras que eles usam que não quer dizer nada, mas pode marcar tudo pra frente, aí então...
P/1 – Pra mode, não é?
R – É. São palavras que vai que daí foi assim que parece contador de história mesmo. Então esse jeito de como as pessoas conversavam... O jeito das pessoas conversarem eu prestava muita atenção.
P/1 – E fora Monteiro Lobato, quem mais você gostava de ler?
R – Olha, eu li Condessa de Segúr... Quando eu era criança não havia tanta diversidade de literatura infantil como teve depois dos anos 1970 e eu adorava frequentar biblioteca, tinha uma biblioteca no Mackenzie que eu sempre ia na hora do recreio e tinha uma coleção que também era, além da Condessa de Segúr, uma coleção que chamava assim... Sobre a colonização, não sei por que gostava, mas eu adorava isso, era sobre a colonização dos Estados Unidos. Então até hoje quando eu vou na Monteiro Lobato tem essa coleção assim: Uma Cabana na Campina, então era sobre os primeiros colonizadores no Canadá. E então eles moravam na floresta e eu gostava muito, porque gozado, eu acho que já gostava de história, isso que vocês fazem aqui, por isso que eu gosto daqui, do trabalho de vocês, eu já admirava vocês antes de conhecê-los, porque eu sempre tive essa ligação com a história, ainda mais essa história do cotidiano, a história oral. Eu sempre gostei e era a matéria que eu mais gostava e gozado que eu gostava disso desde o primário. Interessante, não é? Aí eu fui fazer História.
P/1 – E nesse primário, tinha aquela diferenciação... Quase todos os escritores têm uma... É bom de redação, se destacava, isso também acontecia com você?
R – Tinha uma coisa assim que eu inventava história e eu era bandeirante, fardinha e bandeirante, naquela época tinha um movimento que chamava fardinhas e bandeirantes que eu acho que nem existe mais; a gente ia acampar e a gente se reunia todo sábado e fazia teatro, era um clubinho cultural. Hoje acho que nem existe mais esse movimento, não sei se ainda existe, porque as crianças têm muita opção de lazer e clube e naquele tempo não tinha e eu adorava, porque tinha um grupinho... Eu montava um grupinho de teatro, eu também organizava a biblioteca do grupo, cada um podia inventar o que quisesse no grupo. Então eu inventei a biblioteca, o jeito de organizar a biblioteca, eu tinha umas fichinhas assim que eu mexia. Então eu curtia isso e é gozado que eu cresci e fui trabalhar com o que eu brincava, então isso é gostoso e hoje eu faço o que eu brincava e que aí foi dando... Eu não esperava que eu fosse viver de direitos autorais. Então hoje o meu dia-a-dia é escrever, depois que eu dei aula de teatro pra criança e fiz Mestrado eu comecei a dar aula de teatro para os professores. E depois também eu trabalhei uma época na Secretaria do Menor e percorri toda a periferia de São Paulo dando curso sobre como trabalhar a literatura com jogos. E eu ainda faço de vez em quando umas oficinas assim sobre as fábulas de Esopo, sobre Mitologia Grega, às vezes quando me chamam nos colégios. Eu fui agora numa fundação lá em Jundiaí que é muito legal, que é uma fazenda que foi transformada numa grande escola para crianças pobres e aí eu fui lá contar histórias e fazer um jogo, uma brincadeira sobre Noides e anões com barbantinho, porque eu sempre fui sucateira, não é? Essa coisa de ter trabalhado na... Eu trabalhei na periferia na época que o professor Paulo Freire foi Secretário da Educação da Erundina, na gestão da Erundina.
P/1 – A Vila Madalena tinha umas figuras engraçadas, não é?
R – Tinha.
P/1 – Como era?
R – Tanto é que eu ia te trazer um livro sobre uma dessas figuras, mas é que eu estava sem exemplar.
P/1 – E quem era?
R – Era o louco do bairro. Era um guardinha que comandava um trânsito invisível e todos os moleques corriam do guardinha louco. Ele vinha muito aqui quando tinha campeonato de futebol, ele ficava apitando o jogo. Ele tinha um apito e ele apitava tudo o trânsito, o jogo, às vezes ele queria comandar o tráfego, porque não tinha tanto trânsito na Teodoro, entendeu? Então às vezes ele ficava na Teodoro dando uma de guarda, o apelido dele era guardinha louco e a gente corria dele, a gente chamava: “Guardinha louco!” e quando ele vinha a gente corria. Aí eu fiz O Louco do Meu Bairro que era sobre ele, eu podia ter trazido O Louco do Meu Bairro, mas eu estava sem... Também as editoras às vezes dão poucos livros e a gente distribui com os amigos e para as escolas e eu estou sem O Louco do Meu Bairro, eu tenho que pedir lá na Ática.
P/1 – E os seus pais chegaram a conhecer o Gino Meneghetti? Os seus avós? Ele era também uma figura, que aqui era o ladrão de telhados.
R – Ladrão de telhado, mas quem me falava mais desse ladrão de telhado era o meu avô. E meu avô me contava muito a história de Portugal também, porque ele gostava de história interessante, não é? Ele gostava também de teatro e também teve uma tia minha, que foi interessante isso, ela morava num casarão, ela era uma tia do lado rico da família, assim, um baita casarão, onde hoje eu moro na parte da frente, eu moro em frente onde ela morava. E nesse casarão ela tinha uma coleção muito grande de Mitologia Grega e quando eu era criança eu adorava ir lá e ler os livros, sempre que eu ia lá eu adorava, porque eu ficava lendo Mitologia Grega e os adultos deixavam. E daí foi muito legal, porque depois quando eu escrevi o Aristófanes ela me deu a coleção dela que eu lia quando era criança. Então tem isso também, olha quando eu comecei a adaptar o Aristófanes esse aqui foi o último, é o chamado Dinheiro e tem esse das Aves que são as comédias do Aristófanes, e esse aqui que é A greve do sexo, porque os gregos eram demais, as mulheres fizeram uma greve do sexo para acabar com a guerra. E quando eu estava adaptando essas peças ela me deu essa coleção, então é muito significativa, eu tenho essa coleção em casa.
P/1 – Que ótimo.
R – Isso é legal, porque a história da leitura tem a ver com a história da leitura da família também, então, por exemplo, tem a do Monteiro Lobato que eu herdei desse meu primo que já morreu, assinado em 1958, quer dizer, antes de eu nascer ele ganhou, antes de eu nascer, e a minha mãe lia pra mim quando eu tinha seis, sete anos de idade e depois eu comecei a ler sozinha. E aqui tem uma discussão linda que depois eu usei até quando fui estudar Filosofia que é a discussão do Saci com o Pedrinho sobre o que é mais importante: se é a inteligência do homem ou os animais que nascem sem saber, mas que agem por instinto. Nossa, é uma discussão filosófica que eu acho que é um dos trechos mais bonitos da literatura brasileira, a discussão do Saci com o Pedrinho na floresta, é por isso que eu trouxe.
P/1 – Quer ler um pedacinho?
R – Eu quero.
P/1 – Ah, que ótimo.
R – Tem uma hora que o Saci fala assim para o Pedrinho: “Nós não temos livros, porque nós não precisamos de livros, o nosso sistema de saber, as coisas, é diferente, nós adivinhamos as coisas, nascer sabendo isso que é bom, um pernilongo sabe como é a vidinha dele? Ele nasce na água saindo de um ovinho e logo que sai do ovinho ainda não é pernilongo e, no entanto, ele já voa”. Aí o Pedrinho rebate falando assim: “Sim, nascem sabendo e o homem, nós temos que aprender com os nossos pais ou nos livros e isso só prova o nosso valor, que mérito que há em nascer sabendo nenhum, mas há muito mérito em não saber e aprender pelo estudo”. Aí o Saci rebate: “Perfeitamente, eu não nego o mérito do esforço dos homens, o que digo é que eles são seres atrasadíssimos, tão atrasados que ainda precisam aprender por si mesmos e nós já nascemos sabidos”. Ali o Pedrinho pergunta para o Saci: “Mas tem uma coisa que me intriga, o que faz todas essas vidinhas da floresta viverem? Está aí uma coisa que minha cabeça não compreende”, e o Saci fala: “Ah, mas isso é o segredo dos segredos, nem nós sabemos, mas o que acontece é que de dentro de cada criatura, bichinho ou planta do homem há uma força que empurra a gente pra frente e essa força é a vida, empurra e diz no ouvido das criaturas o que elas devem fazer. A vida é uma fada invisível e ela que faz o pernilongo picar as pessoas nas casas de noite ou faz o homem querer estudar pelos livros”, mas é maravilhoso isso. Eu até fico emocionada cada vez que eu vejo, porque eu acho que são discussões socráticas assim... Quando eu levei na Filosofia, nossa, quase que eu fui reprovada, o professor achou o fim da picada. Era uma discussão sobre Filosofia Grega, eu levei o Saci e o Pedrinho, quase me matou.
P/1 – Essas imagens que Monteiro Lobato com outros autores criam, isso levado pra fazenda lá no interior, por onde passava isso era muito forte para você?
R – Isso é interessante, porque toda história do Saci e do folclore eu tive o contato na Literatura, não foi tanto lá no interior. Só que quando eu ia para as fazendas a gente escutava histórias locais de personagens que eles inventavam e que também eram uns personagens fantásticos, sabe essa coisa do lobisomem, da mula sem cabeça? Eu escutava também. Você tem razão, eles falavam do Saci também na fazenda, mas é engraçado que a ligação que eu tenho com o Saci é mais pelos livros do que... Porque eu ia para as fazendas nas férias, não é? Então eu ficava... A minha vida era mais urbana, então eu ficava em São Paulo mesmo.
P/1 – Mas tinha alguma que você gostava, que você se lembra mais clara?
R – Algum episódio? Eu lembro de uma fazenda que tinha um açude que me contavam que tinha uma mulher que tinha morrido no açude e que o espírito dela vagava e era uma mulher branca transparente, era a mulher branca que vagava pela floresta, porque ficava... Tinha uma reserva florestal perto do açude e então era a mulher branca que ficava vagando à noite.
P/1 – Você tinha medo dela?
R – Ah, sim, aí a gente inventava mil histórias e dava medo, mas era muito gostoso, porque essa coisa do medo que você sente lendo uma história, que dá medo, eu penso que é bonito, porque filtra pela estética, não é um medo concreto, era filtrado pela arte, então isso é que é bonito.
P/1 – Anna, você tinha algum sonho de infância, mesmo aqueles mais malucos que era ser astronauta?
R – Você sabe que eu não tinha... Eu queria fazer teatro, então eu fiz o que eu sonhava, eu não tive assim um sonho de uma coisa que não se concretizou, alguma coisa muito maluca, eu gostava de fazer teatro, eu gostava de ouvir música clássica, em me fantasiar e dançar com as pessoas e depois eu fui trabalhar com isso. Então eu fiz exatamente o que eu sonhava quando eu era criança e isso eu sinto que foi uma coisa gostosa.
P/1 – E quando é que você sai da Vila Madalena?
R – Olha, eu vou sair da Vila porque... Olha que interessante, essa Avenida Nova Faria Lima desde a década de 1960 que falavam que ela ia ser feita, mas falavam que ia haver uma grande desapropriação no bairro, o trajeto da avenida toda hora mudava de lugar. E o meu pai ficou com muito medo, porque teve uma época que falaram que ia pegar a nossa rua, imagina, a minha casa ainda existe até hoje. E aí papai quis vender logo a casa antes que desse algum rolo, não é? Que a avenida ficasse em cima da casa, aí foi uma coisa bem difícil pra mim, porque eu saí de um bairro que era super interiorano, isso foi em 1975 e fui morar no Jardim Paulista na Alameda Santos, num apartamento. Então lá eu já não tive essa vivência tanto do bairro como eu tinha, tanto é que é uma coisa interessante quando eu escrevo sobre a minha infância, vem muito mais o bairro daqui do que o da minha adolescência, porque a minha adolescência ficou assim uma adolescência super urbana na Alameda Santos, eu ia aos cinemas, encontrava os amigos, aí fiz cursinho. Então ficou uma adolescência mais urbana de São Paulo mesmo, de adolescente que mora em São Paulo que vai ao cinema e que era muito perto... Ali o que tinha de legal que quando o adolescente mora perto dos centros culturais você tem mais acesso a coisas, por exemplo, um adolescente que mora em Alphaville que ainda não dirige não tem, entendeu? Então eu ia à mostra do MASP [Museu de Arte de São Paulo Assis Chateaubriand], eu participei, eu fui à primeira mostra de cinema do MASP quando era super pequenininho, que funcionava no MASP, a mostra que ficou grandona de São Paulo. E eu ia a tudo sozinha, isso era legal, a gente tinha uma independência de ir em busca das coisas artísticas, que eu acho que o espaço urbano confinou o jovem muito em casa. Eu ia ao centro cultural, eu ia aos cafés que tinham no Bexiga, isso com dezessete, dezoito anos, ia a todos os cinemas, todas as exposições e na Avenida Paulista acontecia muita coisas, não é? Os museus, daí eu vi quando montaram o Centro Cultural Vergueiro, eu também frequentava. Então a minha adolescência foi mais de fazer programas culturais, mas tinha uma coisa que eu acho que isso tem a ver com o... Eu estava lendo um livro super bonito sobre o espaço do cidadão, que o espaço do cidadão tem a ver com você se apropriar do espaço local, por isso que eu acho o trabalho de vocês importante também, porque vai ligando com a história, com a preservação da história numa época que está tão globalizado, está tudo se pulverizando. Então o que eu percebo nas crianças e adolescentes é que eles estão tendo uma vida muito confinada nesse sentido, mais pobre, porque a internet põe você em contato com os outros, mas de um jeito mais superficial, alguns verbetes, não é a mesma coisa que você estar com seu amigo e ir lá e ver o Picasso no museu ou ir por conta própria ao cinema sem ter os adultos tutelando. Essa busca da arte também se faz com os adultos apresentando, mas não impingindo isso. Eu tive essa sorte de ter adultos que me apresentaram coisas boas, mas que não ficavam impingindo coisas boas, isso é importante, te dá independência de escolha.
P/1 – Aí você vai fazer Direito e larga e vai fazer História?
R – Eu larguei a faculdade de Direito, porque eu detestava coisa de lei, aquela... E na PUC a gente podia mudar de curso, a gente fazia uma espécie de uma prova, de uma entrevista, e eu mudei. E aí eu fui fazer História, que eu adorava, só que gozado, depois eu fui fazer Pós em teatro, porque quando eu estava fazendo História na PUC é que eu conheci o livreiro, essa livraria e ele me puxou para esse lado de artes. E depois quando eu fiz História... Eu entrei na faculdade na época da anistia em 1979, então foi muito rico, porque eu estudava na PUC e tinham professores que estavam exilados que estavam voltando. Então foi ano que Paulo Freire voltou, que Florestan Fernandes voltou e vários professores voltaram, foi uma época muito rica, ser calouro no ano da anistia, porque a gente ainda pegou uma leva de professores muito bons que estavam voltando do exílio. Então foi muito rica a época da PUC e aí foram surgindo alguns grupos também e tinham uns grupos que eram muito radicais de política, na faculdade, uns trotskistas, um pessoal muito ligado ao PC [Partido Comunista]. A gente montou um grupo anarquista, então eu também fantasiava pessoas, às vezes a gente invadia as assembléias fantasiados e o pessoal do PC queria matar a gente, nós éramos super certinhos em questões de carteirinha. Isso foi muito divertido, até hoje tenho boas lembranças desse grupo e alguns deles dão aula lá na PUC. Eu às vezes encontro, porque como eu moro perto da PUC e eu escrevo muito na biblioteca da PUC... Então eu me lembro também da minha época de estudante quando eu entrei em 1979.
P/1 – E o anarquismo sempre próximo, não é?
R – Aí eu fui percebendo que havia entre o pessoal de esquerda uma divisão também muito grande.
P/1 – E como que era fazer faculdade? Você trabalhava já? Morava com os pais? Como que era?
R – Era muito puxado. Eu ia pra PUC de manhã e ia dar aula de teatro numa escola que ficava ali na esquina da PUC mesmo e às vezes também a noite tinha licenciatura, porque em História você tem que fazer licenciatura. Então eu ficava assim... Eu acordava às sete da manhã e ia dormir às onze da noite e foi uma fase da minha vida que eu trabalhei bastante, porque eu ia pra PUC e depois ia trabalhar e depois voltava pra PUC.
P/1 – Mas não com História? Com o teatro sempre?
R – Não, gozado, eu fazia História na PUC, estudava História, mas dava aula de teatro e fazia licenciatura de História à noite. Aí quando eu acabei a faculdade de História é que eu fui fazer Pós em teatro. Quando eu fui fazer Pós em teatro aí eu já estava morando sozinha, eu fui morar na Pompéia, eu saí da Alameda Santos com 24 anos, eu fui morar sozinha na Pompéia. E ali eu dava aula de teatro, porque era um curso opcional e como tinha muita criança querendo fazer dava para eu viver. E naquela época a gente não precisava de tanta grana para sair de casa, entendeu? Hoje eu vejo minhas sobrinhas, elas não saem do jeito que eu saía, porque eu peguei um resto, um pouco de movimento hippie. Então não era chique ser chique, por exemplo, era uma época que não tinha computador, então a gente não precisava ter muito para viver, entendeu? Eu, por exemplo, não tinha sofá, eu tinha uns almofadões, o meu aparelho de som ficava num caixote de feira, porque era um jeito legal de viver. E eu também demorei para ter telefone. A primeira coisa que eu comprei com direitos autorais foi um guarda roupa, porque eu era tão dura que eu não tinha guarda roupa, eu pendurava minhas roupas numa ripa assim onde as crianças punham lancheira, eu peguei em algum colégio e pus no quarto. Mas é gozado, pensando hoje eu fui bem dura, mas eu não sentia que eu era dura, eu era super feliz. Agora é que eu penso: “Puxa, eu fui super dura”, eu vejo hoje minhas sobrinhas que saíram de Alphaville e estão morando sozinhas, elas saíram já com apartamento montado, entendeu? Com microondas, com computador, com carro, elas não saíram do jeito que eu saí, mas era outro jeito de viver também, as pessoas... Acho que não precisavam de tantos apetrechos para viver.
P/1 – Então Anna, conta como você teve a ideia de se interessar em fazer uma Pós no teatro. Como que chega a isso?
R – Então, eu comecei meio assim... Quando eu dava aula de teatro para crianças e eu frequentava essa livraria eu descobri um livro muito bonito que se chamava Improvisação para o Teatro da Viola Spolin, que era uma série de jogos de personagens de cenário e de enredo. E o livro tinha sido traduzido, eu não sabia, daí eu falei se eu quiser fazer Mestrado eu quero fazer em teatro e eu descobri que lá na USP estava começando uma área, um departamento novo, que chama Teatro Aplicado à Educação e eu fui atrás, só tinha professor, ainda nem existia o departamento, ela chamava Ingrid e sem saber ela que tinha traduzido o livro que eu estava usando com as crianças e ela se interessou, porque ninguém tinha usado aquele livro com crianças, usavam só com adultos. Ela falou assim: “Eu traduzi porque é uma educadora norte-americana, ela aplica esse método com os grupos de teatros alternativos nos Estados Unidos, mas que interessante, porque ela trabalha com adultos”. E aí ela me aceitou como orientanda dela e eu tive a maior sorte, porque eu não tinha feito graduação em teatro, eu tinha feito graduação em História na PUC. E ela me aceitou, porque coincidiu no dia de eu estar usando o livro que ela tinha traduzido e eu não sabia que era ela e ela ficou super feliz e ela foi minha orientadora. E agora eu estou até querendo voltar lá, porque eu fiquei sabendo que uma das pessoas que me examinaram da banca estão usando lá na ECA [Escola de Comunicações e Artes] o Aristófanes e eu estou querendo ir lá para ele... Para conhecer como eles trabalharam e eu estou até precisando... No ano passado eu ia lá e aí a gente se desencontrou porque ela tinha outros compromissos e eu estou querendo ligar pra ela e fiquei de ligar pra ela pra gente ir na Maria Lúcia Pinto, que é uma grande educadora. Agora a área existe, cresceu a área de teatro na educação, então foi outra professora que também me marcou, não é? Eu tive essa sorte e eu vou lendo umas coisas e é engraçado, às vezes eu me interesso por uns assuntos e me aparece umas pessoas que tem a ver com os assuntos, por exemplo, eu comecei a me interessar... Eu tinha lido uma coisa que eu achei lindo que eu estou querendo escrever um livro sobre isso, que tinha umas caravanas que saíam pelos desertos e todos os livros do Aristóteles quando a igreja os confiscou guardavam numas cavernas na Turquia em Istambul. E da parte do Oriente de Bagdá saíam umas caravanas, porque Bagdá era um grande centro cultural, tinha a casa da sabedoria onde as pessoas... Havia os filósofos que estavam traduzindo esses documentos, esses manuscritos do Aristóteles, e o pessoal ia com caravana pegar esses documentos que ficavam escondidos em cavernas. Então eu estava querendo escrever sobre isso, dos nômades do imaginário, das caravanas que vão buscar esses manuscritos. Eu ainda vou escrever essa história. Quando eu estava escrevendo essa história, que eu estava pensando na história, eu fiquei sabendo que eu queria fazer a caravana que está com os textos filosóficos se encontrarem com outras caravanas que saíam da Índia e iam espalhando as histórias do mundo, a Mitologia da Índia Antiga também em direção ao Oriente, porque foi assim que as histórias... Eu falei: “Ah, eu vou fazer as caravanas do imaginário se juntar com a caravana filosófica no meio do deserto”. Aí o que aconteceu? Eu estava lendo sobre esse assunto quando eu vou à PUC e vejo que está tendo um curso sobre um Mahābhārata que eu achei que era Mahābhārata, aí o professor falou: “Não é Mahābhārata, é Mahābhārata que é um grande épico indiano”. Eu fui fazer um curso sobre a Índia e acabei conhecendo um outro professor incrível de sânscrito, ele chama... Como é o nome dele? Ele dá aula de sânscrito, ele é professor da Pós de sânscrito na USP e... Alberto Fonseca! E ele traduz umas peças de teatro, umas comédias da Índia Antiga, imagina, ele traduz e essas comédias são geniais, porque a gente tem uma ideia da Índia ser uma coisa só séria, esotérica e aí eu o apresentei na Editora 34, ele tem onze comédias sobre a Índia Antiga que ele traduzia. Então isso é legal também, às vezes o assunto faz você conhecer pessoas muito legais, mesmo esse senhor que eu estava falando com você lá da área de Física da USP, eu conheci porque a Ruth Rocha ganhou um prêmio na área de Literatura e esse senhor ganhou na área de Ciências no ano passado. E aí ela me apresentou a ele e ele falou assim: “Eu estou querendo fazer biografias dos cientistas”, e isso também está me fascinando, eu acabei de escrever sobre a vida de Galileu e eu achei maravilhoso fazer biografia e tem tudo a ver com história de vida, não é? Que é o que vocês fazem aqui, vocês fazem biografias.
P/1 – Você contou que começou como uma brincadeira de escrever em caderno e que a Ruth...
R – Fazer fantasia de teatro, brincar de teatro e foi crescendo e virou profissão.
P/1 – Daí foi que a Ruth Rocha encontrou e...
R – Foi daí que ela me telefonou em casa, uma professora da escola mostrou uma história que eu tinha escrito para ela, que eu tinha feito num caderno e ela me telefonou falando: “Olha, eu adorei a tua história e eu estou coordenando uma coleção que a gente está precisando de autores novos e a gente quer publicar a sua história”, e aí ela me apresentou para a agente literária dela, aí a agente literária começou a me levar nas editoras e começou assim.
P/1 – E quando foi?
R – Em 1980.
P/1 – E qual foi o primeiro livro?
R – Eu tinha vinte anos, foi A Sereia Sirigaita e o Saci Tiririca, foi pela Editora Escrita. Depois eu nem me lembro mais, porque agora eu estou com 39 livros, então daí o segundo se eu te disser qual que foi você sabe que eu nem me lembro... Ah, daí teve, eu já me lembro, a Ruth Rocha montou uma editora junto com a Fany e com outros artistas, o Walter Ono, foi uma editora que depois eles revenderam, porque eu acho que escritor e ilustrador não funcionam como editor. Daí eles acabaram vendendo pra FTD, a FTD comprou, que é a Editora Quinteto e a Quinteto publicou muita coisa minha. E daí tinha uma editora que se chamava Cultrix que também publicou e a Ruth Rocha me marcou muito, porque nós fomos parceiras e até hoje a gente faz, eu faço livro sozinha, ela faz sozinha e a gente faz algumas coisas juntas. Essa coleção aqui que a gente ganhou o Jabuti são jogos e brincadeiras a partir da redação, eu fiz com ela, nós fizemos em parceria. Então a Ruth também é outra pessoa que me marcou muito e ainda marca, porque a gente desde que eu a conheci, desde a década de 1980, a gente tem um convívio bastante assíduo, nós somos parceiras em muitas coisas.
P/1 – E como pessoa, essa parceria, amizade, como é que é?
R – Ah, sim. Ela é uma grande amiga, uma das minhas melhores amigas, apesar da gente ter uma diferença de idade, porque ela é trinta anos mais velha que eu, ela é uma das minhas... É uma amiga de infância, assim, é uma grande amiga.
P/1 – E aí então você começa a escrever e começa já a viver de diretos autorais, como é que é?
R – Olha, para viver de direitos autorais demorou dez anos, mas eu nunca achei que eu fosse viver de direitos autorais, eu achei que sempre fosse dar aula de teatro, ia ser educadora ou ia fazer um Doutorado, eu até às vezes penso em fazer Doutorado, mas aí começou a dar para viver de escrever e é muito gostoso escrever. Então eu não sei se... Eu ia fazer carreira acadêmica, eu pensei assim: “Eu vou dar aula na USP de teatro”, mas aí a minha vida puxou para outro lado, eu comecei a viver de escrever mesmo. E, às vezes, eu até tenho vontade de fazer Doutorado, mas não para começar uma carreira acadêmica, porque agora nem teria como começar, que eu já estou mais velha e tudo, mas pelo assunto, quando um assunto me interessa aí eu tenho vontade de fazer, pelo assunto. Às vezes eu penso: “Ah, vou fazer um Doutorado em teatro, pegar essas peças que eu adaptei do Aristófanes”, talvez fazer um Doutorado de como adaptar um clássico para adolescentes, não é? Porque eu adaptei na íntegra, eu fiz questão de apresentar um texto na íntegra em linguagem teatral, então é importante você preservar o clássico na hora que você adapta, tem que ter mão leve para não atravessar a ideia dele.
P/1 – E quando começa a escrever, sempre pensando em escrever para adolescentes e crianças? Nunca para adultos?
R – Não, não sei sair desse jeito, porque eu acho que tem um mistério no jeito de criar que não é gênero falar assim: “Ah, eu estou fazendo gênero de artista, eu sou artista”, não é isso, é que não sei mesmo, porque sai assim. Sai de um jeito que fica aquela história engraçada e concreta que você vê que é para criança pequena ou sai de um jeito que você mexe mais com abstração e fica mais para jovem, mas eu não sei por que sai sempre mais para crianças e jovens e não para adultos, isso eu não sei por que acontece, dá vontade de fazer, não é? E você vai fazendo e quando fica pronto que eu acho que as pessoas... Você sabe que eu estava lendo uma coisa muito bonita do Mario Chandler que ele fala assim: “Ah, a pessoa faz um trabalho criativo não porque ela quer ser criativa, ela faz porque faz, ela nem sabe que está sendo criativa, os outros é que dizem depois”, não é? Então eu acho que acontece isso, você vai fazendo pelo prazer de fazer e quando você vê você fez, não tem nenhum mistério nisso, pelo menos comigo é assim, é uma coisa meio misteriosa, eu vou fazendo no que eu acredito, no que eu gosto.
P/1 – E sem essa preocupação de...
R – Com o público de se vai agradar, porque eu acho que tem uma coisa que é importante no trabalho de criação, é você não se importar... Você tem que ter uma autocrítica, mas ao mesmo tempo você não pode se importar muito em ser bem aceito, que é diferente de você ter autocrítica, porque eu acho que se a gente ficar muito preocupado em ser querido por todo mundo a gente não escreve. Você fica muito travada. Então eu acho que você também se distanciar um pouco de se os outros vão gostar ou não vão. É você que tem a autocrítica, por exemplo, O Galileu eu escrevi sete vezes, Aristófanes eu escrevi oito, eu vou fazendo e refazendo e eu fazia assim. Sabe aquilo como um bordado, você vai fazendo aos pouquinhos, vai fazendo devagar.
P/1 – Mas essas oito vezes são versões completamente diferentes...
R – Não, você vai corrigindo, eu faço e corrijo, eu corrijo, eu mudo para não ter repetição de palavras muito perto uma da outra, não ter repetição de ideias, porque isso também é um problema, às vezes você repete a mesma ideia. Isso é que é difícil, por exemplo, essa história do Galileu que eu escrevi foi difícil porque foi uma mistura de ficção com biografia, porque o ponto de vista do gato é um paradoxo, é o gato de Galileu que conta a história do Galileu. Então às vezes tem umas horas que não é ficção, porque o gato fala dos amigos dele, dos outros gatos e da vida dele misturada com a do Galileu, mas um adolescente consegue perceber que quando o Galileu entra em cena aquilo é verídico e quando os gatos entram assim é outra coisa.
P/1 – E qual é a sensação desse primeiro livro publicado? O que passa na cabeça?
R – Ah, é muito emocionante a gente publicar um livro, ainda mais quando você tem dezenove anos, foi muito interessante, você ver a palavra sua impressa e é ilustrado também, porque quando o ilustrador cria você não sabe o que ele está criando. Então é muito bonito você ver um personagem que você imaginou tendo forma física. A ilustração mexe muito com a gente.
P/1 – E qual essa importância da ilustração para o público infantil?
R – É importante, porque a criança ela começa a ler pelas figuras na verdade, não é? Então eu penso que quanto menor é a criança mais importância tem a ilustração e à medida que vai dominando mais a linguagem escrita, por exemplo, os meus livros para adolescentes já não tem tanta ilustração, tem algumas vinhetas, porque também é legal você imaginar, então aqui as ilustrações são mais leves, está vendo? Tem algumas ilustrações, porque eu acho que quando você vai dominando a linguagem escrita e a leitura você vai criando a sua própria ilustração na cabeça. A criança vai se despregando da ilustração e vai distraindo.
P/1 – E infanto-juvenil quase sempre vem o autor e o ilustrador também como uma pessoa muito importante. Tem alguma parceria sua com alguém muito grande assim?
R – Eu adoro os ilustradores que eu escolho, eu sempre posso escolher os ilustradores, às vezes a gente escolhe junto com o editor. Agora eu sempre tive uma sintonia boa com os editores e com os ilustradores, então eu gosto muito da Mariana Massarani, do Alcy, gosto muito do Walter Hugo, tem vários ilustradores que eu gosto, o rapaz... Às vezes tem ilustradores novos que também eu gosto de descobrir, então esse rapaz que fez as aves era estudante de Arquitetura e agora ele se formou, está nos Estados Unidos, ele ganhou um dos festivais, porque ele mexe com desenho animado. E quando ele ilustrou esse meu livro ele era estudante da FAU [Faculdade de Arquitetura e Urbanismo], mesmo essa moça eu não a conhecia, esse livro meu ficou pronto hoje, não é? Que eu vou dar pra você, é lógico, o do macaco. E a moça que ilustrou, eu não a conhecia, mas aí o editor me falou: “Olha, tem uma ilustradora que...”, eu achei tão bonito o traço dela que aí eu adorei e mandei um e-mail pra ela, ela também fez Arquitetura na USP, a Cecilia Esteves. Então tem isso, você vai descobrindo as pessoas.
P/1 – Conta um pouquinho alguns... Alguma trajetória sua, então alguns livros marcantes que você escreveu sozinha, aqueles com a Ruth Rocha... Conta um pouquinho dessa trajetória?
R – Quando a gente escreve junto, a gente escreve mais livros que são didáticos, que não são... Escrever ficção junto eu acho difícil, acho que não sai legal, então ficção a gente escreve sempre sozinho. A gente pode participar de coleções juntas, mas escrevendo ficção separada e o que nós escrevemos juntas são livros... São brincadeiras e exercícios de redação com literatura e com jogos, aí esses a gente fez em parceria. Agora o livro que sempre marca é o que a gente está escrevendo, tem isso, todos os livros me marcaram, mas quando fica pronto daí você já está pensando em outra história, então, por exemplo, esse Macaco ficou pronto hoje, mas eu já estou pensando nas caravanas do imaginário, porque quando você acaba a história, você acaba a história. Então você fica emocionada do livro ficar pronto e de ficar uma coisa bonita, um acabamento bonito, mas a história em si você já está despregada dela, você já está pensando em outra e aí você tem que ir cruzando a ficção com a memória e qual a observação do seu dia-a-dia, então você cruza a criatividade, a memória e a observação que depois eu estou pensando nessas caravanas. Então eu andei lendo umas coisas sobre as caravanas assim e que eu não sei, às vezes tem uma coisa que me emociona e que eu não sei muito bem como vai entrar na história. Quer ver o que eu li numa revista? Isso é verídico, que tinha um antigo Xeique que ele é que fez toda a fronteira atual da Arábia Saudita e ele era um velho que ninguém entendia como ele conseguia vencer as guerras no deserto com poucos homens e sendo tão velho. Então ele vencia porque ele dominava... Ele sabia... Era uma estratégia militar, ele sabia onde soprava o vento, porque se você no Saara sabe de onde vem o vento você vence a guerra, porque você... De onde você sabe de onde vem as dunas e vento é uma coisa fundamental e ele estudava uma área no Saara que chama O Grande Vazio, que é a área mais deserta do Saara e ele estudava o vento do deserto, imagina, pesquisando toda parte de navegação, os tratados de navegação marítima dos Vikings. Então ele dominava o deserto como se o deserto fosse um oceano, então isso é demais, um velho que dominava o vento no deserto, quer dizer, eu acho que ele vai entrar na história. Teve uma hora que eu estava querendo que viesse o vento no deserto, porque está vindo a caravana com as histórias da Índia, que é tudo ficção e a caravana com os textos do Aristófanes que é filosofia, as categorias do Aristófanes. Eu queria que houvesse um vento que desse uma troca e as pessoas acabassem levando as mercadorias trocadas, entendeu? Então a caravana da filosofia acaba levando umas coisas de ficção e a caravana da ficção também leva as categorias do Aristófanes e descobre pelas categorias que elas de certa forma entram na ficção, entendeu? Porque a ficção também depende de uma coisa de categorias do quando, do onde, do personagem, do que, tem que ter verossimilhança, tem que ter coerência, não é só um meio puro e simples, então isso... Essa coisa de você fazer uma história que tem que ter verossimilhança e que não pode repetir ideia e que tem sempre um o quê, um onde, um como, dá um trabalho insano, não é? Um trabalho que você tem que ter muito amor, mas às vezes você embarca e vai, mas é um trabalho que às vezes você fica meses... É muito, assim, por você mesma, porque o trabalho com você é a imaginação. E, às vezes, com algumas pessoas você troca ideias, mas é que é uma coisa que é muito... Pra dentro, não é?
P/1 – E por que essa preocupação com a filosofia?
R – Não sei, porque tem umas coisas em filosofia que me atraem, mas eu não sei por que eu vou meio por instinto assim, por exemplo, eu estava pensando nessa coisa... Eu estava estudando a Índia Antiga aí apareceu Galileu, aí eu conheci esse senhor físico da parte de Índia Antiga, eu fui pra Física e estou adorando ler sobre histórias da Ciência e estou descobrindo que quando a gente lê, porque assim, eu tenho muita dificuldade... Ontem até eu estava... É gozado, esse senhor estava me explicando umas equações, eu sou péssima na Matemática, eu não estava entendendo nada e aí eu falei: “Eu entendo quando eu leio a história da Física, a história da Matemática, mas eu não entendo as equações”, entendeu? Alguém tem que explicar pra mim, tem que ler a equação, mas quando você, por exemplo, a história da Física Quântica é muito bonita, porque você vai fazendo umas ligações com a parte de teologia da Índia Antiga, de matéria, de energia, tem algumas coisas que são meio parecidas. Quer ver, eu estava lendo um livro que chamava assim... Que eu não entendi muito bem, mas que eu achei bárbaro, porque tem isso também, às vezes a gente não entende, mas gosta, não é? Chama assim: A Estrutura Quântica da Matéria, tem uns pedaços que eu pulei, porque eu não estava entendendo, mas ele fala uma coisa e é um físico chamado José Leite Lopes, que é incrível a vida desse homem, ele ajudou a montar a faculdade de Física no Rio e ele era de Pernambuco, então eu fiquei meio pesquisando a vida dele na internet, ele era um professor e tanto. E ele fala que tem duas matérias, ele estava analisando sobre a energia das matérias que é assim, que é atração, que se as matérias ficam muito misturadas elas perdem o poder de atração e se ficam muito distantes também, então tem que ter uma distância certa, equilibrada para poder manter a atração e não que não pode nem se misturar e nem se afastar muito e tem uma passagem da Mitologia da Índia Antiga que fala isso, não é? Dos Deuses, que o céu e a terra não podiam estar muito misturados que não formariam o universo e também eles não podiam ficar muito longe porque se não a terra também não se formaria, eles teriam que ter um equilíbrio aí de distância, mas é lógico que a Mitologia não tem nada a ver com Física. Mas eu não sei eu vou ligando assim, eu não sei explicar o que... Às vezes tem um assunto que me interessa, eu não sei por que, por exemplo, uma vez eu escrevi sobre o Corinthians, eu escrevi uma história sobre o futebol e eu adorei escrever sobre futebol, eu fiquei pesquisando sobre futebol e me pediram outras histórias. Aí eu escrevi sobre o Palmeiras, aí eu estava pensando em escrever sobre o Santos e fiquei pesquisando e adorei pesquisar que eu fiquei sabendo que tem vários times de futebol de várzea em Santos que são os praieiros, que são times que eles jogam na praia de gerações a gerações. Então tem time de futebol em Santos que é assim, o avô tinha um timinho que daí o filho continuou com os amigos, os netos... Já está na terceira e na quarta geração, olha que incrível! É como se você tivesse um time de futebol que o teu avô tivesse jogado, não é legal? Isso tem a ver com o meu irmão também, porque é a memória do jogo, não é? E daí eu fiquei com a ideia de escrever também sobre futebol, só que quando eu pego... A gente pode ter várias ideias, mas quando eu pego uma história aí eu vou, eu me fixo naquela, eu não consigo escrever duas histórias ao mesmo tempo, não tem... Vou numa vou até o fim, por exemplo, essa do futebol eu estou querendo escrever sobre outros times também, tenho a ideia de fazer também sobre futebol de várzea que é uma coisa que está acabando, não é? Não tem mais futebol de várzea, aí eu me lembrei dos times aqui, entendeu? Dos Leões do Morro que jogava nesse morro aqui, porque você imagina esse quarteirão todo do BNH era só campinho de futebol.
P/1 – Mas você chegava a assistir os jogos?
R – Não, isso aqui era meio barra pesada esse bairro, entendeu? Era mais uns maloqueiros que já traficavam, não que traficava, porque nos anos 1960 não era assim, então às vezes a gente vinha, mas vinha com os pais, era um lugar bem periferia já assim, pessoal de classe média não ia muito, entendeu? Iam os moleques de rua e tinha muitos cortiços aqui, era um bairro meio perigoso, é gozado isso, a gente não vinha aqui para a Vila Beatriz, a gente até a Rua Morás e tal e quando tinha quermesse e jogos e campeonato de futebol a gente vinha assistir com a família, não é? Mas não sozinho, era perigoso.
P/1 – Anna, eu queria pedir para você se quisesse ler algum trechinho de algum livro seu que você goste, que você queira...
R – Eu vou ler esse aqui que ficou pronto... Ler o comecinho do... É um menino que mora no interior do Piauí e é um livro sobre pintura rupestre, então é o Bentinho, eu vou ler o comecinho também para não ficar muito chato: “Eu sou Bentinho e tenho oito anos, moro na Serra do Catimbó, aqui é lindo, tem uma porção de bicho solto, cutia, tatu-canastra, arara e flor de tudo que é jeito, a mimosa, linolu e uma grande muito branca chamada mandacaru, toda vez que a flor do mandacaru abre a chuva cai não sei por quê. Eu moro numa casa branca com varanda, nesse lugar a gente pendura uma porção de redes, porque aqui faz muito calor. No sítio nós criamos galinhas, pintinhos, porcos, cavalos e eu tenho um boizinho de estimação que se chama Brioso, quer dizer, ele ainda não é boi, é um bezerro, eu que o chamo de boizinho, ele me segue que nem cachorro, ele come capim na minha mão...”. Aí eu vou descrevendo a vida do menino, porque eu queria descrever, mas é aquela coisa estereotipada do Nordeste, da seca com miséria. Então eu fiz uma família e o dia-a-dia dela e o boi, porque eu estava lendo Câmara Cascudo, é maravilhoso como o boi é importante na vida... Você que esteve no sertão, não é? O boi na música, na cantiga de roda, o boi na dança o Bumba meu boi, o boi na economia com o vaqueiro, o trabalho com o boi e o boi está presente na cultura em todas as horas, na escultura, na dança, na música, nas brincadeiras e aí o menino... Tem a caverna do Catimbó que tem a figura dos bois desenhados, não é bem desenhado, porque daí a Mariana que entende muito de pintura rupestre me falou assim: “Olha, lá eles não pintavam bois em cavernas, eles pintavam bichos parecidos com bois, porque o boi só chegou no Brasil com os portugueses, não na época da pré-história”, então eram figuras de veados e de outros bichos. Então é sobre isso. É que daí eu também quero falar com você, assim, se eu ficar meio cansada eu posso falar, não é?
P/1 – Claro. Só uma pergunta, eu estou curioso, como que é na verdade para uma escritora ganhar o Jabuti? Qual o reconhecimento do trabalho? Como foi isso? Foi em 1990 e...
R – Eu ganhei dois. Eu ganhei com a Ruth pela coleção e foi legal, porque essa coleção que a gente fez ganhou de livro do ano, foi super legal, porque foi a primeira vez que um livro para criança ganhou como livro do ano. Ah, é emocionante, porque você faz sem saber que... Você não faz por... Você faz porque você tem prazer em fazer e aí eu fiquei emocionada, porque eu não esperava isso, eu falei: “Jura?”. É uma forma de reconhecer o trabalho que você fez e com pessoas que você considera.
P/1 – E o outro foi?
R – O outro foi com a Ruth Rocha, foi uma outra coleção que a gente fez que daí ganhou como melhor livro didático.
P/1 – E por outro lado, o lado do reconhecimento do público infantil, como é esse contato com o público infantil e infanto-juvenil seu?
R – Eu não acho que a gente precisa ter... O escritor precisa ter, eu vou falar uma coisa que muita gente discorda, eu não acho que tem que ter contato. Eu acho que o contato é o leitor que tem com a obra e o que a obra significa pra vida dele, eu não sou muito assim de... Acho que às vezes é um viés, eu não sou muito de ficar o tempo todo indo a lugares para falar dos meus livros, porque eu acho que o livro você chega... Que é uma coisa de dentro, é o leitor com livro mesmo, quando você fica se expondo muito e fazendo muitas palestras, indo muito a escolas, você acaba virando um pouco... Engraçado, as pessoas acabam te tratando um pouco assim como se você fosse artista de televisão, é estranho, entendeu? Ficam pedindo autógrafo, é gozado, eu não acho que escritor tem que virar famoso de revista Caras, porque eu acho que é uma coisa que é mais pra dentro mesmo, o leitor com a sua história, você não tem que ficar explicando como você fez a história. Eu acho que quebra a magia, eu não sou muito a favor de ficar expondo muito com o público, eu acho que atrapalha o leitor. Tem tantos livros lindos que a gente lê e a gente não precisa conhecer o escritor, porque a literatura o que tem de bonito é o que fala dos valores que são eternos, do amor, da perda, da amizade, da morte e do que se batalha na vida, do trabalho. E o destino humano não precisa ter intermediário, ter o escritor fazendo essa ponte, cada um faz com a sua própria sensibilidade.
P/1 – E você tem filhos?
R – Não, eu sou solteira e não tenho filhos.
P/1 – Sobre alguma criança próxima que te...
R – Não, as pessoas geralmente acham que quem escreve para crianças tem filhos, não, não tenho, sou solteira e não tenho filhos.
P/1 – Quer falar mais alguma coisa que a gente não perguntou?
R – Não.
P/1 – Então eu queria te agradecer...
R – Ah, eu também eu gostei muito, porque eu admirava já o trabalho de vocês, eu admiro muito, então eu vim aqui também para dizer isso e também para conhecer vocês, porque eu já conhecia vocês de certa forma.
P/1 – Obrigado, Anna.
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