Ponto de Cultura Depoimento de Eugênia Zerbini
Entrevistada por Eduardo Barros e Gabriel Nascimento
São Paulo, 29/07/2008
Realização do Instituto Museu da Pessoa
Entrevista nº PC_MA_HV136
Transcrito por Rosângela Maria Nunes Henriques
Revisado por Ligia Furlan
P/1 – Eugênia, as entrevistas do Museu da Pessoa começam com três perguntas de praxe: o nome completo, o local de nascimento e a data de nascimento.
R – Meu nome é Eugênia Cristina Godoy de Jesus Zerbini, eu nasci aqui em São Paulo, na capital, então eu sou paulista paulistana, do ano do IV Centenário de 1954, então eu tenho 54 anos e meio.
P/1 – E seus pais Eugênia, qual era o nome deles?
R – Meus pais... Eu digo sempre que tive pais diferentes, o meu pai era 20 anos mais velho que minha mãe, meu pai se casou muito tarde, e quando eu nasci ele já tinha 46 anos. Meu pai nasceu em Guaratinguetá e ele, com muito charme, dizia: “existem três cidades importantes no mundo: Paris, São Paulo e Guaratinguetá, aí acaba a geografia” nós brincávamos muito, porque eu acho que todo o meu prazer em leitura, em cultura, em música, eu tirei muito dele. E como dois grandes leitores, eu brincava fazendo uma remissão a Proust, dizendo que Guaratinguetá para ele era a Vivona, a Combirré do Vale. Ele sempre falava com apego, cheio de reminiscências, mas é uma Guaratinguetá que existe só na memória, né? Principalmente... Completamente idealizada. Agora, a minha mãe é de São Paulo. O meu pai nasceu em 1908, se meu pai estivesse vivo, ele estaria completando centenário. A minha mãe nasceu aqui em São Paulo capital, em 16 de abril de 28 e por quê eu tive pais diferentes?
P/1 – Só um minutinho, você poderia registrar o nome completo do seu pai e da sua mãe, por favor?
R – Então, meu pai chamava-se Euryale de Jesus Zerbini. O meu avô, Eugênio Zerbini, italiano, era professor de História, então ele gostava dos nomes gregos, e meu pai continuou [a tradição],...
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Entrevistada por Eduardo Barros e Gabriel Nascimento
São Paulo, 29/07/2008
Realização do Instituto Museu da Pessoa
Entrevista nº PC_MA_HV136
Transcrito por Rosângela Maria Nunes Henriques
Revisado por Ligia Furlan
P/1 – Eugênia, as entrevistas do Museu da Pessoa começam com três perguntas de praxe: o nome completo, o local de nascimento e a data de nascimento.
R – Meu nome é Eugênia Cristina Godoy de Jesus Zerbini, eu nasci aqui em São Paulo, na capital, então eu sou paulista paulistana, do ano do IV Centenário de 1954, então eu tenho 54 anos e meio.
P/1 – E seus pais Eugênia, qual era o nome deles?
R – Meus pais... Eu digo sempre que tive pais diferentes, o meu pai era 20 anos mais velho que minha mãe, meu pai se casou muito tarde, e quando eu nasci ele já tinha 46 anos. Meu pai nasceu em Guaratinguetá e ele, com muito charme, dizia: “existem três cidades importantes no mundo: Paris, São Paulo e Guaratinguetá, aí acaba a geografia” nós brincávamos muito, porque eu acho que todo o meu prazer em leitura, em cultura, em música, eu tirei muito dele. E como dois grandes leitores, eu brincava fazendo uma remissão a Proust, dizendo que Guaratinguetá para ele era a Vivona, a Combirré do Vale. Ele sempre falava com apego, cheio de reminiscências, mas é uma Guaratinguetá que existe só na memória, né? Principalmente... Completamente idealizada. Agora, a minha mãe é de São Paulo. O meu pai nasceu em 1908, se meu pai estivesse vivo, ele estaria completando centenário. A minha mãe nasceu aqui em São Paulo capital, em 16 de abril de 28 e por quê eu tive pais diferentes?
P/1 – Só um minutinho, você poderia registrar o nome completo do seu pai e da sua mãe, por favor?
R – Então, meu pai chamava-se Euryale de Jesus Zerbini. O meu avô, Eugênio Zerbini, italiano, era professor de História, então ele gostava dos nomes gregos, e meu pai continuou [a tradição], tanto que você vê, o meu nome é Eugênia. A minha mãe é Therezinha de Godoy, e depois do casamento Therezinha de Godoy Zerbini. Meu pai era general, em 1964 ele foi contra o golpe militar, então ele foi um dos quatro generais a tentarem... A esboçarem uma resistência, por isso ele foi preso, foi cassado. A minha mãe se indignou muito com isso, a minha mãe, Therezinha de Godoy Zerbini, sempre teve um apelo social muito grande, minha mãe foi tuberculosa quando tinha 15 anos, e ficou internada um ano e meio em São José dos Campos, em um sanatório cujo nome era Vicentino Aranha. Lá ela percebeu muito claro como eram tratadas as pessoas com dinheiro e as pessoas sem dinheiro. Então ela saiu de lá com essa questão social muito presente. Ela disse que lia também, porque tuberculoso não podia fazer nada, era descanso quase absoluto, então ela, lendo e refletindo, veio com essa questão social muito grande e fez Assistência Social, trabalhava como assistente social quando conheceu meu pai, em 51. E com essa cassação do meu pai, ela se indignou muito, ela amava muito o meu pai, eu acho que eles tiveram um casamento muito feliz, embora sendo assim, o sol e a lua, né? No temperamento eram bem distintos, mas por isso mesmo eu acho que se completavam. Minha mãe se indignou com isso e começou a fazer política contra o Governo de uma forma muito persistente em uma época em que todos estavam calados, isso desaguou na prisão dela em 70. Quer dizer, eu tinha por volta de 16 anos, 15 ou 16 anos.
P/1 – Só um segundinho, vamos só voltar um pouquinho, você disse que seus pais se conheceram em 1951?
R – Isso.
P/1 – Você tem essa história na lembrança? Eles te contaram? Como foi?
R – Muito. Em casa todo mundo conhece, porque é uma coisa de novela. Às vezes eu fico pensando, acho que eu gosto tanto de ler que a minha vida acabou se transformando em um romance. Foi o seguinte: a minha mãe trabalhava... O que salvou a vida da mamãe, ela sempre conta: quando estava no Vicentino Aranha ela foi cobaia, ela foi, vamos dizer, usada para experimentos que faziam. Eu não sei bem ao certo se era penicilina ou estreptomicina e... Porque antes, morria-se de tuberculose. O meu pai mesmo teve uma irmã mais velha que morreu tuberculosa, e a minha mãe pegou essa doença no cursinho, ela estudava no Anglo Latino, queria fazer Medicina, imagine só! E quando descobriram, ela já estava num estado muito avançado, ela descobriu tendo uma hemoptise, eu acho que vocês sabem o que hemoptise, né? É quando jorra sangue pela boca. Então ela foi internada, voltou, mas já tinha perdido dois anos da escola. Enfim, precisava de mais cuidados e era década de 50, quer dizer, achavam que... Perdão, final da década de 40! Eles achavam que ela não podia tomar sereno, que precisava se alimentar muito bem, tinha uma série de crendices. Talvez até conselhos sábios para aquela época, mas enfim, ela começou a trabalhar em um hospital infantil de crianças com tuberculose ou que estiveram expostas. Era o Hospital do Mandaqui, os que tiveram expostos pais tuberculosos, por exemplo. E ela chegou lá como toda ariana - porque minha mãe é de Áries - e com aquele impulso, começou a ter ideias. Ela fez um teatro infantil, montou uma biblioteca, agitou e fez um parquinho, porque nem todas as crianças estavam tão doentes, algumas, de acordo com o parecer médico, podiam sair uma pouco, era bom respirar ar e se divertirem um pouco. Eu sei que teve uma grande chuva, aquelas chuvas de verão em São Paulo, e derrubou o muro do parquinho. Os funcionários do parquinho, ao invés de fazerem o caminho correto, aproveitando-se do muro que estava caído, começaram a fazer atalho e cortar caminho pelo parquinho, destruindo o parquinho que minha mãe tinha ajudado a organizar. Ela se condoeu com aquilo e ficou desesperada, procurando como poderia ser reconstruído. Ela tinha 20 e poucos anos. Como poderia reconstruir aquele parquinho? E uma colega de trabalho disse: “olha, eu ouvi dizer que a Força Pública tem um setor de Engenharia, sei também que o coronel da Força Pública é solteirão metido a conquistador, por que você não vai falar com ele? Você é uma moça bonita, vai pedir o muro do parquinho para ele.” Ela achou aquilo absurdo, mas a minha mãe é muito intuitiva, ela é uma pessoa de muito impulso... Eu só sei que ela foi. A primeira vez que ela foi, ela foi atendida pelo ajudante de obras do meu pai, que não só deu um chá de cadeira nela, como não a deixou entrar no gabinete do meu pai, e a convidou para ir ao cinema, sendo que ele era casado. Então minha mãe ficou muito indignada e disse que assim, pelas vias corretas, não ia dar. Mas ela era obstinada e ficou com aquela ideia de falar com o comandante da Força Pública para fazer o muro do parquinho. Lá em casa brincam muito, ela sempre diz: “ta vendo, o muro em vez de separar, acabou nos unindo”. O Governo do Estado tinha cedido um carro para esse hospital, e o chofer era um sargento. A minha mãe chegou para o sargento e perguntou: “me diga uma coisa sargento, quando a gente sabe que um comandante está no quartel?” Ele disse: “ah dona, isso é muito fácil, a Bandeira fica hasteada.” Então ela disse que um dia de manhã cedo ela estava indo para o Mandaqui e passou na Força Pública - que era caminho - olhou para cima, ela disse que era um céu azul e a Bandeira estava hasteada, então disse: “é hoje.” Chegou e disse que não tinha ninguém, foi entrando, foi entrando e disse que chegou tinha um cabo ali na porta, um cara meio velho esperando. Ela falou: “eu queria falar com o comandante” ele disse: “pois não, um momento só” ela foi lá entrou e conheceu o meu pai. Começaram a conversar do parquinho, e meu pai era muito elegante, muito charmoso. Saíram de lá para inspecionar as obras, o muro do parquinho e ver o que podia fazer. Começaram a fazer o muro e foi assim. Aí teve um convite para lá, outro para cá, uma Van Premier para juntar fundos para esse hospital do Mandaqui para as crianças... Ele deu uma desculpa de que adoraria comprar um convite para Van Premier, mas que ele não tinha companhia e ela disse: “não seja por isso...” ela iria com ele, então foram ao cinema, em uma van premier, naqueles cinemas bonitos ali na São João. Ela conta que na saída ele virou e perguntou se ela queria tomar alguma coisa com ele... Ele já era quarentão, né? Ela vira com uma candura... Falando assim as pessoas não acreditam, mas antes os tempos eram outros, e minha mãe é bem assim, sabe? Dessas respostas inusitadas, virou para ele e disse: “sim, eu adoraria tomar um chocolate quente”. Eu falei: “mãe, a senhora acha que meu pai era...” corria uma lenda no Exército que ele era muito elegante, ele sempre dizia: “eu fazia equitação de monóculo, as minhas botas eram tão brilhantes que diziam que eu engraxava com champanhe” ele dizia: “era champanhe nada, era casca de banana, porque casca de banana tem tanino e dava um brilho especial”. Lembre-se que nós estamos falando de muitas décadas, né? Que não tinham esses cremes, essas graxas de hoje em dia e eu falei: “mãe, a senhora falou que queria tomar chocolate quente”? Ela disse que aí foram a um hotel, porque perguntaram: “onde se serve um chocolate quente aqui”? Foi lá no centro... Não sei se é Hotel Jaraguá ou coisa assim, eu sei que tomaram... Ou Leiteria Suíça, que tinha na Rua Líbero Badaró e tomaram o chocolate quente. Daí veio mais uma do meu pai, porque ela trabalhava no Mandaqui, e eles conversando... E minha mãe nunca gostou de acordar cedo, ela dizia que para ela era um inferno acordar. Minha mãe morava com a mãe no Cambuci, na Rua Diogo Vaz, 94. Naquela época ainda havia o resquício que no Cambuci tinha muito espanhol, era um bairro diferente do que é hoje, a casa da minha avó... Eu cheguei a conhecer essa casa, eram umas casinhas geminadas, pareciam umas casinhas inglesas. Na frente tinha uma vila, tinha um “L”, uma vila que continuava... Eu não sei se para o bem ou para o mal, mas muitos anos depois, - eu já tinha uma filha - a minha filha estava com quatro ou cinco anos e eu disse: “ah filhinha, eu quero mostrar onde morava a minha avó, a sua bisavó, na Rua Diogo Vaz.” Então domingo, também ensolarado, fomos lá e um horror... Eu me lembrei da Bíblia, que diz que a gente não deve olhar para trás, né? Sodoma e Gomorra descaracterizaram toda a casa, a casa foi vendida, ela tinha um pé de jasmim enorme que fazia um marco na entrada, aquela casa de tijolinho inglês virou uma masmorra, toda coberta de mármore branco, uma coisa medonha. E minha filha, muito surpresa, falou: “mas mamãe, era isso que você achava bonito”? Aí eu fale: “ah, as coisas eram diferentes.” Mas enfim, voltando, a minha mãe disse que não gostava de acordar cedo e é lógico que tinha que tomar um bonde para ir, um ônibus, e meu pai tinha carro, porque ele tinha um carro da Força Pública e tinha chofer, aí ele disse: “olha, vamos fazer o seguinte: eu moro no Jardim Paulistano, na Rua Itapirapuã. Moro com meus pais e saio sem tomar café da manhã, porque meus pais são muito velhinhos, então eu pego você, nós vamos conversando, eu deixo você no Mandaqui e vou para a Força Pública.” Eu acredito que esse quartel da Força Pública era no mesmo lugar que é hoje, ali na Tiradentes, quase na frente da Pinacoteca. Ele omitiu um detalhe que depois de casado descobriu: o meu avô, o pai dele, meu avô Eugênio, acordava todo dia às cinco horas da manhã e passava café. E por sinal era um café delicioso, cheiroso, era uma coisa. Aí a minha mãe disse: “hum”, sabe? E as coisas vão se descobrindo, veja, ele atravessava a cidade, porque do Jardim Paulistano para ir para o Cambuci e do Cambuci... Se bem que o Cambuci era mais perto do comando da Força Pública, mas são essas coisas. Então eles tiveram o namoro deles, todo mundo muito assustado com essa ligação, a minha avó principalmente, a minha avó Arminda, que foi uma mulher maravilhosa, eu tenho muitas lembranças dela. A vida foi muito dura para ela, foi... Meu bisavô não deixava ela ler porque dizia que mulher que lia não prestava, e o sonho dela era fazer Medicina, e é lógico que não estudou. A vida de uma forma ou de outra a compensou, porque ela foi casada duas vezes, e o segundo marido era farmacêutico, então ela cumpriu muito dessa vontade, porque ela adorava remédio, dar injeção... Era uma mulher fantástica, eu acho que uma das mulheres, assim... Sabe, ela não perdeu a doçura, não perdeu a alegria. Na vida, como eu disse, ela teve maus bocados e ela sempre sorridente, uma mulher muito fina espiritualmente, muito íntegra. Então essa minha avó, Arminda, Arminda Eugênia Méier quando solteira, depois virou Arminda Eugênia Godoy, ela dizia: “mas me diga, Therezinha, esse homem é muito mais velho do que você, esse homem deve ter uma história” e minha mãe respondia: “todo mundo tem uma história, a partir do momento que a gente nasce, tem uma história.” Aí minha avó disse: “não dê uma de João sem braço não, você está sabendo muito bem a que eu me refiro, em que ele tem uma história, esse homem tem um passado, um homem não chega aos 40 anos... Esse homem deve ter tido mulheres na vida, deve ter... Enfim, e você saindo com ele...” Mas depois se conheceram, a minha avó conheceu o meu pai e ficaram grandes amigos, sempre se chamando de senhor e senhora, sempre muito formais “Dona Arminda”, “senhor general” e ela o cocava muito, cocar do verbo... De fazer muitas vontades, e minha avó cozinhava muito bem, fazia os pratos que ele gostava: lombo assado, manjar branco. Ele, por sua vez, levava vinhos para ela, e falavam muito do passado. Mas não do passado assim... As pessoas mais velhas “ah, porque no meu tempo era melhor” de jeito nenhum, o meu pai sempre foi muito positivo. Eu acho que ele passou um pouco disso para mim, a memória como sendo uma âncora de vida. Ele sempre dizia o seguinte: “minha filha, tudo o que existe hoje...” Mas isso era nos anos 70, por exemplo, a questão do homossexualismo - porque naquela época era um pouco tabu, estava parando de ser tabu - a questão da droga, ele dizia: “isso sempre existiu, só que hoje as relações são mais sinceras, as coisas vêm mais a tona, as pessoas mentem menos.” Então isso eu achava muito bonito, porque quando ele falava isso para mim, ele já tinha 70 anos, ele virava e dizia: “tudo já foi muito pior”, quer dizer, ao contrário dos velhos que dizem: “ah antigamente... No meu tempo era melhor” ele dizia: “tudo foi muito pior” e contava as histórias, por exemplo, de Guaratinguetá. Ele conheceu Guaratinguetá sem luz elétrica, ele contava as peripécias, porque ele estudava em casa, o meu avô Eugênio era professor, dava aulas. A minha avó Ernestina fez escola Normal também, então acompanhava o estudo deles e ele prestava uma coisa que se chamava “exame vago”, no Pedro II do Rio de Janeiro. Ou seja, uma vez por ano ele ia com um irmão mais velho, o Ruben Zerbini, que já era... Ele foi dentista parece, com 13 ou 14 anos, era inteligentíssimo, o mais inteligente da família, e não se obedecia muito essa questão de idade. Como ele estudava em casa, ia para o Rio, prestava exame e passava. E dentista no começo do século XX era um curso, parece, que era só de três anos, não era o que é hoje. Depois ele fez Medicina, o Rubens, esse meu tio que eu não cheguei a conhecer. Ele foi um dos introdutores do pneumotórax no Brasil, era médico de pulmão. A origem dos estudos do meu tio Eurycledes - que era o irmão mais novo do meu pai - foi o que fez o primeiro transplante na América do Sul, o segundo do mundo depois do Christian Barnard. Então meu tio Eurycledes começou como médico de pulmão também, e meu pai dizia: “você não imagina o que era tomar um trem em Guaratinguetá e ir para o Rio de Janeiro, demorava quase um dia”. E tudo era muito diferente, tudo era muito mais difícil. Uma série de coisas, ele dizia, por exemplo: para estudar História, ele disse que primeiro aprendeu Francês, depois estudou História Universal, que era o Cesare Cantù , um historiador se não me engano italiano, mas que ele leu em Francês. Ele dizia que as coisas eram muito mais difíceis e que hoje eram muito mais fáceis. E repetindo, isso era nos anos 70. Eu não sei, mas se ele visse a internet, ele ia ficar abismado.
P/1 – Eugênia me fala uma coisa, você tem irmãos, irmãs?
R – Eu tenho um irmão, que é um ano e três meses mais novo do que eu. Ele fez Engenharia, é professor da Politécnica, também mora aqui em São Paulo e tem...
P/1 – Qual é o nome dele?
R – O nome dele é Euryale, que é o nome do meu pai Jorge, que era sugestão da minha avó Arminda. Quer dizer, um nome prático, né? Euryale Jorge, quem não conseguisse falar o Euryale... Godoy − o nome da minha mãe − de Jesus Zerbini.
P/1 – Eugênia, fala um pouquinho pra gente, você se lembrou de vários episódios do passado do seu pai e da sua mãe, eu queria que agora você falasse um pouquinho de lembranças da sua infância, das lembranças mais remotas que você tem da sua infância, por exemplo, da sua casa, o que você se lembra da sua casa da infância?
R – Antes da minha casa, eu tenho uma lembrança mais remota ainda, eu sempre contei uma história para minha mãe, eu trouxe inclusive a fotografia do lugar. Eu dizia: “mãe, é de noite, a senhora está toda vestida de preto. É uma noite de verão, tem umas luzes que ficam cortando o céu e tem uma chuva de estrelinhas, eu pego essas estrelinhas e jogo para o ar, e estou dando muita risada, agora, onde nós estamos é um terreno que demoliram, mas tem uns restos de tijolo, tem restos de uma construção e é na Avenida Paulista, na frente do Parque Trianon.” Minha mãe sempre dizia: “para com isso Eugênia, não gosto de falar, não tem nada disso”, mas eu insistia muito “não, eu estou muito feliz, eu estou com um vestidinho branco, eu rio e pego essas estrelinhas que caem, jogo e dou risada. E a senhora está do meu lado, eu estou muito feliz, é uma noite muito especial, é tudo muito bonito...” Enfim, depois ela me explicou o que era: em 25 de janeiro de 1954 eu vim para comemorar o IV Centenário na fundação. A Wolf, que era uma fabricante de prata que existe até hoje, fez uns triângulos de papel metálico bem fininho e de um avião jogaram, eles fizeram uma chuva de prata em cima de São Paulo, e minha mãe foi assistir na Avenida Paulista, porque era um dos pontos mais altos de São Paulo. Dizem que os bombeiros pegaram fachos de luz e ficavam varrendo o céu de São Paulo. Então aqueles triângulos de prata caindo davam a impressão de uma chuva de estrelas em São Paulo, e minha mãe assistiu aquilo, e realmente ela tinha um vestido preto e ela estava na última semana da gestação. Quer dizer, era 25 de janeiro, e eu nasci no dia 31 de janeiro. Eu não tinha nascido, por isso ela não gostava de comentar, porque ela achava que tinha alguma coisa de estranho, como é que eu podia me lembrar de alguma coisa seis dias antes de ter nascido? A minha interpretação é que aquilo foi tão lindo, ela deve ter achado aquilo tão maravilhoso, ela deve ter se emocionado tanto, que acho que ela passou essa emoção para mim. Hoje está provado que muitas coisas que as mães sentem, passam para o feto. Eu já estava pronta para nascer, quer dizer, eu já estava bem formadinha, então eu acho que vi aquilo através dos olhos dela. E eu tenho uma ligação muito grande com São Paulo, tão grande que minha filha nasceu no dia 25 de janeiro, quer dizer, 40 anos depois que eu me lembro, sem ter nascido, a minha filha nasceu. Quer dizer, são várias coincidências, sincronias assim que eu acho que é importante, e eu gosto muito de São Paulo, eu tenho uma ligação muito profunda nos meus sonhos. Eu sonho muito, sempre tive muito boa memória, me lembro de todos os meus sonhos, tenho diário dos meus sonhos e existe uma representação, assim, do centro... É sempre recorrente, tem o centro de São Paulo... Minhas idas ao centro de São Paulo, passeios pelo centro de São Paulo, é muito presente a cidade de São Paulo. Eu me lembro, quer dizer, me recordo agora do que dizia um conhecido meu. Ele era psicanalista, e além de psicanalista era radialista também, trabalhava na Rádio Cultura, muito culto, um grande conhecedor de música, o José Roberto Prazeres. Ele disse uma vez para mim: “pois é, lá no meu consultório chegam uns pacientes me perguntado... Por que não sabem o que vão fazer da vida, e eu penso cá comigo, né? A vida é sua, se você não sabe o que fazer, eu que estou te conhecendo agora vou dar algum conselho?” Mas ele sempre dizia: “olha, pegue uma bússola e vá à Praça da Sé, aprenda pelo menos se você quer se conhecer, muitas vezes você não sabe o que fazer com o seu interno, então tente arrumar seu externo, faça um passeio, vá à Praça da Sé, veja lá a pedra fundamental, aquela onde tem os pontos cardeais, pega uma bússola e tenta ver onde é o leste, o oeste, sul, o norte.” Porque ele disse assim que é incrível, tem gente que mora na cidade e não faz ideia da composição da cidade de São Paulo. Você não precisa ter o mapa da cidade na sua cabeça, mas pelo menos saber onde é a região central, o que é o norte, o conjunto dos bairros que fazem a zona sul, a zona leste. Eu sempre tive essa inquietação, eu me porto em São Paulo como um turista, fazer passeios, conhecer, eu tento passar isso para minha filha, porque eu recebi isso, eu recebi isso dessa minha avó Arminda, eu fazia esses passeios... Confesso para você que eu não gostava, eu era pequena e eu tinha que fazer com ela. Me lembro de uma forma nítida que ela era muito católica, na semana santa, na sexta feira santa, ela me pegava e nós tínhamos que fazer a via crucis, as treze igrejas. Mas ao mesmo tempo ela era muito prática, muito divertida. Eu sei que ela punha um salto alto... Ela se vestia muito bem, eram outros tempos e as pessoas se vestiam com muita elegância para irem ao centro. Ela dizia: “olha Geninha, nós vamos fazer as treze igrejas, nós vamos ao centro, porque tem tantas igrejas, uma perto da outra, que nós faremos muito rápido.” Então eu ia de ônibus, lógico, porque ela não tinha carro, ela era de uma geração de senhorinhas que hoje eu admiro muito, naquela época eu não entendia, mas táxi pra ela era para ir ao hospital. Quando a gente estava muito doente para ir ao hospital, tomava táxi, se não era ônibus. Então nós pegamos o ônibus e como eu te falei, ela morava no Cambuci, na Rua Diogo Vaz, então nós vínhamos um pouquinho e geralmente pegávamos o ônibus na Rua Lavapés, então subia na Pires da Mota e enfim pegávamos o ônibus e íamos para o centro de São Paulo, na Praça da Sé. Lá já tinha a Igreja de São Gonçalo e mais para a liberdade tinha a Igreja das Almas, que eu tinha muito medo porque achava que tinha almas, e mais medo ainda da Igreja dos Enforcados, que era uma descidinha em uma Travessa da Rua dos Estudantes. Então aí já tinha quatro igrejas, depois nós íamos à Igreja da Boa Morte, a última vez... Há uns dois anos eu tentei visitar e estava interditada, estava despencando, precisava de um restauro, que é uma pena, ela dizia... Essa minha avó rezava muito para Nossa Senhora da Boa Morte, porque diz que quem é devoto tem uma boa morte. Depois de voltar ali na Praça João Mendes, descíamos um pouquinho na Tabatiguera, a Igreja de Santa Luzia Nossa Senhora da Cabeça. Daí tinha a Igreja da Sé, Igreja do Carmo... Eu sei que quando via, já tínhamos feito as treze igrejas. E daí íamos tomar lanche, ela me levava na Fasano da Vieira de Carvalho, que era muito lindo. Eu tenho flashes, eu devia ter muito pouca idade, uns cinco ou seis anos, eu tinha flashes, me lembro do gosto dos doces e que era um lugar muito chique, sabe? O sorvete era em uma tacinha de prata, era tudo muito chique, aí voltávamos para casa dela. Eu tinha muito medo por causa de uma história que meu pai tinha me contado, eu me lembro até hoje, ele dizia: ‘”pois é, minha filha...” Meu pai dizia que era um pagão mal cristianizado, ele rezava, ele tinha devoção por Santa Terezinha, não sei se por influência da minha mãe, ele se interessava por histórias de igreja como toda pessoa culta, a igreja como motor de cultura no mundo ocidental, mas ele dizia: “pois é, minha filha, sexta feira da paixão às três horas Cristo morre, ele vai ressuscitar só no sábado de aleluia ao meio dia” ele falava isso muito sério “você está percebendo que das três até as doze horas do dia seguinte, o mundo fica sem Deus” Nossa! Eu ficava assim, só... (pausa) Eu dizia: “ah vovó, posso passar perfume?” “está em cima do meu pechiché”. Ela me deixava mexer em tudo dela, tudo. Caixa de joia, perfume... Eu era muito vaidosa e ela deixava, eu adorava mexer nas coisas dela. A cama dela tinha um cheiro diferente, uns lençóis alvos, alvos e eu dizia: “por que a sua roupa de cama é tão cheirosa?” “Ah, é porque eu mando colocar para quarar no sol.” Então eu tinha... Minha avó era do interior, então eu acho que eu peguei um resquício. Talvez outras pessoas da minha geração não tenham essa lembrança, mas minha avó trouxe isso pra mim, esse hábito de quarar roupa no sol, o perfume... E depois ela colocava uma raiz, ela dizia que era raiz de vetiver, ela colocava nas gavetas, colocava cânfora, umas pedrinhas de cânfora. Eu tenho muito... A cama dela, eu dormia com ela. Agora, a diferença é que ela não era minha madrinha, ela era madrinha do meu irmão mais novo. A minha madrinha era mãe do meu pai, era a vovó Ernestina. Se meu pai quando eu nasci tinha 46 anos, imagina, e ele não era o primeiro filho, ele era o penúltimo filho homem... Quer dizer, depois dele teve o filho médico que o apelido em casa era “o pequeno”. O apelido do meu pai em Guaratinguetá era Babi, isso de baby, né? Não sabiam falar direito, então tinha a Miledi que era Milady, e ele era o babi. Então meu pai... Os pais eram bem mais velhos, eu não sei bem de quando era minha avó Ernestina. Eu sei porque outro dia eu peguei as alianças, eu tenho as alianças do meu avô e da minha avó - eles eram meus padrinhos - a aliança de casamento, eles casaram em fevereiro de 1898, meu avô tinha 21 anos e minha avó tinha 13. Ela se casou porque meu bisavô, o Rinaldo Teani, uma belíssima figura, parecia um cantor de ópera com vastíssimo bigode. Ficou viúvo e era muito mulherengo, e era uma responsabilidade ter aquela menina para cuidar, né? Ele casou, quer dizer, ele teve sorte de casar. O meu avô Eugênio tinha 21 anos, era mais velho do que ela, mas... Eles se casaram em Cutia, esse meu avô Rinaldo tinha muitas terras em Cutia, mas era uma aventura, hoje em dia eu digo que sei o que se usava naquela época, mas para mim chega às raias da pedofilia, né? Porque uma menina de 13 anos, que a mãe morreu, quer dizer que tinha morrido há pouco tempo... Mas meu avô foi muito bom, tanto que o que eu dizia nos comentários da família é que minha avó Ernestina mandava no meu avô Eugênio, mas mandava... Nas lembranças que eu tenho da minha avó Ernestina é que ela nunca levantou a voz, ela sempre sentava retinha, ela dizia que encosto é enfeite em cadeira, então ela sentava assim retinha. Eu era afilhada dela, mas ela estava muito velhinha, ouvia muito mal e mandava no meu avô. Eu sei que na casa dela o meu avô Eugênio não podia comer, então nunca tinha um doce, nunca tinha nada e minha mãe era muito... Dizia: “é domingo, você precisa passar a tarde com a sua avó, com sua madrinha, ela é velhinha, ela vai ficar feliz” e lá ia eu. Que eu me lembre ela morou em vários lugares de São Paulo, me lembro de um apartamento que ela teve ali em Pinheiros, numa travessa da Faria Lima. Lembro que era estreitinha, estreitinha, a Rua Tucumã, ao lado do Clube Pinheiros - já existia o Clube Pinheiros. E esse prédio existe hoje ainda, me lembro que tem um ladrilho na fachada, uma moça mergulhando na água. E eu ia para lá e ficava com a minha avó, me aborrecia profundamente, porque não tinha música, ela dizia: “seu avô Eugênio não pode ouvir rádio”, não tinha televisão “seu avô Eugênio não pode ver televisão”, não tinha nada pra comer “porque seu avô Eugênio não pode comer nada, ele tem um intestino muito delicado.” Era uma sopa que ela mal esquentava para ele e punha uma colher de creme de leite, não me pergunte por quê, e era isso que eles comiam. Era tudo muito estranho e às vezes eu me lembro que eu chegava e dizia: “vovó, eu posso ir à janela para ver a rua?” Ela dizia: “não, criança não sai na rua” ela era surda, ela ouvia as coisas mal, então era um diálogo, assim, eu diria, literalmente de surdo. E eu ia à casa da minha avó Arminda que não era minha madrinha, nossa! Para cada neto ela fazia o doce predileto, e eu era muito gulosa, eu podia comer o quanto eu quisesse. Minha avó era alegre, depois do almoço eu chegava com sobremesa e tudo e dizia: “vovó, eu estou morrendo de vontade de comer bolo de fubá” “ah, vamos fazer, é muito fácil” pronto, fazia o bolo de fubá. “Ah vovó, agora sabe o que eu vi, eu vi um bambi, eu queria um bambi” ela sabia fazer bicho de pelúcia, eu sei que tudo... Ela era uma mulher disponível para tudo, declamava poesia, se quisesse ver televisão podia, era um contraste muito grande da casa da minha madrinha. Alguma coisa eu me lembro, lembro que uma vez ela fez um pudim de clara para mim e eu tenho essa receita. Fiz questão, depois que a vovó morreu, peguei o caderno de recitas dela. A minha avó Ernestina é a receita dela, esse pudim de claras, uma vez ela fez um doce de abóbora para mim e dela eu tenho... Porque diziam para mim, o meu pai inclusive, “a sua avó Ernestina está muito velhinha, ela está com arteriosclerose”, talvez ela tivesse Alzheimer. Tudo na casa dela era quebrado, lascado, sabe? Ela tinha umas coisas bonitas, você olhava e tudo tinha um defeito. Eu tenho da casa dela uma peça de cristal rosa clarinha, que veio lascado mas eu mandei consertar, então consertaram o pezinho e eu sempre falo para minha filha “filha, isso aqui era da sua bisavó, a minha avó, quer dizer, a minha avó já era velhinha, a minha avó nasceu no século XIX”. Agora, as coisas boas que ela tinha... Uma vez, num daqueles lapsos de lucidez, ela disse: “eu me lembro do jornal quando veio a notícia da primeira guerra”. Eu olhava “a minha avó leu no jornal a primeira guerra”, eu ficava olhando para ela, sabe? Eu me lembro nitidamente dela, do cheirinho dela, das coisas dela, era uma relação que podia ser mais profunda, como foi com a minha avó Arminda, mais vital. Mas eu acho que na medida do possível, considerando a idade dela... Quando minha avó morreu eu tinha 13 anos, ela morreu dia 07 de dezembro e foi enterrada dia 08, que é dia de Nossa Senhora, e é por isso que eu sempre me lembro. Eu rezo muito para ela e a vida dela... Recebi o oratório dela, porque minha avó morreu, o oratório foi para a filha dela. A minha tia Eunice, também uma mulher muito importante na minha vida, o apelido dela em Guaratinguetá era Nina. Então o oratório foi para a tia Nice, e quando a minha tia Nice morreu, uma das pouquíssimas coisas que eu tive da casa dela foi o oratório, ele ficou uma época no meu quarto, uns dois ou quase três anos. Eu sei que um dia me deu uns cinco minutos e eu falei: “eu não quero esse oratório no meu quarto” porque eu disse, comecei a refletir: a minha avó Ernestina teve vários filhos, a primeira foi Eurídice, que morreu adulta, de tuberculose. O segundo foi meu tio Rubens, esse que era um gênio, que com 13, 14 anos era dentista e depois foi médico. Ele foi fazer 32 meu pai era militar, era tenente e ele foi como médico. Daí tem duas versões, a primeira, a versão oficial da família, é que ele pegou encefalite em 32, cuidando de um doente e a encefalite... Ele demorou 20 anos para morrer, tinha uns ataques, umas convulsões, e quando ele voltava dessas convulsões, voltava com menos um sentido. Então ele foi ficando surdo, paralítico, mudo, até que morreu. E a minha avó cuidou dele. Eu digo que para uma mãe ver um filho - que era quase um gênio, muito bonito - acontecer isso, deve ter sido um suplício, isso é o que contam, né? O que eu sempre ouvi. Então, esse meu tio Rubens, que era considerado gênio da família, diziam... Se acham meu tio Eurycles inteligente... O meu pai também dizia que ele era brilhante, era realmente uma pessoa especial. Tinham duas versões, uma que ele tinha pegado encefalite cuidando de um doente durante a revolução de 32, em Parati. Ele estava cuidando desse doente, que foi em uma frente importante na revolução, porque os federalistas, as tropas do Getúlio, os que vieram pelo mar saíram do Rio e desembarcaram em Parati. E ela subia, tem até hoje a estrada antiga de Parati para Cunha, estava no Vale do Paraíba. A segunda versão, que é uma prima minha... Se meu pai tinha 46 quando eu nasci, eu tenho primas bem idosas por parte do meu pai. Essa prima, a Maria Emídia Pereira Leite, me disse... Ela era Pereira Leite pelo casamento da mãe dela, descendentes do Barão do Bananal, ela disse para mim: “o tio Rubens, ele enlouqueceu em 32, quando ele viu o motorista do carro que estava levando, do jipe, ser morto assim, muito próximo a ele. Ele enlouqueceu ali, não aguentou o tranco”. Mas de toda forma demorou muito para morrer. Têm algumas fotos de família, ele tem uma carinha meio abobada, sabe? Mas era um homem bonito, eu tenho o diário dele que essa minha tia, a Tia Eunice, irmã mais velha do meu pai... Ela era quatro anos mais velha, ela era de 1904. A mesma relação estreita que eu tive com a minha avó Arminda, tive com a tia Eunice, e ela sempre foi muito materna comigo. A minha mãe sempre fez muita política, a minha mãe foi presa política e então, nas ausências da minha mãe, a minha tia Eunice me proveu muito, ela me fazia muita companhia nesse dia-a-dia, se preocupou muito comigo, com todas as minhas doenças, e foi uma amizade muito profunda que eu sempre me emociono muito, porque acho que de onde ela estiver, eu tenho muito carinho por ela, (choro) você não pode imaginar. Ela foi uma grande mulher, assim, da forma dela, ela era muito conservadora, o jeito de ver a vida muito... Mas uma mulher muito boa e muito disposta, ela disse para mim que ela fez uma promessa não sei sobre o que, mas que ela fez uma promessa para Santo Antônio e Santo Antônio cumpriu, então ela tinha que fazer... Ela nunca disse não para quem pedia coisas para ela. Então imagina uma pessoa que não pode dizer não, então era assim: ela vestia todos os mortos da família, ela acompanhava todas aquelas que iam dar à luz, inclusive eu, ela não acompanhou porque ela já estava com mais de 90 anos, mas o primeiro dia na maternidade, ela passou o dia inteiro comigo. Enfim, todas as coisas, porque absolutamente as pessoas não iam para o hospital, era a tia Eunice que fazia, então as minhas lembranças da infância eram muito ligadas à minha avó, minha madrinha... Minha avó Ernestina sempre me ressentia que faltava alguma coisa, mas era divertido, por exemplo, ela gostava muito de mudar, inventava que o vizinho de cima fazia barulho, ela teve várias casas, uma delas que eu achava muito bonita... Ela morou na São Carlos do Pinhal, que é paralela com a Avenida Paulista. Onde existe hoje o Maksoud era um convento de Carmelitas e do apartamento dela... Ela morava no décimo terceiro andar, tinha uma vista fantástica, toda assim para o lado, eu acho que hoje é mais a região central, um pouco ali pelo Bixiga. Era linda a vista, eu vi cada pôr do sol, um mais lindo que o outro, porque todo domingo eu visitava as minhas avós. Eu me lembro do Ângelus tocando o sino da igreja e ela dizia: “ah, agora vamos rezar”, no tal do oratório que a certa altura da minha vida estava no meu quarto, eu olhei e disse: “deve ter muita coisa triste nesse oratório, muita vibração triste, a minha avó Ernestina rezou tanto aí na frente com o filho doente. Depois esse oratório passou para minha tia Eunice, e a minha tia Eunice teve cruzes para carregar, ela nunca teve filhos, ela adorava crianças, a última tentativa foi um aborto com cinco para seis meses” quer dizer, é uma tristeza muito grande isso, depois ela perdeu um sobrinho, um filho do meu tio Eurycledes, o Eduardo, foi uma tragédia. Quando ele se formou, em 78, em Medicina, aquilo foi um baque para a família do meu pai, e a minha tia Eunice, ela nunca esqueceu isso. Então são pessoas. Ela teve três cânceres no seio... No rim, no seio ela teve duas vezes, então eu digo: “esse oratório deve ter muita mágoa, deve ter muita tristeza e isso está passando para mim.” Eu sei que me deu os cinco minutos e me desfiz dele, foi uma coisa intuitiva e eu acho que a gente tem que guardar é na imaginação, na memória, não ter aquilo fixo. Agora eu me lembro das minhas festas de aniversário.
P/1 – Eu queria que você falasse um pouquinho Eugênia da... Você falou assim, de uma forma muito viva, muito bonita da sua infância, da relação com os avós, com a sua tia. Eu queria que você falasse da sua infância em casa, por exemplo, com seu irmão, com seus pais. Como era isso? Onde você morava?
R – Olha, eu nasci... Isso eu adoro, adoro esse detalhe, eu trabalhei muitos anos no mercado financeiro, por incrível que pareça, mas enfim, eu queria mostrar que eu era tão inteligente quanto o homem, que fiz a minha parte, certo? E quando eu trabalhava nos bancos na Paulista, bem naquela época, na década de 80... O meu apogeu foi na década de 80, 90, que era a época dos yuppies. Eu sempre brincava “você acha que eu sou fina? Eu não sou fina não, eu nasci no Bixiga” porque quando eu nasci, meus pais moravam na Rua Rocha, ali entre a 14 Bis e a Rua Itapeva, é uma descida ali da Rua Rocha. E quando eu era pequena - disso eu não me lembro - o meu pai disse que até um ano ele me levava para passear na Praça 14 Bis, hoje você passa por ali - às vezes eu passo e paro - existe realmente um parquinho cercado, tem umas crianças que jogam futebol ali, mas não tinha aquele elevado ali em cima. E o papai conta: “ah filha, tinha uma estátua de Laocoonte, que saem grandes serpentes do mar para pegar os filhos, eu ficava mostrando a estátua para você, eu te levava para tomar sol ali.” Mas nós saímos desse prédio, desse lugar, porque meus pais estavam construindo uma casa no Pacaembu, para onde nós mudamos. O meu irmão tinha cinco meses, então eu devia ter quase dois anos, porque a minha mãe dizia que eu quase morri quando morava na Rua Rocha, eu saía daquele sol gostoso da rua, entrava no prédio e ela dizia que tinha vento encanado, tinha mudança de temperatura e eu tinha muita amigdalite, tinha febres altíssimas, dizem que eu sofri muito com um resfriado atrás do outro, sendo que... Olha como são as coisas, em um desses resfriados, eles resolveram tirar uma chapa do pulmão e apareceu uma mancha. Como minha mãe tinha sido tuberculosa, todo mundo ficou desesperado, a minha avó Arminda dizia: “isso não é nada, todo mundo sabe que quando a pessoa está resfriada não pode tirar chapa, porque o catarro dá essa sombra, essa mancha. Ela não é tuberculosa, vocês vão é mudar de casa, porque indo para uma casa vai ser melhor e mais saudável”, então nós mudamos. a minha mãe sempre conta que a casa ainda não tinha terminado, estava assim... Faltava jardim, os miolos dos armários embutidos não tinham, mas nós mudamos para essa casa do Pacaembu e lá eu fiquei até a minha idade adulta, até 22 anos, até me formar. No dia em que eu colei grau, falei que ia sair de casa. Mas isso é outra história, eu estou dando um pulo. Então eu me lembro, nós morávamos no Pacaembu, era um bairro completamente diferente do que é hoje, quer dizer, continua arborizado, a casa tem um jardim lindo, tem um quintal que parece uma selva amazônica, tem pé de pitanga, pé de ameixa. Quando nós mudamos para lá tinha escorpião, eu me lembro de algumas ruas que não eram calçadas, tinha um suplício, porque o meu irmão era mais novo do que eu e ele era muito rueiro, adorava andar a pé e eu odiava andar, eu era um estilo mais contemplativa, gostava de ficar sentada... Antes de saber ler, eu já sabia que eu ia ser escritora, que eu ia amar os livros. E eu odiava criança, você vê que todas as minhas referências são para adultos. Eu odiava, eu tinha medo de criança, eu tinha profundo desprezo por crianças, aquelas mãozinhas melecadas, menino então, que corre e fica suado, eu não gostava. Eu dizia: “Geninha, tenha muita paciência que você vai crescer, isso passa...” Na minha época de criança, as crianças não tinham lugar no mundo, você não interrompia a conversa de adulto, você não tinha muita vontade, escolhiam a roupa que eu vestia, a comida que eu comia, escolhiam o colégio que você estudava, a criança não optava. Eu não sei, eu não gostava de correr, eu não gostava de fazer exercício, eu ficava muito cansada. Posteriormente foi descoberto, eu tinha um tipo de anemia, chama-se anemia do mediterrâneo, é Thalassemia, a pessoa tem menos... Os glóbulos vermelhos não seguram o ferro. Então a pessoa sempre tem uma discreta anemia, e dizem que quando são crianças... Talvez o meu cansaço... Eu me lembro que eu ficava muito cansada quando criança, eu não gostava de bola, eu tinha medo, porque eu achava que a bola ia bater no meu rosto. Teve uma época que eu usava óculos e ia quebrar os meus óculos, ia bater no meu nariz, eu tinha muito medo de cair. Isso minha mãe diz que talvez se explique porque uma vez ela me levou... Nós já morávamos no Pacaembu, mas ela me levou, em uma manhã, para brincar no Parque - esse na frente do Trianon, do MASP - isso eu me lembro, tinha uns balanços e eu estava no balanço, caí do balanço e fui para trás, bati com a cabeça no chão. Aquilo para mim foi uma dor e foi também uma desmoralização, porque minha mãe, em vez de me acolher, disse: “não chora, não chora, olha a marmota” - tinha uma marmota no Parque Trianon - “olha a marmota, você é igual àquela marmota.” Eu fiquei com vergonha das crianças que me viram cair do balanço, fiquei com raiva da minha mãe, que estava dizendo que eu era uma marmota, e eu chorava, chorava. Nunca mais eu fui a um balanço e fiquei com horror de cair. Então quando eu era pequena, eu rezava “com Deus eu me deito, com Deus me levanto, Nossa Senhora me cubra com seu manto...” E daí vinha a ladainha, como minhas avós faziam os pedidos. Era assim “ah minha Nossa Senhora, proteja a mim e a toda a minha família, meus pais, meus avós, meu irmão e não me deixe cair”, eu tinha horror de levar tombo. Então eu era muito discreta em atividades, eu não gostava de esporte, não gostava de bola, não gostava. E eu tinha meus medos, eu tinha medo de tudo que tinha bico, e não tinha visto Os Pássaros de Hitchcock, eu tinha muito medo de escuro e muito medo de vento, não gostava de areia. Então eu realmente gostava de ficar sentada em uma cadeira, lendo. Que o mundo terminasse e me deixasse com o livro. Agora eu me lembro que eu passeava... O meu irmão que, era o contrário de mim... Tinha a nossa babá a Eni Figueira, ela era de Itatiba, e a Eni nos pegava às três horas da tarde, três e meia dava lanche e daí nós íamos andar, porque ela ia visitar as amigas, as outras babás. Então pegava a gente pela mão e vestia roupinha de festa, assim bonito para mostrar, porque empregada é muito julgada pelo patrão, então quanto mais bonita a criança que você toma conta, mais prestígio você tem junto a suas amigas. Então ela tinha umas amigas que moravam ali por perto, e nós íamos andando. O meu irmão ia correndo, pulando, ele ia e voltava e eu ia atrás, mal dizendo tudo e todos, me sentindo infeliz, porque eu não gostava daquilo. E nós andávamos muito pelo Pacaembu, disso eu me lembro bem, as ruas eram muito desertas e com muita flor, era muito agradável, sabe? Visualmente, eu pessoalmente odiava aquilo, eu queria voltar para casa. Eu me lembro dos aniversários, me lembro completamente das produções cinematográficas de aniversário que a minha filha teve, que as crianças de hoje têm. Eu me lembro que no aniversário chamavam os primos, os primos nesse caso eram os filhos do doutor Zerbini, então os meus três primos, o Roberto, mais velho, o Eduardo, o do meio, que faleceu em 78, e o Ricardo. Os vizinhos... A gente brincava muito com os vizinhos na Rua do Pacaembu, na José de Freitas Guimarães, 209, tinha vizinho de um lado e de outro. Do outro era uma casa que era do consulado italiano, então não tinha vizinho, mas tinha uma família de São Roque que morava do outro lado e tinha um monte de criança, depois tinham umas casas adiante também. Então minha mãe fazia o bolo, tinha brigadeiro, tudo feito em casa. Não tinha Buffet, não tinha palhaço, não tinha show, então as crianças vinham e brincavam muito, coisa que eu odiava. Ficava correndo, descia e subia escada, ia para o jardim, para o quintal, ia brincar com o cachorro... Eu odiava aquilo, eu queria saber que horas que cantava os parabéns e ia comer. Como eu já falei, eu era muito esganada, e eu me oferecia para ajudar a fazer as coisas, eu sempre gostei muito de cozinha. Eu já tinha uns cinco anos ou seis, eu me oferecia para ajudar na cozinha, então eu ajudava a embrulhar os doces, eu via dar ponto no doce, fazia doce de abóbora, doce de batata doce, beijinho, e um que eu vivia pedindo porque eu comi na casa de uma amiga e ninguém fazia, que era moer o abacaxi, tirar o suco - o suco você pode tomar - e aquele bagaço do abacaxi moído misturava com leite condensado. Dava o ponto, enrolava, passava no açúcar cristal e punha um cravinho, eu achava uma delícia, até hoje eu me lembro do gosto desse doce, nunca fizeram para mim em casa, nunca. Eu vivia pedindo e não faziam. Aí eu ajudava a enrolar, me mandavam lavar bem a mão, passar a escovinha no dedo e tal... A cozinheira chamava Silvina, ela ficou muitos anos lá em casa, ela deixava, punha nas forminhas. Tinha uma despensa, então uma semana antes começava a produzir a festa, fazia primeiro o doce de abóbora, o de batata doce - que dizem que segurava melhor - o último que fazia era o brigadeiro, olho de sogra... Comprava guaraná, porque minha mãe era bem nacionalista, como é até hoje, então não podia tomar Coca Cola. Eu não podia ler história em quadrinho, não podia mascar chiclete e Q-suco então, nem pensar, porque aquilo era só corante. Então tinham as regras de casa. O guaraná podia, então comprava guaraná, tinha cachorro quente e a minha avó Arminda tinha a ideia que eu detestava, ela dizia que tinha que fazer uma canja, porque as pessoas precisavam se alimentar, mas isso não combina com aniversário, aniversário é dia de comer só delícia. Aí vinha o bolo e minha mãe deixava... Ela dizia pra gente escolher o bolo. Então no meu aniversário de quatro anos - que eu acho que trouxe inclusive a foto - eu disse que eu queria de bailarina, então eu me lembro da minha [mãe?] falando: “como a gente vai fazer de bailarina”? Era um bolo branco, ela fez um cercadinho como se fosse um palco, com palito de chocolate, e aí nós íamos na 25 de Março para comprar as bonequinhas, as bailarinas. Não era a 25 de Março de hoje, mas devia ser mais ou menos um inferno semelhante, porque isso eu me lembro, o flash do táxi, eu e minha mãe indo a 25 de Março. Um calor e eu já com aquele cansaço que eu sentia, eu sentia assim, uma espécie de falta de ar que eu não podia respirar, eu suava e minha mãe me segurando pelo braço. Acho que minha mãe ficava meio nervosa e falava: “não podia ter pedido alguma coisa mais normal” e a perspectiva de criança que os adultos às vezes esquecem. Eu me lembro que eu via tudo mais ou menos muito baixo, então eu ficava na ponta dos pés. Aqueles balcões, eu na ponta do pé escolhendo as coisas. E quando eu inventei, no ano seguinte, que eu queria um lago de patinhos, essa a minha mãe dançou. Eu tinha visto [para?] o lago um espelho, e ela falou: “não, espelho eu não vou pôr em cima de bolo, eu não vou pôr em cima de bolo porque espelho pode quebrar, e já pensou se vai uma partezinha desse espelho para criança? Não quero, nós vamos fazer de gelatina”, que era muito mais difícil, muito mais engenhoso, porque fizeram o bolo... Fazia várias camadas de bolo, eram várias fornadas, e aquilo me encantava, porque uma semana antes, era aquele cheiro de baunilha, aquele corre-corre da cozinheira, e fazendo compras, e assando tabuleiro de bolo. Então faziam os bolos e os recheios eram de doce de leite, depois tinha ameixa, eu adorava a ameixa em calda. E aí cavaram o bolo, fizeram uma depressão do tamanho da gaveta de gelo e na gaveta de gelo puseram gelatina de limão, então coube direitinho e ficou lindo, porque era transparente. Foram ao jardim, pegaram umas vegetações, umas coisinhas, eu ajudei a escolher. Lavaram, puseram de molho no limão para matar qualquer germe, secaram e fizeram a paisagem. E nós fomos comprar na 25 [de março] os patinhos, foi o último bolo que minha mãe fez isso, depois eu tinha que escolher bolo que já tivesse forma. Era palheta de pintor que tinha uma forma, coração e coisas mais simples. Então eu me lembro dos meus aniversários, agora lembro também que eu fazia aniversário em janeiro, no dia 31 de janeiro, os amigos estavam de férias, a maior parte. Então quando eu entrei na escola, não tinha coleguinha de escola, e minha mãe começou a simplificar as coisas dizendo: “olha Eugênia, não tem teus amigos da escola, chove e fica aquele entra e sai da casa, do jardim, aquela criançada sujando aqui, vamos começar a fazer um jantar, você já está crescendo...” Minha mãe sabia vender bem a mercadoria também “vamos fazer jantar, já aniversário de adulto, a gente faz um jantar.” Aí eu inventei que queria estrogonofe, não existia, era assim, começo dos anos 60, estrogonofe não era uma coisa comum aqui em São Paulo. Quem deu a receita foi minha tia Eunice, cuja cozinheira fazia todos os cursos do Açúcar União, porque o marido da minha tia Eunice, o tio Armando, era diretor do Açúcar União. Então era uma cozinheira de mão cheia, tinha a receita do tal do estrogonofe. E aí todo meu aniversário era assim: “o que você quer de jantar”? “Estrogonofe”, aí convidavam algumas pessoas, mas eram mais adultos que iam, eu não gostava muito de criança. Eu adorava os presentes que ganhava, mas se bem que nunca acertavam o que eu queria ganhar, mas enfim, era legalzinho.
P/1 – Eugênia, você mencionou agora pela primeira vez o seu ambiente escolar, né? Começando a entrar na escola. Eu queria que você falasse pra gente, se puder relatar pra gente como se fosse uma cronologia mesmo, da sua vida escolar, o que te marcou. Uma primeira professora, ou uma colega, ou um episódio? Mas assim, como se fosse uma linha do tempo mesmo, dessa sua vida escolar na infância e na adolescência.
R – Então, eu entrei na escola em 1959, eu me lembro como se fosse ontem, o meu pai falando comigo que eu ia para escola “olha Geninha, você vai adorar. É muito bom, você vai conhecer outras crianças, é muito bom mesmo, é divertido...” Ele vendeu muito bem o peixe para mim, eu me lembro do lanche que eu levei, que era pão com queijo branco e goiabada, eu me ligava muito nessas coisas de comer. Ele disse: “você vai conhecer outras pessoas, outras crianças, e quando você achar alguém que você acha que vai poder ser interessante, você pergunta como se chama e qual o nome dela.” Então eu fui para o Externato Ofélia Fonseca, na Rua Bahia, que era muito tradicional. Só entrava por apresentação, foi uma prima minha por afinidade, do lado da família do meu pai, do marido da tia Eunice, que apresentou, já tinha estudado lá. Nós tínhamos um chofer, eu ia de motorista, no comecinho. Era Externato Ofélia Fonseca, perna fina e bunda seca. E lá fui eu, em 59, com uma jardineirinha, com a minha lancheira. Eu cheguei na aula e tudo aquilo era muito novo. Fui para o recreio, abri minha lancheira, peguei meu sanduíche, olhei e vi uma menina que ficava olhando muito pra mim, mas ela era mais velha, a gente via por causa do uniforme, só no jardim da infância usava aquela jardineirinha. Eu segui o que meu pai falou, eu falei: “como você se chama”? A menina fugiu, saiu correndo. Pronto, foi a fonte de todas as minhas neuroses, eu fiquei tímida, eu não queria falar com os outros, era um tipo melancólico. Na aula de música... Eu me lembro que tinha aulas de música às quartas feiras, eu odiava cantar, ficar dançando com parzinho, eu achava aquilo... Odiava, odiava do fundo do meu coração, o meu único consolo é que eu ia crescer. Em 60 eu já comecei a usar aquela saia pregueada, tinha uma gravatinha, mas era um nó já pronto, tinha um elástico atrás. Então eu ia para a Ofélia Fonseca, e aprendi a ler. Me lembro da primeira lição “o boi baba, o boi bebe, o boi bebe e baba” e a última lição que eu tive, em novembro, que era o X “os exames estão próximos, Xerxe se prepara dia e noite.” A minha professora, a dona Judith, era um poço de mel, era meiga, doce. A classe infernal, eu me lembro que era misto as meninas e os meninos, eu sei que às vezes ela chamava “vem aqui na frente”, ela chamava uns quatro que eu acho que tinham mais dificuldade e falava “vem aqui os quatro na frente” e deixava a classe a Deus dará. Era uma bagunça, uma conversação, bolinha de papel, tinha começado as canetas esferográficas, faziam bolinha de papel e faziam aquele tipo de zarabatana para mandar as bolinhas de papel. Eu tenho boas lembranças do meu Pré, o primeiro ano eu já era diferente. Foi a dona Maria Helena, eu achava que ela não gostava de mim, ela devia achar que eu não gostava dela. Já foi em 61 e talvez eu tenha me ressentido porque meu pai, ele era inimigo do Jânio Quadros e fez campanha para o General Lott. Então eu me lembro dele falando com a minha mãe “pois é Therezinha, agora o Jânio foi eleito e eu preciso dar um jeito, porque se eu ficar aqui em São Paulo, ele vai me mandar servir em Mato Grosso, Goiás, qualquer coisa assim”. Até então ele era comandante do IV RI que era em Quitaúna, às vezes eu ia lá visitar meu pai, eu achava uma viagem. Eu às vezes perguntava para quem estava dirigindo “nós ainda estamos no Brasil”? Então foi no IV RI, eu me lembro que eu ia na piscina, eu me lembro de umas... Meu pai era muito culto, eu me lembro de uns espetáculos de dança, uns concertos. A Orquestra de Câmara de São Paulo ia tocar lá para os soldados, meu pai era muito civilizado, apesar de ser militar, era muito civilizado. Eu sempre perguntava para ele: “papai, se você não fosse militar, o que o senhor gostaria de ser”? “escritor”, bate e pronto eu falei: “mas por que você foi ser militar”? Ele disse: “ah, meus irmãos eram médicos e tinha muito pouca escolha naquela época, e eu fui ser militar porque tinha passado lá para Guaratinguetá um general...” E meu pai era muito romântico, ele tinha uma ideia mais ou menos do Exército, eu acho meio assim, do Vermelho e do Negro de Sorel, sabe assim, uma coisa de grandes feitos. Enfim, ele foi ser militar, mas ele não tinha cabeça de militar, tanto que foi cassado em 64. Aí eu me lembro dessa conversa em 60 com a minha mãe “eu vou fazer o curso de Escola superior de Guerra no Rio de Janeiro, porque enquanto você está fazendo o curso, você não pode ser transferido, e as pessoas ficam meio à sombra.” Então meu pai foi para o Rio de Janeiro, e eu era muito apegada ao meu pai, e aquela dona Maria Helena, eu achava que ela tinha um olhar duro, uma coisa assim, tanto que eu fui... Eu era muito boa aluna no Pré, no primeiro eu [era?] tão boa aluna, sempre fui boa aluna. A classe era perto da cozinha, uma coisa estranha. O colégio particular, eu sei que a gente fazia um corta caminho no meio da cozinha do colégio, muito estranho. E eu não gostei da primeira série não, mas foi indo tudo isso e no meu terceiro ano, em 1963, eu acho que um dos anos mais felizes da minha vida, meu pai foi promovido a general, a minha professora, a dona Marilena, a dona Marilena era ótima, nossa! Eu fui muito feliz em 1963 era um paraíso e... Perdão, meu pai foi promovido no segundo semestre de 62, mas em 63 ele já era general e já morava em São Paulo, era ajudante do Estado Maior do Segundo Exército na Rua Conselheiro Crispiniano, o quartel era lindo, ainda ontem eu passei pela Conselheiro Crispiniano, derrubaram o quartel. Era ao lado do Cine Marrocos, onde a minha avó Arminda me levou para assistir Bonequinha de Luxo no Pullman, um luxo. Eu me lembro da minha avó levando eu e meu irmão, nós chegamos lá e ela falou “três no Pullman”, eu nem sabia o que era aquilo, quando eu vi que era um camarote que ficava no alto, e aquele filme maravilhoso... Então 63 foi muito bom. E uma coisa interessante eram as férias, nós passávamos as férias em Ubatuba, mas eu me lembro de Ubatuba na Praça da Enseada sem luz elétrica, e me lembro que era uma expedição única, era uma viagem assim... A preparação da viagem para Ubatuba era mais ou menos como a preparação das festas de aniversário. Começava uma semana antes, porque não tinha lugar para comprar as coisas, então eu me lembro que ia um carro na frente, com mantimento, era uma porção de lata de massa de tomate, porque não tinha molho pronto. Então era massa de tomate, lata de palmito, leite condensado, mais um monte de coisa em lata. Coisa de limpeza, um carro só de coisas, no outro carro ia a família. A minha avó ia às vezes, minha avó Arminda, às vezes o marido dela, o meu avô Domiciano, que era padrasto da minha mãe. Mas eu gostava como se fosse meu avô, eu chamava de avô. E levavam primos, então era muito agradável. Mas Ubatuba era outra cidade, a primeira vez que eu fui para Ubatuba foi em 59, quando eu entrei na escola, mas nós ficamos na praia da cidade, porque meu pai era amigo do Ademar de Barros, que foi Governador de São Paulo, e o Ademar de Barros tinha uma casa em Ubatuba que ele nunca ia. Então ele emprestou pro meu pai e eu me lembro de ter ido. Tinha um cinema na cidade, e cada dia passava um filme. Eu ia de pijama ao cinema, minha mãe dava banho, nós jantávamos e a sessão era muito cedo, acho que sete e meia da noite, uma coisa assim. E grande parte da minha cultura cinematográfica, eu devo ao cinema de Ubatuba, porque como cada dia era um filme... Eu vi Covardes, sabe aqueles épicos bíblicos dos anos 40? Eu vi muito filme em Ubatuba, muito, muito. Eu completei minha formação em Campos do Jordão, porque a partir de 63 nós começamos a ir para Campos do Jordão, onde também tinha um cinema, e cada noite um filme. Em Campos do Jordão até hoje tem um bondinho, mas naquela época o bondinho realmente era um meio de transporte, eu tenho a impressão que o bondinho agora é só para passeios turísticos, tanto que não tem horário. Antes, em 63, tinha o horário do bondinho. E o bondinho esperava a sessão de cinema, eu achava aquilo assim, um must. Já em Campos do Jordão, o meu pai e minha mãe não iam tanto conosco, mas as férias grandes eu ia só com a minha avó. Era um paraíso, porque minha avó Arminda ainda era melhor, tomávamos lanche e ela ia conosco, e na volta tinha ainda uma ceia antes de dormir, e só gostosura, cada dia um bolo. E cada neto, cada dia, podia escolher o bolo que queria, o sabor. Era chocolate, coco, laranja, então era muito legal também. Eu me lembro dessa Ubatuba idílica, a casa de enseada... Era uma casa de pescador reformada, os donos eram amigos do meu pai que trabalhavam no Instituto Histórico, e tinha essa casa, me lembro que era lampião à gás. Depois também minha mãe começou a alugar casa em Ubatuba, mas aí no centro. Mas tudo rua de terra, umas casas muito simples e essa epopéia. Foi lá que nós recebemos a notícia que meu pai tinha sido promovido a general. Uma coisa interessante é que tem até um livro, o Hélio Gaspari naquela coleção que ele faz de cinco volumes do Brasil, ele cita um nome de outro general, ele diz: “pois é um general como no século XVIII, que foi feito general por causa de um cardeal.” O meu pai também, o meu pai foi promovido a general pelo Cardeal Mota, eu me lembro o dia que minha mãe foi pedir essa promoção. O Cardeal Mota era um cardeal muito bem falado até hoje, marcou época aqui em São Paulo, foi o último cardeal decente. O último não foi um cardeal decente e sucedido por um indecente, logo depois dele veio o Cardeal Agnelo Rossi. Eu, como católica, falando de um cardeal, assim. Mas um cardeal que se preza a ir inaugurar a Operação Bandeirantes, inaugurar quartel em uma ditadura militar, boa coisa não é. Ele foi sucedido pelo Dom Paulo, também uma figura fenomenal, outro gigante. Mas enfim, o Cardeal Agnelo morava ali pelo lado da Teixeira da Silva, era uma travessa da Paulista, e eu fui com a minha mãe e com o meu irmão. O meu irmão era o contrário: eu era quietinha, nas visitas eu ficava do lado do adulto, quieta, não falava, não pedia nada, e o meu irmão era inquieto, já ficou “ai que lindo”, foi correndo no jardim... Ele tinha umas pacas, sabe umas paquinhas, uns coelhos? Foi correr atrás das pacas do cardeal, eu fiquei e ouvi bem a conversa, então a minha mãe em 62 pedindo, né? Porque ela dizia que o meu pai era paulista, o Exército era dominado pelo pessoal do Sul, dá para ver depois do golpe de 64. Como vinha gente do Rio Grande do Sul, antes do meu pai tinha sido o último general o General Jardim, que inaugurou o Cemitério do Araçá. São Paulo ficou mais de 50 anos sem ter general. E meu pai era legalista, fez 32 a favor de São Paulo e em 35 foi contra o movimento comunista. Meu pai nunca foi tenente, sempre nas conversas ele dizia: “eu nunca fui tenente”. Ele nunca participou do tenentismo que nasceu na Coluna Prestes, ele dizia: “eu nunca fui tenente, porque eu achava que eles tinham uma visão messiânica do mundo, de transformar o mundo, e eu acho que o Exército não transforma nada.” Enfim, uma série de coisas. E ele não era promovido e começou a receber caronas, caronas é quando alguém mais jovem que você, mais recente no Exército, começa a ser promovido, aquilo começou a deixá-lo preocupado. Levar essas caronas... Mas era assim: “fulano foi promovido”. Fora de brincadeira eu soube de uma história, ele pediu uma vez para um amigo dele, o General Cunha Mello - que foi cassado em 64 também para interceder junto a alguém lá do Rio pela promoção dele - eu me lembro do General Cunha Mello falando para o meu pai: “pois é Zerbini, eu tentei, mas não deu. Não deu porque a vaga já estava prometida, porque a esposa do que foi promovido fazia docinhos para de quem dependia a promoção, e ele já prometeu a vaga.” Eu falei: “meu Deus, olha o critério que ele...” Enfim, minha mãe tomou coragem... Ela não conhecia, mas pediu uma audiência com o Cardeal Mota, e pediu “eu vim aqui pedir a promoção do meu marido” - sem o meu pai saber, porque meu pai abominava essas coisas, ele era uma pessoa que a vida dele... Entrou no Exército e “pá, pá, pá” tinha uns cursos, tinha inclusive o curso de Estado Maior nos Estados Unidos, porque logo depois da segunda guerra, logo depois de 45, vários oficiais brasileiros foram para os Estados Unidos fazer curso de formação. Então ele tinha o curso de formação, ele tem diplomas e uma série de lembranças que recebeu. Já imaginou, meu pai conheceu Nova York no final da década de 40, quando Paulo Francis dizia que Nova York era o paraíso. E uma coisa interessante, eu posso falar, porque ele não era casado ainda, o meu pai namorou com a Bidu Sayão, a cantora de ópera. Nessa época a Bidu Sayão estava em Nova York e não sei... Eu vou contar como meu pai contava, eu tinha muita intimidade com ele e ele dizia: “pois é minha filha, eu sei que ela teve esse caso comigo para fazer ciúme para o maestro Eugene Ormandy, mas o importante é que eu namorei a Bidu Sayão, se o que ela queria com isso era fazer ciúme nele, isso é o menos importante.” Então eu me lembro com muito carinho desse ano de 63. Agora, ao mesmo tempo, depois dessa alegria enorme veio o pesadelo que foi 64, eu ouvia muitas histórias... Como eu não gostava das crianças, eu ouvia muito a conversa dos adultos, e eu era muito curiosa, era daquelas de ficar mesmo atrás da porta ouvindo conversa. E veio o golpe de 64 e eu me lembro do meu pai me levando na escola, no Externato Ofélia Fonseca, se despedindo de mim. E daí eu não vi mais meu pai, ele me levou para a escola porque ele ia para o Rio de Janeiro se apresentar, quer dizer, ele já tinha ficado contra o golpe, já tinha tentado ir para o Rio de Janeiro. Eu, acompanhando a minha mãe... Eu tinha sete anos nessa época, mas eu era bem madurinha. Isso não é fantasia minha, porque um livro, o Realinho... Eu o conheço como Realinho, publicamente era conhecido como Canarinho, porque ele foi muito tempo jornalista de futebol e era louro, então era o canarinho. Mas é o Elpídio Reali Filho que lançou um livro de memórias, era correspondente da Jovem Pan em Paris, ele ficou muito tempo lá. Ele passou em casa e me viu, e ele conta isso no livro, as conversas que ele teve com a mamãe... Porque eles estavam tentando de todo jeito onde podia ter ainda recursos para ser contra o golpe, o que poderia ser feito. E ele escreve que tudo isso, presenciado pela filha dele, ele ficou muito condoído, porque eu era muito criança, eu ouvindo de madrugada, eles confabulando muito emocionados os dois e eu vendo... Quer dizer, eu me lembro disso, lembro perfeitamente daqueles flashs, você vai achar que pode ser... Não é fantasia, eu me lembro da casa no Pacaembu, eu e meu irmão já tínhamos tomado banho, já tínhamos jantado, esperando meu pai chegar. Me lembro do Repórter Esso dando notícia da primeira tentativa de revolução em Cuba, quando Fidel Castro tenta... Enfim, tem um panelaço, se não me engano, isso foi acho que em 58, que ele foge daí para Sierra Maestra para depois descer. Então eu me lembro do jornal falar, [de] uma televisão preta e branca, eu tenho umas coisas, você vai dizer... Eu não sei, eu me lembro dessas coisas, é um flash, mas é muito nítido. Então 64 foi um inferno, porque meu pai desapareceu e eu achava que ele tinha morrido e que minha mãe tinha medo de contar, não queria nos deixar mais tristes... E que eu precisava ser forte, que foi a coisa que eu mais ouvi na minha infância, que eu era uma menina muito inteligente e que eu precisava ser forte. E eu ouvindo isso, que precisava ser forte... Você engolia as emoções. Eu precisava ser forte, eu achava que meu pai tinha morrido, não sabia como ia ser. A minha mãe trabalhava, a minha mãe sempre trabalhou, eu não sabia o que ia ser, mas eu sabia que coisas muito estranhas estavam acontecendo. E aí começou aquela propaganda, porque os comunistas... Meu pai não era comunista, enfim. E eu percebi uma diferença no tratamento na escola, quer dizer, antes eu achava que as professoras... Pode ser eu, pode ser o meu sentimento, mas eu achava que as diretoras do colégio, que as professoras me tratavam de uma forma e eu me achava... Você sabe o balé Quebra Nozes? Que tem aquela menininha que é a personagem principal, que tudo acontece por ela? Que o Quebra Nozes adquire vida durante a noite, que pega nos braços e leva pro reino da fada açucarada, pro reino do chocolate, a valsa das flores? Eu me sentia aquela menininha, porque eu ia para todos os lugares, meus pais me levavam para todos os lugares, meu pai me levava na escola com carro preto e de farda, parecia uma coisa de conto de fadas, era um príncipe que me levava para escola. E de repente tudo isso desapareceu e eu devia ser forte e não devia dar problema para minha mãe, porque minha mãe já tinha muitos e ouvindo as histórias. Eu me lembro da minha mãe falar com o Castelo Branco pelo telefone, porque minha mãe começou a telefonar e... Uma outra piada, você acha que sou fina? Não sou fina, eu nasci na Rua Rocha, no Bixiga. Outra coisa que eu falava também de efeito é dizer: “eu sou filha de sargento” quer dizer: “eu sou filha de general, mas eu fui criada como sargento”, minha mãe é muito dura, a minha mãe tem uma voz de comando, meu pai raras vezes eu vi ele ter aquela voz de comando com outros, porque comigo ele nunca teve. Mas minha mãe, procurando meu pai e telefonando: “onde está? Eu sou a mulher do General Zerbini, eu não quero que soltem meu marido, mas eu quero saber onde está meu marido. Ele pegou um avião e foi ao Rio de Janeiro se apresentar e não sei mais onde ele está” Telefonou para o Ministério da Guerra, porque ele se apresentou no Ministério da Guerra “onde ele está?” “Ah, minha senhora, tem presos em Belo Horizonte” ela telefonava, até que descobriu... Ela falou... O Castelo Branco era o Presidente em exercício, ela conseguiu falar com o Castelo Branco e disse que o meu pai conhecia, tinha sido ajudante do Castelo Branco, e finalmente descobriu, ele estava preso no Forte de Copacabana. Então minha mãe falou: “nós vamos para o Rio, para o Forte Copacabana”. Foi a primeira vez que eu andei de avião, está vendo, tudo tem um lado positivo, né? Minha mãe comprou três passagens e naquela época viajar de avião era uma coisa muito cara, mas ao mesmo tempo muito refinada, eu me lembro, eu me arrumando com um vestido novo que minha tia Eunice me deu para ir viajar para visitar meu pai e sapato de verniz para o meu irmão. Fomos para o Rio, eu me lembro, eu entrando no forte Copacabana e me lembro de um diálogo absurdo da minha mãe com o Coronel Montanha, outra casca de ferida provada também pelo relato do Hélio Gaspari, porque essas histórias eu recentemente passei a contar, porque quando eu contava, a maior parte das pessoas da minha geração ou achava que eu estava mentindo... Porque essas notícias não saíam no jornal, eram tão absurdas que não faziam muito sentido, hoje eu posso porque eu digo: “está tudo no Elio Gaspari" quando saem os livros do Elio Gaspari, eu fico alucinada, eu quero comprar, às vezes eu leio em um dia, daquelas assim de lavar o rosto de noite para continuar lendo e eu digo, é a busca do tempo perdido, é o Proust às avessas, porque é uma Madalene amarga em um chá indigesto. Mas tudo está lá, não é fantasia mesmo, esse Coronel Montanha recebeu minha mãe, a minha mãe estava comigo de um lado e meu irmão de outro, e minha mãe é muito espaventada e às vezes muito agressiva, ela estava muito machucada, mas ela se arrumou e disse: “nós vamos visitar o papai.” Primeiro ele deu um chá de cadeira, deixou muito tempo a gente esperando, e já estava agendada. Nós não éramos do Rio, nós ficamos hospedados na casa da minha prima que o marido era da Aeronáutica, ele também tinha essas questões, podíamos ficar na casa dela e íamos dar problemas ao marido, sabe, aquelas coisas complicadas da época de perseguição. Aparece o Coronel Montanha, mas ele entrou... Eu me lembro que o homem entrou e eu disse: “ele deve cuidar de cavalos” porque o jeito de andar dele era duro, ele era uma pessoa dura e tão agressiva “o que a senhora veio fazer aqui?” E ela tentando falar: “pois é, eu vim visitar o meu marido, que é o General Zerbini. Eu já falei por telefone, eu vim de São Paulo trazer os meus dois filhos.” Ele começou a andar e não parava, ele veio andando, andando, mas ele ficou a um centímetro da minha mãe, eu senti o cheiro da farda dele - na perspectiva dos pequenos, eu só tinha sete anos. Aí eu vi, a minha mãe largou a minha mão e virou, e eu pensei: ”ih, aí vem” ela fazia isso quando ia bater na gente, em mim e no meu irmão, dar uma palmada, eu disse: “ela vai bater no homem” porque minha mãe depois contou que ele ficou tão perto que ela achou que ele ia beijar, mas ele fez isso não como conquistador, era para quebrar a espinha da pessoa, quebrar a moral. Primeiro dava um chá de cadeira e então vinha arrogante. Vê que é uma mulher com os dois filhos, vem e dá uma de... Sei lá, de ameaçar e tentar inibir, porque a melhor forma de inibir uma mulher nessas horas é tentar esse tipo de abordagem. Eu sei que minha mãe perdeu as estribeiras, deu um chega para lá nele “o senhor tenha compostura, eu sou a mulher de um general e o senhor está na frente dos meus dois filhos.” Aí ele falou: “vá lá falar com aquele cabo” e fomos ver meu. Eu vi meu pai e era verdade, ele estava lá. Agora, meu pai sempre foi... Eu me lembro de uma coisa que ele falava, ele falava: “minha filha...” Ele sempre era muito elegante, ele gesticulava muito bonito, ele falou: “minha filha, as pessoas... Os acontecimentos são como os líquidos, tomam as formas dos vasos que a contém” e ele disse: “olha Jó, Jó era mais feliz do que qualquer príncipe árabe no seu castelo de marfim”, ele sempre tinha umas figuras poéticas. Então ele dizia dos acontecimentos, ele completamente... Em uma salinha minúscula que o colocaram, imunda, cheia de jornal. A gente veio descobrir que o jornal... A ordenança forrava a sala com o jornal do dia, porque ele estava preso incomunicável e não recebia jornal. Então a ordenança era aquele tiozinho que vinha limpar a cela e punha o jornal no chão, e era o jornal do dia, era uma forma dele saber o que estava acontecendo, você vê que sempre tem alguém bom nessa... Aí vimos o papai e vimos um vitrô que dava vista para a praia de Copacabana. Nós tínhamos horário de visita, então acabava a visita e a gente ia para a praia e fazia fogueirinha, ficava fazendo assim (gesto). Nós voltamos para São Paulo e o meu primo, que era filho da Maria Emídia, disse que ia sempre a esse lugar fazer foguinho, dar adeus, que era uma forma de ter contato com ele. E assim foi muito triste e tudo. Aí entra em cena a minha avó, a minha mãe disse: “pois é, fomos visitar e agora em maio eu vou visitar outra vez". Eu trouxe para ser escaneada uma carta que eu escrevi para o meu pai nesse maio para ver a cena, eu escrevi aqui de São Paulo pra ele. E engraçado, agora eu estou pensando se ele estava preso incomunicável, como é que eu escrevia pra ele? Mas enfim, a minha mãe sempre dizia: “nós vamos voltar em maio, agora eu preciso ver como vou fazer para comprar as três passagens, porque é muito caro levar as crianças, eu acho que vou sozinha.” E minha avó Arminda falou: “você não vai precisar Therezinha, porque ele vai ser libertado no dia de Santa Rita, o general vai ser libertado.” Ela começou com essa história de que no dia de Santa Rita o general ia ser libertado que chegava a irritar, porque ela falava com tanta certeza. Um dia eu me lembro que a minha mãe disse: “para mãe, para, ainda nem tomaram o depoimento dele, como é que vão soltá-lo?” “espere Therezinha.” Acreditem se quiser, no dia 23 de maio meu pai estava em São Paulo, foi a coisa mais sem cabeça. A minha mãe foi para o Rio por volta do dia 20 de maio, ela foi sozinha porque não podia levar eu e meu irmão, foi visitá-lo, estava visitando o meu pai e entrou um oficial e falou: “Zerbini, pode aproveitar e voltar para casa com a sua mulher.” Ele disse: “mas como? Estão tomando ainda meu depoimento, não assinei o meu depoimento” “ah, deixa isso pra lá, o dia que você vier pro Rio, estiver de passagem, você termina e assina.” Olha que coisa mais sem pé e nem cabeça, mas milagre de Santa Rita que é a Santa dos Impossíveis. Aí essa minha avó Arminda, que era deliciosa, ela fazia promessa para os outros pagarem, quando a minha mãe estava doente... É bem aquelas coisas de antigamente “se eu conseguir, meu filho vai ser frei.” Quando a minha mãe estava tuberculosa, ela fez uma promessa que se a Therezinha se salvasse, a Therezinha chegando em São Paulo ia se vestir toda de branco e ia assistir uma missa na igreja do Frei Galvão. Então para o meu pai aqui, a primeira coisa que ele faria seria ir assistir uma missa com ela na igreja de Santa Terezinha, aqui em São Paulo, e levar rosas para Santa Terezinha. Eu nem vi meu pai, meu pai desembarcou em Congonhas e já foi para casa da minha avó, e já foram pagar a promessa que era assistir a missa com ela na igreja de Santa Terezinha. Então o papai veio e tudo era uma indagação, né? O que meu pai ia fazer? Muito felizes, muitos beijos, eu sei que durante três meses ele acordava, punha um hobby de Chambre e ia ler. E ele lia era literatura, ficava ali e lia, lia. E foi maio, junho, julho, e em agosto minha mãe, que é o sargentão, falou: “de pé, agora você vai procurar um emprego” ele falou: “mas como Therezinha, eu fui general, eu fui uma pessoa importante aqui em São Paulo, eu vou procurar um emprego como se eu fosse um adolescente?” Ela disse: “não, você vai procurar um emprego assim, você vai pôr um terno...” Eu não via meu pai de terno, eu só via meu pai de farda “você vai a livrarias, você vai visitar teus amigos, você vai circular por São Paulo, porque em casa não acontece nada.” E meu pai, de uma forma rápida, eu vejo que com 53 anos ele conseguiu um emprego, ele foi ser gerente administrativo das Indústrias de Papel Simão, esse emprego quem arrumou pra ele foi através do meu tio Euryclides, o meu tio Euryclides tinha um médico na equipe dele que era o doutor Jamil, que era casado com uma das donas do Papel Simão. Ele teve que abrir mão da carreira de médico, porque parece que alguém tinha morrido. Enfim, ele abdicou da carreira dele para ir cuidar dos negócios da mulher, e foi ele quem conseguiu esse emprego para o papai, não era em São Paulo, era em Jacareí. Meu pai disse logo: “Therezinha, nós vamos ter que morar em Jacareí” minha mãe é muito prática, ela falou: “mas que diferença faz, me diga, você como militar também não servia em outros lugares? Eu não estou entendendo qual é o problema.” E eu acho que foi a sorte do casamento deles, porque se eles morassem como um casal normal, tradicional, o casamento teria sobrado, porque eram duas personalidades muito ricas, muito fortes, mas muito diferentes. Então papai ficava em Jacareí de segunda a sexta e sexta feira à tarde ele vinha para São Paulo. Então era uma festa, porque era um jantar bom e eles viviam com histórias. Sábado e domingo, sábado era pra passear em São Paulo como se fosse de férias, ele ia às livrarias, ele nos levava, íamos tomar sorvete, era muito alegre, começou... Apesar da estrutura política do país estar muito triste, a nossa vida ficou muito alegre, alegre em termos, porque também começaram a vir notícias de torturas. Em casa ia muita gente perseguida, ia muita gente fugida, e minha mãe com tudo isso que aconteceu com meu pai... É uma espécie de comida chinesa, o doce e o amargo, eu comecei a viver muito isso, esse doce e o amargo. E minha mãe se queimou muito com isso que fizeram com meu pai, e tomou uma atitude absolutamente contra o Governo e qualquer movimento que fosse contra o Governo militar, ela se engajava. Então eu em lembro que em 68, quando teve a guerra, que hoje está comemorando 40 anos, né? Tem até livro sobre isso, a guerra da Maria Antônia, com o Mackenzie. A minha mãe fundou uma liga das mulheres contra a violência, até o repórter perguntou “mas a senhora tem filho universitário”? Ela disse: “não, eu sou mãe preventiva, meus filhos ainda são menores, mas sou uma mãe preventiva” e eu me lembro de duas moças que vieram... Deixaram na porta de casa, ninguém sabe até hoje, eu adoraria saber quem levou essas moças para casa, eram duas secundaristas que tinham sido queimadas por ácido do Mackenzie, jogaram ácido em direção a Maria Antônia e pegou na perna dessas meninas, uma queimou menos, mas a outra pegou toda a perna. E elas não podiam entrar em hospital porque a polícia tinha guardas nos hospitais, e você precisava dizer o que tinha acontecido, elas não podiam dizer que estavam na guerra do Mackenzie com a Maria Antônia [USP], porque aí elas iriam em cana, e elas eram menores, elas eram secundaristas. E pra terminar, a família de nenhuma das duas era de São Paulo, elas apareceram na porta de casa no Pacaembu, tocaram a campanhinha, a gente foi abrir e não tinha ninguém, tinham duas moças sentadas em uma muretinha, porque elas estavam com a perna queimada. Aí minha mãe pôs pra dentro - e minha mãe falava sempre assim: “e se fosse uma filha minha” então chamou... E era tudo por debaixo, tinha que chamar alguém... Primeiro tentaram ver se era coisa de um farmacêutico, e aí um disse: “o caso dessa é mais simples, pode cuidar aqui, mas a outra precisa ser internada, isso aqui vai precisar de enxerto de pele.” E elas, que não queriam dizer quem eram os pais porque achavam que iam entregar para a polícia, era uma coisa... Ficaram no meu quarto, eu fiquei uma [semana?] sem quarto, eu fui transferida, porque elas ficaram no meu quarto e vinha gente. Até que finalmente a minha mãe conseguiu - porque o que minha mãe não consegue ninguém consegue - interná-la sem ficha, por debaixo do pano, com um médico que ela conhecia. Como ela é muito boa, faz muito favor, sempre tem alguém devedor de um favor. Então sem registrar, telefonou para a família dessa moça, que não era de São Paulo, era de Fortaleza. O pai tinha um cartório em Fortaleza, olha, é história... O meu pai às vezes chegava em casa e dizia assim: “Therezinha, isso daqui não é uma casa, parece um asilo de loucos, as coisas que acontecem aqui...” Olha, tinha muita história, às vezes sofrimento, umas histórias que eu via e que eu ficava assim... Das torturas, eu me lembro de uma das histórias, olha como são as coisas, eu vi que... Eu não lembro o nome da pessoa, mas tinha sido torturado tanto, que todas as obturações tinham soltado da boca. Você sabe que até hoje eu vou ao dentista e me lembro dessa... Vem um flash dessa história que... Eu tinha muita história nessa época, eu sempre fui muito boa aluna, mas porque eu gostava de estudar, eu queria estudar e ia levando. Eu saí do Externato Ofélia Fonseca e fui pro Rio Branco, porque o Externato Ofélia Fonseca, a partir do ginásio, ficava só feminino. Então o primeiro ano ginasial e o segundo eu estudei só com meninas, até 66, aí em 67 já era misto. Eu fui pro Rio Branco onde eu me senti no paraíso, por quê? Porque tinha uma biblioteca, uma das melhores bibliotecas de São Paulo, e uma coisa que eu admiro é que tinha de tudo, tudo que você imaginar. Tinha naquela época... Uns diziam: “ah, os comunistas e não sei o que...” Lá tinha peças do Brecht, tinha Gorki, tinha Proust, Standal, Edgar Alan Poe, tinha de tudo, e para mim aquilo era o paraíso...
P/1 – Deixa-me aproveitar que você está tocando no assunto da literatura, eu queria voltar um pouquinho e pedir para você contar pra gente como se deram os primeiros contatos seu com a literatura. O seu pai te apresentou um livro? Existe alguma lembrança específica? Algum livro marcante?
R – Olha, em casa, no Pacaembu, na José de Freitas Guimarães, 209, a casa tem três andares, porque o terreno é todo acidentado. O andar térreo na verdade é o nível da rua, e como é uma inclinação, tem um andar que não é o subsolo, mas era um andar mais baixo, que era a biblioteca do meu pai, meu pai sempre foi um grande leitor. Eu já nasci tendo uma biblioteca para ler, então uma das lembranças que eu tenho, eu com quatro anos - porque eu não sabia ler - eu sabia que diziam: “o ano que vem você vai entrar na escola, e aí você aprende a ler.” Eu pegava uma Divina Comédia, que era de um tio do meu pai, o meu tio avô Ornélio Teani, a Divina Comédia ilustrada por aquele grande ilustrador do século XIX, Gustavo De La Torre, eu olhava aquelas... Aquilo tinha tantos segredos e ao mesmo tempo eu tinha medo, aquilo era uma maravilha, eu ficava encantada e hoje que eu sei ler, volto a essa Divina Comédia, eu sei que ela está em italiano, naquela época eu não sei o que era. Agora um pecado que eu fiz, peguei um lápis e fiz comentários na margem, só que eu não sabia escrever. Então eu fiz símbolos, eu desenhei ali. Uma pena, porque era... Hoje eu digo: “são os meus comentários” e eu queria ser escritora, eu não sabia ler nem escrever e achava que ia ser escritora, porque eu achava que tinha alguma coisa a ver ali que eu ia escrever. Eu me lembro que num dos meus aniversários um... É engraçado, eu não sei o nome dele, um amigo dos meus pais, que também era muito culto, mas que chamavam por um apelido - não era codinome, era apelido também - era o Arcanjo Gabriel, porque o nome dele era Gabriel. Então minha mãe sempre falava: “ah porque o arcanjo...” ele me deu um livro que era “Os Contos de Anderson” e era uma capa preta, cada estrela tinha no meio um rosto de uma mulher, mas tinha uma bruxa, era uma relação de amor e repulsa, porque eu olhava aquela bruxa e ficava morrendo de medo. Então eu escondi o livro, mas ao mesmo tempo eram lindos aqueles rostos no meio daquelas estrelas, era uma relação assim, mas era muito forte e eu nem sabia ler. Aí eu aprendi a ler e o primeiro conto que eu li foi “A Menina que Pisou no Pão”. O quanto de culpa me colocou esse conto... Era a história de uma menina que era muito vaidosa e que ela um dia... A mãe era muito pobre, era muito difícil comprar o pão e elas conseguem comprar um pão com a última moedinha, mas a menina, para não sujar a barra do vestido para atravessar um pântano, o que ela faz? Ela põe o pão no chão e pisa em cima do pão para não sujar a roupa e o sapato, daí ela desce das profundezas sei lá de onde e aí começam as aventuras, é lógico que no final a menina se arrepende e volta. Mas eu sentia muita culpa por causa disso, eu digo: “vou ser como a menina que pisou no pão, a minha vaidade, os meus erros, eu não gosto das crianças, eu quero crescer, um dia eu vou pagar por isso, eu vou pisar no pão” isso é uma história que a minha avó Arminda inventou de dizer de Santa Cecília, ela sempre dizia: “Geninha...” porque um dia ela me viu cheirando pão, um pão quente, ela tirou do forno e a primeira coisa [que fiz] foi cheirar e ela disse: “não cheire o pão, isso é o corpo de Cristo, isso é pecado, o que você está fazendo? Olha Santa Cecília, o cadáver dela foi descoberto em Roma completamente mumificado, perfeito, até os dedinhos... Porque ela fazia Santíssima Trindade para mostrar que mesmo depois de morta ela creditava em Deus, o corpo estava perfeito. Sabe a única coisa que faltava?” “não” “a ponta do nariz, porque ela cheirou um pedaço de pão.” Olha, eu fui depois de muitas décadas, em 1900 e alguma coisa, fui a Roma, fui às Catacumbas e vi Santa Cecília, que é a padroeira da música, eu vi o corpo embalsamado, mas não conferi a pontinha do nariz. Então o meu contato com a literatura, o meu encantamento, vem antes de eu saber ler. O meu pai contava muitas histórias, existiam muitos personagens imaginários em casa, sabe aquelas personagens imaginários que inventavam? Eu também tinha muita imaginação, porque quando eu era pequena - eu tinha um ano e pouco - eu perdi a ponta desse dedo em uma porta na casa da minha avó Arminda, em um almoço de domingo. Um primo maior ia me levar para passear na rua - e eram aquelas portas antigas, parecia casa de operário inglês - eu pus a mão para trás e ele fechou a porta e caiu. Fizeram operação plástica, que foi com o doutor Espina, um dos primeiros médicos plásticos. Disse para minha mãe que eu ia ficar com... Talvez eu perdesse o movimento do dedo e não ia nascer mais unha, mas a mão ia ficar perfeita. A minha avó Arminda fez uma promessa, e é lógico que quem ia pagar a promessa era eu, para Nossa Senhora de Aparecida. Se eu curasse, eu ia assistir uma missa, toda de branco, lá em Aparecida. E eu fui, sarei, cresceu unha, tenho movimento do dedo. Só ficou um pouquinho menor, mas eu comecei a ter visões de Nossa Senhora Aparecida, a quem eu chamava de Didi e uma vez a minha mãe, que sempre... Eu assustei minha mãe, porque eu estava dormindo no meu quarto e comecei a gritar e dizer: “mamãe me ajude, ela veio me buscar, a Didi veio me buscar" porque eu sonhei com Nossa Senhora Aparecida, eu tinha uns quatro anos, por aí, uns quatro, cinco anos. Ela estava no meu quarto e vinha vindo na minha direção, mas eu me lembro que ela tinha um presente, uma caixa azul assim, mas eu tinha muito medo. E essa noite minha mãe cortou um dois para me fazer dormir outra vez. Eu tinha muito medo, eu era muito medrosa. Eu via fadas e às vezes eu chegava e dizia: “eu vi um gnomo” aí meu falava: “é sabe que uma vez eu também vi, ele estava virando aqui a árvore” Papai Noel também, ele sempre... “Ah o senhor acredita em Papai Noel”? Ele disse: “olha, uma vez eu estava andando na rua, eu vi uma mancha e eu acho que era ele”, ele nunca falava nem sim e nem não, era uma coisa dúbia, mas ele falava tantos detalhes assim que... Sabe, em casa o meu pai e minha mãe tinham muita imaginação, então a literatura... Primeiro ela começa oralmente e nunca, absolutamente eu contei alguma coisa dizendo: “você está mentindo”, eu nunca falei para eles e sempre quando eu contava alguma coisa, eles diziam: “ah, porque eu vi...” “mas você viu mesmo, nossa! Não me diga! E como é que era?” Então era sempre uma imaginação muito solta. Eu aprendi a ler como eu te contei, em 59, com a dona Judith. Desculpe, em 59 eu entrei na escola, eu aprendi a ler em 60, com seis anos. Com sete eu já comecei a ler, mas eu me lembro quais livros... A Reinação de Narizinho, eu pedia mesmo não sabendo ler: “leia pra mim.” Eu pedia muito para os adultos lerem para mim, porque era rápido, eu lia muito devagar, eu me lembro de mim com o dedinho, lendo, punha o dedo em baixo. Para ler uma página eu demorava muito. De novo eu volto à casa da minha avó, no quarto dela na frente do Pechinche, eu sei que eu ia almoçar domingo na casa dela e enquanto o almoço não estava pronto, eu chispava para o quarto dela e ela tinha a revista “O Cruzeiro”, que eu lia. Aí eu li matérias incríveis, me lembro que eu lia muito sobre a princesa Anastácia, era o must da época, Anastácia era filha do Czar que na revolução russa a família é morta e especulava-se... Tinha uma lenda que a princesa Anastácia tinha sobrevivido e que várias... Ela seria herdeira da fortuna dos Romanov. Uma das características da princesa Anastácia era o olho azul cor de violeta, e várias Anastácias fictícias apareciam, a mais perfeita era uma nos Estados Unidos, que vieram descobrir só hoje, que existe DNA, porque naquela que eu li “O Cruzeiro” na casa da minha avó, ela era cotada para mais perto, que era uma moça desmemoriada vagando nas ruas de Praga, e ela não falava russo. Mas diziam que era o trauma, que ela tinha ficado tão traumatizada porque ela conhecia detalhes da família imperial e ela tinha o tal olho azul cor de violeta, eu lia como se fosse uma novela, eu pegava meu dedinho e ia lendo “O Cruzeiro”, e lia histórias dos fantasmas de Londres no Cruzeiro. Então eu me lembro que tinha um fantasma que aparecia na Cleópatra Nedan... Enfim, revista eu lia muito “Cruzeiro” e “Manchete”, “Seleções” eu lia também. Livro mesmo eu demorava muito, livro eu embalei com oito, nove anos. Quer dizer, com sete vendo as revistas e com oito, nove anos li todo... Com nove anos eu tinha lido todo Monteiro Lobato, os meus prediletos eram “Os Doze Trabalhos de Hércules” e o “Minotauro”, eu sabia de trás pra frente e de frente pra trás e se você me perguntasse o primeiro livro adulto que eu li, “Deus e Sábios e Túmulos”, que era sobre o Egito. Mas se você perguntasse o que eu queria ser quando crescesse, eu dizia arqueóloga. Aí entrava minha mãe em cena e dizia: “deixa de bobagem, Arqueologia não existe no Brasil, você vai morrer de fome, você precisa ter uma profissão, depois você vai estudar o que quiser, mas não tem arqueólogo no Brasil, você vai fazer o quê? É preciso ser muito rico para financiar as expedições.” E eu ficava triste, porque eu adorava o Egito e aquelas coisas, e meu pai sempre fazia umas brincadeirinhas, ele dizia: “no Egito o pé não sua, mas em Epitácio Pessoa”, isso era coisa de Guaratinguetá, da campanha eleitoral de Epitácio Pessoa. Olha as coisas que eu recebi de segunda mão. Então da leitura... Isso, agora, a literatura adulta deu-se com “Estábulos e Túmulos”, quando eu tinha nove anos. Aí eu lia de tudo, então na escola, no Ofélia Fonseca, mandavam dividir uma classe, então alguém lia “Senhora”, outro lia “A Pata da Gazela” e trocavam os resumos, resumia para a classe. Eu lia todos, eu lia o meu e de todas as meninas. Quer dizer, eu era compulsiva, daí começou uma briga, ao contrário do que eu vejo em todas as casas, minha mãe dizia: “levanta dessa cadeira, você vai ficar com o traseiro maior que o mundo, você não sai, você não brinca, você não corre como as outras crianças, você vai ficar míope Eugênia, você vai torrar seus olhos, levanta” ela disse: “quem lê muito não vive, vai viver a vida, vai ver passarinho, para de ler.” Mas eu continuava a ler, eu gostava muito, e com 13 anos eu fui para o Rio Branco, tive o prazer daquela biblioteca. E não tinha nenhuma atividade, é isso que eu acho interessante. Porque se podia naquela época ou fazer uma censura temática até autoral, ou mesmo de idade, quer dizer, você podia tirar... Ficava a critério do aluno ou quem sabe da família do aluno, mas eu podia tirar o que eu quisesse, e isso eu acho de uma grandeza muito grande, porque dificilmente você vê hoje em dia... Quer dizer, eu fui crescendo e já na época da faculdade tinha uma patrulha ideológica, eu não vou dizer que não, já na época da faculdade, eu fui em 72, fui fazer Direito por acaso, porque eu queria ser escritora e de novo minha mãe entrou em cena “não, você precisa ter uma profissão” e ela dizia: “faça como fez a Lygia Fagundes Telles, a Lygia fez Direito e é escritora, mas é procuradora do IPESP [Instituto de Previdência do Estado de São Paulo], tinha um emprego, você precisa ter um emprego.” Então muito a contra gosto eu fui fazer Direito, e eu fazia Economia e Direito, eu fazia as duas... Acabei deixando...
P/1 – Vamos dar uma pausa agora nessa fase de transição do Rio Branco pra faculdade... (troca de fita)
Ponto de Cultura Depoimento de Eugênia Zerbini
Entrevistada por Eduardo Barros e Gabriel Nascimento
São Paulo, 31/07/2008
Realização do Instituto Museu da Pessoa
Entrevista nº PC_MA_HV136
Transcrito por Rosângela Maria Nunes Henriques
Revisado por Ligia Furlan
P/1 – Bom, continuando a entrevista, a gente está retomando o ponto que paramos, quando você estava aproximadamente com 13 anos de idade no colégio Rio Branco e ficou encantada com a biblioteca aberta para todos os alunos sem restrição de leitura, com um acervo bastante vasto, né?
R – Isso. E só um lembrete, eu ainda sou membro da Biblioteca, porque é um privilégio que os ex-alunos têm e os pais dos alunos atualmente, de acordo com as regras vigentes, podem tirar livros também. Então eu acho que... Só que aquela Biblioteca do colégio me bastava, mas eu tive dois professores muito importantes, o primeiro deles foi o professor de História, o Hélio Alcântara, e eu fiquei fascinada pelas aulas de História, porque pela primeira vez alguém me abriu os olhos assim para uma narrativa histórica menos baseada em datas, tentar analisar. E a partir de então me influenciou muito, assim a minha abordagem, não só pela história, mas como tudo na vida, tentar interligar, contextualizar em um olhar mais crítico. O segundo professor era um professor... O Maranauat, ele dava aula de francês, mas ele começava o curso já pressupondo que as pessoas tivessem um bom nível de francês, de médio para bom, porque ele dava poesia de Chateaubriand, trechos de Flaubert e era muito bom o curso para um nível. Eu me lembro, eram todos muito jovens, final de ginásio e começo do ensino, naquela época do clássico, hoje em dia é o ensino médio. E eu fiquei fascinada principalmente com a literatura francesa, e uma coisa vai puxando a outra. E aquela biblioteca maravilhosa, fantástica, eu podia ler tudo que era mencionado em aula. Eu fui fazendo umas descobertas e veio a célebre hora da escolha que eu iria fazer, então às vezes eu queria fazer História, mas eu queria ser escritora, eu tinha vergonha de dizer que eu queria ser escritora, porque eu achava que era pretensão. Agora, paralelamente aos meus estudos, frisando que eu sempre fui boa aluna, eu gostava de estudar e também devo grande parte da minha formação literária ao ônibus elétrico Cardoso de Almeida ou Machado de Assis, porque era o seguinte: meus pais moravam no Pacaembu - como eu já mencionei - e eu ia de ônibus para a escola. Então eu pegava no ponto final o ônibus Cardoso de Almeida, todos comentavam que era um ônibus muito bem frequentado, e ia de ônibus, descia ali perto da Praça Vilaboim, ou melhor, na Praça Vilaboim e continuava um trecho pequeno a pé. Eu ia lendo no ônibus, já ocorreu de eu perder o ponto - que eu estava tão entusiasmada - de descer ali, atravessar a Angélica e voltar um trecho, e na volta a mesma coisa. Quer dizer, eu vivia em um mundo, de certa forma, um mundo de fantasia, porque eu lia muito.
P/1 – Você tinha uns 15 anos, 1,4 mais ou menos?
R – Exatamente.
P/1 – Tem alguma leitura dessa época? Desse período em especial? Ou mais de uma leitura que você tenha...
R- A Literatura Fantástica de Edgar Alan Poe, as Histórias Extraordinárias, aquilo pra mim foi uma epifania, porque eu dizia que lia e ele diz exatamente as coisas que eu gostaria de ter dito, a visão de mundo era a minha visão de mundo. Hoje eu acho um pouco estranho, porque Edgar Alan Poe são aquelas mulheres lunares, é tudo muito gótico, grandes invernos, histórias de fantasmas e absolutamente... Nós vivemos num país tropical, eu vivia debaixo de luz, talvez o meu interno que eles refletissem, porque ao lado disso os meus pais sempre [foram] muito envolvidos com política, eu também já mencionei isso, acabaram me colocando em contato de uma forma indireta para o mundo, que era muito agressivo, que era muito cruel, as pessoas eram presas, eram torturadas, as pessoas sumiam. E eu ouvia todas essas conversas, a minha mãe foi detida uma vez em 69, foi levada pro Oban [Operação Bandeirante], mas passou para a Operação Bandeirantes, passou só uma noite, ela foi presa para averiguação, mas no ano seguinte, em 70 ela, foi presa em fevereiro.
P/1 – Desculpe eu te interromper, eu queria que você, se fosse possível, relatasse um pouco dessa trajetória de ativismo político mesmo da sua mãe, porque você comentou conosco na primeira entrevista que depois da prisão do seu pai, ela ficou revoltada com o Governo e começou a ajudar todas as pessoas e a participar das iniciativas contrárias ao Governo. Você até citou aquele caso das duas meninas que foram queimadas, mas se você puder, a partir daí, relatar um pouco a trajetória da sua mãe e como essa revolta foi se transformando mesmo num ativismo político mais sistematizado, mais engajado e depois as consequentes prisões.
R – Isso. Então, a minha mãe, depois da prisão do meu pai... A minha mãe sempre foi voltada pelo social, ela tinha esse gancho no social, uma pessoa muito generosa, talvez uma das pessoas mais generosas que eu já tenha encontrado na vida, porque normalmente você dá o que tem a mais, né? Você dá aquilo que não vai fazer falta, e a minha mãe dá coisas que ela precisa, ela dá coisa que ela gosta, ela é uma pessoa que eu considero fora de série e muito inteligente, mas de uma inteligência assim... Eu digo que ela pode não ter cultura, mas ela tem uma inteligência brilhante, e meu pai brincava que ela aprende como um papagaio, ela tem uma cultura auricular, ela escuta uma coisa e aprende, ela não é intelectual de ficar fazendo vários exames em livros. Agora, teve o privilégio de conviver com um homem muito culto, que era o meu pai e frequentar um meio também de pessoas cultas, então ela se abrilhantou muito com isso. O que aconteceu com ela é que depois de 64 ela ficou abertamente contra o regime, ela fazia qualquer coisa para quem viesse pedir auxílio, desde esconder gente e dar fuga para as pessoas que precisavam fugir, arrumar dinheiro... Vamos dizer, era considerada o que chamavam de turma de apoio, até que por essas ironias do destino teve o episódio de 68, da guerra do Mackenzie com a Maria Antônia que ela criou o movimento, idealizou o movimento a União da Mulheres Paulistas contra a Violência, um nome que eu me lembro que fazia parte dessa liga era Hadad Abramo. Então se juntaram talvez a esse tempo da guerra do Mackenzie com Maria Antônia, foi contemporâneo ao congresso da UNE [União Nacional dos Estudantes]. A minha mãe, por uma daquelas ironias, foi quem apresentou o dono do sítio em Ibiúna para um dos padres Dominicanos, mas foi realmente coincidência, porque o Frei Tito que fez essa ponte, o Frei Tito era muito amigo do meu pai, por quê? Meu pai tinha paixão por Filosofia, então desenvolveram... Em 64, quando ele foi cassado, foi a época do romance. Ele lia, mas de uma forma compulsiva, romances. Então tudo que se imaginava de romance... Literatura brasileira, literatura estrangeira, eu me lembro que uma vez ele chegou em casa com Henry Miller com o “Trópico de Câncer” e “Trópico de Capricórnio” e ao mesmo tempo tinha... Enfim uma das primeiras pessoas que eu vi lendo literatura latino-americana daquele Realismo Fantástico, ele lia espanhol, “La Ciudad y los Perros”, “Conversa na Catedral”, de Vargas Llosa, Cortassa, enfim, era um delírio literário e isso evoluiu... Reacendeu nele o gosto para a Filosofia, porque reacendeu... Porque eu via na Biblioteca uns livros antigos de Filosofia, ele sempre comentava comigo que em 32, quando ele foi expulso do Exército, foi fazer Politécnica. Prestou vestibular – porque tinha sido expulso do Exército – e ele precisava trabalhar, ele era moço, era de 28... Desculpe, meu pai era de 1908, então em 32 ele tinha 20 e poucos anos, ele foi fazer Politécnica, e estudando na Politécnica ele fez uns cursos vagos como ouvinte na Filosofia. Enfim, mas passando a fase literária, ele foi se interessar por Filosofia, e ele conversava muito com o Frei Tito, mas eles conversavam Filosofia, e um dos filósofos favoritos do meu pai nessa época era o Merleau-Ponty, então era filosofia do corpo no pensamento de Merleau-Ponty, e o Frei Tito veio em casa um dia a tarde, em um dia de semana, e minha mãe por um acaso... Embora minha mãe trabalhasse, você veja como são as coisas, parece que tem um desenho, um traçado, existe um imponderável nisso tudo. A minha mãe estava em casa, parece que ela veio almoçar em casa e o Frei Tito bateu na porta e disse: “eu queria falar com o general Zerbini” ela disse: “Tito, ele está trabalhando” e ele não trabalhava em São Paulo, ele trabalhava em Jacareí “ah, que pena” ele entrou e disse: “Por um acaso a senhora não conheceria alguém que tivesse um sítio? Porque nós estamos precisando fazer uma reunião” Uma daquelas coincidências, o dono do sítio, que se chamava Simões, estava em casa, ouviu essa conversa e disse: “eu tenho e eu empresto.” Olha, era uma coisa, parece que um trem sem freio desabalava carreira e vem se chocar... Quer dizer, tudo conspirando para aquele encontro infeliz. Infeliz por quê? Isso veio a custar o fracasso em Ibiúna, a prisão do Simões, a prisão da minha mãe e a morte do Frei Tito. Quer dizer, a minha mãe foi presa em 69 exatamente por ter feito essa intermediação, o resto das coisas que ela fazia nunca foram descobertas, porque tinha mais coisas, mas graças a Deus parou aí. Agora, o Frei Tito foi torturado de uma forma bárbara e eu acho que um exemplo assim, uma pálida amostra do que aconteceu... Existiu um filme, eu assisti o ano passado, “O Batismo de Sangue” foi baseado... Do Ratton, um cineasta de Minas Gerais que foi baseado no livro homônimo do Frei Beto. E minha mãe ouviu a tortura, ela estava presa, ela e uma irmã, uma irmã mais velha, a Maria Antonieta. E por que pegaram a minha tia Antonieta? Porque na casa da tia Neta o Simões tinha ficado escondido, quer dizer, minha mãe usava a família... E essa minha tia, a Maria Antonieta, era uma tia mais velha dela, você vê o nome, né? O nome era Antonieta, mas ela se apresentava Maria Antonieta, advinha por quê? A malfadada rainha da França, essa minha tia, Neta, era uma das mulheres mais desligadas, não tinha um pingo de consciência política, ela não tinha um pingo de vida interior, o mundo para ela era assim, uma bola cor de rosa, parecia a Bárbara Kathleen, mas pelo amor que tinha pela irmã e minha mãe também sabia pedir... Ela sempre quando pedia asilo, dizia: “e se fosse o seu filho? E se fosse um seu irmão?” Ela dava esse golpe de misericórdia e as pessoas cediam. Então as duas estavam presas e ouviram a tortura do Frei Tito, a minha mãe sempre conta que depois deles terem torturado barbaramente, eles paravam e ela diz que ela rezava muito, mas de repente ela começou a ouvir uma “guaraña", “Recuerdos de Ypacaray”, um daqueles torturadores, alguém sabia tocar violão e tocava “Recuerdos de Ypacaray”. Até hoje... Às vezes eu converso com ela sobre isso e eu falo: “mas que coisa absurda, como é que funciona a cabeça de alguém nessas horas”? Mas também vem uma pergunta para mim: o Himmler - que era um nazista - quem conhece a história dele sabe que ele gostava muito de Mozart, eu também falo: “está vendo mãe, cada um tem o gosto que merece, Himmler ouvia Mozart, os torturadores do Oban ouviam Lagoa de Ypacaray, quer dizer, enfim... E por que de tudo isso? Eu não sei se essa minha exposição por essa realidade que acontecia, não sei também se era o meu gosto pela História, esse período para mim desperta uma curiosidade, mas eu digo que é uma curiosidade quase doentia. Por exemplo, eu já mencionei no começo do depoimento os sentimentos que eu tenho com relação aos livros do Elio Gaspari. Quando são publicados, eu preciso comprar no dia, saber a hora que chegam na livraria, eu leio todos de uma vez e eu pergunto muito para as pessoas que viveram isso. É uma coisa como se alguma coisa muito minha tenha ficado presa em algum momento atrás, eu não sei se foi a minha inocência, porque eu digo assim que nunca... Às vezes me pergunto se eu tive alguma visão infantil do mundo, apesar de toda a minha literatura, de sempre gostar muito, de ser muito imaginativa, eu tenho uma tendência para idealizar as coisas. Eu tinha um mastro, parecia aquela bola de ferro que os forçados trabalhavam, essa bola de ferro que era a realidade que eu vivi na minha adolescência, o contato... Eu via as pessoas machucadas, eu via as pessoas falarem, eu via as mães... Porque batiam em casa querendo saber onde estava o filho e diziam: “o meu filho sumiu”. Sabe, uma mãe falando pra outra - e eu sentada - assim “o meu filho sumiu, eu não sei onde está o meu filho.” Muitas diziam: “eu não quero que ele seja libertado, mas eu quero saber onde ele está”. A minha mãe viveu isso quando meu pai foi preso. Então tudo isso eram coisas assim, eu achava o mundo uma coisa muito estranha. Era tudo, menos um lugar seguro de se viver.
P/2 – Como foi o seu ponto de vista, bem pessoal mesmo, quando a sua mãe foi presa em 69? Como você ficou sabendo? Você se lembra?
R – Minha mãe foi detida para informações em 69, eu não entendia bem, para mim era um quebra cabeça que não se encaixava, porque era noite e vieram buscá-la, eram uns homens vestidos à paisana, ela dizia para nós ficarmos calmos, eu e meu irmão, que ela ia voltar. Lembra que meu pai morava fora de São Paulo? Então, a primeira vez que a pegaram para averiguação eu e meu irmão ficamos sozinhos em casa com a empregada. E eu já tinha amadurecido muito nessa época, quer dizer, eu já ouvia conversa, eu sabia que alguma coisa estava acontecendo e que não era boa. Mas também aceitava, eu fingia que aquilo era tudo muito natural, eu não sei, uma sensação... Eram muitos sentimentos entrelaçados. Quando a minha mãe foi presa, em 70, porque aí ela ficou realmente o ano de 70 presa, aí foi bem mais complexo. O meu pai estava em casa, eu e a minha mãe. Meu irmão estava no Rio de Janeiro porque ele tinha ido passar umas férias com o general Cunha Mello. O general Cunha Mello era um amigo de infância do meu pai, ele também foi cassado em 64, ele era de Santa Catarina e era um homem lindo, um senhor lindo. Era alto de olho azul, ele pintava isso por quê? Nós passávamos as férias, nós trocávamos: 15 dias eu passava com ele no Rio, depois eu voltava para São Paulo e ia meu irmão, quer dizer, nunca ficavam os dois e era muito agradável. Eles também frequentavam nossa casa em Campos do Jordão, era uma amizade que meu pai teve pela vida toda. Então eu estava em casa e chegaram para pegar a minha mãe, tocaram a campainha, era hora do jantar. Eu me lembro, era horário de verão, era claro ainda e nós jantávamos cedo, porque nós tínhamos chegado de Campos de Jordão. Tocaram a campainha e a empregada veio dizendo: “um capitão Guimarães quer falar com a senhora”. Na hora o comentário da minha mãe foi falar: “você está vendo, mais alguém que quer carta de apresentação para ser operado pelo seu irmão”. Como sabiam que meu pai era irmão do doutor Zerbini, muitas pessoas nos procuravam para pedir internamento no Hospital das Clínicas, e nem sempre era problema de Cardiologia, mas iam pedir favor para apresentar, coisa de médico. Ela mandou ele entrar e quando ele entrou, ele não estava sozinho, era ele e mais dois com metralhadora e minha mãe não viu, porque a mesa de jantar ficava de costas para a entrada, eu vi eles descendo a escada. E nós tínhamos um poodle que começou a latir desesperadamente, agora meu pai percebeu que alguma coisa de estranho estava acontecendo, porque ele levantou e perguntou: “quem são vocês?” Assalto não era, porque em 70 não tinha assalto, enfim eles disseram: “nós viemos buscar a dona Therezinha para fazer umas averiguações” aí meu pai perguntou: “a quem vocês se reportam?” “Ah, nós somos da operação Bandeirantes e...” E aí minha mãe já veio como bulldozer “você sabe muito bem quem eles são, eles são da Oban, eles não se reportam a ninguém” e meu pai disse: “eu vou telefonar para o chefe do segundo Exército” e minha mãe disse: “não peça favor para ninguém. Se algum sentimento que você tem por mim, não peça favor a ninguém, eu entrei nessa sozinha, eu saio sozinha, não peça nenhum favor, eu não quero que você fique devendo favor a esse tipo de gente.” E subiu e disse: “eu posso pegar a minha bolsa?” Nós estávamos jantando, foi no meio do... Já estava na sobremesa, era um doce de pêra, porque lá em Campos do Jordão tinha muita pêra nativa e faziam uma pêra em calda que era uma delícia... Eu fiquei assim... Era uma coisa que era assim... Parecia coisa de filme, de romance, para mim era estranho. Eu sei que eu subi com a minha mãe atrás e ela: “eu posso pegar a minha bolsa?” E disseram: “pode” e sentaram, e o cachorro... Eles diziam: “que cachorro bonito” meu pai disse: “ele é cachorro de exposição, ele tem medalha”. Era um poodle preto, mas que não era pequeno, era grande, o Zorba. E eu subi e falei para minha mãe: “se a senhora não voltar...” - eu chamo minha mãe de senhora, eu sou de uma geração que fala senhora - “se a senhora não voltar em um dia, no dia seguinte eu levo roupa para senhora” e ela disse: “toma conta do seu pai, mas não avisa seu irmão.” Porque meu irmão estava de férias em Campos do Jordão, né? Desculpe, no Rio de Janeiro, e eu sei que foi uma coisa rápida, nos abraçamos e ela foi embora. Eu e meu pai a gente ficava se olhando e não tinha o que falar, sabe uma coisa estranha assim... Precisava chamar o advogado e aí eu punho uma música. É um sentimento que eu desenvolvi nessa época, de dizer: “é tudo natural” quer dizer, não tinha nada de natural, mas fingi que era uma coisa natural. Eu sei que meu pai essa noite não dormiu e eu fiquei com ele conversando até muito tarde e o bom... Você vê, daí nós tínhamos uma muleta, eu gostava muito de ler, ele gostava muito de ler, nós conversávamos de literatura, dos personagens, das histórias “vamos ouvir um pouco de música”. Fomos ouvir um pouco de música até uma hora que eu fiquei cansada e disse: “agora vou dormir.” Meu pai também era uma pessoa rica interiormente, ele era muito controlado, ele não demonstrava sentimento, era um gentleman. Não gritava, não se desesperava, ele sempre muito educado. Nessa noite... Mas eu sei que com a prisão da minha mãe, meu pai, que já era 20 anos mais velho que ela, envelheceu muito, momentaneamente. Porque quando ela saiu, ele renasceu como a Fênix. Criou uma película branca em cima dos olhos, era uma coisa estranha, ele perdeu o brilho dos olhos, porque eles se amavam, do jeito deles eles se amavam muito, e ele sabia muito bem que estava em jogo. Quer dizer, tinha muitos nomes, muitas coisas. Eu sei que aí ele disse: “Olha, filhinha...” No dia seguinte eu acordei cedo, tomamos café juntos, eu vi que ele não dormiu, ele disse: “eu tenho que voltar, eu tenho que trabalhar, agora mais do que nunca. Eu vou pra Jacareí, você fica sozinha com a empregada em casa? Ou você quer ir para a casa da sua tia Eunice?” , que era irmã dele, “ou você quer ir pra casa da sua avó?” Eu falei: “não, acho que é melhor ficar aqui, né? Porque se acontecer alguma coisa vão ligar aqui para casa.” Então ele me deixou dinheiro, que se acontecesse alguma coisa eu telefonasse para ele, eu ficasse esperando se tocasse o telefone. Ok, fiquei em casa sozinha. Aí eu me lembro da minha avó Arminda, ela contando uma história, a minha avó Arminda teve 13 filhos, dos 13 sobreviveram cinco, ela perdeu todos os outros bebezinhos ou no parto, ou antes de completar um ano. O marido dela abria fazenda, então ele comprava um terreno, devastava, arrumava a fazenda, vendia e comprava outro terreno. Então é mais ou menos naquela época da marcha para o oeste, na época do café. Ela dizia que em Sapezal ela teve parto de gêmeos e eu dizia: “sozinha vovó?” Ela dizia: “sozinha não minha filha, eu e Deus”. Ela contava que começou a ter as dores do parto, ela estava com uma empregada no cafezal e mandou a empregada buscar socorro na casa da fazenda, e se deitou à sombra de um pé de café. O primeiro nasceu ali, ele nasceu já morto porque estava empelicado - empelicado é o nome quando está com o cordão umbilical enrolado no pescoço - o segundo... Ela tinha por volta de 30 anos e eu sempre perguntava essa história “vovó, você fez tudo sozinha?” ela dizia: “eu e Deus”. Cortou o cordão e tudo isso. O segundo sobreviveu, mas durou pouco tempo porque ela não tinha leite. Então naquela época... Quer dizer, ela não produzia leite. Também, era tanto estresse, tanta coisa, mas enfim, quando perguntaram “você ficou sozinha na sua casa?” Uma casa no Pacaembu de três andares, eu falava: “eu, a empregada, Deus e os meus livros”, porque eu lia de uma forma compulsiva, então nada... Era muito estranho, eu sei que minha mãe não apareceu e no dia seguinte eu fui à operação Bandeirantes. Eu não sabia onde era, chamei um táxi e lá fui eu de táxi para a operação Bandeirantes, para levar roupa para minha mãe. Quer dizer, tudo isso... Às vezes eu não sei, eu pergunto o que era de faz de conta, se eram os livros que eu lia, ou essa realidade que eu vivia, porque é quase livresca, né? É uma coisa tão sem pé nem cabeça. Agora minha mãe lá presa, o papai telefonando “o que aconteceu? Tem notícias?” Nada. A minha tia Eunice se ofereceu para eu ficar na casa dela, [da?] minha avó, e ficou esse ano, ela ficou uns dez dias na operação Bandeirantes e então foi mandada para o DOPS [Departamento de Ordem Política e Social]. Quando ia pro DOPS estava no paraíso. Agora veja como são as coisas, a minha avó Arminda morava na Rua Diogo Vaz, 94, pertíssimo da casa dela, dessa rua. Em uma rua que era meio transversal morava o Celso Teles, que era chefe do DOPS, a mãe desse delegado, o Celso Teles, chamava-se dona Carmem. A minha avó a conhecia de vista, da feira, aquelas coisas de vizinhas, duas senhorinhas muito educadas que se cumprimentavam na feira. A minha avó foi e fui com ela pedir para dona Carmem interceder junto ao filho, o Celso Teles, que era um delegado e era solteirão. Morava com a mãe e eu me lembro de ter visto, quer dizer, a minha avó começou... Então me pegava e dizia: “você vem, porque você como filha, você é minha neta...”, e íamos. Começou a procurar minha mãe, se tinha notícias da minha mãe, aí contratamos advogado... E eu me lembro do delegado Celso Teles, de quem me recebeu na Operação Bandeirantes... Eu me lembro de tudo isso. Me lembro também... Veja como são as coisas, às vezes eu estava dormindo de noite e tocava o telefone, sempre eram umas vozes que diziam: “olha, aqui vai um recado. Sua mãe mandou dizer que está tudo bem.” Então eu fico pensando quem dava esses recados, às vezes minha mãe dizia... É lógico, porque quando ela foi presa, ela levou dinheiro, então sempre tem um carcereiro... Às vezes nem é por dinheiro, porque eles eram presos políticos, eram diferenciados, não sei, às vezes por pena da minha mãe dizer: “minha filha está sozinha em casa”, sabe? Sempre tinha uns recados, umas coisas muito estranhas, como também muito estranho, me telefonaram e falaram: “olha, aqui é da costureira, tem a prova do teu vestido, lembra? Aqui na Avenida Angélica número tal, apartamento tal” eu sabia “eu acho que devo ir lá”, era o mínimo. Você sabe que hoje eu fico pensando e falo: “que loucura, podiam ter sumido comigo”. Esse caso você não vai acreditar, que era uma moça que tinha... Parece que ela tinha um caso com um delegado, uma coisa assim. Eu sei que eles brigaram e ele bateu nela, uma coisa qualquer, ela foi à delegacia... Porque a Oban funcionava ao lado de uma delegacia, enfim, eu estava no DOPS e era um recado, ela tinha visto a minha mãe e a minha mãe tinha pedido para dizer que estava tudo bem e ela queria me ver, para ver se eu estava bem para depois, através desse delegado, dizer para minha mãe que eu estava bem. Eu sei que do DOPS minha mãe foi pro presídio Tiradentes, e isso eu tenho muito vívido em mim. As visitas que eu fazia para minha mãe, porque era o seguinte: lá no presídio Tiradentes, para visitar precisava de ordem da Auditoria Militar. Você cadastrava e as visitas eram às quartas e aos sábados, para não dar bololô, para não fazer comícios, porque tinham muitas presas políticas. Na época que minha mãe estava presa política, a Dilma Rousseff era presa também, e eu conheci a Dilma mocinha, eu tinha 15 pra 16 anos e ela não era tão mais velha do que eu, eu dava para ela uns 19 ou 20 anos. E de óculos, um óculos fundo de garrafa, cabelo bem curto, ela de jeans. Eu me lembro que nas visitas de sábado minha mãe sempre chamava ela para perto, porque ela não tinha família aqui em São Paulo, a família dela era do sul, ela não tinha família pra visitar. Então eu me lembro que formavam aqueles grupos de família e minha mãe falava assim: “vem cá, Dilma, vem conversar...” Porque era uma hora que elas respiravam, tinha conversa, tinha tudo, sabe? Gente diferente... Eu visitava minha mãe duas vezes por semana, aos sábados com meu pai, porque meu pai era cadastrado na Auditoria Militar. Às quartas eu ia com minha avó Arminda, eu ia nas duas vezes porque eu era menor de idade, e menor não precisava de autorização. Então eu me lembro, quarta feira eu almoçava cedo, saía do Rio Branco... Eu não me lembro assim dos detalhes, parece que eu ia para casa... Eu já tomava o ônibus e ia pra casa da minha avó, e de lá nós íamos direto de ônibus, porque minha avó era daquela geração que não tomava táxi, só em caso de ir para maternidade, para o hospital. E bem vestida de salto alto, ela já tinha mais de 70 anos nessa época, ela arrumava... Eu me lembro que ela sempre levava numa sacola, ela fazia bolo, fazia umas delícias, comprava umas frutas, coisas para levar para minha mãe e ia. Agora o encontro das duas era de... Porque minha avó chorava muito, minha avó era uma mulher conservadora, leitora do Estado de São Paulo. Ela nasceu no final do século XIX, ela não era... Era daquelas pessoas que sempre diziam que o sangue pesa mais do que a água, e era a filha dela. Ela chegava lá, chorava e dizia: “eu não criei uma filha para ficar presa assim, com essas prostitutas, com ladrão” minha mãe dizia: “não mamãe, aqui é a ala política, é separado” “ah, mas eu vejo as presas comuns...” Porque o banho de sol, as presas políticas faziam com as presas comuns no presídio Tiradentes, tinha uma hora que elas... Eu sei que minha avó achava aquilo um horror, porque ela não tinha criado a filha para aquilo e que... Mas enfim, passadas as primeiras lágrimas já vieram conversas e aí acabava, tocava lá o sino, tipo cinco horas da tarde, eu saía com a minha avó e a gente ficava na Tiradentes. Aquela tristeza, e nós vínhamos andando, a Pinacoteca não existia, era Escola de Belas Artes. E uma imagem que eu me lembro... Mas isso desde a época de 1959, quando eu ia para Ubatuba, pegava a Via Dutra que ia para São José e de São José Paraibuna, e Paraibuna, Ubatuba. Não existia ainda a Rodovia Tamoios, então nós passávamos pela Tiradentes para ir para a Via Dutra e eu passava pela Escola de Belas Artes inacabada naquela época, porque tinham dois Titãs, dois gigantes esculpidos em pedra segurando as colunas, eu sempre achei aquilo lindo. Eles estão hoje na Pinacoteca, mas eles estão no subsolo. Eu passava com a minha avó e via aqueles titãs com aquelas coisas, não sabia se eram bons ou maus, eu queria ter a força deles para segurar os meus telhados internos, passávamos perto ali do Jardim da Luz, aí minha avó já quebrava as coisas e dizia - porque ela também tinha muita força - “ah, como era maravilhoso aquele jardim na época que ela era moça” e a Igreja de São Cristóvão, porque eu sei que São Cristóvão protege os motoristas e “PA PA PA”, pronto, era uma quarta feira que tinha se passado. Aí eu voltava no sábado e no sábado era a mesma coisa, almoçar cedo... Porque eu queria estar na porta igual criança em porta de cinema para aproveitar todos os minutos, fazia uma fila na porta para quando abrisse os portões. Você já entrava para não perder um minuto do contato. Como eu era menor eu podia passar, porque era a ala feminina e a ala masculina, eu podia passar para os lados, porque tinha marido e mulher presos e tinha uma senhorinha, eu me lembro, a Ana Lobo. Ela tinha uma filha, Elza Lobo, presa de um lado, e um filho preso do outro. Então ela dizia... Então, na hora que diziam: “agora vamos abrir a porta para quem passar para o masculino” muitas vezes eu passava, mas aí você vai perguntar por quê? Recado para mandar pra gente, para dizer que estava tudo bem. E também leva e traz: fulano foi preso, fulano abriu para cicrano, agora vão pegar... Enfim, aquelas histórias, e assim ia. Agora, uma coisa que eu me lembro muito triste, era que nós éramos revistadas. A minha avó, como eu falei, tinha mais de 70 anos. A polícia feminina revistava, apalpava a minha avó, abria a bolsa. E mulher tem uma relação muito íntima com bolsa, né? Então o estranho... Aquelas polícias femininas abriam a bolsa da minha avó e me revistavam também, me apalpavam. Minha avó olhando para mim e eu para a minha avó, tudo era natural, a gente tinha que fingir que não estava constrangido. Quer dizer, eu via que a minha avó estava constrangida, agora, para não deixá-la mais constrangida ainda, eu fingia que aquilo era muito natural. E com meu pai a mesma coisa, ele ia para um canto da sala e eu ia para outro. Vinha um policial apalpar o meu pai enquanto uma policial me apalpava, eu olhando pra ele, ele olhando pra mim. Existe um filme recente, “Madagascar”, é um desenho animado que tem uma série de coisas que acontecem no filme, eu sei que parece que tem uns pinguins - que parecem ser da máfia - sequestram um navio e vão dar na ilha onde os bichinhos que tinham fugido do zoológico de Nova York tinham se refugiado, em Madagascar. Só que quando o navio chega com o os pinguins em Madagascar tinha acabado o combustível, os bichinhos que estavam lá presos não sabem, então ficam felizes da vida. Montam no navio e dizem: “bem, agora nós voltamos para Nova York.” Aí um pinguim pergunta pro outro: “chefe, avisamos que não tem combustível?” O chefe dos pinguins, que parece um daqueles fulanos, fala: “não querido, sorria e acene” então é a mesma coisa, eu com meu pai, os dois sendo revistados. Nós “sorríamos e acenávamos”. E íamos, porque a gente não queria saber se o pato era macho ou fêmea, queria era ovo, a gente queria ver minha mãe. Chegávamos, falávamos com a mamãe e aí era mais leve, não tinha o chororô da minha avó e conversávamos. Papai era um conversador e papai era um gentleman, então... Ele encantava as amigas que ela tinha feito na prisão contando histórias, sempre chegava um, chegava um, chegava outro. A minha mãe, uma das colegas... A colega de cela dela era Maria Barreto Leite, o apelido dela era Barretão. A Maria Barreto Leite eu ficava encantada, era mãe da Vera Barreto Leite, uma das grandes manequins, uma das primeiras manequins brasileiras a fazer carreira na Europa e acredite se quiser, ela tinha desfilado para a Chanel. Quer dizer, no meio daquela loucura, em um presídio político, eu ver a Vera Barreto Leite, uma das modelos que desfilou para a Chanel, você vê... O meu pai brincava comigo “é o caldeirão da dialética, o mundo é isso”. Era muita informação, era coisa demais na minha cabeça. Acabávamos a visita e íamos preparar o jantar de sábado, porque nessa época eu fiquei como dona de casa. Minha mãe estava presa, meu pai morava no interior, então ele deixava um tanto para mim e eu tinha que administrar a casa, eu pagava as contas, quer dizer, para mim foi dando uma autonomia de vida enorme, muito grande, e eu queria agradar o meu pai, porque eu achava que ele já tinha dor demais, problemas demais e eu tinha uma admiração enorme, acho que uma relação que “Freud explica”, e não diz boa coisa. Bem, assim, de Electra com ele, era o homem da minha vida, um homem tão culto, tão brilhante, tão inteligente, tão gentil, tão charmoso e aquela relação de pai com a filha, porque eu digo que é um amor incondicional. Um amor de mão única, eu não precisava fazer nada para ele gostar de mim, ele gostava porque ele era meu pai. Mas enfim, eu tinha um amor muito grande por ele, então achando... Tendo certeza que iria agradá-lo, então eu fazia grandes jantares no sábado, eu aprendi a fazer (anhesbarnec?), chucrute que ele gostava. Então tinha uns queijos maravilhosos, eu desenvolvia toda a minha habilidade culinária para tentar agradar, umas mesas de queijos, de vinho e depois que nós jantávamos eu saía, como toda menina da minha idade. Eu tinha um namorado e eu saía para dançar, eu tinha horário para voltar para casa, então dependia. Ele dizia às vezes uma hora, outras vezes uma e meia. Quer dizer, era uma história diferente, tinha muita coisa junta e às vezes eu pensava, eram universos paralelos que corriam, quer dizer, tinham momentos de muito constrangimento, de muita dor, ao mesmo tempo tinham coisas que eu fazia como todas as meninas da minha época. Esse meu namorado - que eu namorava na época - o pai era dono do Pão Pullman, que na época exista. O apelido dele no Rio Branco - eu o conheci no Rio Branco - por causa disso era Zé Fofinho, foi o meu primeiro namorado, o primeiro homem da minha vida, nós namoramos muito tempo, ele tinha ideias muito conservadoras políticas, achava minha mãe uma louca que estava me colocando em perigo. (troca de fita).
P/1 – Bom, eu ia te perguntar justamente dessa vida paralela, que era a vida de adolescente, na escola, se relacionando com amigas, com o namorado. Como é que você foi se tornando jovem?
R – É um trabalho tornar-se jovem e eu pergunto, eu não sei se me transformei em jovem ou se me transformei em adulta, foi um salto que teve aí. Mas acontece o seguinte, eu percebi... É lógico que eu tinha vergonha, porque não era todo mundo que entendia a história da minha mãe, naquela época, em 1970. Eu me lembro que o Presidente era o Garrastazu Médici, era o milagre brasileiro. A classe média ganhava rios de dinheiro na bolsa, existia um boom econômico, a economia ia muito bem, todo mundo tinha emprego. Então eu ouvia falar que os militares deram um jeito no país, as coisas estavam indo muito bem e “se está preso, alguma coisa fez”. E tinha a pecha do comunista, então era uma questão muito sensível para mim, eu tinha vergonha de tudo isso, não me sentia bem, era muito retraída. Eu tinha amigos, mas não era “assim” das garotas mais populares que eu sentia na época. Eu sei que olhando de fora, hoje eu sei que muitos relatos assim dizem: “não, nós tínhamos muito... não era inveja, admirávamos muito, porque você era muito bonita, você tinha um namorado muito bonito, muito rico” as pessoas me viam de um jeito, eu me via de outro. Eu me via vivendo em um mundo muito cinzento, muito cheio de ameaças, onde existia muita dor, que não era um mundo que eu queria viver, e era um mundo de figuras gigantescas como aqueles Titãs que seguravam as colunas da Pinacoteca, era um mundo muito pouco humano. Eu gostava nessa época... Ficou muito forte para mim o gosto pela música, desde pequena eu comecei... Eu frequentava o Theatro Municipal, a primeira vez que fui eu tinha quatro anos de idade, eu sei disso porque tenho o programa, minha mãe me levou para um balé “Giselle”. A primeira parte eu dormi no colo da minha mãe, então até hoje quando eu entro no Teatro Municipal eu sinto como se tivesse entrando, assim, em uma coisa meio materna, no colo da minha mãe. Minha mãe era uma pessoa muito pouco próxima dessas demonstrações físicas de carinho, ela não gostava muito de carinho físico, mas esse dia ela me pegou no colo porque eu dormi. Então eu me lembro do regaço da minha mãe, o perfume que minha mãe usava... Você vai achar um absurdo, “Melodia”, do Caron, eu fecho os olhos e sinto o perfume que ela usava, a roupa bonita que ela estava e eu dormindo assim. Veio o intervalo, nós fomos passear e eu vi aquele teatro, aqueles dourados. Aquelas ninfas, para mim eu estava num castelo de sonhos com a minha mãe me puxando pela mão, e tudo aquilo era tão lido, doía de tão lido que era, era uma coisa fantástica. Minha mãe me comprou chocolate na Bomboniere do teatro - que era no salão nobre - voltamos e a segunda parte eu assisti, a segunda parte do balé “Giselle”, ela dança no cemitério porque a Giselle morreu e o enredo do balé diz que as moças que morrem virgens se transformam em seres que assombram os sonhos dos homens e que levam eles à ruína, então tinha até um lado meio mórbido, sombrio, mas ao mesmo tempo romântico. Eu me lembro daquela mulher diáfana, muito magra, dançando na ponta dos pés em camadas de tule. Eu sentada em uma poltrona de veludo e minha mãe, que eu achava uma mulher linda, do meu lado, com aquele perfume. Para mim aquilo era o paraíso, e aquilo não era real, aquilo devia ser uma fada, ser um encantamento, um gênio do bem tinha passado por perto e me dado aquele prêmio. Então ficou uma relação de sonho muito forte com o Theatro Municipal, eu escuto o eco toda vez que ando no Theatro Municipal. Quer dizer, eu voltei várias vezes, minha mãe me levava sempre para ver balé, e foi indo, eu sei que... Já quando eu tinha uns 13 anos, quando eu já estudava no Colégio Rio Branco, meu irmão tinha 12 e nós já nos virávamos com o ônibus elétrico Cardoso de Almeida. Você veja como era São Paulo, nós íamos aos concertos matinais de domingo, os dois. Tomávamos o ônibus e tinha uma amiga minha, a Fátima Momenson, que morava na Rua Sergipe, então ela juntava... Nós dizíamos: “estamos saindo agora”, ela calculava e ia para o ponto do ônibus, tomava e nós íamos de ônibus ao Theatro Municipal, ou às vezes nós íamos a pé até a casa da Fátima, ou de ônibus, e de lá tomávamos um táxi. Nós nos arrumávamos, íamos os três, e às vezes meu namorado ia me encontrar lá. Eu fico assim “nossa!” Nós éramos tão jovens, meu irmão tinha 12 anos, a primeira vez que ele foi, ele não sabia... Só se entrava de gravata, mas o bilheteiro já tinha uma gravata. Uma não, tinha várias gravatas que ele emprestava. A primeira vez meu irmão entrou com uma gravata emprestada, das outras vezes ele já sabia e já ia engravatado, parecia um principezinho, com blazer, de gravata. Íamos lá pro Theatro Municipal e voltávamos para o almoço de domingo. Como minha mãe estava presa, em 70, a minha tia Eunice tentava me agradar, o marido dela, o tio Armando, me dava muitos discos de vinil, então eu me lembro que ele me deu Chopin, Cláudio Arrau tocando, Ravel, ele me dava muitos discos. A minha tia me dava roupa e me levava também ao teatro, eu me lembro, isso ela repetiu até morrer “você se lembra, Geninha, aquele dia que nós fomos ver o Paulo Autran no teatro?” Quer dizer, ela tentava... Eles tentavam ajudar do jeito deles, tentar fazer minha cruz mais leve, e eu dizia aos meus colegas que minha mãe estava viajando. Então é bem irônico o filme que passou há uns três anos, né? “O Dia que Meus Pais Saíram de Férias”, o “Ano que Meus Pais Saíram de Férias” foi exatamente aquilo. Não eram meus pais que falavam, era eu mesma que falava, porque para mim era muito incômodo dizer que minha mãe estava presa, as pessoas não iam entender. Alguns sabiam, não comentavam comigo, mas deviam saber. Agora, uns muito “espírito de porco”, porque eu ouvi essa minha amiga Fátima Momeson, ela tinha uma irmã mais velha que falava pérolas tipo assim: “não está contente, vá para Cuba cortar cana.” Era a época da política, de dizer “Brasil, ame-o ou deixe-o”, então tinha os que falavam: “quem não estiver contente, mude para outro lugar.” Era uma coisa estranha, tanto que eu não tenho... Eu fiz grandes amigos na minha época de estudante, mas eu não tenho aquele negócio de turma, sabe? Saudades, eu tenho saudades de algumas pessoas, de algumas coisas, mas eu às vezes sou reticente, porque eu não encontrei nunca muita solidariedade, até na família. Por exemplo, no “Ano que Meus Pais Saíram de Férias”, há uma solidariedade muito grande, pelo menos o filme mostra a colônia judaica, eu não sei, eu tenho cá minhas restrições, porque as histórias que eu via naquela época não eram bem assim. Quer dizer, toda essa solidariedade ficou muito acentuada, de acordo com meu ponto de vista, depois da morte do Herzog, quando o rabino Sobel − que é uma pessoa que para sempre eu vou ter o maior respeito − tomou uma atitude muito digna de dizer “eu não vou enterrá-lo no cemitério judeu, na zona dos suicidas, porque aquilo não foi suicídio.” Quer dizer, ele se indignou e tomou uma atitude que talvez lhe custasse a cabeça na época, porque era uma época de muitas perseguições, de muita “saia justa”. Mesmo a minha família, meus primos e tudo isso, tudo foi muito distante, com uma exceção da minha tia Eunice e do meu tio Armando, que foram muito presentes. Eu ia almoçar muito na casa da minha tia, minha tia saía muito comigo e com o meu tio, eles tentavam do jeito deles, eles sabiam que eu gostava muito de música, me davam um monte de discos, ofereceram para eu ir morar lá com o meu irmão, aí eu mesma disse “não, eu quero ficar na minha casa”. E tirando a minha avó Arminda, eu não me lembro de um tio ou um primo me convidando para ir almoçar na casa deles, no sábado ou no domingo. Quer dizer, tinha essa restrição porque alguma coisa podia respingar, o meu namorado mesmo, ele recebeu o recado. Só que ele era muito conservador, o pai dele, vamos dizer, hoje em dia seria reacionário de direita, mas ele disse que tinha recebido recado para se afastar de mim porque era perigoso, se ele não tinha medo, ele disse: “não, eu sou o namorado dela.” Você sabe que as pessoas não acreditam em todas essas injunções da época... Sei que eu vivia num mundo muito estranho. Com relação aos professores do Colégio Rio Branco, eu sentia mais atenção, era uma coisa muito velada, mas eu sentia, eu não sei se... As notas muito altas, mas eu sentia certo sorriso... Quando o professor entra na classe, uma procura de um contato nos olhos, não sei se eles gostavam mesmo de mim ou se eles sabiam da história, eu senti uma certa proteção no colégio, por incrível que pareça. Dos alunos não, eu sentia uma cumplicidade dos professores, sabe? De uma passadinha de mão, um tapinha no ombro ou... Sabe? De aceitar todos os meus comentários, o trabalho como “quem quer apresentar esse livro na classe?” “Ah não, ela levantou a mão primeiro, vai ser ela.” Enfim, isso tornava as coisas mais agradáveis. Eu sei que minha [mãe] foi a julgamento e isso eu nunca vou esquecer, porque ela ia ser julgada na Auditoria Militar, na Rua Brigadeiro Luiz Antônio e eu falei: “não mamãe, a senhora tem que arrasar nesse dia, a senhora tem que ir linda” ela disse: “então você traga os meus brincos e eu quero um broche.” Então fizemos... Isso é um absurdo, você, em uma visita de um preso político, imaginando o toalete que você vai fazer quando você for a julgamento. Então eu digo: “tailleur...” ela tinha um tailleur preto, “então você traga o meu tailleur”. Alguém, uma das meninas, tinha habilidade para pintar, uma das presas políticas, para pentear. Então lavaram o cabelo dela, eu mandei meu secador de cabelo, secaram o cabelo dela, fizeram um coque. Quando a minha mãe desceu daquele camburão - porque minha mãe ia de camburão - eu olhei e ela acenou, eu falei: “mamãe, a senhora parece ser a rainha da Inglaterra, a senhora está linda” e o camburão é alto, né? Um daqueles brucutus, de metralhadora, ele não sabia o que fazer com a metralhadora, eu falei: “meu Deus, se as pessoas fossem tão... Se a luta armada fosse tão bem organizada como dizem que era, naquela hora qualquer um tirava ela de lá e não ia ter tiro...” porque ele deixou a metralhadora, ele encostou no camburão para dar a mão para ela descer, porque ela estava de saia, uma saia meio justa. Eu falei: “meu Deus do céu...” Era coisa de filme, as pessoas não acreditam, a minha mãe descendo com aquele coque, de brinco, de colar de pérola, com um tailleur preto, indo pra ser julgada. No julgamento eu olhei toda aquela... As pessoas tinham umas capinhas pretas, um crucifixo. Foi uma época assim, uma das raras épocas da minha vida, porque eu tinha uma dúvida de religião, se existia mesmo, se não existia, se era só uma ilusão, mas na mesma hora eu chacoalhava porque eu dizia: “se eu não acreditasse em alguma coisa de fora da terra, eu acho que era pirante” então era melhor acreditar, mas eu falava: “Deus [está] vendo tudo isso.” Você acredita que o presidente do tribunal levantou e veio cumprimentar meu pai? Outra coincidência da vida, o pai dele tinha sido colega de 32 do meu pai e eu falo: “olha, tem gente ainda que tem honra, né?” Porque um gesto desse podia ter custado a cabeça dele. Imagine? Levantar e vir falar com um general cassado, cuja mulher ia ser julgada. Mas ele veio e nos cumprimentou, e tudo isso, até hoje, nós recuperamos a ligação, ele chama-se coronel Ary Canavó, hoje em dia ele está reformado. Um oficial assim, nacionalista, está muito descontente com a política atual, porque ele acha que estão desnacionalizando a Amazônia, ele fala muito do nióbio, que estão permitindo que o Brasil exporte o nióbio e que nióbio é um material nobre e que pouquíssimas pessoas conhecem, que não fazem nada espacial se não tiver nióbio, que o Brasil é o maior produtor de nióbio. Enfim, a cruzada do nióbio e esse coronel, acredite se quiser, eu tenho uma filha e ele levou a minha filha a ter aula de equitação, eu falei: “meu Deus, esse é o caldeirão da dialética que meu pai dizia mesmo.” O homem que presidiu o julgamento da minha mãe, que julgou a minha mãe, que a condenou a seis meses de prisão - por incitar, facilitar reuniões subversivas, fazer a ponte do Frei Tito com o Simões, que era dono do sítio, facilitar Ibiúna - vai levar minha filha para fazer equitação, mas enfim, é um homem pelo menos de caráter, porque esse dia ele veio nos cumprimentar, deram a sentença, né? Eu me lembro que na hora que estavam fazendo a apresentação da minha mãe, o Almeirinho dizendo o nome, casada como o general Zerbini e minha mãe já levanta e fala: “com muita honra” alguém, acho que foi o promotor, disse: “a senhora modere suas palavras, senão o recinto é evacuado” e aí fazem o julgamento sem público. E aí minha [mãe] foi condenada, eu vi minha mãe... Porque não deixaram que eu abraçasse minha mãe, nem dar a mão para ela, a condenaram e a levaram de novo ao presídio, mas aí pelo menos a gente sabia o dia que ela ia sair. Ela saiu em dezembro, bem perto do Natal, então como presente nesse ano eu ganhei uma viagem, a minha primeira viagem para a Europa, está vendo, são umas coisas assim... É tudo tão contraditório (choro). Aí eu fui pra Europa, passei o Natal com meu pai e minha mãe, o réveillon, e fui para a Europa logo no comecinho de janeiro, fazer um curso de inglês em Londres. Eu já falava inglês, mas para melhorar o inglês e depois fazer o aniversário em Paris. Outra coisa que as pessoas não acreditam quando eu conto, em Paris advinha quem foi meu anfitrião? O general Velo Walters, que foi representante dos Estados Unidos na ONU. Foi o último posto dele, era embaixador do Brasil na ONU, representante dos Estados Unidos na ONU. O general Walters foi oficial de ligação entre os pracinhas brasileiros e o Exército Americano na segunda guerra, ele tinha feito muita amizade com o Cunha Mello, porque o Cunha Mello fez a segunda guerra, ele foi lutar na Itália e ficou muito amigo do Walters. O meu pai conhecia o Walters, mas não era amigo, e como eu estava indo para Paris, o Walters era amicíssimo da mulher do Cunha Mello, a Judith Cunha Mello. Enfim, essas coisas de família. Mandaram um presente para o Walters pra que eu fosse entregar, então avisaram que eu ia e eu, de Londres, telefonei para ele e era muito difícil falar com ele, ele era embaixador. Agora me lembrei, eu ligava para embaixada – era o embaixador dos Estados Unidos, na França, em Paris - eu telefonava. Você imagina, a minha mãe tinha ficado no presídio e eu estava em Londres, telefonando pro embaixador dos Estados Unidos, em Paris, e ele estava sempre na Alemanha. Eu descobri porque na Alemanha todo mundo sabe que tinha um serviço da CIA, a base era na Alemanha, nessa época já tinha terrorismo na Alemanha. E um dia eu consegui falar “ah não, quando você estiver aqui em Paris, a primeira coisa quando você tiver no hotel, telefone para mim, meu chofer vai mostrar Paris para você, você vai vir jantar em casa, eu vou apresentar meu ajudante de ordem, vocês vão sair.” Aquilo era muito, então eu conheci Paris com o carro preto da embaixada norte-americana em Paris, ele me levou para almoçar no clube dele, um clube daqueles antigos, só para homens, chamava-se L’Atelier. Se você fizer uma pesquisa no Google, tem até hoje o restaurante do L’Atelier, chiquérrimo, onde você via, na época, Giscard d'Estaing, e nós almoçando e ele falando: “aquele foi campeão de tênis da França, aquele...” Me apresentando, e acho que se vangloriando - porque eu era bem mocinha, bem bonita - e uma ótima conversa, eu também conversei e acabamos saindo de lá, ele mandando o chofer “agora você vai levá-la à Sainte-Chapelle, você vai levá-la em Notre Dame” e hoje a noite você vai jantar lá em casa e depois meu ajudante de ordem vai levar você... Era um americano lindo, alto de olhos azuis “vocês vão sair, você vai levá-la numa boate para dançar.” Então era uma coisa meio de Cinderela, né? Era muita contradição, e tudo isso tinha que caber na minha cabeça. Tudo isso acomodado, eu voltei... É lógico que no meio tempo em Paris eu ia visitar a Casa Vitor Rigô, ia ao cemitério Père-Lachaise - onde tinha o túmulo de Proust -, unia todo o meu gosto literário. Aí voltei, estava na época de prestar vestibular, eu prestei vestibular para Economia e Direito. Eu queria ser diplomata, [mas] é lógico que eu abri mão logo bem cedo desse sonho, porque eu disse: “imagine... Primeiro eu não ficaria bem, né? Eu representar um país que prendeu minha mãe, que cassou os direitos políticos do meu pai, um governo que tortura, eu “tô” fora”. Nem que eu quisesse eu entraria, porque existia também um filtro ideológico nessa época, existia, nos anos 70, a célebre entrevista, eu nunca iria passar nessa entrevista. Aí eu disse: “vou fazer Economia e Direito...” porque eu queria provar que eu era inteligente como homem e já que não deixam fazer meu sonho, que é fazer Literatura, eu vou ter uma profissão, entre aspas, com todos os bordões de macho, assim, vou trabalhar num Banco, vou ficar bem rica, eu vou fazer uma coisa assim. Eu comecei a fazer a faculdade de 72 a 76, eu peguei uma época da faculdade que existia o Decreto-Lei 477, quer dizer que aluno que não se comportasse bem, podia ser cortado da faculdade e não conseguir mais matrícula em faculdade pública. No segundo ano eu tive Direito Constitucional com o Manuel Gonçalves Ferreira Filho, autor de um livro que se chamava “A Democracia Possível” e aí comecei a ouvir as primeiras pérolas, porque eu comecei a trabalhar, fazer estágio na Companhia Energética de São Paulo. Quem conseguiu esse estágio foi meu pai, por meio do Lucas Nogueira Garcez, que era presidente da CESP e tinha sido colega dele de turma da Politécnica. Quando o Garcez era governador, o meu pai foi designado para ser comandante da Força Pública, então tinha uma ligação de amizade entre os dois. Mas eu ouvia na CESP - era uma companhia estatal, então tinha os seguranças e geralmente eram militares aposentados, ou então para ganharem um pouco mais iam fazer segurança das estatais - dizerem nas minhas costas: “não me apresente essa moça que eu não aperto mão de filha de comunista” e eu não podia fazer nada, eu tinha que ouvir aquilo como os pinguins em Madagascar, “sorrir e acenar”. Do lado do meu pai, ele sempre... Nós tínhamos um diálogo muito aberto em casa, então eu dizia: “eu não suporto aqueles homens, eu odeio” e meu pai sempre dizia: “Eugênia, não guarde mágoa, uma coisa que eu peço para vocês, não percam tempo ou querendo se vingar ou tendo mágoa, a vida se encarrega disso.” Ele dizia: “não suja suas mãos com essas coisas, a vida vai se encarregar disso, siga a sua vida”, mais ou menos o estilo do Hemingway “viver bem é a melhor vingança”, e lançava uma das afirmações que ele mais gostava de repetir “a vida só tem três adjetivos: uma, curta e boa, então não perca seu tempo com isso. Então eu era boa aluna, me formei e já no último ano eu trabalhava período integral como advogada. Por causa das línguas que eu falava muito bem e do meu gosto por Direito Internacional, fui trabalhar no escritório de contratos internacionais da CESP. Entrei em um nicho que era muito pouco navegado, que me garantiu uns bons anos, ótimos anos no mercado financeiro, trabalhando em Banco internacional. Porque era uma espécie de vingança, né? Eu digo que, como Jonas, esse era o meu sabor, era uma coisa diabólica. O Jonas é aquele personagem bíblico que entra dentro da baleia, mas depois ele consegue sair. Para mim era isso, eu disse assim: “apesar de tudo que aconteceu com meus pais, eu consegui entrar em um sistema” e o que é entrar no sistema? Entrar no sistema financeiro, porque eu acho que é o verbo de tudo, onde eu encontrei muito menos preconceito do que no setor público, porque no setor financeiro, quando eu fui trabalhar, o Brasil ainda estava saindo, estava se redemocratizando. O meu primeiro emprego em Banco foi em 84, quer dizer, o Sarney estava tomando posse, o Tancredo tinha morrido e eu tinha sido admitida como advogada do Lloyds Bank, o primeiro Banco internacional no Brasil. A carta patente tinha sido assinada por Dom Pedro II, o Lloyds, há cerca de uns sete anos, saiu do Brasil, encerrou as operações no Brasil. Mas era um banco de projeção, de tradição, e eu era advogada e encarregada da parte internacional do Banco. Foi uma conquista, eu consegui por mim mesma depois de fazer um estágio em Luxemburgo na direção de crédito e investimento da Comunidade Econômica Européia. Eu fiz Mestrado em Dijon antes disso, Dijon tinha uma universidade ótima. Eu tive um professor, o professor John Lik Arechmidt que era diretor de um Banco, ele dava a parte... Era uma abordagem muito prática o curso dele, era como montar um empréstimo sindicalizado, bem a operação da moda, do momento. Aquelas grandes operações de lançar papéis nos euro mercados, enfim... Ele viu meu interesse, viu que eu tinha certo conhecimento das coisas, porque eu já tinha bagagem de ter trabalhado na CESP, ele me apresentou para fazer esse estágio e voltei ao Brasil e consegui um emprego no Banco, me sentia Jonas na barriga da baleia. Eu era competente, trabalhava bastante e nunca ninguém levantou a história dos meus pais, se sabiam não comentavam, aquilo era transparente. Quer dizer, eu senti muito menos preconceito até mesmo como mulher no setor financeiro... Você pode ver que no setor financeiro as mulheres vão bem mais longe do que na indústria, porque não tem preconceito. Se você for competente e trabalha bem, é uma coisa assim que você tem o seu valor. Depois do City... No City eu fui contratada pra trabalhar no Citibank , a minha mãe achava tudo isso... Ao mesmo tempo em que ela ficava contente, falava: “mas é isso mesmo que você quer da sua vida?” Porque eram longas jornadas, eu trabalhava muito, eu chegava muito cedo ao Banco, eu saía muito tarde e pus, entre parênteses, toda aquela sensibilidade de querer ser escritora eu coloquei dentro de uma gaveta, fechei a sete chaves e mantive o gosto pela literatura como leitora, não parei de ler, eu lia às vezes menos, mas continuava lendo muito mais que a média das pessoas. Ouvia muita música, ia a concertos. Era muito mais fácil, porque eu não tinha restrição de preço de ingresso de ópera. Se estava só no Rio, eu ia até o Rio, porque eu trabalhava para isso. E assim eu desenvolvi minha carreira no setor financeiro.
P/1 – Deixa eu fazer uma interrupção e voltar um pouquinho. Você falou que deixou, na sua ascensão profissional no setor financeiro, numa gaveta o sonho de ser escritora. Agora a minha pergunta é a seguinte: até chegar esse momento, pegando desde a juventude, da adolescência, até chegar a esse momento, você escrevia? Você tinha o hábito de escrever? Você escrevia poesia? Você escrevia conto? Você tinha alguma relação de produção literária só sua, no seu quarto? Enfim, você tinha o hábito de escrever?
R – Tinha não só no meu quarto como público, porque eu declamava, eu escrevia. Acho que com sete anos eu comecei a escrever poesias, a compor, porque eu tocava piano, então minha primeira composição era “Cavalgada das Vassouras”, um misto, né? Aí vem um pouco da “Cavalgada das Valquírias” como a fantasia “O Aprendiz de Feiticeiro” ou Mickey, com aquela vassourinha, então eu fiz um coquetel aí e era uma música... Eu me lembro que tinha muitas teclas pretas, muitos bemóis e tocava para quem quisesse, eu não tinha nenhuma inibição. Os meus escritos acabavam de sair do forno eu já ia mostrar para o meu pai e para minha mãe, se tivesse visita eu declamava, eu era bem soltinha nos meus empreendimentos e meu pai e minha mãe elogiavam muito, então eu tinha ideias... Eu escrevia peças de teatro, novelas, de tudo, até que... Isso é uma coisa que eu só vou contar agora, eu estava na faculdade, no segundo ano da faculdade - então isso foi em 73 - eu havia prestado exame para a Academia de Letras da São Francisco, que tem uma Academia de Letras que por ela passaram Lygia Fagundes Telles, Ricardo Ramos, Jânio Quadros e outros. Você sabe, no século XIX a faculdade de Direito de São Paulo foi muito importante para o movimento romântico, o Alvarez de Azevedo passou por lá, Castro Alves, todos esses grandes nomes. Então eu prestei exame e passei em primeiro lugar, em 73, Cadeira nº 13. O meu patrono era Alvarez de Azevedo, o mais byroniano dos românticos. Quer dizer, aquilo caiu como uma luva, a minha tese - você precisava fazer uma tese para entrar na Academia - a minha era sobre o Simbolismo, também assim, eu adorava aquele ambiente simbolista dos poetas, eu me lembro da minha mãe. Fiquei sabendo na última hora desse edital, faltava uma semana para terminar, então esse trabalho teórico era uma tese, uma tesezinha preparada a toque de caixa e eu disse: “não, eu posso fazer porque eu gosto dos simbolistas... tudo que eu tive no Rio Branco de poesia eu decorava, eu decoro os simbolistas.” Minha mãe que é - o meu pai brincava - oficial de cavalaria, “faz as manobras rápidas e mal feitas” falou: “não, você vai escrever esse trabalho, você vai escrevendo e eu vou datilografando pra você”. Não existia micro naquela época, então a minha mãe, em uma máquina que não era nem elétrica, uma Olivetti portátil... Mas eu me sentia Mozart, porque dizem que Mozart às vezes a ópera tinha começado e ele estava escrevendo o final, e as páginas desciam em cima do palco, porque ele estava no sótão, isso eu acho que é um pouco de fantasia. Mas enfim, Rossini disse que já tinha feito isso, eu escrevendo no meu quarto e passando as páginas para minha mãe, não dormimos uma noite, quer dizer, tinha essa cumplicidade, não dormimos uma noite e no último dia entreguei o trabalho. Tinha o teórico o prático, o prático eram os meus poemas, eu escrevia poemas e nessa época eu já estava... Todo autor que começa diz que copia, eu copiava nada menos que T. S. Eliot, porque eu não queria fazer poesia de mulherzinha, meu pai dizia: “você vai escrever como a Clarisse Lispector”, sabe que nunca, até hoje, li Clarisse Lispector? Para não escrever como ela, ele me dava os livros e... Eu não sei, eu virei escritora e não sei o que meu pai acharia das coisas que eu escrevo, eu gosto do que eu escrevo, não sei se ele gostaria, mas eu seguia o T. S. Eliot, então eu tenho o “Quatro Quartetos”, o meu era... Tinham quatro, era um poema longo em quatro partes, fui admitida em primeiro lugar, fiquei muito feliz e tudo isso. O Regis Bonvicino, que era meu contemporâneo, era uma turma depois de mim, leu os poemas. Ele veio em casa − eu nunca vou esquecer − na casa dos meus pais no Pacaembu, eu nós fomos à biblioteca, ele disse que achava tudo aquilo uma bobagem, que eu era muito prolixa, qual era a forma do meu romance... Isso porque na época ele era poeta concretista, era fã dos irmãos Campos. Quer dizer, um concretista vê... Eu tentava me espelhar em T. S. Eliot, que não tem nada de concreto, é profundo, muito simbólico, ali tem um mistério nas coisas, né? Hoje em dia eu acho que ele é até gnóstico, tem lá um mistério profundo dentro daquela coisa filosófica. Enfim, eu nunca mais escrevi poesia, me deu uma coisa que eu nunca mais escrevi. Outra pessoa também que contribuiu para minha formação, que me estimulava muito, logo que eu entrei na faculdade... Eu comentei que fazia duas faculdades, Economia e Direito. Economia eu fazia no Mackenzie, eu não sobrevivi a um semestre e odiei a escola, odiei a forma como ensinavam, odiei o consumo... Odiei, enfim, tudo. Eu tinha um professor que dizia: “o homem é um ser que consome”, eu olhava aquilo e falava assim: “eu consumo, mas eu não vim ao mundo para comprar, tem outras coisas” eu acho que o que transcende é que a economia é uma ciência exata. Eu falo, é muito “cara pálida”. Diga, a crise de 29? Porque na Economia você faz escolhas racionais, eu falo, mesmo esses desastres... Enfim, eu me desencantei e fiquei só com o Direito, que eu adorei. Como eu esperava pouco da faculdade, eu adorei aquelas arcadas, e eu fazia à noite e aquelas arcadas à noite, enfim... Eu tinha muito sonho naquilo, eu comecei a trabalhar, então eu trabalhava em um cartório de imóveis − registro de imóveis ¬− que era de um tio da minha mãe Oscar Fontes Torres, que nas horas vagas era um “poeta bissexto”, um homem muito fino, muito gentil, muito educado, a quem eu me reportava diretamente, e ele me mostrava o que ele escrevia, tanto do ponto de vista jurídico... Ele era presidente na época da Associação dos Serventuários de Justiça, então ele tinha movimento na Associação, ele mostrava para mim a correspondência, e você percebe que sem querer ele estava me mostrando como organizar uma associação, como comandar uma associação. Ele, como presidente da Associação dos Serventuários, tinha muito contato com juízos dos registros públicos, ele me levava nas audiências com Juízo dos Registros Públicos, me mostrava as peças que ele redigia, os contratos diferentes que batiam lá. E uma coisa: eu trabalhava de segunda à sábado. De segunda à sexta eu ia à tarde e aos sábados eu ia pela manhã. A sensação de liberdade que ao meio dia, quando bimbalhavam os sinos da Catedral da Sé, eu estava livre, começava o meu fim de semana. Então eu parei de viajar a partir do primeiro ano da faculdade, eu lembro que eu parei de frequentar o Clube de Campo de São Paulo, parei de montar − porque eu montava também ¬− parei de ter curso de línguas. Mas tudo que eu já tinha feito estava acumulado: o francês que eu já sabia, já era fluente, eu sabia muito bem o inglês, e então dava para o gasto, eu estava começando a aprender italiano, mas isso foi um projeto que eu adiei. Então tinha essa parte prática, eu convivia com pessoas cultas, né? Voltando para trás na história, o papai era muito bem relacionado, e eu me lembro que eu, muito pequena, ia com o meu pai visitar o José de Barros Martins, que era dono da Martins Editora. Como eu era uma menina muito educada, eu era levada nesses eventos. Eu conheci muita gente por causa disso, eu me lembro de conversas que eu tive meninota com o Vinícius de Morais, porque o José de Barros Martins morava... Tinha uma casa linda na Abílio Soares, era um estilo normando, onde ele dava festas memoráveis. Se comia muito bem, se bebia muito; a mulher, a dona Edith, recebia muito bem. Eles me levavam nas festas, às vezes eu ficava com sono, subia e ia dormir. Mas eu me lembro de pessoas assim, tanto que para minha idade, quando eu começo a contar as coisas, acham que eu sou muito velha. Eu tenho uma certa idade, uma idade certa, mas eu tenho boa memória, e tenho esse contato que eu herdei. Então eu digo que memória é memória também de pessoas que te antecederam, não é só sua. Por exemplo, eu tenho memória − você vai me perguntar “como?” − de 24. A minha avó Arminda, essa com quem eu ia ao presídio Tiradentes, ela contava histórias com detalhes, ela dizia: “Geninha, eu me lembro quando bombardearam São Paulo, foi na revolução de 24, destruíram a Igreja do Cambuci” e é verdade isso, quando contam hoje, talvez as pessoas tenham mais informações de história, mas nos anos 70... A minha avó se lembra quando bombardearam São Paulo, as pessoas olhavam para mim e muitas não acreditavam, porque não tinha essa exposição a pessoas tão ricas de história de vida. Então memória não é só a sua, é a que você herda também, você recebe de uma forma ou de outra de pessoas próximas, porque eu acho que também... Santo Agostinho dizia que a sede da alma é na memória e não sei... Eu acho que quando as pessoas próximas que você quer muito bem contam alguma coisa, aquilo fica guardado e guardado de uma forma profunda, eu tento repetir isso com a minha filha. Eu tive uma filha tardiamente, com 40 anos, e eu tinha muito medo − medo não, eu tinha receio − de morrer e deixá-la. Então eu tinha uma ânsia de contar histórias, eu vivia contando histórias para passar, porque é uma literatura oral, né? Eu recebi isso de alguém, eu tinha que passar, eu acho que é como faixa das Olimpíadas, você tem por obrigação passar essas histórias. Então eu contava histórias, a bisavó, que ela só conhece por fotografia, viu São Paulo ser bombardeada em 1924, a outra bisavó leu no jornal que a Primeira Guerra Mundial tinha sido declarada. A bisavó Arminda, ela se lembra de Getúlio na revolução de 30, ela dizia: “pois é, eles chegaram ao Rio a cavalo e amarraram os cavalos no Obelisco da praça” a gente sabe que eles foram de trem, né? Os cavalos já estavam lá, mas era pra forjar essa idéia de que eles vieram cavalgando dos campos verdejantes gaúchos. Mas enfim, vivia eu no mercado financeiro sempre lendo, eu era ótima leitora. Uma vez eu tentei me aproximar da Literatura, foi em 1988, eu estava muito insatisfeita internamente, externamente eu nunca tinha estado tão melhor, eu tinha tudo que eu queria, eu era vice-presidente no Citibank, ganhava bem, tinha um trabalho que era intelectualmente instigante e por isso me dava prazer. Apesar de ser um campo árido, estéril, se mexia com muito dinheiro, eram operações muito engenhosas, muito imaginosas e era um desafio intelectual pra mim, que me dava muito prazer e dava não só para mim, como para todos. Aquela sensação de euforia, de poder. Eu dizia: “eu trabalho na Avenida Paulista, eu tenho uma mesa de canto...” Você sabe que entre o código não escrito corporativo você ter mesa de canto é um destaque, porque você tem duas janelas, tem uma vista bonita. Eu tive uma mesa de canto, então eu digo, a Isak Dinesen, que escreveu “Uma Fazenda na África” começa o romance dela dizendo: “eu tive uma fazenda na África” eu digo: “eu tive uma sala de canto” na Avenida Paulista, onde eu tinha fax, água gelada. Era o auge da época do yuppie, todos os meus colegas yuppies, todos muito bem vestidos, todos muito bonitos, muito perfumados. Agora dentro de mim era um deserto, porque eu chegava em casa exausta, mas o que era tudo aquilo? Era um cenário, uma parte muito minha tinha sido aleijada nesse processo. Eu sei que lendo o jornal eu tive notícia da primeira oficina, oficina três de literatura de criação literária, “Oficina Três Rios”, com o Trevisan, eu me inscrevi e não fui aceita. Para a inscrição você teria que ter um projeto de romance, eu fiz um projeto de romance em uma máquina elétrica, eletrônica... Enfim, na época era o máximo que tinha, então, começando os computadores, mas computador eu tinha no Banco, e aquilo para mim era coisa do Banco, eu queria uma coisa minha, então ia ser uma máquina eletrônica, eu não fui aceita. Então eu disse: “eu não sei escrever, né?” Eu sabia tanto quando eu era menina, eu sabia tanto quando era adolescente, eu sabia tanto até o começo da faculdade... Sei lá, vai ver que eu escrevi tanto sobre Direito, escrevi tanto sobre contratos internacionais... Eu já era Mestre em Direito nessa época, porque em Dijon eu escrevi uma tese em francês e fui aprovada, então eu disse: “vai ver que eu perdi a mão para o negócio”. Em Dijon eu fazia como ouvinte um curso de Literatura, eu fazia o Mestrado de Direito Internacional e Literatura como ouvinte, eu fiz grandes cursos como ouvinte na faculdade de Letras lá na França. Voltei e não passei em 88 e continuei levando aquilo. Tive minha filha, voltei para o Doutorado, para a vida acadêmica, escrevi meu Doutorado e mais artigos jurídicos, até que um dia eu... Vou contar história verdadeira. Estava eu no Rio de Janeiro em 2004, eu estava com a minha filha e nós fomos assaltadas à noite. Eu machuquei a cabeça durante o assalto porque reagi. Me bateram, graças a Deus não aconteceu nada com a minha filha, eu fico imaginando o que podia ter acontecido com ela, desde ela ter sido sequestrada na hora, né? Porque eu estava caída no chão, podiam ter pegado a menina e ter machucado a menina, sendo que ela também reagiu, ela estava usando um sapato plataforma, ela tinha dez anos, ela tirou o sapato, ia jogar no ladrão. Mas enfim, no carro, ainda para o pronto socorro lá do Miguel Couto, e eu fiquei pensando: “e se eu tivesse morrido?” Eu digo: “olha, eu acredito em destino, eu ia lastimar de deixar minha filha órfã tão cedo.” Mas seria o destino dela, eu não ia poder fazer nada. Agora, o que estaria ao meu alcance que eu poderia ter mudado? Eu digo: “ter escrito um livro, ter sido uma escritora.” Eu pensei “graças a Deus”, e acho que bateu um pouco do espírito prático da minha mãe, e eu disse: “eu vou escrever um livro” estava sendo costurado... A cabeça costurada assim: “eu vou escrever um livro.” Voltei para São Paulo e na ponte aérea eu já li o Jornal do Brasil, coisa que eu lia muito raramente, hoje eu leio mais, porque eu acho que aquilo foi um aviso. Tinha o caderno literário dizendo que estavam abertas as inscrições para o prêmio SESC Literatura, e o prêmio era editarem o livro, eu digo: “é isso aí”. Como leitora, eu continuava lendo caderno literário, e ouvi os rumores da dificuldade de você ser editado. O prêmio era esse, eu seria editada se eu ganhasse. Eu tinha vários projetos, várias carcaças abandonadas. Por exemplo, eu cheguei a trabalhar nos Estados Unidos em 90, 91, na retomada da renegociação da dívida externa. Não sei se você se lembra, o Collor tinha declarado uma moratória e na retomada da renegociação eu fui para os Estados Unidos para acompanhar as renegociações, não do lado brasileiro, do lado dos Bancos, do Bank Advisory Comic. Eu trabalhei um ano num escritório que se chama “Chambers Store Lins”, são consultores externos do Citibank e eu estava nos Estados Unidos, eu trabalhava muito, eram reuniões exaustivas, cansativas, compridas, mas eu disse... Eu estava sozinha, aí eu disse: “eu vou ter tempo de escrever”. Eu sempre escrevi diário, eu tinha dois diários, um do meu dia e um dos meus sonhos. Comecei a escrever um romance... Tem um amigo meu que é escritor também, o Antônio Penteado Mendonça, um colega de faculdade. Assistiu meu exame para a Academia de Letras a São Francisco e ele sempre brinca comigo, ele diz que esse livro eu nunca vou terminar, que ele diz que é... Eu não sei por que ele diz isso, ele nunca chegou a ler uma parte, mas ele sabe o enredo, ele diz que esse não... Ele me chama de Genja, ele diz: “Genja, esse você nunca vai terminar.” Tem título “Agora e Sempre”, porque é um trecho de uma oração, eu queria um trecho de oração porque tem muito essa parte religiosa, não é um livro de religião, não é de autoajuda, é um romance. “Agora e Sempre”, e ele diz que eu não vou terminar. Mas enfim, parei porque voltei ao Brasil e fui promovida, então tinha muito isso na minha vida, eu estava em um projeto e parava, porque eu era mudada para outro país e parava porque era promovida, eu parava porque... Atropelava, a parte profissional acabava atropelando, isso. Dessa vez eu olhei e tinha um projeto de 2003, eu tinha acabado de fazer a minha tese de Doutorado... (TROCA DE FITA)
P/1 – Bom, então continuando, conforme a gente tinha pedido para você ler um trechinho do seu livro...
R – [Trecho do livro] “Eu poderia escrever sobre a minha vida, a maioria pensa que suas vidas dariam bons romances. Pelo que consta, muitos escritores recebem oralmente por escrito pessoas que fazem rascunhos de livros da sua própria vida. Será que para seus donos, cada vida tem sempre sabor e experiência única digna de ser contada? Como eu, outras tantas devem ter nascido numa noite quente de verão, na primeira metade dos anos 50, devem ter tido seu crescimento registrado em fotos em que usavam vestidinhos delicados como um algodão doce, balançavam-se em cavalos de pau e falavam no telefone de plástico. Minha história foi diferente só porque meus pais tiveram uma história diferente, papai e mamãe desapareceram depois de terem sido presos em 1970, tudo aconteceu depois do carnaval, na quarta feira de cinzas. Tínhamos chegado de viagem à tarde e estávamos jantando mais cedo, tocaram a campanhinha, eu aproveitei para ir pra cozinha pegar a bananada comprada na beira da estrada e que eu queria comer de sobremesa. Enquanto abria o embrulho e procurava um prato, escutei uma movimentação diferente na sala, meu cachorrinho latia, meu pai perguntou duro: “quem são vocês?” A copeira, que havia aberto a porta da entrada, exclamava: “meu Deus! Meu Deus”! E minha mãe falou alto: “querido...” Meu sexto sentido fez com que eu abrisse com cuidado a porta de serviço e subisse para o último andar do prédio, fiquei agachada atrás da porta que dava acesso ao apartamento do zelador e à casa das máquinas. Papai era brasileiro, mas mamãe era de família polonesa, eu ouvia as histórias que ela contava sobre guerras, fugas e esconderijos e achava que o que eu acabara de fazer era o melhor no momento. Eu só não sabia que essa seria a última vez que eu veria meus pais, ele era advogado e defendia presos políticos, por causa dele mamãe, que era completamente alucinada por ele, tinha se ligado a movimentos católicos. Os dois se conheceram no tempo de faculdade, quando participavam da JUC, como era chamada a juventude católica. Ela não era daqui da cidade, seus pais, o vovô e a vovó, tinham vindo da Polônia para o Brasil depois da Primeira Guerra, mas moravam em outro lugar. Mamãe viera para cá para estudar e acabara ficando por ter conhecido o papai, ele estudava Direito e ela Letras, casaram-se assim que se formaram. Escondida, eu esperava o zelador subir para o seu apartamento. Pelos meus cálculos, nessa hora ele deveria estar na portaria. Depois das sete da noite ele descia e ficava até as dez, hora em que era rendido pelo vigia da noite, eu não esperei muito “garota o que está fazendo aí?” “Levanta que levaram embora teu pai e tua mãe num carrão que estava lá em baixo na rua” “por favor, deixa eu telefonar pra minha avó?” “Vamos, mas você vai telefonar do apartamento do quinto andar.” Eles saíram e eu fiquei com a chave, porque o pessoal foi pra praia, o seu telefone é censurado?” Papai sempre falou que o telefone de casa estava censurado, eu falei com minha avó, a outra, a mãe de papai que combinou estar na esquina de casa para me pegar de carro em 15 minutos e insistiu para que não passasse em casa sobre hipótese nenhuma.” [Fim da leitura]
Então eu acho que o que eu escolhi aqui, meio assim, no susto, foi o seguinte: perguntam: “ah, essa é sua história”? Eu falei: “primeiro literatura você vê se está bem escrito ou mal escrito, é e não é? A minha mãe não é polonesa, eles perguntam: “onde você tira isso para sua mãe?” Não sei por que é história, podia ser qualquer outra coisa, quer dizer, a minha história, muito da minha história, eu digo que talvez ela seja diferente da história dos meus pais, eu não sei também como seria se tivesse acontecido isso. Então quando eu escrevia.. Por exemplo, eu sempre morei em casa, eu não morava em apartamento, e essa menina foge, eu não pensava nela quando escrevia, eu não pensava em mim quando eu escrevia, ela tinha outra cara, eu até falo que a atriz é a Julianne Moore, que fez “Os esquecidos”, porque eu acho que aquela mulher era bem o jeito dela assim, sabe? Que está, mas não sabe que está. O pai é brasileiro, a mãe é polonesa, história de guerra, mas tem essa coisa de memória, de interligação, mas tem muita coisa inventada. Agora, o que o pai da menina fala aqui, foi o que meu pai falou “quem são vocês”? Então, sabe, é e não é aquelas coisa dúbias da vida, mas a vida é sempre dúbia e eu digo sempre que a Literatura tem um compromisso com a racionalidade, e se a gente começar a escrever muita fantasia aqui, vão dizer: “não, está indo longe demais”. Agora, a vida não tem compromisso com nada, né? A vida não tem compromisso com a lógica, então foi esse o trechinho que escolhi.
P/1 – Legal. Eugênia, pra gente começar a terminar, eu queria primeiro perguntar uma coisa que estou curioso, a sua mãe vive na casa do Pacaembu, ainda?
R – Vive, apesar de estar agora sozinha. É uma casa enorme, que representa muito custo, inclusive, pra ela, além de ter questão de segurança, dá muito trabalho e é toda uma aventura quando vai viajar: “quem vai ficar com a casa?” “Quem vai tomar conta da casa?” Ela diz que aquela casa é a vida dela, ela construiu aquela casa com meu pai, logo eles casaram e que ela não gostaria de sair dessa casa enquanto viva. Ela mora no mesmo “bat-local”, a minha filha tem muito carinho por essa casa e eu incentivo muito, quer dizer, eu imagino se um dia, por alguma coincidência feliz, que passe uma revoada de anjos e digam amém, eu pudesse comprar a casa pra ela, porque muito disso é continuidade, são histórias... Para mim emocionava muito ver minha filha brincando no quintal onde eu tinha brincado. Eu ensinar para ela a pegar um papelão, uma caixa de papelão e desmontar, colocar num lugar que é inclinado e descer como eu descia. Então isso também vai um pouco da história da gente, né?
P/1 – Tem algum... Essa história sua é tão rica e relatada de forma tão boa, com tantas minúcias, tem alguma coisa que você não contou? Que eu não perguntei? Enfim, que você gostaria de falar agora, algum episódio? Falar de alguém?
R – Não sei, talvez com a conversa que eu tive com o Elio Gaspari, num almoço com a minha mãe. Eu tinha uma curiosidade como... Agora menos, mas eu tinha, até então, uma aflição, uma coisa assim “o que se passava na cabeça de alguém que torturava”? Eu sempre idealizei muito as coisas, eu imaginava alguma coisa, uma cena parecida com a da Lady Markidas, porque depois de cometer o crime, vê as mãos sujas de sangue e enlouquece, porque vive lavando a mão, porque a mão está imunda de sangue. Quer dizer, eu imaginava uma cena, um quadro dantesco de um remorso, de culpa, enfim, de uma série de coisas e perguntei para ele isso. Ele chegou a entrevistar alguém que era imputado ato de tortura. O que essa pessoa sentia? Ele disse: “não sente nada, você não se engane, não sente nada, sente a falta de reconhecimento, porque acha que o trabalho que prestou ao Estado não foi reconhecido e pelo contrário, se sente desprestigiado, porque hoje em dia, por exemplo, pra ir a um médico, precisa ir ao Hospital Militar, Hospital do Servidor Público e tem que enfrentar fila, tem que acordar às quatro horas da manhã pra garantir um bom lugar na fila.” Eu fiquei completamente chocada com isso, eu me lembro que perguntei pra ele: “quer dizer que eu penso mais neles do que eles em mim?” Ele falou: “é Eugênia, você pensa mais neles do que eles em você.” Isso quer dizer que meu único consolo é que eu não preciso acordar às quatro horas da manhã para ir ao médico quando eu quiser ir ao médico, eu tenho um convênio ou posso ir ao médico particular. Eu acho foi mais do que dizerem que Papai Noel não existe, porque eu acho que no meu coração Papai Noel existe, porque é uma força bondosa que dá... Um velhinho doce que dá presente para nós. Quer dizer, na minha imaginação ele pode existir, porque é bom acreditar nisso, mas esse dia eu fiquei tão decepcionada com uma série de coisas, que não existiam... É lógico que é muito fantasia minha, né? Imaginar que houvesse arrependimento da parte deles, que houvesse culpa, quer dizer, o meu único consolo é que eu não preciso acordar às quatro horas da manhã para ir ao médico e garantir meu lugar na fila.
P/1 – E o que você achou de contar um pouco da sua história aqui pra gente?
R – Ah, foi um prazer infinito, tanto que eu não vejo a hora passar. Se não me dessem os toques de trocar a fita eu poderia ficar horas e horas, porque eu acho tão agradável. Eu acho que toda vez que você lembra, você revive coisas, acho que na maior parte das vezes boas, né?
P/1 – Pra gente foi um prazer, um privilégio muito grande.
R – Ah, foi uma alegria muito grande pra mim, eu fiquei muito feliz.
P/2 – Que bom. Muito obrigado, Eugênia.
R – Eu que agradeço a vocês essa oportunidade.
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