Entrevistado por Stela Tredice e Thiago Majolo
São Paulo, 27 de março de 2006
Entrevista HV_Bio_013
Transcrito por Fernando Amaro Mendes Neto
Revisado por Thiago Majolo
P2 – Pra começar, eu queria que o senhor dissesse o seu nome completo, local e data de nascimento.
R – Márcio José Brando Santilli, nasci na Cidade de São Paulo em 10 de outubro de 1955.
P – Qual é o nome dos seus pais?
R – Maria Aparecida de Campos Brando Santilli e José Santilli Sobrinho.
P2 – O senhor se lembra dos seus avós?
R – Me lembro.
P2 – Fala o nome deles.
R – Paschoal Santilli e Cecília Santilli – são paternos e Bartolomeu Nogueira Brando e Levina de Campos Brando – maternos.
P2 – O que faziam seus avós e seus pais?
R – Os meus avós paternos são filhos de imigrantes italianos que chegaram numa leva - imagino eu - no final do século dezenove, ao Brasil. São comunidades de origem rural da Itália, e acho que a família andou pingando em vários locais e acabaram se estabelecendo na cidade de Assis, que é onde o meu pai foi criado. A família da minha mãe é mais complicada, é mais misturada, têm origens diferentes – italianos também, mas também portugueses; se estabeleceram durante muito tempo no Vale do Paraíba, em São Paulo, e depois foram parar também nessa mesma região do interior de São Paulo - de Assis, onde ela nasceu, a minha mãe – na verdade ela nasceu em Quatá, que é uma cidade vizinha ali, e os dois se conheceram e se casaram em Assis, onde eles viveram uma boa parte da vida.
P2 – E o senhor sabe de que região da Itália vem Santilli, esse nome?
R – Olha, eu não sei exatamente, é um pouco confusa essa origem, mas é mais pro Sul da Itália, região da Calábria, não exatamente na Calábria, mas é na região da Calábria, no Sul da Itália.
P2 – E o senhor tem irmãos?
R – Sim. Somos em quatro, eu sou o terceiro – a minha irmã é a mais velha, Maria Raquel, tem o José Marcos que é mais...
Continuar leituraEntrevistado por Stela Tredice e Thiago Majolo
São Paulo, 27 de março de 2006
Entrevista HV_Bio_013
Transcrito por Fernando Amaro Mendes Neto
Revisado por Thiago Majolo
P2 – Pra começar, eu queria que o senhor dissesse o seu nome completo, local e data de nascimento.
R – Márcio José Brando Santilli, nasci na Cidade de São Paulo em 10 de outubro de 1955.
P – Qual é o nome dos seus pais?
R – Maria Aparecida de Campos Brando Santilli e José Santilli Sobrinho.
P2 – O senhor se lembra dos seus avós?
R – Me lembro.
P2 – Fala o nome deles.
R – Paschoal Santilli e Cecília Santilli – são paternos e Bartolomeu Nogueira Brando e Levina de Campos Brando – maternos.
P2 – O que faziam seus avós e seus pais?
R – Os meus avós paternos são filhos de imigrantes italianos que chegaram numa leva - imagino eu - no final do século dezenove, ao Brasil. São comunidades de origem rural da Itália, e acho que a família andou pingando em vários locais e acabaram se estabelecendo na cidade de Assis, que é onde o meu pai foi criado. A família da minha mãe é mais complicada, é mais misturada, têm origens diferentes – italianos também, mas também portugueses; se estabeleceram durante muito tempo no Vale do Paraíba, em São Paulo, e depois foram parar também nessa mesma região do interior de São Paulo - de Assis, onde ela nasceu, a minha mãe – na verdade ela nasceu em Quatá, que é uma cidade vizinha ali, e os dois se conheceram e se casaram em Assis, onde eles viveram uma boa parte da vida.
P2 – E o senhor sabe de que região da Itália vem Santilli, esse nome?
R – Olha, eu não sei exatamente, é um pouco confusa essa origem, mas é mais pro Sul da Itália, região da Calábria, não exatamente na Calábria, mas é na região da Calábria, no Sul da Itália.
P2 – E o senhor tem irmãos?
R – Sim. Somos em quatro, eu sou o terceiro – a minha irmã é a mais velha, Maria Raquel, tem o José Marcos que é mais velho do que eu, eu e um mais novo do que eu que é o Paulo.
P2 – O que é que eles fazem?
R – Bom, a minha irmã é formada em jornalismo, enfim, trabalhou em vários órgãos, em várias instituições diferentes – trabalhou no Itamaraty um tempo, hoje ela tem um projeto próprio na cidade de Pinhal, de Santo Antônio do Pinhal, aqui no Estado de São Paulo, que é onde ela mora. Meu irmão é fotógrafo, o Marcos – o mais velho, um fotógrafo relativamente conhecido aqui de São Paulo, tem um acervo muito grande, hoje ele mora em Cunha no Vale do Paraíba, né, e além de trabalhar com material de fotografia, ele tem também uma pousada lá. E o Paulo é antropólogo, ele trabalha atualmente na UNESP - é professor da UNESP; dá aula em Araraquara.
P2 – Voltando um pouco à sua infância. O senhor lembra da rua, do bairro onde o senhor morava?
R – Bom, onde eu nasci mesmo. Eu nasci aqui em São Paulo - na cidade de São Paulo. Minha família já tinha migrado pra cá, para a Capital, e o primeiro local que eu morei, com um ano de idade, chama rua Gandavo que é na Vila Mariana; eu sei mas não lembro. Depois eu vivi muitos anos na Aclimação – esse bairro é um bairro que eu me lembro muito bem – dos dois aos treze, vamos dizer assim, eu morei nesse bairro da Aclimação na rua Gualaxos, que é uma rua que vai dar no Tênis Clube Paulista. Foi um período importante porque eram outros tempos de São Paulo; muitas crianças na rua, a gente brincava muito na rua, tenho memórias que são incompatíveis com São Paulo de hoje. Depois eu morei um tempo em Higienópolis, na rua Itambé - ali perto do Mackenzie, um ano e meio, por aí. Depois eu morei um tempo em Brasília onde eu fiz colégio, estudei no CIEM, que é um colégio da Universidade de Brasília e depois eu voltei pra São Paulo. Fiz faculdade, hoje é UNESP, na época era um Instituto Isolado, como se chamava uma das escolas públicas de terceiro grau que não faziam parte nem da USP nem da Unicamp. Depois essas escolas foram juntadas na UNESP, na criação da UNESP. Mas quando eu estudei lá não era UNESP, a UNESP foi criada quando eu já estava no quarto ano da faculdade, eu estava me formando. Eu fiz Filosofia, numa época em que havia muito poucas escolas de Filosofia abertas no país – uma delas era essa, em Assis, que foi por onde eu me formei.
P2 – Só voltando um pouco a sua infância e a sua juventude. O senhor lembra o cotidiano da sua casa? Como é que era?
R – Olha, era um número razoavelmente grande de irmãos – quatro irmãos, então, enfim, a capacidade de controle dos pais eram limitada. Eu me lembro que foi uma infância e uma juventude muito tranqüilas, aqui em São Paulo. Como eu já disse a cidade era uma cidade muito diferente do que é hoje, era muito mais amigável para uma criança. Eu me lembro que a gente jogava bola num campinho que hoje é a avenida 23 de Maio, que antes era um riozinho que passava ali tal - tinha um campo de futebol e a gente jogava ali, enfim, era uma vida assim, muito livre – muita rua, jogação de bola na rua, brincadeira de rua, muitas crianças, muitos amigos, enfim, foi bem tranqüila.
P2 – O senhor mudou bastante de casa, de cidade. Como era preservar os amigos, como é ter um grupo de amigos? Como que o senhor conseguia manter?
R – Olha, as amizades também eram muito relacionadas à escola, a não ser nessa primeira fase que eu vivi na Aclimação, onde era mais uma turma de rua mesmo, do pessoal que morava por ali, no bairro e tal. As mudanças que foram rupturas foram as mudanças de cidades – quando você sai de uma cidade, vai para a outra, no caso - de São Paulo para Brasília que são cidades distantes e, evidentemente que muda um pouco a natureza das amizades; a intensidade da convivência com as pessoas, mas também quando a gente muda bastante, a gente acaba também conhecendo muita gente, muitos lugares; então perdas e compensações.
P2 – O senhor então entrou em filosofia e cursou, e quando o senhor começou a pensar e se interessar por causas ambientais propriamente ditas?
R – Olha, o tema que eu trabalhei muito tempo era relacionado à questão indígena, enfim, eu tinha vínculos pessoais com pessoas que participavam de instituições que trabalhavam com essa questão, e eu exerci um mandato parlamentar entre oitenta e dois e oitenta e seis, quando houve na Câmara dos Deputados uma Comissão do Índio, que foi criado no tempo do Mário Juruna – o Mário Juruna era deputado. Eu participei dessa Comissão, e depois do término do mandato eu trabalhei como assessor de uma coordenação de uma campanha dos direitos dos índios na Constituição, no tempo da Constituinte, e depois participei da formação de uma organização que se chamava Núcleo de Direitos Indígenas, era uma ONG que existiu seis anos e que depois se fundiu junto com outras ONGs para formar o ISA – o Instituto sócio-ambiental, que é a organização onde eu trabalho até hoje. Então, a minha inserção nesta área ambiental veio da área social, veio do trabalho com povos indígenas.
P2 – O senhor disse de contatos que o senhor tinha. Da onde vieram esses contatos?
R – Relações familiares, pessoas da família que tinham algum vínculo com esse tema, e que trabalhavam, e que informam sobre o assunto; e também amigos, por força dessa relação que tinham esse tipo de atuação
P1 – Márcio, eu queria que você falasse um pouquinho da idéia, né, do ISA. Qual que é propriamente... Como que você entrou pro ISA, como que você fez parte dessa fundação, e o que isso significou especialmente para você, para sua trajetória, tanto de vida como profissional?
R – Bom, o ISA foi um movimento complexo do ponto de vista institucional, porque, como eu já disse, foram vários grupos que se juntaram para formar essa instituição; e eram organizações, entidades, bem sucedidas na suas trajetórias, que estavam financiadas, tinham reconhecimento, tinham estabilidade. Causou um certo espanto quando elas resolveram se extinguir para se juntarem todos numa nova organização. Um motivo importante foi o de passar a trabalhar de maneira, enfim, sintética com o conjunto de temas, que não fosse apenas a questão indígena. Havia da parte das várias pessoas que participaram da fundação do ISA uma consciência de que a gente tinha que inventar uma nova coisa que não fosse um gueto como era o trabalho em geral na defesa de direitos indígenas ou mesmo de questões ambientais. A idéia era construir uma síntese temática que se expressa mais por esse nome Socioambiental, quer dizer, era um conceito que a gente tinha na cabeça, e que a gente tinha vontade de realizar, como sendo uma maneira de trabalhar a questão ambiental de uma forma apropriada a um país em desenvolvimento – como o nosso – onde ao nosso ver, a questão ambiental não poderia estar em contradição com as demandas sociais de uma sociedade cheia de necessidades, de carências, de problemas de desigualdades. Então a idéia do socioambientalismo nasce um pouco daí, quer dizer: como tratar desses temas, dessas questões que implicam naquilo que costuma se chamar de direitos ou interesses difusos – como que você poder lidar consistentemente com um tema dessa natureza numa sociedade cheia de carência como a nossa? O sócio-ambientalismo nasce como uma proposta de adaptação da perspectiva ambiental para um país em desenvolvimento, para um país da América Latina. Então, a visão que a gente tinha era de que cada tema setorial encontraria isoladamente muita dificuldade para poder prosperar, para poder ter sustentabilidade política num país como o Brasil, e que a gente tinha que inter-relacionar esses temas; misturar a questão indígena com o meio ambiente, com assuntos relativos a outros grupos sociais, populações tradicionais - quer dizer, buscar uma síntese temática que desse condições de sustentar essas bandeiras numa situação potencialmente adversa de uma sociedade, enfim, muito dividida, com muitas carências – onde muita gente acredita que esses temas são secundários em função das necessidades mais prementes. Então a gente fez esse movimento de juntar grupos que vieram da área ambiental, outros que vieram da área social numa perspectiva que tentasse sintetizar isso em cima desse conceito de sócio-ambiental. Essa que foi a proposta central do ISA, e em cima dela que a gente vem trabalhando até hoje.
P1 – E nesse momento o ISA, ele surge em 1994, portanto logo depois da RIO 92 – pouco tempo depois. Vocês se pautaram pelas convenções, tanto pela Convenção de Diversidade Biológica como pela Convenção da Mudança do Clima?
R – Olha, não exatamente em cima das convenções, a proposta do ISA é uma proposta muito brasileira, mais do que internacionalista. Claro que o processo da ECO 92 teve um progresso nesse sentido, porque foi naquele período que a gente estabeleceu relações mais intensas com vários grupos da área ambiental, começou a haver condições de juntar essas partes diferentes dentro da mesma proposta. Então, por exemplo: todo o grupo do Capobianco – que era do S.O.S. Mata Atlântica – se juntou no ISA dentro dessa mesma proposta, e as relações vieram da experiência do Fórum Global de 92, onde dirigentes que depois formaram o ISA se encontraram, participaram juntos daquele processo e isso foi gerando afinidades que acabaram desembocando num projeto institucional, dois anos depois.
P1 – E você participou então da ECO 92?
R – É, eu participei menos do que outras pessoas do ISA, porque eu já estava em Brasília. O Núcleo de Direitos Indígenas, que era a organização que eu pertencia - a partir da qual eu participei dessa fusão - era sediada em Brasília, a gente já trabalhava em rede com várias outras organizações dentro desse campo, e coube ao pessoal do CEDI, que era o Centro Ecumênico de Documentação e Informação, representar essa articulação no processo da RIO 92. Brasília ficava mais longe, era mais fácil o pessoal de São Paulo cobrir. Então a minha participação foi mais indireta – pessoal assim, foi mais indireta nesse processo.
P1 – Mas você esteve lá de alguma forma?
R – Sim.
P1 – E o que você lembra daquele momento? O que é que te marcou?
R – Olha, eu acho que foi um momento importante para a questão ambiental no Brasil – deu uma levantada muito grande – questões que eram distantes pra maioria das pessoas passaram a ter uma proximidade maior. Aquela reunião foi importante; convenções importantes foram assinadas; o fato do Brasil estar hospedando a reunião, enfim, nos colocava muito diretamente na coisa, e sem contar esses outros processos, vamos dizer, informais que ocorreram no paralelo, ou de o conhecimento de pessoas, de instituições, de aproximação e que levou, entre outras, a própria formação do ISA. Então, eu acho que foi um momento muito forte que ainda continua pairando na memória coletiva, na própria imagem coletiva do movimento ambientalista no Brasil.
P1 – E para você, o que significam essas convenções ? Ao seu ver quais são as principais conseqüências e impactos delas tanto pro... pensando no planeta como um todo – em todos os países – como pro Brasil?
R – Bom, o meu vínculo maior de acompanhamento desses processos tem a ver com a Convenção de Mudança Climática, mais do que com a CDB; de uns sete anos pra cá eu tenho participado de todas as reuniões, e a gente tem formulado propostas e sugestões no sentido de tornar mais cabíveis os principais problemas brasileiros no âmbito dessas convenções . Eu acho que essa questão da mudança climática é absolutamente definitiva ou definitória do que vai ser no Planeta Terra nos próximos anos; uma questão absolutamente central não apenas do ponto de vista ambiental propriamente dita, mas enfim, está fadada a promover, provocar mudanças importantes na própria economia do planeta, de modo que ela é muito forte. Acho que de todos os instrumentos internacionais afetos à questão ambiental, o tema da mudança climática é o mais radical. Depois da ameaça nuclear, eu acho que hoje a ameaça climática é aquela que é mais emergencial, mais presente, mais tocante para a vida nossa – nós que estamos aqui – e daqueles que ainda virão. Diferentemente do sentimento que a gente tinha em 92, onde a questão da mudança climática parecia uma coisa futurista. Já havia indicações científicas importantes de que se operava uma transformação nas condições climáticas do planeta, mas ainda era uma coisa, digamos assim, preventiva: “se nós não tomarmos providência vai acontecer tal.” Então de lá para cá, nesses catorze anos que se passaram, a questão da mudança climática deixou de ser uma questão futurista para ser uma questão muito presente; Os impactos estão aí, as evidências científicas se fortaleceram muito nesse período. O Brasil - por ser um país de proporções continentais – tem enormes vulnerabilidades em relação à esse processo, que é uma coisa que está afetando bastante a vida do país, e vai afetar muito mais ainda no futuro.
P1 – E para você o Protocolo de Kyoto, até que ponto ele está conseguindo influenciar decisivamente as mudanças que os países devem tomar em relação a essa problemática?
R – O Protocolo de Kyoto é um embrião, as metas que ele estabelece são ainda muito exíguas diante do que precisa. Todo mundo sabe disso, quer dizer, mesmo que essas metas venham a ser integralmente cumpridas pelos países envolvidos, ainda assim elas não implicaram numa redução das emissões. Porque muitos países não têm metas e vão continuar aumentando as suas emissões nesse período, de modo que a gente não pode imaginar que o Protocolo de Kyoto será a solução para o problema - ele é apenas um embrião, como eu estou dizendo; é um primeiro parâmetro de acordo entre os diversos países para tentar enfrentar o problema. Então eu acho que evidentemente a gente não pode ter ilusões em relação aos efeitos do Protocolo de Kyoto, quer dizer, ele é incapaz, nos termos atuais, de reverter a situação da mudança climática; no entanto é um primeiro pacto que a quase totalidade da comunidade internacional participa, acompanha – e que sem dúvida que para você dar um passo mais consistente no sentido de tentar evitar ou mitigar o impacto da mudança climática, é preciso ter um primeiro passo; o Protocolo é um primeiro passo, mas que já coloca um diferencial em relação à outras convenções que não têm um instrumento, como é o caso do Protocolo de Kyoto; agora mesmo a gente está vendo nessa reunião da CDB, que está ocorrendo aqui no Brasil, em Curitiba, o quanto é complicado essa coisa da falta de perspectiva de que se venha tomar alguma resolução que de fato tenha conseqüências efetivas. Então apesar do seus limites, o Protocolo de Kyoto comparativamente com outros instrumentos de direito internacional é uma coisa mais forte, porque prevê metas quantitativas e eventuais punições para quem não alcançar aquelas metas; ele é mais incisivo do que outros instrumentos disponíveis em relação à diversidade biológica ou outros temas da área ambiental.
P1 – E na sua opinião quais são as perspectivas para daqui a dez, quinze anos em relação às mudanças climáticas?
R – Eu acho que nós vamos comer o pão que o diabo amassou. Eu tenho a impressão que as perspectivas, infelizmente, decorrem muito mais da tragédia do que da consciência, ou pelo menos a tragédia que leva a uma consciência mais efetiva, mais aguda desses problemas. Então a gente tem visto ano a ano o surgimento de ameaças crescentes à vida na face da Terra, e eu acho que ainda será preciso que aconteça um bocado de coisa desagradável, um bocado de tragédia para que se possa fazer frente aos interesses que são poderosos, e que impedem uma mudança mais rápida e mais radical das condições de produção e de vida de modo a reduzir drasticamente essas emissões. Enfim, não sei se isso equivale a uma visão pessimista, porque seria bastante mais razoável que a simples indicação científica de que a gente tem um problema desse tamanho pela frente já deveria ser suficiente para mobilizar consciências e atitudes concretas da parte dos governos e da comunidade internacional. Mas a gente sabe que a coisa não é assim, e que parece que é indispensável que aconteçam as tragédias para que se crie condições políticas de haver mudanças mais expressivas. No entanto eu acho que os fatos estão aí, e mesmo os países mais resistentes como, é o caso dos Estados Unidos, começam a perceber que eles não estão imunes aos riscos da mudança climática; embora seja um fato que os países pobres, os povos mais necessitados vão pagar o preço maior desse processo, os outros também não vão escapar. E portanto eu acho que isso aí acaba sendo um elemento importante para se mudar um pouco o cenário atual que a gente tem. Ainda essa semana eu tomei conhecimento de uma pesquisa feita nos Estados Unidos – uma pesquisa de opinião que indicava que oitenta por cento das pessoas nos Estados Unidos consideram que os Estados Unidos não têm feito o suficiente em relação a esse tema. Então, apesar do elevado padrão de consumo da sociedade norte americana e da pouca disposição que a maior parte das pessoas tem de abrir mão desse padrão de consumo – a resistência que as pessoas têm de abrir mão desse padrão de consumo, a gente sente que se começa a se operar de baixo pra cima uma mudança importante de opinião pública, e eu acredito que isso em algum momento vai se traduzir na política oficial de governo dos Estados Unidos.
P1 – E em relação ao Brasil, você sente que – como sempre, a imprensa usa esse termo – o Brasil tem feito a lição de casa em relação a essas convenções?
R – Não. Eu acho que não. Embora a gente tenha avanços, eu tenho impressão que o Brasil ainda se comporta um pouco espectador desse processo. No caso da questão da mudança do clima, a impressão tem uma certa ambigüidade em função do fato de que a responsabilidade histórica pela mudança climática cabe aos países desenvolvidos, isso nos coloca um pouco numa postura de um certo comodismo de achar: “ah, vamos esperar os caras fazerem e tal", né? Claro que a responsabilidade histórica é deles, mas é claro também que a conseqüência é nossa, embora nós não estejamos poluindo o planeta na mesma intensidade que os países desenvolvidos nesses últimos cento e cinqüenta anos, nós não somos nenhum exemplo de sustentabilidade. O maior indicador disso é o desmatamento, que hoje contribui de forma importante para a concentração de gases estufa na atmosfera; é uma particularidade do Brasil, porque o grosso do problema decorre da emissão de gases oriundos da queima de combustíveis fósseis; de petróleo, de carvão, de gás, mas o desmatamento representa ali entre vinte, vinte e cinco por cento do problema, e quando se trata de desmatamento o Brasil é o campeão mundial. Então eu tenho impressão que embora tenha aumentado a consciência no Brasil em relação a essa questão, pelo menos entre setores especializados, uma parcela da opinião pública que tem mais acesso à informação. Embora algumas iniciativas do governo foram tomadas; de se criar um fórum sobre o tema, de alguma maneira tentar incorporar isso em alguns nichos da burocracia oficial, eu acho que a gente pode fazer muito mais do que tem sido feito. Eu acho que a gente precisa fazer muito mais do que nós temos feito, não apenas nessa vertente da redução do desmatamento, e portanto da redução da nossa contribuição para o problema, mas sobretudo de nos protegermos em relação do que vem pela frente. Um país com proporções continentais como o Brasil certamente vai sofrer um impacto muito pesado dessas mudanças; não apenas sobre as florestas, ou sobre a nossa biodiversidade que é um patrimônio muito especial que o Brasil tem, mas sobre agricultura que é um elemento básico da nossa estrutura produtiva, e pro território como um todo – você imagina; se o mar sobe de nível o que vai acontecer num país que tem milhares de quilômetros de costa como é o caso do nosso; praias, mangues, cidades litorâneas que vão ser afetadas. O grosso da nossa população vive na beira do mar, e portanto eu acho que o Brasil pode vir a sofrer impactos terríveis que impliquem na necessidade de imigrações muito fortes dentro do território brasileiro e de condições bastante difíceis para se adaptar. Nós temos uma disponibilidade muito grande de água doce no nosso país, mas ela também é ilusória porque em muitas regiões brasileiras já se sente a falta de água; a mudança do clima pode agravar essa situação, mais uma vez implicando migrações internas e problemas bastante sérios. Então, embora o Brasil se coloque - a grosso modo - com uma postura politicamente correta, vamos dizer assim, em relação ao tema, eu acho pouco diante do tamanho da ameaça que vem; eu acho que a gente vai ter que fazer muito mais do que isso, e acho que a herança que vai ficar para os nossos filhos e netos é uma herança muito pesada.
P1 – Falando politicamente, mas não nesse sentido; qual é a relação para você de política e meio ambiente, nessa questão ambiental e essa questão de mudança do clima?
R – Bom, a mudança do clima tem um impacto imenso em tantas áreas, em tantas atividades, e por conseqüência em tantas políticas setoriais; como a política de energia por exemplo - pra pegar uma coisa básica; que eu acho que a tendência é que via a questão de mudança climática, as políticas ambientais ou socioambientais brasileiras tendem a ganhar uma importância crescente dentro da estrutura do Estado, seja no âmbito federal, seja nos outros níveis de administração. A radicalidade da mudança do clima empurra esse tema pro centro da agenda, não há nenhuma ameaça equivalente à mudança do clima para ser enfrentada pelo Estado brasileiro em qualquer nível da administração pública no país; a gente já tem visto muitas regiões que sofrem o impacto desse processo, e o jogo está apenas começando. Então na minha maneira de ver já houve nos últimos anos – se a gente pegar de 92 pra cá – uma certa incorporação das questões socioambientais dentro da estrutura do estado e das políticas públicas, e a tendência é de que isso cresça; não por uma benevolência dos governantes ou dos partidos políticos - que não estão nem aí pro tema – mas pela tragédia mesmo, pelo peso da ameaça.
P1 – E porque os partidos políticos, ao seu ver, não estão nem aí com essa questão ?
R – Me parece que eles não estão nem aí com várias outras questões. A política brasileira é extremamente corporativista, os partidos são muito voltadas para o seu próprio umbigo, são grupos de interesse bastante alienados em relação aos problemas nacionais. E no caso, quando a gente fala de meio ambiente, de alguma coisa que costuma se dizer é “interesse difuso”, não tem uma tradução em votos “vapt-vupt”, assim, automática, tem um quê de futurismo, portanto não do imediatismo daquele jogo de interesse e tal, é uma questão que vai ficando uma nota de rodapé da preocupação dos partidos e das forças políticas de um modo geral. Então eu acho que elas só tenderão a levar mais a sério esse assunto quando a ameaça atingir o nível da emergência; da situação imediata, assim eu vejo os partidos políticos não apenas em relação a essa questão, mas há várias outras onde a abordagem é uma abordagem oportunista, sem que haja força política importante que se organize dentro de uma estratégia consistente para enfrentar esses problemas. A desigualdade social é a mesma coisa, quer dizer, a gente vive num país que é campeão mundial da desigualdade social – todo mundo sabe disso; os jornais publicam, está aí dito no discurso demagógico essa questão pontua, mas você pode até eleger uma força de esquerda que ela vai lá e aumenta os juros, faz o jogo dos bancos e acaba tendo como conseqüência um agravamento da concentração. Então eu tenho a impressão que , enfim, não partirá dos partidos políticos a iniciativa de enfrentar essas questões, quer dizer, eu acho que essa iniciativa tem que partir da sociedade; sociedade é que puxa os partidos – e conseguirá fazer isso quanto pior for a situação concreta, imediata, obrigando a, mexendo com esse imediatismo das forças políticas; se inserindo nessa lógica imediatista dos partidos políticos.
P1 – Eu queria entender um pouquinho, ainda dentro da sua trajetória, você vinha trabalhando com a questão indígena e por que do seu foco de atuação passar a ser mudança climática? Eu queria entender, ou se essas duas coisas caminham paralelo para você?
R – Não sei, é difícil estabelecer um vínculo, assim, mecânico de uma coisa pra outra. Eu entrei nesse assunto da mudança climática pelo viés do desmatamento, portanto eu acho que a coisa vai com mediações aí; trabalhar com populações indígenas, com populações tradicionais, povos da floresta; floresta – desmatamento – a mudança climática, o impacto do desmatamento – a mudança climática, é mais ou menos por aí o percurso. Mas não é um percurso linear, porque evidentemente se podia ir para outro rumo, outro caminho e tal. O que essa questão do desmatamento incomoda, é o fato de que simplesmente que ela não era tratada no âmbito da discussão sobre mudança climática esta questão era extremamente marginal, secundária, enquanto que a gente tinha uma clareza muito grande de que essa era nossa grande contribuição para o problema, é que a gente não estava tocando nessa questão, que a própria posição brasileira, que é reconhecida internacionalmente, afinal, além de sediar no RIO 92 a assinatura da convenção, o Brasil teve um papel destacado na discussão que originou o Protocolo de Kyoto, teve posições importantes, mas no entanto sem querer enfrentar o ser passivo em relação a essa questão. Em certo é uma malandragem diplomática do nosso país de ser protagonista nos grandes acordos internacionais, mas nos silenciam em relação a sua contribuição. Como o Brasil tem uma empresa energética que é considerada relativamente limpa em comparação com outros países, a diplomacia brasileira se colocava numa posição de não ter que tocar no seu calcanhar de Aquiles que era nesta lado do desmatamento. Então enfim, é foco de interesse muito comum entre as pessoas, entre as instituições, de justamente provocar um afrontamento no nosso Calcanhar de Aquiles nessa história. Aquilo que o Estado Brasileiro não fazia - não queria fazer - continua não querendo fazer, mas que nós como brasileiros sim, efetivamente temos uma consciência sobre a gravidade da questão, e temos também a obrigação de tocar nessa ferida. Então eu começo um pouco por aí, quer dizer, uma pessoa que tinha como incumbência dar a essa interface do desmatamento com a mudança climática um tratamento num nível político, e valendo-se das contribuições que a comunidade científica brasileira já tinha introduzido sobre o tema, mas que no entanto não permeiam de forma mais efetiva na política oficial no país. É nessa batalha que vem nesses anos todos com algum passo pra frente; agora nessa última Conferência das Partes que aconteceu no Canadá, em Montreal, e que pela primeira vez o Brasil oficialmente aceita discutir o assunto, porque até então não aceitava discutir esse assunto – o problema do desmatamento dentro da questão climática. Então é isso, são anos de trabalho para mudar uma vírgula do discurso oficial da diplomacia brasileira, mas assim que são as coisas, devagar a gente vai tomando uma posição, anteriormente muito enfim, muito alienada, quer dizer, em termos específicos do Brasil, no problema.
P1 – E você vem participando de várias conferência das partes, vários COPs. Como que é a sua participação, em que órgão você atua exatamente nessas conferências?
R – No subterrâneo, no porão, na catacumba, como a gente costuma dizer. Eu sou bastante avesso a essa coisa de política mais oficial e tal. A gente tem comparecido nessas últimas conferências sempre como sociedade civil e privilegiado o espaço dos tais side events nas conferências paralelas. Nesse processo a gente também vem juntando forças com pessoas, especialistas de várias partes do mundo. Eu sou um dos autores de uma proposta que tenta encontrar um caminho viável de tratar a questão do desmatamento; a evolução do desmatamento dentro do Protocolo de Kyoto; eu sou um membro dessa proposta, apresentei essa proposta numa catacumba, lá nas COPs; não apenas num menor espaço, mudou a opinião de muita gente. E nessa última conferência mundial, em Montreal, migrou para a agenda oficial da conferência entre duas mil propostas apresentadas por dez países liderados por Papua Nova Guiné, que reivindicam um tratamento em termos oficiais. Então o trabalho que eu tenho feito é um trabalho de minar no subterrâneo, e criar consciência e provocar de baixo pra cima essas mudanças. É um processo complexo porque a gente está falando de conferências da ONU, que tem um coro gigantesco para votar, e tal. Mas eu acho que a gente avançou muito nesse sentido. Nas primeiras vezes que a gente compareceu a essas conferências a nossa posição era extremamente isolada, porque nem o nosso governo, nem os principais países envolvidos, nem as ONGs apoiavam o tratamento desse tema do desmatamento dentro da Convenção do Clima. Então nós temos um grupo de pessoas, e de instituições do terceiro mundo, da América Latina principalmente, que falam um inglês macarrônico e tentando ocupar o espaço em catacumbas mesmo. E hoje a situação é bem diferente, a gente tem um conhecimento muito grande das partes mais especializadas no tratamento desse assunto. Hoje o que a gente diz tem audiência, e enfim, eu acho que a gente avançou bastante apesar dos pesares.
P1 – Mas como vocês levam essa questão do desmatamento; essas grandes potências elas reconhecem como um valor só do Brasil ou entra naquela questão da soberania; “não, é de todos, não é só do Brasil.” De quem que é a floresta? Eu ainda fico na dúvida , qual o reconhecimento em relação à Floresta Amazônica, e ao que está se passando com o desmatamento?
R – Olha, as informações são muito fragmentadas fora do Brasil, o impacto que o desmatamento tem na mudança do clima, ou o que ele representa em termos de emissões de gás de efeito estufa é uma coisa bastante nebulosa por parte das instituições, ou pessoas, ou países envolvidos nessa discussão. O foco sempre foi o foco da energética e não por acaso, porque de fato há a queima de combustíveis fósseis que é o principal vilão dessa história, o principal fator. Então você observa que o desmatamento também é uma causa da emissão dos gases estufa, mas nunca houve uma preocupação sequer em quantificar exatamente qual é o peso que isso tem na ordem geral do problema. As informações eram esparsas não há sistemas científicos consistentes de monitoramento. O Brasil é o único país que tem um sistema regular de medição de desmatamento, que é o caso da Amazônia, através do INPE, não há outro país que tenha um sistema de monitoramento similar. Portanto existiam os dados, os dados são bastante precários, genéricos, imprecisos que dificultavam a tomada de consciência no exato grau de importância que isso tem de um modo geral, nós trabalhamos muito essas informações procurando disponibilizar, para que se tome uma decisão, em dados que mostre o real peso que esse assunto tem, como também de mostrar que é possível monitorar essa questão, porque a impressão que se tinha é que isso era uma variável imponderável, impossível de ser cercada, impossível de ser objetivada; e a experiência do INPE, embora tenha muitos limites e fragilidades em sistemas de monitoramento, ele demonstra que é possível um monitoramento, e, portanto, é se discutir uma maneira consistente de incorporar os termos nas convenções internacionais. Então eu acho que o trabalho nosso teve um peso muito grande no sentido de iluminar essa parte do problema; a gente já está no nível de decisão ou também de procurar formular mecanismos, critérios, procedimentos pelos quais objetivamente este fator pudesse ser considerado, implicar numa da fragilização, num enfrentamento do problema da queima de combustíveis fósseis, porque essa é a questão. Quer dizer; também não adianta você incorporar esse fator em prejuízo daquele que é a causa principal que a queima de combustíveis fósseis. Então, enfim nós trabalhamos muito nessa linha de mostrar que apesar de toda a insegurança que a questão de florestas traz nessa discussão, e da instabilidade que o elemento florestal tem nessa discussão, que se os países quiserem de fato enfrentar o problema tem como fazer. Ao contrário da impressão que se ficou nos primeiros acordos que foram feitos, que era a impressão de que não há como - ainda que isso seja relevante, não há como controlar essa variável – e hoje a gente vê que embora seja necessário fazer um investimento grande em criar nos outros países florestais mecanismos de monitoramento, nesses países que não têm; é possível, não tem nenhuma impossibilidade do ponto de vista técnico científico de se fazer isso. Então eu acho que a contribuição nossa foi mais por aí; de mostrar que é viável enfrentar o problema, se se quiser enfrentar, e a questão que está posta hoje é se querem mesmo enfrentar, mas se quiserem há como fazer. E no nosso caso especificamente, como essa é a maior contribuição que o Brasil dá para o problema, ele não é uma questão secundária, é uma questão fundamental: se nós não reduzimos o desmatamento na Amazônia, não há nada que o Brasil possa fazer de mais consistente para dar essa contribuição para reduzir o problema.
P1 – Voltando um pouquinho no tempo, você participou da RIO + 5, da Rio +10?
R – Acompanhei algumas reuniões preparatórias, alguns seminários; participei da discussão de alguns documentos que foram apresentados, mas sem assim um papel mais destacado na organização desses processos.
P1 – Mas assim, como você vê os resultados desses encontros?
R – Olha, sabidamente resultados limitados, a gente na verdade não tem avançado muita coisa não, especialmente em relação à CDB. Enfim, eu acho que os resultados são muito limitados, de qualquer maneira, eu acho que esses processos tiveram uma importância grande em facilitar o envolvimento de um maior número de instituições na discussão do problema e de preparar essa base de informações mesmo, que possa subsidiar a discussão política mais consistente. Mas enfim, acho que mesmo as pessoas que tiveram uma participação mais direta tiveram uma expectativa maior em relação aos resultados;
P1 – No momento que você trabalhou na FUNAI, esse problema do desmatamento já era um problema também que você enfrentava? Como você trabalha essa questão junto com as comunidades indígenas?
R – Bom, essa questão do ponto de vista indígena ela é uma questão muito diferenciada a depender de cada região do país que você tome como referência. Quando a gente fala da Amazônia legal brasileira, a gente está falando de uma situação completamente distinta do restante do país; do ponto de vista da questão indígena ou das terras indígenas. Estão na Amazônia legal noventa e nove por cento da extensão total das terras indígenas no Brasil, só 1 por cento, ou um pouquinho mais de 1 por cento estão no restante: Nordeste, Leste, Sul e Mato Grosso do Sul, onde estão quarenta por cento da população indígena. Então quer dizer, você tem sessenta por cento para noventa e nove por cento da terra, e quarenta por cento para 1 por cento da terra. Então é uma situação muito diferente em uma ou em outra parte do Brasil. Ou dizendo de outra maneira; aqueles povos indígenas que têm territórios, que foram oficialmente reconhecidos em extensão significativa, têm muito mais condições de incorporar a dimensão ambiental ou uso sustentável de recursos naturais nas suas próprias estratégias de futuro, nos seus projetos de futuro. Diferentemente dos índios que vivem nessa outra metade do país, e que em geral vivem em terras muito exíguas que são insuficientes até mesmo para equacionar o problema da subsistência, produção de alimentos de gêneros básicos, e portanto a condição desses índios de poderem incorporar essa dimensão ambiental é muito mais precária do que dos outros. Então a situação é esquizofrênica, quando a gente pega o Brasil, você tem pelo menos esses dois lados da moeda que são muito diferentes. Agora, as terras indígenas têm tido nos últimos anos um papel muito importante na contenção do desmatamento, elas funcionam como barreiras que impedem a expansão linear dessas fronteiras agrícolas que vão desmatando o Brasil de Leste para Oeste, ou de Sul para Norte. Bom, as terras indígenas têm uma extensão maior do que todo o sistema de unidades de conservação; se você somar unidades de uso diretos e indiretos, federais ou estaduais – botar tudo isso na soma – as terras indígenas ainda são mais do que isso. E elas são mais representativas do que o sistema nacional de unidades de conservação em áreas de transição entre biomas – o sistema nacional de unidades de conservação é muito concentrado nas áreas de ombrófila densa, e pouco representativo nas áreas de transição de cerrado para floresta, entre biomas diferentes e em áreas críticas de expansão da fronteira. Então, atualmente eu tenho trabalhado muito com uma campanha na região do Xingu, no Mato Grosso onde são as áreas indígenas que exercem o papel de áreas protegidas; não há na verdade unidades de conservação federais simplesmente. Quer dizer, são só as terras indígenas como áreas protegidas, em cima do arco do desmatamento das frentes de expansão da fronteira. Então já a muito tempo a gente tem chamado a atenção para a importância que as terras indígenas têm; seja para a proteção da biodiversidade ou do clima regional, simplesmente para a contenção do avanço dos processos predatórios, e que portanto a gente precisa encarar essas terras de uma maneira que seja mais apropriada do que aquela visão conservacionista do primeiro mundo, que concebe a conservação apenas dentro de áreas sem gente. Enfim, então a nossa posição é de que seria absolutamente impossível ter uma rede consistente de áreas protegidas num país em desenvolvimento, com precariedades sociais como o Brasil, se a gente não incorporar essas terras que são ocupadas por populações tradicionais, evidentemente sem pretender retirá-las das áreas onde elas estão, ou onde elas sempre viveram; mas de encontrar caminhos que permitam promover a conservação, o uso sustentável da biodiversidade junto com essas populações.
P1 – E teve alguma experiência, alguma lição em particular que os índios te ensinaram sobre preservação, sobre o respeito pelo meio ambiente, que tenha te marcado?
R – Olha, eu acho que a gente possa imaginar que os índios sejam ecologistas atávicos; não é por aí. São populações humanas como qualquer outra população, no sentido de que necessitam do uso dos recursos naturais e que eventualmente quando dispõem de técnicas ou associam-se a grupos que dispõem de técnicas capazes de afetar o meio ambiente, estão também sujeitos a integrar o rol de predadores. Então o que a gente tem é que, diferentemente de outros países mesmo da América do Sul - da América Latina, os povos indígenas brasileiros, eles sempre, ou pelo menos em geral, tiveram práticas de ocupação extensivas do território. Nunca viveram em grandes concentrações demográficas, e com isso desenvolveram historicamente maneiras de lidar com os recursos naturais e com o meio ambiente que são comparativamente menos predatórias do que outros grupos sociais, ou mesmo de que outros povos indígenas onde você tem grandes concentrações demográficas e não há tanto espaço para fazer isso. Mas a gente tem referências mesmo assim, de períodos mais antigos em que não havia tanta pressão colonial, mas de grupos que usaram de maneira excessivamente intensa os recursos naturais, e tiveram que se mudar para outras regiões ou que tiveram que travar guerras com outros povos em torno de recursos que se tornaram mais escassos. Tudo isso para confirmar a frase que eu disse, quer dizer, os índios não são ecologistas atávicos, a gente não pode confundir as coisas, mas é muito mais fácil você convencer uma comunidade indígena, um grupo indígena a proteger o meio ambiente, a usar de maneira adequada a sua biodiversidade do que convencer um grupo de grileiros de terra ou coisa que o valha, desse mesmo objetivo. Portanto eu acho que os índios acabam sendo parceiros potenciais mais viáveis do que outros grupos sociais que culturalmente e historicamente se acostumaram a essa cultura predatória que é predominante na nossa forma de ocupação do território. Especialmente no caso das terras indígenas que foram oficialmente reconhecidas em grande extensão na Amazônia legal, além de ser mais fácil de convencer esses povos, quer dizer, eles têm uma base territorial que permite isso. No entanto eles têm também a necessidade de incorporação de conhecimentos, de técnicas, que são da nossa sociedade, para isso. É importante a gente lembrar que a demarcação de uma terra indígena, mesmo quando ela é feita de uma maneira, vamos dizer assim, generosa para o Estado brasileiro, reconhecendo uma região grande dessas terras; ela significa também um confinamento; aquela população vai viver ali para sempre, a sua população tende a crescer, como em geral ocorre com os povos indígenas no Brasil. E portanto haverá uma pressão crescente sobre os recursos naturais mesmo numa situação ideal, eles não poderão fazer como faziam sei lá, no século dezesseis ou no século dezessete que se exaurir o recurso de uma área você muda para outra, você entra em guerra com outro grupo, conquista um outro território - essa possibilidade não está mais dada, quer dizer; estão confinados ali, portanto vão precisar desenvolver procedimentos que sejam adequados para manter aqueles recursos a longo prazo. Então a gente sente que há uma demanda da parte deles, daqueles que têm interesse nesse tipo de questão; por acesso a recursos – tanto recursos financeiros como tecnologia para poderem, enfim, se relacionar de uma maneira mais sustentável com o seu ambiente. Eles não são candidatos a serem os jardineiros do planeta, entendeu? Não estão nessa. Não acham que seja correta uma atitude da nossa parte de dizer: “bom, vocês que tão aí, vocês que têm que conservar as florestas, e nós podemos detonar, tá certo?” Não é por aí. Mas, eu acho que tem muita chance. Se a gente tivesse políticas consistentes no sentido de incorporar, usar uma estratégia nacional de conservação da biodiversidade, eu acho que a gente teria deles respostas mais positivas do que da maior parte da sociedade.
P1 – Interessante. E meio que pra gente começar a finalizar, Márcio. Como membro fundador de ONGs, como você avalia a importância dessas organizações civis nessas questões, todas essas questões que você vem tratando?
R – Olha, eu acho que a importância é muito grande. Porque é no âmbito dessas organizações que você tem como colocar esses temas na prioridade central do seu trabalho, da sua preocupação. Como eu já disse aqui, os partidos não estão nem aí, e outras estruturas organizativas da sociedade são muito, enfim, não têm essa questão no seu DNA; se você pegar o movimento sindical, outros movimentos sociais que consideram adjetivamente essa questão ou apenas muito recentemente se abriram pra elas. Eu acho que o chamado terceiro setor e as ONGs têm um papel muito importante, porque é nele que pessoas com identidades comuns em relação a esse tema podem se juntar, se organizar, levantar recursos, desenvolver projetos e produzir informações consistentes sobre o assunto. A gente vê na relação, por exemplo, com a mídia que freqüentemente os jornalistas, as pessoas nos procuram porque consideram que as informações que a gente é capaz de produzir são mais confiáveis do que aquelas que são produzidas pelo Estado brasileiro, ou por outros governos. São mais consistentes, as informações e são mais críveis as posições, de modo que eu acho que a sociedade civil tem um papel insubstituível nesse processo. É ingênuo supor que a iniciativa de definir estratégias consistentes em relação a esses temas possa cair do céu, ou cair do Palácio do Planalto, ou do poder público. O poder público é malandro, ele só age em última instância sob pressão. E a construção das condições dentro da sociedade seja de consciência, de informação, de recurso, de projeto etc., depende das ações desse grupos que se organizam nas ONGs.
P1 – Mas, nos vários depoimentos que a gente vem colhendo, a sensação particular minha, pessoal que eu tenho, é que a maioria das pessoas coloca que houve um esfriamento a partir da ECO 92, houve um momento ali: um ápice, tinha todo um envolvimento, quase que uma comunidade da era de Aquários que estava se formando, como uma depoente nos colocou. Você sente também isso, mesmo por parte do terceiro setor, das ONGs, como que é isso ?
R – Eu não sinto não. É claro que você tem momentos em que determinados eventos como foi o caso da Rio 92, botam aquilo, né? Uma situação de visibilidade maior do que o normal, mas a gente pelo menos não trabalha movido por ondas de visibilidade, de mídia e tal. A visão que eu tenho é diferente, eu acho que a gente caminhou muitíssimo nesses últimos anos. Se eu pegar como ponto de referência, por exemplo, a história da nossa organização: nossa! Quer dizer, nesses anos – ela é posterior a 92, ela cresceu imensamente, ela é hoje cinco vezes o que era naquela época, com projetos em várias regiões, com uma quantidade muito maior de pessoas, de quadros, de publicações, de informações produzidas. Eu não tenho essa sensação, eu tenho o contrário; a sensação de que a gente caminha positivamente nesse terreno. Enfim, eu não acho que foi um auê em 92, que passou a onda e o clima baixou – isso pode ser válido se a gente for analisar o movimento da mídia em relação a esses temas. Enfim, a imprensa, sobretudo a imprensa diária, ela é muito imediatista, ela se referência muito por datas, por eventos, por acontecimentos, por reuniões. Mas enfim, quem está com a mão na massa está trabalhando isso no cotidiano, mesmo quando o assunto não está em evidência nos órgãos de comunicação, ou mesmo nas preocupações de governo, a gente está lá construindo e andando para frente. Então eu não sei, eu não compartilho muito essa impressão não; que é uma onda que foi e que hoje a gente vive num refluxo. É claro que você tem sempre conjunturas que são mais favoráveis, ou são mais plenas de resultados, de passos concretos, de decisões tomadas. E é verdade também que o ambientalismo tem uma coisa muito sinistra, que é aquela coisa de ficar fazendo a contabilidade do prejuízo, todo ano você vem: “ mais tantos hectares desmatados não sei aonde e tal”, essa coisa assim né ? A gente vem de uma tradição que não é desse tipo, quer dizer, o trabalho que a gente fez em relação à questão indígena é uma coisa que tem resultado. E na questão ambiental a gente também trabalha com a mesma perspectiva, nós não estamos a fim de contabilizar o prejuízo não, nós estamos a fim de virar o jogo. É um desafio enorme que pressupõe criar com relações de força, mudar consciências e tudo mais. Mas esse é um objetivo nosso, eu não estou nisso para ficar fazendo a contabilidade do prejuízo não, eu acho que a gente pode virar o jogo.
P1 – Que legal. Bom, pra terminar; você é casado, tem filhos?
R – Sou, tenho três filhos.
P1 – E o quê que eles fazem?
R – Bom, são duas gerações; os dois primeiro são do primeiro casamento, eles moram aqui em São Paulo, já são grandes, estão se formando na universidade ; um está se formando em Educação Física e a outra está se formando em Hotelaria, ou coisa parecida, ou Administração. O outro é pequenininho, tem dez anos, ainda – como é que chama isto? – está na quarta série, no meu tempo era ginásio, agora não tem mais esse nome, do primeiro grau.
P1 – Três meninos você tem?
R – Uma menina e dois meninos.
P1 – E qual foi a principais lições ou a principal lição que você tirou da sua carreira?
R – Não sei se é tão fácil assim a gente confluir essa coisa assim para uma lição, mas eu acho o seguinte: eu acho que a experiência de trabalhar no terceiro setor é uma coisa muito rica que nos coloca diante da possibilidade de mandar uma contribuição para o nosso país fora desse paradigma mais tradicional da política partidária e tal. Menos primeira pessoas do singular, e mais a primeira pessoa do plural, é um tipo de trabalho que, portanto, não te dá tanta notoriedade como pessoa e tal, o que uma carreira de político tradicional, onde você sai tirando fotografia por aí. Mas enfim, quer dizer, eu tenho assim uma visão gratificante desse processo, eu acho que a gente avançou muito no país, eu acho que a gente ajuda a mudar o Brasil mais do que os partidos, do que as forças políticas tradicionais. Acho que os nossos movimentos, embora eles não sejam movimentos de classe social capazes de botar milhões de pessoas na rua, de fazer greve geral, ou de derrubar governo ou de ganhar eleição, eles têm uma capacidade não completamente entendida pelas forças mais tradicionais de ir minando a opinião pública e criando condições de mudança, e que embora sejam lentas e sempre meio incompletas, elas são mais concretas e mais consistentes do que a política tradicional. Eu acho que o Estado brasileiro é um Estado muito retardatário do ponto de vista histórico, quer dizer, um país que nunca viveu uma revolução profunda, uma mudança radical da relação entre o Estado e a sociedade; as coisas vão sempre vão naquela de gradual, lento gradual e tal. Mas eu acho que a organização da sociedade civil hoje no terceiro setor é um dos principais setores de mudança da nossa realidade. Então eu digo para você que eu acho muito gratificante isso aí. Então, quer dizer, pode ser que a minha experiência fique só registrada no Museu da Pessoa, nunca vá para o Jornal Nacional, ou coisa do gênero. Mas eu sinto assim, olhando para trás, vendo esses anos todos que eu já pude fazer muita coisa por esses instrumentos aí – eu e outras pessoas vamos poder fazer ainda mais por esse país.
P1 – E para terminar; o que você achou de ter participado desse projeto de memória?
R – Pois é, eu não tenho ainda uma grande visão de conjunto, apesar de ter uma visto agora pouco a lista das pessoas tal; muitas pessoas conhecidas, eu também ainda não tive oportunidade de visitar o Museu, de conhecer assim mais diretamente o trabalho. Agora eu acho que é uma coisa interessante, porque a gente não vê as instituições de uma modo geral tendo a preocupação de resgatar esses processos, essas memórias, essas experiências. Por exemplo é impressionante a distância que existe desses movimentos da universidade – para dar um exemplo, né? Gozado, a universidade não demanda nada da sociedade civil, ela é meio auto-suficiente, acha que se resolve ali e tal. Então eu acho que há poucas oportunidades, poucos instrumentos de registro desses processos, e acho que essa iniciativa vem nesse vácuo, e de certa maneira vai deixar aí para as pessoas algumas coisas que as outras instituições não foram capazes de fazer.
P1 – Legal, Márcio. Obrigada, muito bacana.
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