Renata
Em janeiro de 1990 prometi a você, a historiadora da família, contar alguma coisa desta nossa família. Aqui vão umas mal traçadas linhas contendo um pouco da história da qual fiz parte. História de meus avós, pais e irmãos, durante o tempo em que morei em nossa casa em Laranjal Paul...Continuar leitura
Renata
Em janeiro de 1990 prometi a você, a historiadora da família, contar alguma coisa desta nossa família. Aqui vão umas mal traçadas linhas contendo um pouco da história da qual fiz parte. História de meus avós, pais e irmãos, durante o tempo em que morei em nossa casa em Laranjal Paulista, incluindo a seu pedido os costumes da época. Sua mãe lhe contará o resto, pois ela ainda lá ficou depois que deixei nossa casa.
Beijos,
Tia Anésia.
Aos meus filhos, que por outros caminhos me perpetuarão.
Quando eu nasci, disseram-me (minha mãe e minha avó paterna) que com quarenta dias tive malária, também chamada de terçã ou sesã (dependendo do tempo em que a gente demorava para tremer de febre). Isso deve ter abalado o meu organismo devido à minha tenra idade. Logo na adolescência da 1ª idade, senti que tinha um fígado-do-do-do, e agora, na adolescência da 3ª idade, vejo que essa "benedeta" febre prejudicou também o meu cérebro, que é curto por causa da minha ingenuidade e grosso por causa da minha rebeldia. Espero não perceber mais nada na adolescência da minha 4ª idade e, quando ela vier, vou pedir concordata.
Quando dei por mim, já era a revolução de 32 e a minha mãe, que era só emoção, havia feito grande quantidade de rocambole (doce que se faz só quando a data exige) para um batalhão que invadiu minha casa de propósito, só para comer. Um dos soldados, quando me viu, fez um gesto para me pegar e eu, assustada, corri atrás de um sofá de vime, me escondendo e gritando desesperada. Minha mãe logo chegou para me acudir, e o soldado contou que tinha uma filha da minha idade. Pra quê? Nós duas, eu e minha mãe, ainda choramos algum tempo juntas: ela se emocionou com a história do soldado.
Nessa época, meu pai era prefeito da cidade (seu honorário era distribuído para os pobres) e já havia confiscado caminhões, cavalos e tudo o que tinha direito como autoridade municipal, para ajudar os paulistas a ganharem essa santa guerra. Por causa disso, o pessoal ficou com raiva dele até a morte, pois nunca recebeu de volta o que emprestou. Sumiu na revolução. Os legalistas ficaram com tudo, até com a vitória.
Foi nesse tempo que Zé, (meu irmão mais velho), que era um grande moleque, quebrou a perna numa brincadeira, ao passar de um caminhão para outro, e foi aquele alvoroço. O coitado ficou deitado na cama mais de quarenta dias com a perna dependurada por um peso que vinha do teto e a perna fixa numa telha para não mexer. E a gente, para irritá-lo, subia nos pés da cama e balançava. Ele gemia de dor. Coitado Acho que mais tarde ele se vingou não deixando a gente namorar.
Naquela época, a chave da porta da rua ficava o dia todo do lado de fora (para a rua), só era recolhida quando íamos dormir, para fechar a porta. A família era composta por minha nonna Palandri, seu irmão Tio Santim, meu pai Camilo, minha mãe Thereza e seus filhos: José, Luiza, Anésia (eu) e Dionéa. Morávamos numa casa grande com uma bonita área interna, um imenso quintal, e um jardim de dar inveja, mas a casa tinha só três quartos.
***
Papai tomava o café da manhã conosco, eu me lembro que ele cortava o pão francês em quatro partes no sentido horizontal, passava manteiga e servia um pedaço para cada filho. Agora vejo que isso adiantava bem o expediente, pois servir quatro filhos ao mesmo tempo não é fácil. Quando chegava o outono, logo no início do mês de maio, você pensa que tinha dia das mães? Não Tinha o dia do vermífugo, que era assim: lá pelas quatro e meia da matina soava o gongo
(um despertador bem eficiente que meu pai estimava muito) e era logo desligado para não acordar minha irmã Dionéa, que detestava esse dia. Daí, meu pai e minha mãe apareciam e nos levavam para a sala de jantar, onde em cima da mesa estava uma caixinha contendo umas pílulas gelatinosas recheadas com óleo de rícino, e um prato com limões cortados ao meio, copos e jarra com água. Começavam a nos dar essas pilulinhas. Conforme o seu peso era a quantia de pilulinhas que você tinha direito. Eu tinha direito a muitas. Depois de engolir sem chiar, para não acordar a nossa irmã caçula, que sempre ficava por último, devíamos chupar meio limão. Daí tínhamos todo o direito de ir dormir calados, sem nenhuma reclamação. Era quando chamavam a talzinha que, ao perceber que havia chegado o dia do vermífugo, não queria acordar, sentia muito sono, não queria engolir e tudo mais. E daí as pilulinhas estouravam na garganta e dá-lhe limão. Colocavam para tapeá-la o remedinho em pedaços pequenos de goiabada e dá-lhe água, mas as bolinhas continuavam na boca. Enquanto a "Panvermina" (era esse o nome do remédio) não fizesse efeito tínhamos que ficar em jejum. Depois de uns dias começávamos a tomar o remédio do inverno, um terrível óleo branco feito de fígado de bacalhau chamado "Emulsão de Scott". Era oferecido na hora das refeições, tomado às colheradas. À noite papai abria a gaveta da escrivaninha e distribuía pedaços de chocolate suíço. Durante as refeições (no inverno) podíamos tomar meio copo de sangria (água, vinho e açúcar misturados) que depois, conforme a gente ia crescendo, era substituído por meio copo de vinho. Esse vinho era engarrafado em nossa própria casa e era comprado em cartolas. Ele era feito por um italiano que fornecia para o meu pai sempre no mês de janeiro. Todos os anos lá em casa havia a festa do vinho. A primeira festa do vinho da qual eu tenho notícias. Depois conto isso.
Nós morávamos perto do cinema. Os filmes ainda eram mudos e logo debaixo da tela ficava uma orquestra: clarinete, violino, piano, rabecão e mais instrumentos de corda. Cordas, essas, que vibravam com sentimento na hora em que o filme era triste e mais para o "alegro" quando o povo dava risada. O filme era passado em partes. De vez em quando as luzes se acendiam para que a tela fosse molhada e depois continuava a sessão. Todos podiam entrar, não havia censura, até bebezinhos de colo.
Assistíamos a comédias, dramas, filmes de terror. Quando chegava lá dentro do cinema que a gente via o que ia passar. Assisti, devia ter seis anos, ao filme "Museu de Cera". Naquela noite tivemos que dormir todos no mesmo quarto. Desde essa idade gosto de um terrorzinho. Mais tarde, com o cinema falado, a orquestra desativada, começaram a chegar os filmes de Tarzan, os seriados "Escoteiros Heróicos", "Ri-tin-tin", os filmes mostrando outros planetas - "Flash Gordon" - que passavam todas as quintas-feiras. Era um sucesso. E nós lá, assistindo a tudo. O cinema não tinha "toilette" e adivinhe onde o pessoal ia desaguar na hora do intervalo. Em frente ao cinema ficavam pessoas com tabuleiros vendendo doces caseiros : doce de batata, abóbora, cocada, pé de moleque, amendoim torrado, pipoca que a gente comprava antes de entrar, e daí você já deve ter adivinhado onde iam matar a sede também. Às vezes a tela era tirada logo depois do filme e ali se apresentava um humorista fantástico que contava piadas imitando os imigrantes sírios, italianos, espanhóis. Era Cornélio Pires, parente daquele que, mais tarde, seria meu marido.
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O mês de maio sempre foi o mês de Maria. Todas as noites havia reza e as crianças entravam na Igreja em procissão, levando flores para depositar aos pés da Virgem. No dia 31 essas orações culminavam com a coroação de Nossa Senhora feita pelas meninas vestidas de anjo. Daí pra frente já se falava na Festa de São João. Polenta com frango era a primeira coisa que se marcava. Fixada a data, as pessoas eram designadas para fazerem ou polenta ou frango com molho. O clube era arrumado com grandes mesas compridas feitas de táboas enormes e cavaletes que todo mundo emprestava. Os talheres e pratos eram marcados com as iniciais da família em esparadrapos, para depois poderem ser devolvidos. As travessas prontas e quentinhas iam chegando quando os convidados já estavam a postos. Pagava-se uma adesão para ir comer o que você havia preparado. Que união Causa - construção da Igreja. Princípios de junho, a partir do dia 15 começavam nossas férias escolares, juntamente com a novena de São João. Logo nos primeiros dias da novena faziam um "Baile caipira". Os noivos e padrinhos chegavam em Laranjal no trem misto das dezenove horas (iam até Maristela, cidadezinha próxima, para poderem chegar na cidade com esse trem) e eram recebidos na estação pelos convidados, todos vestidos a caráter, que se acomodavam em carros de boi enfeitados. Os noivos abriam o cortejo (ela sempre dois metros mais alta que ele). Instalavam-se na charrete nupcial com guirlandas de flores de São João. A comitiva dava voltas pelas ruas da cidade e depois dirigia-se para o cinema onde se realizava o casamento, sempre muito engraçado. A quadrilha era apresentada e aí começava o arrasta-pé.
Fazia-se também o "Leilão de lenha". As carroças enfeitadas cheia de lenha cortada em pedaços pequenos chegavam ao meio-dia no Largo de São João. Ali eram leiloadas e arrematadas pelas famílias - pois naquele tempo usávamos fogão a lenha - num leilão animado com muitos rojões e os dobrados executados pela banda. Todos os dias os sinos repicavam ao meio dia e dá-lhe rojão. No decorrer da festa a programação era intensa. Aqui vão alguns dos eventos:
"Tourada" - era instalada, numa área bem grande perto da antiga estação, no centro da cidade, uma verdadeira praça de touros da Espanha. Uns dias antes da função eram levados para lá os touros mais bravos da região. E os toureiros, bem vestidos, como se estivessem em Madrid, desfilavam pelas ruas da cidade incentivando o povo para ver a apresentação. A arquibancada ficava lotada. A "furiosa" começava a função. Depois de tourear vários animais com maestria, os toureiros se enfileiravam esperando o toureiro-mór: estava na hora de pegar o touro a unha. Essa hora emocionante era assim: o toureiro destacado para tal fim corria de encontro ao animal e se instalava entre os seus dois chifres. O touro, assustado, balançava o toureiro, corria desesperado (e o toureiro lá, entalado) e os outros companheiros diziam: bem feito, quem mandou. Mentira. Os companheiros pegavam os "sulfetes", não sei se é esse o nome, (um pedaço de pau,como espeto, todo enfeitado) e espetavam no touro que, com a dor, parava e o toureiro conseguia se livrar. A vibração era geral.
"Parque de Diversão" - ao lado da tourada era armadoquele parque de diversões: roda gigante, cavalinho de pau, barquinho, sala dos espelhos, casa de louco, e o famoso alto- alante, de onde os namorados apaixonados dedicavam músicas uns para os outros e outros para os uns.
Batuque - A comunidade negra da cidade organizava-se e comemorava apresentando rituais de sua tradição. Lembro-me do batuque, que era uma espécie de dança, mais ou menos assim: formava-se uma roda com todos cantando e gingando, sempre no Largo, ao ar livre. Num dado momento, um negro e uma negra entravam no centro da roda e começavam a dar umbigadas, batendo um umbigo de encontro ao outro. Essa dança era realizada sempre de madrugada, no lugar acendiam muitas fogueiras. Naquele tempo era tida como dança imoral.
"Cururu" - Era feito em recinto fechado, geralmente no cinema e durava a noite toda. Os caboclos, famosos repentistas da região, eram contratados para se desafiarem apresentando seus versos que, conforme a rima usada, eram chamados de carreira do "a" ; carreira de "São João", carreira do "Dia", etc. Em Laranjal, um italiano, Tranqüilo de Dellazari, entusiasmado com o cururu, criou um desafio baseado na Bíblia, um grande sucesso na região. Cantava as passagens da Bíblia.
"Barracas" - Em volta da praça principal eram montadas as barracas que renderiam dividendos para a construção da igreja matriz, que naquela época estava sendo erguida. Os festeiros nomeados no ano anterior escalavam os casais que trabalhariam nas barracas. A comunidade toda participava. Cada equipe devia montar, enfeitar, iluminar, pedir as prendas e trabalhar durante as festas para arrecadar fundos. As barracas eram conhecidas pelos nomes. Lembro-me que um ano foram batizadas "Primavera; Verão; Outono e Inverno" e enfeitadas de acordo com o nome da estação do ano. Dentro de uma delas tinha um coelho, de verdade, que entrava numa das casinhas numeradas. Se fosse o número que você havia comprado antes, você ganhava a prenda. Noutra barraca rodavam a roleta, e assim por diante. Mas a grande barraca mesmo era a de "Comes e Bebes", cheia de mesinhas e cadeiras onde as pessoas iam se abastecer e eram servidas pelas senhoritas mais bonitas e elegantes da cidade, vestidas como garçonetes: um chapeuzinho e um aventalzinho de organza, todo enfeitado de renda.
"Tablado" - No meio da rua, perto das barracas, eram erguidos dois tablados, tendo no meio o lugar para a orquestra. Num tablado dançavam os brancos e no outro os pretos. Antes de entrar, o cavalheiro, que já havia escolhido sua dama, pagava a entrada. De vez em quando saia um "quiproquó" no tablado dos negros, porque sempre tinha um branco assanhado querendo dançar com uma mulata bem feita.
"Correio Elegante" - Garotas bem espertas também saiam trabalhando com o bloco de papel do "Correio Elegante". Cada folha do bloco tinha o timbre "Correio Elegante". Quem comprasse uma folha tinha direito de mandar um recado para alguém e recebia a resposta merecida. Quanta encrenca saia por causa disso. Os rapazes mandavam , de propósito, bilhetes para a moça que já tinha namorado, fazendo declaração de amor, e você já viu. Todo mundo assinava com pseudônimo e ia, como quem não quer nada, ficar perto da pessoa para quem tinha enviado o dito cujo, só para ver a reação.
Isso tudo era chamado de festa profana, porque a parte religiosa consistia das nove noites de reza chamada novena que começava no dia 15. Cada noite tinha o seu padrinho que oferecia um óbulo para a igreja. Dia 21 realizava-se a procissão de São Luiz, o patrono dos jovens. Na véspera da Festa, à tarde, em frente à Igreja, faziam a troca do mastro de São João. Um grande eucalipto, todo pintado, tendo em uma das extremidades um quadro com a figura de São João era levado até o local, em procissão, pelos padrinhos do mastro e lá era levantado com o espoucar de rojões e muita banda de música. Na madrugada do dia 24 acordávamos com a "alvorada". Os sinos repicavam, rojões, tiros de trabuco e a banda executava os seus dobrados dando voltas pelas ruas da cidade, anunciando a chegada do grande dia. Às 10h começava a missa solene toda cantada e rezada em latim. Os padres das paróquias vizinhas eram convidados para ajudar a celebrá-la e um deles era sempre o orador daquele dia. A Igreja, que já estava ficando muito bonita (pois no meu tempo já estava em fase de acabamento), era enfeitada com muito bom gosto. Às 5h da tarde saía a procissão de São João, que era um acontecimento na região. Junto com a multidão que acompanhava, iam todos os andores dos santos, cada um melhor enfeitado que o outro, pelas zeladoras. Era uma rivalidade, que nem te conto. À frente, uma cruz solitária abria a procissão. São Benedito era o primeiro. Todos os irmãos vestidos de branco com uma gola preta bem grande. Jesus Menino em seu andorzinho carregado por crianças, ladeado pela congregação da Cruzada, vestidos com uma opa branca tendo, na frente, bordada, uma cruz dourada. As filhas de Maria e os Marianos (moças e rapazes), elas com uma fita azul claro no pescoço, fita essa que terminava com uma medalha da Virgem e na cintura uma faixa da mesma cor. Eles só com a fita. O andor de Nossa Senhora do Rosário ladeado pelas zeladoras que sempre usavam fitas cor de rosa. A irmandade do Coração de Jesus com as senhoras e suas fitas vermelhas, logo atrás o andor de São João que sempre era o mais pomposo, carregado pelas autoridades e pessoas influentes da cidade. Atrás o padre, que naquele tempo era o cônego André Pieroni, o maior responsável pela mais bela igreja existente na região, cujos sinos de bronze vieram da Itália e, por fim, a banda da cidade tocando hinos sacros e dobrados. Depois que terminava a benção na Igreja e os festeiros do ano seguinte eram anunciados, o povo era brindado com uma queima de fogos. Fogos estes feitos por um italiano, artista no assunto: o senhor Roque Paciléo, que criava qualquer tipo de fogos de artifício com muita habilidade. Começava com a bateria, um agrupado de bombas que estouravam ao mesmo tempo pelo menos uns cinco minutos sem parar. Lembro-me de um ano que a figura de São João apareceu de dentro de uma igrejinha que estourou inteirinha. Sem contar os rojões de lágrima, cascatas, e muito mais. Era maravilhoso.
Nossa casa nessa época começava a encher, transbordar. Eram amigos e parentes de São Paulo que vinham assistir à festa mais badalada da região, amigas de minha avó que vinham de Botucatu. E, como disse, a casa só tinha três quartos. O que acontecia então? Éramos nós, as crianças, os últimos que deitavam e os primeiros que levantavam, pois dormíamos em colchões na sala de visitas. Mas havia uma coisa que nunca vou me esquecer: todos os anos nessa época comíamos doce de laranja azeda, que mamãe fazia. Delícia Quando acabava essa temporada (nossas férias), estávamos abalados física e mentalmente, mas, graças a Deus, nós não sabíamos disso.
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Logo no começo de agosto começava a instrução da "Linha de Tiro". Os rapazes não precisavam servir o exército nos quartéis. Depois de selecionados, eram orientados por um tenente que era destacado para esse fim. Isso durava alguns meses. Todas as noites, depois do jantar, quando a gente colocava as cadeiras nas calçadas já ouvíamos o marchar dos moços e a voz do tenente: "direita volver, descansar", pé com "paia", pé sem "paia". Eles percorriam as ruas da cidade fazendo seus exercícios e quando passavam pela nossa rua parávamos nossas brincadeiras, que naquela época eram: brincar de roda, sempre cantando: ciranda- cirandinha, a canoa virou, onde vai bela manquinha; foguinho (na casa de seu vizinho); pais (hoje chamado pega-pega). Nessa brincadeira para escolher quem seria o "pais" (aquele que corre atrás) falávamos: "antan tutamé, finfam tutaté, aristores, combatores, ziguezá calá duché". Nunca soubemos o que isso queria dizer. Pulávamos corda, jogávamos barrabol: dividia-se a turma em duas equipes separadas por duas linhas riscadas no chão. Cada lado era obrigado a ter um adversário que jogava junto . Esse era o homem chave da sua equipe, que traria para o seu lado todos os seus companheiros. Aquela que conseguisse fazer isso em primeiro lugar seria a equipe vencedora. Não entendeu? Qualquer dia jogo isso com vocês na praia. Tinha também o jogo em que se falava : "ordem, seu lugar, sem rir, sem falar, um pé, o outro, uma mão, a outra, bate palmas, piruetas, traz pra frente, queda"; sempre fazendo os gestos enquanto falava e a bola sendo jogada na parede. Se deixasse cair a bola, perdia a vez. Nos dias de chuva: jogo de pedrinhas, trilha, ludo, e os mais velhos jogavam tômbola. Havia ainda a sessão de histórias contadas por Iolanda, uma amiga de cor que morava perto de casa. Para ilustrar conto uma que ficou gravada em minha memória. Pedi para Iolanda, hoje com 78 anos, que escrevesse a "História de um menino bom e outro ruim".
Era uma vez, dois meninos: um bom e outro ruim. Um certo dia o menino bom abriu a gaiola para tratar do passarinho, e o passarinho escapou. Então, com bons modos, pediu para a mãe se ele podia ir procurar. A mãe mandou que fosse, ele foi. Na estrada encontrou uma laranjeira carregada de laranjas, e a laranja pediu para omenino - me apanhe, me apanhe que estou bem madurinha , se não eu apodreço. Ele apanhou e foi embora. Mais à frente encontrou um forno cheio de pães, os pães falaram para o menino - me tire, me tire que estou bem torradinho, se não eu queimo. Mais adiante viu uma pedra batendo na outra, ele falou - Abença, minha vozinha. E a pedra respondeu - Deus te abençoe, meu netinho. Logo avistou uma casa e foi lá. Morava uma velhinha, ele perguntou - Por acaso não viu um passarinho passar por aqui? Ela respondeu que não e convidou ele para entrar e dormir com ela, porque já era noite. Ele aceitou. A velhinha perguntou se ele estava com fome, ele disse que sim, então ela deu dois grãos de milho e mandou ele levar para as pedras moerem. Quando ele voltou estava com bastante fubá, ela fez o angu, ele jantou e foi dormir. De manhã cedo ele levantou e falou que ia procurar o passarinho. A velhinha deu uma varinha e mandou ele bater no chão que o seu passarinho ia aparecer. Ele bateu a varinha no chão e o galo cantou: Qui qui qui, o menino de ouro já está aqui, qui qui qui, o menino de ouro já está aqui. Cada vez que o galo cantava, caía bastante ouro no menino. Ele se despediu e agradeceu a velhinha. E foi embora para a casa dele muito rico. No outro dia, o menino ruim soube que seu colega havia ficado muito rico. Ele tinha também um passarinho, foi até a gaiola e soltou o passarinho, depois falou para sua mãe que ia buscar o passarinho e foi. Chegou na estrada e encontrou a laranjeira carregadinha de laranja, e a laranja pediu: me apanhe, me apanhe que eu estou madurinha, se não eu apodreço. O menino respondeu: Eu não apanho, que não sou pajem de ninguém. Não apanhou e foi embora. Mais adiante encontrou o forno cheio de pães que falaram para o menino: Me tire, me tire que eu estou bem torradinho, se não eu queimo. O menino respondeu: Não tiro nada, que não sou pajem de ninguém. Mais adiante viu uma pedra batendo na outra, ele deu risada e disse: Nunca vi uma pedra batendo em outra. Logo avistou a casa da velhinha, chegou na porta e perguntou: Você não viu meu passarinho? A velhinha respondeu que não tinha visto e o menino falou: Viu, sim, você é que não quer falar. Ela mandou ele entrar e perguntou se ele estava com fome. Ele respondeu: Natural, que estou com fome. A velhinha deu dois grãos de milho para ele levar para as pedras moerem. Ele levou, mas foi muito bravo. As pedras moeram, mas veio só um pouquinho de fubá, ela fez o angu e ele comeu e foi dormir. No outro dia, a velhinha perguntou: Dormiu bem, meu netinho? E ele respondeu: Não dormi nada bem, a cama estava suja e cheia de pulgas. Agora, eu quero meu passarinho. Ela deu a varinha para ele e mandou ele bater no chão que seu passarinho ia aparecer. Ele bateu a varinha no chão e o galo cantou duas vezes: Qui qui qui, o menino de piche já está aqui, qui qui qui, o menino de piche já está aqui. E caiu um monte de piche em cima dele. O menino saiu correndo para a casa dele cheio de piche. Moral da estória: Precisa ser muito bom para os pais e para todo mundo para encontrar a felicidade." (Yolanda - setembro/91)
Para que as crianças menores não entendessem alguma coisa que queríamos contar falávamos na língua do P: "P eu; Pnão; P que; P ro; P que; P vo; P cê; P sai; P ba. Tudo isso sem gastar nada e nos divertíamos pra valer. Os meninos, na maioria das vezes, brincavam separados. Zé, meu irmão, ganhou do meu avô, que era marceneiro, uma dezena de espingardinhas feitas de madeira e à noite ele distribuía para todos os amigos e formavam um batalhão imitando a "Linha de Tiro". E os pais sentados na calçada, conversando sobre os fatos do dia, o que ouviram no rádio, dos negócios, se distraíam fazendo uma grande terapia e ao mesmo tempo cuidando de seus filhos que brincavam. Alguma encrenca da criançada era resolvida ali mesmo, como se fosse um júri popular. O infrator podia esperar o castigo, vinha na hora. Por isso havia mais respeito e compreensão. Na hora certa todo mundo se recolhia levando suas crianças que se sentiam seguras pelas mãos de seus pais. Quem era pai, era pai; quem era mãe, era mãe até morrer. Capisco?
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Primavera Hora de largar a "Emulsão de Scott" e tomar o remédio "Cálcio Hélio" que ia até o fim do verão. Porque íamos começar a tomar sol, e dessa maneira aproveitar o cálcio. "Criançada, olhe o calor. Já tomou água?" Esses remédios que mencionei o tempo todo, eram os remédios das crianças, anos e anos a fio. E crescemos fortes, sem precisar de toda essa remediada atual. Havia também chazinhos caseiros, como ainda temos hoje.
Nessa época minha mãe tinha uma empregada chamada Maria Corali. Uma preta muito sacudida e divertida, que gostava muito de baile. Quando se casou, o casamento saiu da minha casa. Todos a pé, os noivos na frente, Isa minha irmã e eu segurando o véu, que era bem longo. Atrás, os padrinhos e os convidados. Todos andando pelo meio da rua até a Igreja.
Uma bela manhã acordei com brindes e coisas que tais que vinham da sala de jantar. Ainda não me ligava em datas, mas era 5 de outubro de 1934. Lógico que fui dar uma espiada e verifiquei que no centro da mesa estava a melhor bandeja, de prata, com cálices e uma garrafa de vinho do porto genuíno. E lá estavam brindando: o doutor Sampaio (eterno médico da família), meu pai e minha avó paterna. Camilinho nasceu Descobri que a cada nascimento essa cena se repetiria. Era só perceber que estavam ajeitando a bandeja à noite, que a casa teria mais um inquilino. Meu irmão Camilo foi o mais badalado enquanto criança, mas acho que foi o que mais sofreu na adolescência (perdemos minha mãe nessa época). Quando Lilo nasceu (esse ficou sendo o seu apelido) éramos ricos, tínhamos até um Ford importado. Carro que era a ambulância da cidade. No interior, nesse tempo, não havia hospitais. Papai levava os doentes urgentes para São Paulo em seu carro, e às vezes ainda dava a entrada para o doente poder ficar no hospital. Era um benemérito. Bem, Lilo ganhava brinquedos caríssimos que vinham da Alemanha, todos de corda. E tira fotografia, e bate mais outra. Camilinho de todo jeito. Ele era um menino lindo, bem loirinho e muito esperto. Andou com nove meses e com chuteira de futebol. Minha irmã Luiza, toda tarde, dava-lhe banho, enfeitava-o bem e saia com ele para passear e aproveitava também para namorar. Mamãe não gostava muito que saíssemos. Antes do nascimento desse meu irmão, minha mãe contraiu uma febre que depois deixou uma seqüela numa das pernas, ficou manca para sempre. Os médicos nunca encontraram a causa, eu desconfio que tenha sido poliomielite. Ela era uma moça de 33 anos, bonita e inteligente, cheia de saúde. Depois de dar a luz foi ficar num hospital em São Paulo, mais de quatro meses fazendo um tratamento doloroso. Minha nonna Palandri foi junto com ela e mais Camilinho que era bebê e ficava no berçário do hospital. Por isso, meus irmãos e eu fomos morar na casa da minha outra avó, nonna Luvizotto.
Essa nonna, que era mãe da minha mãe, era uma mulher franzina, mas nunca conheci mulher mais forte e corajosa. Toda noite pegava seu cigarrinho de palha (que ela mesmo fazia) e ia vistoriar seu enorme pomar, sempre chamando Duque e Leão, seus dois bravos cachorros policiais. Ela teve dez filhos que foram: Thereza, minha mãe, Josefina (Tia Pineta), Arielo, Carmela, Alfredo, Armínio, Acácio, Aroldo e Hiltes, que era gêmea de um menino que morreu. D. Luiza, como a chamavam, veio da Itália para o Brasil, com cinco anos, como imigrante. Seu nome de solteira era Luiza Lovatto, descendente de ciganos Iugoslavos. Seu pai João, contavam os mais antigos, usava um brinco de argola, ouro puro, que na hierarquia cigana significava príncipe. Quando esse bisavô chegou ao Brasil, vieram em sua mudança, entre outras coisas, pratos, talheres porque lá em Trieste (Itália) eles usavam. Chegando na fazenda para onde foram escalados, recusou-se a comer no cocho como animal, da maneira que obrigavam os escravos, e pediu que sua família fosse transferida para outra fazenda, onde teriam casa e mais conforto. Essa fazenda era a da família Alves Lima, entre Maristela e Laranjal. Ali, muito tempo depois, minha nonna conheceria nonno Luvizotto, que também veio da Itália como imigrante aos catorze anos, junto com seus pais e irmãos. Chamava-se Pedro e era descendente de austríacos. Não gostava da lavoura e aprendeu o ofício de marceneiro. Mais tarde, quando casou com a minha avó, foi morar na fazenda, onde fazia móveis, telhados, instrumentos para lavoura etc. Até hoje temos uma cômoda que ele fez quando minha mãe se casou e atualmente pertence a Teresa, minha filha. Minha mãe Thereza, que nasceu e morou na fazenda, contava que foi babá das crianças dos fazendeiros que na época eram riquíssimos e ganhavam presentes importados, estudavam na Europa etc e tal. Coisas do café. E eles... pobres de marré. Na casa de meu avô Luvizotto sempre tinha muitos cachorros perdigueiros, pois ele gostava de caçar, e ainda ensinava muitas coisa a eles. À noite, quando ia tomar banho, ia até a sala com suas botinas e chamava o cachorro. Este pegava as botinas, levava para o quarto e trazia seus chinelos. Esse meu nonno Pedro lidava também com máquina de café, desmontando-a via o defeito, arrumava e montava de novo. Aprendeu isso sozinho. Todo dono de benefício de café mandava chamá-lo para arrumar sua máquina. Lembro-me de contarem que uma das vezes foi a uma fazenda arrumar uma máquina e, chegando lá, viu um dos seus cachorros, que havia sumido. Contou ao dono e chamou o cachorro pelo nome, este veio correndo. Para provar ao fazendeiro, fez o teste da botina. Não deu outra: voltou para casa com o cachorro.
Bem, como estava contando, ficamos essa temporada na casa dessa minha nonna Luvizotto. Ela ainda cuidava dos seus quatro filhos mais novos, que já eram moços. Lá aprendemos a comer, toda tarde, sopa de feijão com macarrão, polenta e lingüiça frita com uma bela salada de radiche (almeirão) fresquinho, que se colhia na horta mais bem cuidada da cidade. Lá havia também "O Pomar", com árvores frutíferas na época desconhecidas na região, como: ameixa do Japão, castanheira. Essa minha nonna Luiza era vidrada numa muda, de planta, é claro. Nessa época meu apelido já era dorme-dorme porque eu demorava muito para fazer o que me mandavam. Lembro-me que a maior parte do tempo ficava sentada num baú, decorando a tabuada que meu irmão José, instituído por outros membros da família nosso orientador de dever de casa, insistia em que eu aprendesse. Graças a ele sei tabuada até hoje. Isa, minha irmã, começou a namorar e vivia saindo com minha tia Hiltes, que era namoradeira, e quando elas demoravam para voltar, desobedecendo o horário, Dona Luiza pegava a borracha (um pedaço de borracha preta que ela usava como chicote) e se dirigia até uma esquina perto da praça, esperando-as. Que horror Essa minha nonna era obedecida pelos filhos e com muito respeito. Néia minha irmã, a caçulinha da casa, vivia sendo carregada e como ainda era pequena às vezes fazia xixi na calça, mas ela jurava que só havia "suado" na calça. Um dia ela nos deu um susto muito grande. A casa era ladeada por uma enorme varanda desde o portão de entrada. A boiada que ia para o matadouro passava pelas ruas da cidade e um boi mais afoito entrou pelo portão, deu a volta pela varanda e adentrou à cozinha, onde estava Néia sozinha. Foi um berreiro só. E para tirar o dito cujo de lá, a família inteira se mobilizou. Coitada Daí deram para ela um copo com água assustada (água com uma brasa acesa dentro), ela tomou e se acalmou. Essa casa era enorme. Tinha uma despensa bem grande e com um alçapão no assoalho que levava a gente para uma adega cheia de garrafas de vinho que era usado de acordo com a safra.
Por falar em adega, aproveito para contar a nossa festa do vinho. Meu irmão Zé, seus amigos, meus tios (irmãos de minha mãe) e minha mãe engarrafavam vinho todos os anos, vinhos tinto e branco. As cartolas chegavam. As garrafas eram lavadas e escorridas um dia antes. Levavam para a despensa da minha casa. Na cartola adaptava-se uma torneira de madeira, colocava-se a garrafa embaixo, sempre dentro de um alguidar para que o vinho que por ventura saísse da garrafa cheia não caísse no chão. Zé, meu irmão, enchia a garafa na torneirinha e passava para meu tio Aroldo que tirava o excesso e passava para meu tio Acácio que batia a rolha e passava para minha mãe colocar o lacre. Daí, os amigos do meu irmão iam colocando numa prateleira todas as garrafas deitadas de acordo como manda o figurino. O excesso o pessoal ia bebendo e depois, quanto excesso Isso era todos os anos, no mês de janeiro. Bem, depois que minha mãe melhorou e já podia andar, voltamos todos felizes para nossa casa. Para que ela se recuperasse melhor, papai levou-a para as termas de São Pedro, onde tomaria os banhos com água radioativa e faria um tratamento para o fígado com a água sulfurosa, desintoxicando-a dos fortíssimos remédios que tomara muitos meses. Antes de viajar, melhor cortar os cabelos. Duas tranças lindas que iam até a cintura. Quando o Sr. Colence (barbeiro oficial da casa, pois naquele tempo as mulheres quase não cortavam os cabelos e não havia cabeleireiros) chegou, mamãe já estava chorando há tempos, e ele, coitado, não sabia o que fazer. Afinal, cabelo cortado, vamos viajar. Essa Dona Thereza era só emoção. Deixamos mamãe em São Pedro com Néia, Pedrinho, meu primo, Tia Linda e Tio Maurício e voltamos com papai, pois era tempo de aula. Em casa ficamos com papai, Lilo e minha nonna Palandri.
Essa minha nonna, que parecia mãe da minha mãe e também nossa, foi uma mulher admirável. Não vai existir outra igual, sempre trabalhando, bem humorada, nunca ninguém a ouviu reclamar. Toda tarde, depois do almoço, ela descansava mais ou menos meia hora, depois se arrumava e ia fazer suas visitas. Quando não saía, recebia suas amigas, na maioria das vezes italianas. Fiquei muito admirada quando soube que umas amigas da minha avó eram sírias e brasileiras. Sempre achei que toda pessoa mais velha fosse italiana. Nonna Palandri nasceu em Luca (Itália), seu nome de solteira era Rosa Pieroni. Casou-se com Giusepe Palandri, meu nonno, que eu não conheci. Quando imigraram para o Brasil vieram com o seu próprio dinheiro. Meu bisavô, pai de nonno Palandri possuía na Itália uma fazenda onde criavam carneiros. Meu nonno veio primeiro. Instalou-se na Argentina, onde já morava um irmão seu. Depois, quando resolveu fixar-se no Brasil, mandou buscar nonna Palandri que já veio com Étore, seu primeiro filho. Aqui nasceram meu pai Camilo, Antonio, Pedro, Hermelinda, Carlos, José, Georgina e João que nasceu dois meses depois que meu avô morreu. Ele morreu de uma infecção por ter sentado numa faca que ele usava para cortar banha na sua venda. Não existia antibiótico. Mais tarde morreram também João, Georgina e José, todos de sarampo. Quando meu nonno chegou ao Brasil instalou-se numa região do município de Laranjal chamada Entre-Rios. Aí ele trabalhava como chefe dos dormentes (tiravam madeira para os dormentes da Estrada de Ferro Sorocabana que estava sendo aberta) e moravam no mato. Nesse lugar minha nonna viu pela primeira vez uma pessoa preta. Ela contava que para ir levar o rango (almoço) para meu nonno se vestia com sua melhor roupa (aquelas compridas de 1900), suas jóias e enfrentava o matagal. Um belo dia encontrou com um preto enorme e pensou que fosse um macaco. Pernas para que te quero; e o senhor, querendo acalmá-la, corria atrás tentando conversar. Acabou com o seu visual, voltou para casa toda rasgada e machucada.
Aí nesse lugar nasceu o meu pai. Chama-se até hoje Entre-Rios (ou Batalheira), porque fica entre os rios Tietê e Sorocaba. Quando o meu pai nasceu, a parteira morava do outro lado do rio, mês de fevereiro (14), muita chuva, o rio subiu e a parteira não veio. Foi meu nonno quem fez o parto, e para ter coragem dividiu uma garrafa de conhaque com minha nonna. Conseguiram. Depois eles mudaram para a Vila de Laranjal, porque minha nonna não queria levar outra esfrega, e também tinha medo de atravessar o rio naquelas piroguinhas. Compraram, com o dinheiro que trouxeram da Itália, uma casa no centro da Vila (onde está hoje o símbolo de Laranjal Paulista "LP", em cuja equipe idealizadora está o Dr. José Palandri Neto). Na rodoviária antiga. Naquele tempo a Estrada de Ferro Sorocabana é que passava por ali. Bem, eles abriram um misto de empório, bar e restaurante. Esse era o tempo do caixeiro-viajante, que através das estradas de ferro, visitava os lugarejos recebendo os pedidos dos comerciantes para depois enviá-los pela própria ferrovia. Meus nonnos haviam gasto boa quantia com a compra do imóvel, e precisavam manter as aparências para ter crédito. Já haviam percebido que estavam vivendo num lugar em que ter era mais do que ser. Inteligentes, esses Palandri. Fizeram as compras com o caixeiro-viajante, pagaram a parcela pedida e ainda restou um pouco.
Uma noite, quando alguns amigos jogavam no barzinho do empório provocaram meu nonno - "Acabou o dinheiro, Giuseppe?" Ele retrucou - "Rosina, vá buscar o saco de dinheiro." Minha nonna foi para o quarto e picou bastante papel, colocou num saco e por cima espalhou o resto do dinheiro. Levou para nonno que foi tirando aos punhados dizendo: - "Quer mais?" Foi a primeira estratégia de marketing da família. Todo mundo ficou sabendo que os Palandri eram ricos. Orgulhosos, esses Palandri. Carrego até hoje esse orgulho. Tenho mania de grandeza. Tive até gêmeos. Meu lema: Pense grande e será grande. Dias depois, perto da casa da minha nonna, assaltaram e mataram um italiano relojoeiro que também vendia jóias. Chamava-se Papini e até hoje existe essa indagação: - "Quem matou Papini?" Todo mundo ficou apavorado e minha nonna tirou o dinheiro do saco e escondeu-o debaixo do colchão. E assim era essa minha nonna, que levantava às quatro horas da matina para fazer pão e deitava à mezza-notte, cuidando desses filhos. Conseguiu amealhar um pequeno patrimônio, mesmo ficando viúva com 45 anos e 8 filhos. Meu pai nessa época só tinha 14 anos e começou a ir sozinho a São Paulo fazer as compras para minha nonna. Ele contava que descia na Estação Sorocabana, atual FEPASA, percorria a Rua Santa Efigênia para ir à Rua 25 de Março, Ladeira Porto Geral, Mercado, sempre se orientando pelo relógio da Estação da Luz .(Foi assim que, mais tarde, ele me ensinou a conhecer São Paulo, quando fui para lá pelos idos de 1948. Ele me levou até a Praça da Sé, de onde todos os ônibus saíam para os bairros, mostrou-me a Caixa Econômica Federal e a Catedral. Explicou como devia tomar a minha condução. E me virei). Bem, quando meu nonno morreu, veio morar com minha nonna esse meu tio Santim que era escultor. Ele já havia estado no Brasil muitos anos antes e morou no Sul (Santa Catarina) fazendo pontes e lidando com mármore. Voltou para a Itália e regressou ao Brasil para morar com nonna. Nessa época ele ajudou a fazer a casa que nós morávamos. A face oeste dessa casa era inteirinha feita de pedra trabalhada e no alto da parede tinha talhada uma cunha e um martelo, símbolo do escultor. A família dessa minha nonna (que era Pieroni) era de escultores e iam às montanhas de Massa-Carrara (Itália) buscar o mármore para trabalhar. Esse meu tio-avô fez, de uma área interna dessa casa em Laranjal, um páteo com o piso inteiro de pedra, e colocou duas mesas redondas de granito, onde a gente tomava o sorvete que meu pai fazia todos os domingos à tarde e era servido em taças de cristal em formato de folha de uva.
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Acordei assustada naquela manhã que vi meu pai parar o pêndulo do relógio. Tio Santim morreu. Que significado isso teria? Muitos anos mais tarde descobri que o tempo também pára quando um ente querido se vai. O relógio só voltou a funcionar depois do enterro. Mamãe fez uns vestidinhos em xadrez preto e branco e nós pusemos luto. Eu ainda não tinha 8 anos.
Todos os anos o Natal e o Fim de Ano eram comemorados em minha casa. A gente sabia que o Natal estava chegando porque papai tirava do carro sacos com amêndoa, noz, avelã, caixas com frutas cristalizadas figo, uva passa, tâmara, cereja... Hum panetone. Era Natal. Missa do Galo. Papai Noel. Época de desmanchar as massas, capelete, sonho, crôstoli. Que fartura A casa ficava sempre cheia. Todos os filhos da minha nonna. Eles iam para lá ceiar e no dia seguinte almoçar. Reuníamo-nos naquela área das mesas de granito onde já havia uma grande parreira de uva cobrindo toda a extensão e cheia de cachos de uva madurinhos. Essa parreira foi plantada por minha mãe, que herdou da sua (dela) a alegria de mexer na terra e ver produzir. E os vizinhos? "Leve este para Dona Rosa". "Na casa de D. Leonor tem 6 pessoas". "Veja, este é para D. Etelvina". E assim todos recebiam seus pratos com uva madurinha, com o desejo de um Natal e um Ano Bom felizes. Os mais velhos, até hoje, devem se lembrar disso. No último dia do ano trabalhávamos o dia todo fazendo sonhos para que minha avó, de madrugada, entregasse às crianças que batiam na porta desejando bom ano. Na noite de 31 a mesa, regada por vinho branco (de nosso engarrafamento), pão feito em casa e peixe do rio, o Dourado, frito em postas bem grandes, animava os parentes e amigos que ficavam conversando, enquanto a moçada dançava no "Clube Cristóforo Colombo" (dos italianos) que ficava na mesma rua, naquele tempo Rua Siqueira Campos.O clube "Societá Italiana Cristóforo Colombo", que os italianos construíram porque não podiam freqüentar o clube dos brasileiros, teve que mudar de nome por ocasião da guerra. Para não ser confiscado, passou a ser Clube Recreativo Comercial. Nesse clube conheci a primeira orquestra da minha vida, chamava-se "Orquestra Aurora", seus elementos todos de Laranjal. Naquele tempo as valsas ainda imperavam, mas no carnaval tocava-se muita marcha e samba, com todos fazendo blocos de acordo com as músicas do ano. Todo mundo entrava nos bailes, até crianças. Depois, não sei porque, o clube dos brasileiros acabou e todo mundo foi ser sócio do nosso. Além dos bailes, esse clube tinha um rinque de patinação. Os patins eram alugados por hora e todo mundo podia patinar e levar tombo a vontade. No inverno faziam competição que terminava sempre com os campeões disputando um porco ensebado. Quem pegasse, levava.
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Lembro-me bem do primeiro janeiro que papai nos levou para a praia, lá pelos idos de 1935. Estávamos lendo jornal e revistas na sala de visitas. Em casa chegava diariamente "O Correio Paulistano", "A Folha da Manhã" e o "Fanfula"(jornal italiano). Assinava-se também "Ave Maria", uma revista religiosa, que trazia em suas últimas páginas capítulos de novelas que era arquivadas. Esses capítulos eram lidos por uma amiga da minha mãe, D. Rosa Baffa, que era especialmente convidada para tomar sorvete todos os domingos e ler com grande ênfase para toda família. Bem, agora vamos à praia. Estávamos lendo e vimos num dos jornais fotografias de pessoas numa praia. Mostrei para papai e disse que gostaria de tomar banho de mar. Papai fechou o jornal e disse: -"Depois de amanhã iremos para Santos". Mamãe logo replicou, dizendo que não podia ir com criança pequena (Lilo meu irmão), mas papai foi irredutível e nos levou. No dia marcado entramos na "Fiotinha", um Fiat que papai havia comprado, e fomos para São Paulo: papai, Zé, Isa, Néia, eu e uma amiga minha, Gessy Ghiraldi, que ia para casa de sua irmã. Em São Paulo, Hotel Piratininga, onde sempre nos hospedávamos, e, à noite, casa de Dona Mary e Dr. José Palandri (primo de papai) para combinar nossas compras para o dia seguinte. Depois do almoço já colocamos nossos maiôs para não perder tempo quando chegássemos a Santos. Só que, durante a viagem, em plena Serra do Mar, aquela vontade de fazer xixi, tivemos que tirar o maiô em plena estrada. Sou caipira, Pirapora, Nossa ... Ficamos hospedados no Hotel Bongiovani. Um pessoal italiano ótimo. Durante o dia papai ia a São Paulo fazer seus negócios e Zé, meu irmão, que tinha uns 15 anos, ficava cuidando de nós. Isa, com 12 anos, eu com 8 e Néia com quase 6. Zé, sempre mandão, devia ficar nervoso com tanta responsabilidade e quando viu Isa com aquele maiô aberto debaixo dos braços, recortou uns pedaços de meia de mulher e costurou-os tapando as aberturas, e Isa aceitou ir assim para a praia. Eu, porque andava ligeiramente devagar, era empurrada e socada para chegar lá. No mar Néia, para agüentar o tranco da onda um pouco mais no fundo, era amarrada pela cintura com uma cinta de homem e tinha que nadar na marra. Levantávamos mais ou menos às seis horas e já começava o delicioso passeio. Depois de nadar duas horas, Néia começava a tiritar de frio, e eu já estava roxa. Éramos colocadas num banco de pedra que havia por lá e todas as toalhas por cima de Néia para esquentá-la. Isa e Zé alugavam uma bicicleta dupla e sumiam pela praia. A dorme-dorme (que era eu) nunca via eles passarem e alí ficávamos até umas nove horas catando conchinhas, estrelas do mar e vendo a onda ir e vir, ir e vir. Mas, assim mesmo, não víamos a hora de voltar à tarde para o banho de mar. Ficamos maravilhados com a natureza. Todas as tardes saíamos para comprar livros, revistas e doces. Zé arrumou uma namorada que era protestante e um dia me pediu para ir buscar um livro que ia emprestar para Irene (a namorada). Eu fui, mas esqueci de voltar com o livro, ele quase me matou. A dorme-dorme ficou vendo um empregado cuidar de um enorme viveiro de rãs que havia no hotel. Papai passava os sábados e domingos conosco. Nos levou para conhecer o Monte Serrat, onde visitamos a Igreja de Nossa Senhora. A gente tomou o bondinho e chegou lá em cima, meio assustado com a subida do morro. Fomos conhecer a Praia Grande e papai ficou certo de comprar dois terrenos por lá. Vimos pela primeira vez enormes caranguejos. À noite, ainda íamos ao cinema. Que fôlego Um dia , na hora do almoço, serviram para nós uma carne diferente e depois que comemos e gostamos muito papai nos disse: - "Vocês acabaram de comer carne de rã." Mas, quando chegamos em casa e contamos tudo, tudinho, mamãe ficou apavorada. Nada de terreno na praia.
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Todos os anos, em São Paulo, havia uma feira internacional. Papai aproveitava para adquirir produtos estrangeiros bem mais em conta. Lá ele comprava vinho Lambrusco, Quiante, queijos, azeitonas, cerejas etc etc... Um sábado ele nos disse: -"Hoje, todo mundo dormindo cedo. Amanhã vamos visitar a feira em São Paulo". Imagine se dormimos. Às quatro da matina levantamos e saímos: papai, tio Aroldo, Zé, Isa, Néia, Stela (minha prima) e eu. A viagem de carro era feita até Itu entrando, depois, pela estrada que margeava o rio Tietê, passava pela gruta e ia até Cabreúva, daí para São Paulo. Foi nessa viagem que Stela, depois de vomitar, perdeu sua combinação que tio Aroldo segurava entre os dedos, fora carro, para secar, depois de lavada no rio Tietê. Foi gozado. Por falar em Itu, lembro-me do Bar do Alemão (existe até hoje) de onde papai trazia doces: papo de anjo, bombas, mentirinhas. Que saudade De vez em quando ele colocava toda a família no carro e passávamos a tarde no alemão, tomando sorvete, comendo doces e eles tomando chopp.
Quando nos reuníamos, todas as netas da minha avó e mais nossas amigas, sempre na nossa casa, brincávamos de hotel, venda (empório), escola, cirquinho. O circo era o que dava mais trabalho. Depois de muitos dias de ensaio da peça e do ato variado dividíamos a turma. Néia, minha irmã, era sempre da turma que vendia ingresso, que valia 5 ou 6 palitos de fósforos cada entrada. Gessy, minha amiga, eu e o resto da nossa turma, arrumávamos o palco que tinha como cortina os lençóis da minha mãe. Fizemos até uma peça sobre uma mãe que morria no final, era muito triste, lembro só que terminava com todos os atores falando "O assassino de Clarisse" e baixava o pano. Esse era o nome da peça. Uma vez íamos fazer um espetáculo, depois de tudo pronto, entradas vendidas, houve uma briga entre os componentes do grupo. Devolvemos todos os palitos. Que trabalheira Em Laranjal, Zé e seus amigos também faziam cirquinho. Ele tinha um amigo chamado Arnaldo Alves Lima que, uma vez, queria colocar um leão para domar no circo. Prendeu um gato 6 dias numa gaiola e na hora do espetáculo, quando o soltou, o gato saiu desesperado, arranhando o pessoal da platéia. Tiveram que tomar injeção anti-rábica. Isso tudo porque imitávamos o grupo de teatro que era sucesso na cidade. Mas eu me lembro bem mesmo de um outro grupo dirigido pelo Sr. Vilaça, que era coletor federal da cidade, e encenava peças de muitos autores, inclusive de um dramaturgo laranjalense, Remo Bataglini. Eu ia assistir aos ensaios. Nesse grupo trabalhavam, entre outros atores, Arnaldo Alves Lima (aquele do gato) que sempre contracenava com a minha tia Hiltes Luvizotto, Isa, minha irmã, Zé, meu irmão. O espetáculo consistia sempre de 2 partes. A peça, que geralmente era "aquele" drama, e o ato variado onde se apresentava música, dança, piadas, etc. Esse dinheiro arrecadado era destinado para os fundos da Igreja. O povo fez uma bela igreja.
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Na minha casa a hora da refeição era sagrada e tínhamos que comer o que era servido, sob o lema: "Ô manja questra minestra, ô salta questra finestra". 7h.- café da manhã; 12 h. -almoço; 15 h - lanche; 18 h - jantar ; e a noite 21 h - chá com torradas. Papai regulava o horário comparecendo religiosamente, sentando-se em seu lugar (só não vinha para o lanche). Mas nós começamos a crescer e o horário do jantar começou a dar problemas. Isa havia saído passear com Camilinho; Néia, ninguém sabia onde estava; e Zé? Esse chegava sempre atrasado porque toda tarde ia ao "Quatro Pau", um ribeirão, onde agora é o "Canta Sapo", com seus amigos, com cordas, facas talhadas em madeira e lá ficavam imitando Tarzan, cujos livros eram os mais badalados dos rapazes. Última moda. E eu? Estava na casa de Gessy jogando Ludo, aquele joguinho de dados. Mamãe ficava brava, paciência.
Vinte e dois de fevereiro de 1938. Lá estava a bandeja de prata. A casa recebeu mais um inquilino e continuava com 3 quartos. Nasceu Maria Thereza: Tata. Convidados para padrinhos: Dr. José Palandri e D. Mary, sua esposa. No dia do batizado a madrinha trouxe o vestido, o toucado e a manta feitos de cetim adamascado. Lá foi a nova inquilina tornar-se cristã. Essa minha irmã sempre foi muito meiga e vivia na barra da saia de mamãe. O nascimento, em casa, era uma grande alegria. Depois que o nenê nascia (parto normal) mamãe tinha que ficar deitada durante dias, e por isso nonna trazia as refeições para ela. Logo de manhã uma tigela bem grande de café com leite e biscoitos de trigo bem redondos. Ao meio dia um belo brodo com aqueles pedaços de galinha e, durante dia todo, dá-lhe caldo de canjica para o leite descer e aumentar. E nós? Ajudávamos mamãe fazer a dieta. Era uma galinha por dia, 40 dias de dieta, 40 galinhas. Na hora do banho, que era sempre às 8h da noite, todo mundo colaborava: bacia, água, toalha, talco, roupinha de baixo, faixa do umbigo, fralda, cueiro e por último a faixa da múmia, assim chamada porque enfaixava a criança inteira, até os braços, ficando só a cabeça de fora. A infeliz ficava com jeito de múmia. E todo mundo ajudando, coitada da minha nonna. Mas, para nós, essa hora era muito importante e ela deixava a gente participar. Depois, mamãe pegava o nenê e amamentava. De três em três horas o bebê era alimentado. Só quem amamentou seu filho sabe desse dever, obrigação e alegria que a gente sente quando amamenta. Em nossa casa isso foi sempre tão natural que nós todas, inclusive minhas filhas, quando tivemos nossos filhos, assim fizemos. Menos a faixa da múmia. Hoje saiu de moda. A pergunta é: Parto normal? Está amamentando? No caso afirmativo, o pessoal estranha. Que mundo O normal é anormal.
Nessa época, Zé meu irmão saía de casa para ir estudar em São Paulo. Meu tio Acácio, irmão de minha mãe e Djalma Sampaio, filho do nosso médico, também foram. Moravam numa pensão na R. Itambé, perto do Mackenzie. Eles saíram do ginásio em Laranjal para fazer o científico. Zé e Djalma queriam ser médicos, papai comprava os livros e eles estudavam juntos. Tio Acácio ia fazer Educação Física. De 15 em 15 dias papai trazia-os para Laranjal no seu belo Pontiac importado. Que vidão. Os meus irmãos, a partir de Lilo, quando começaram a crescer, já não tiveram tanta mordomia como os primeiros quatro filhos. Uma vez, resolvi fazer uma festa de aniversário para Maria Thereza, que havia entrado na 1ª série. Ela convidou as coleguinhas e mamãe, apavorada, veio reclamar comigo. Então, como lá em casa sempre tinha muito pão, fiz uma porção de pudim de pão: pudim em forminhas enfeitado com passas; pudim simples; pudim com goiabada; pudim à vontade. Mamãe fez uma boa porção de chá mate e começamos a servir. Em um dado momento chega Maria Thereza, muito assustada, com uma amiguinha que diz: "Se for chá de hortelã eu não tomo, eu não gosto". Que aniversário
Depois que Maria Thereza nasceu, Lilo passou a ser olhado por mim e Isa cuidava de Tata. Coitado de Lilo. Sempre gostei mais de ficar ajudando minha avó na cozinha do que olhar criança. Não tinha paciência e não gostava de sair passear com elas. Isa e Néia, muito mais pacientes e rueiras, adoravam esse serviço. Nem gosto de me lembrar do primeiro susto que levei com uma criança. Que horror Eu estava tomando conta de Lilo e fui com ele para casa de Gessy jogar Ludo. Lá pelas tantas alguém chegou correndo, gritando e me levou para casa de D. Rosa Diccini, uma vizinha, que já foi falando, acendendo uma vela: "Vamos rezar pela alma de Camilinho que foi atropelado pela carroça de Zé Butuca". Desmaiei
Como disse, eu tinha mania de ficar ajudando minha avó, que sempre foi a cozinheira da casa, mesmo que tivesse empregada. Ela era aquela que decorou a Lei de Lavoisier: "Na natureza nada se perde tudo se transforma". Era a economista da casa. Marcava tudo atrás da porta com um pedaço de carvão: "Começo do saco de fijon dia tal; Começo da caixa de sabon dia tal ". Nesse tempo todo mundo comprava nas vendas (empório, atual supermercado) e padarias com caderneta. Todo começo de mês começava marcar as compras e no último dia pagava- se a conta e recebia outra caderneta em branco para o mês seguinte. O bom freguês sempre ganhava um brinde. Na padaria, bolachas; no empório, uma dúzia de copos,vasos, etc. Não havia inflação e o comerciante ainda agradava a freguesia, nada de juros, nada de correção monetária. Tempo bom. Ainda pequena, eu já tinha fama de fazer bolinhos e quando brincávamos era sempre a dona do hotel, tomava conta da cozinha. Já estava ficando com fama de cozinheira, tanto é que meu pai, quando trazia alguma novidade de alimentação, já me chamava: "Anésia, veja o que eu trouxe para você". Foi até engraçado o dia que nós dois fizemos uma receita de gelatina Otker que havia saído no mercado. Ele lendo e eu fazendo. Quando eu era solicitada para servir Whisky: "Uma pedra de gelo ou duas"? perguntava. Papai era um político hábil. Conseguiu muita coisa para Laranjal, inclusive um aeroporto naquele tempo, idos de 30. Com o Sr. Gomes, um fazendeiro, arrumou uma extensão grande de terra e fez um aeroporto com hangar para dois aviões. Ficava nos altos do espigão da Fazenda Estrela. Uma bela fazenda que existe até hoje. Todos os domingos um piloto alemão chamado Hoover, (não sei como se escreve), chegava de avião nesse campo e depois ia almoçar em casa. À tarde ele levava as pessoas darem uma volta. Um domingo, meu pai insistiu para que eu fosse, mas eu morria de medo. Imagine a decepção dele, pois colocou esse nome em mim por causa da grande aviadora brasileira Anésia Pinheiro Machado. Eu não fui, mas Dionéa aproveitou e se regalou de voar. Néia era muito mais esperta e atirada, eu era tímida e devagar. De vez em quando Néia encrencava lá em casa e fugia. Levava uma troxinha de roupa e onde parava, ficava. Dizia que ia morar na casa de D. Celestina, na casa de D. Etelvina etc. Um dia ninguém encontrava Néia,ela saiu de casa, começou a entardecer, e nada. Todo mundo saiu à sua procura e foram achá-la na Fazendinha. Para chegar lá ela havia passado a linha de trem e caminhado numa trilha estreita de terra, uns 15 minutos. Lá morava um irmão de meu avô Pedro Luvizotto, Tio Antoninho. Nesse dia ela apanhou de varinha de marmelo.
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Preciso agora falar um pouco sobre minha mãe. Sempre que me refiro a ela acrescento que era só emoção. Já conheci muita gente até esses anos que vivi (tenho nesse instante 63 anos, 5 meses e 19 dias) e não conheci jamais uma pessoa com mais sensibilidade que minha mãe. O olhar de uma criança sofrendo a fazia chorar. Quando ouvia histórias ou lia algo triste já ficava abalada. Cada vez que ia assistir a um filme mais dramático, era aquela cólica de fígado. Fomos assistir a vida de Maria Antonieta, mamãe não pôde ficar até o fim. Uma das vezes que ela foi a São Paulo - como gostava de cinema, papai a levava sempre - veio impressionadíssima com "O Máscara de Ferro". E quando seqüestraram o filho de Lindenberg nos Estados Unidos Meu Deus Se ela vivesse hoje, com todos esses perigos, assaltos, seqüestros, já teria morrido. E assim em tudo. Doença de criança então, era um verdadeiro martírio. Acredite, ela ficava tão nervosa que chegava a ficar brava com a gente por causa de uma febre. "Não falei, por que não colocou o agasalho? Onde está a meia? O tempo e
tá úmido". Etc. e tal. Daí o porquê de todas nós termos a mania de dar conselhos inúteis. Acho que a filha que mais a preocupou foi Tata, a 6ª inquilina. Essa menina tinha uma bronquite que levou anos para curar. Esse acesso de falta de ar geralmente aparece de madrugada. Lembro-me que em casa existia um prato de alumínio que ficou sendo chamado "o prato da bronquite". Quando mamãe o pegava já sabíamos - Lá vem bronquite.
Ela colocava dentro dele umas ervas (que deviam ser folhas de eucalipto) e um produto farmacêutico junto com brasas. Quando começava fumegar era colocado debaixo do lençol onde Maria Thereza já estava. Sempre uma de nós ficava ali dentro junto com mamãe para ajudar. Demorou algum tempo, mas a receita veio de uma amiga tatuiense, que era a mulher do gerente do cinema. D. Júlia fez um xarope de agrião, guaco e mel, acabou a bronquite.
O cheiro de eucalipto e os xaropes de ervas, fizeram com que minha irmã, que também herdou a alegria de plantar para ver produzir, tenha uma grande horta e entenda de tudo quanto é erva para chás para curar torcicolo, pé de atleta, dor no fígado e até papo furado.
Sempre vi minha mãe trabalhando: serviço de casa, costurando, bordando, fazendo tricô, nhanduti, crochê e até frivoletê. Aprendemos tudo com ela, que dizia: "O saber não ocupa lugar". E quanto tapa na mão por causa do frivoletê (uma renda) que teimava em não sair certo. "Ninguém vai perguntar quanto tempo você levou para fazer e sim quem fez.".A gente tinha que aprender a fazer certinho e na marra. Serviço de casa então, depois que começou a guerra, sai de baixo. Depois conto isso.
Ela se casou aos 18 anos e viveu para seu marido, seus filhos e sua casa. Casa que era da sogra, pois morávamos com minha avó, mas que meu pai dava o sustento. Lembro-me de que, à noite, todos os filhos, genros, noras e netos (com exceção da família de tio Étore) iam para lá e havia jantar para todos. Isso todas as noites. Minha avó já fazia aquele belo caldeirão de sopa, aquela quantidade de porpeta, aquele horror de torradas, para a hora do chá, porque depois do jantar o pessoal que vinha chegando e também jantava, esticava a conversa sentado na calçada até a hora do chá. Nesse tempo tínhamos uma vizinha com 4 filhos, cujo marido havia perdido o emprego e minha avó lhes passava pelo muro um bom caldeirão de sopa toda tarde. Em frente de casa morava um pessoal de cor, muito pobre, que também recebia essa dádiva. Minha mãe quase não passeava com a gente porque sempre tinha uma criança pequena e ela temia pela saúde. -"E se der dor de ouvido? - Parece que tem uma onda de sarampo. - Não vou, muita gente junta, aglomerada, pode dar meningite". Naquele tempo essas doenças matavam mesmo. Sempre protegeu seus filhos, poupando-os, e perdeu seu espaço fora de casa, porque dentro era ela quem comandava. Não falava muito -"Falar é prata, calar é ouro". Apesar de sensível, sempre soube castigar na hora certa, seu senso de justiça era grande. E para as travessuras maiores guardava atrás da porta da cozinha uma varinha de marmelo sapecada, da qual minha avó muitas vezes apanhou porque tentava nos proteger.
Como já disse anteriormente, tínhamos "aquele" jardim onde mamãe plantava copo de leite, margarida, lírio, com a intenção de levar tudo para os mortos no dia de finados. Eu nunca acreditei quando diziam que morto, coitado, não dava mais trabalho. Lá em casa dava. Na véspera do dia de finados uma turma já ia ao cemitério lavar bem o túmulo. A outra preparava os cachepôs de latão, limpando-os cuidadosamente, pois ali seriam colocados os vasos com flores. Separávamos os vasos, latas com areia, garrafões com água. No dia de finados, levantávamos às 4 da matina para colher as flores. Não, não podia ser na tarde anterior. De manhã elas estariam bem fresquinhas. Mamãe falava: -"Gente, devagar, as margaridas são delicadas. Olha, não pegue no lírio que ele preteia. - Cuidado com o copo de leite, assim você estraga". Que sufoco Depois, mamãe nos levava ao cemitério para colocar flores nos túmulos de todos os mortos da família. E à tarde, aquele coitado de Zé, meu irmão, voltava ao cemitério recolher tudo. - "Menino, rápido, que está ameaçando um temporal". Nos meses de janeiro e fevereiro ajudávamos mamãe a fazer curau e goiabada. Ali ,cada um no seu setor tinha que dar conta do recado. Curau era muito fácil, pamonha mais ou menos, mas a goiabada dava um trabalho. Depois, ainda, levávamos um prato para cada vizinho. - "Este é para fulano, este para sicrano, as crianças não podem passar vontade e já sentiram o cheiro do doce".
Nesse tempo meu pai tinha uma sólida indústria que se chamava "Luvizotto-Palandri Café-Algodão e Madeira". Ela ficava num terreno enorme que nós herdamos depois. Essa indústria estava sempre crescendo. Num enorme galpão era despejado o algodão em caroço que vinha dasf azendas e sítios do nosso município e dos municípios vizinhos. Em fins de março começava a colheita do algodão que se estendia até fins de maio, começo de junho. Lembro-me que esse algodão vinha em carroças que davam a volta no largo da matriz. Era um grande movimento. Os negociantes se regalavam de vender seus produtos para os sitiantes endinheirados. Em fins de junho começava a safra do café. Era outro grande movimento. E ainda tinha a parte da madeira que meu avô Luvizotto dirigia com dinamismo. Com ele trabalhava o Sr. João Gargano, um marceneiro de mão cheia. Todo esse produto, café, algodão e madeira era mandado para São Paulo, pronto para ser industrializado e comercializado, através da E. F. Sorocabana atual FEPASA. Nessa época, o colégio São Vicente de Paula, onde estudávamos, possuía um internato famoso na região. Papai mandava todo o algodão para confeccionar os colchões e o café para ser consumido durante o ano. Um dia ele chegou de viagem com um livro de capa vermelha e nos disse: "Aqui está o mapa da mina". Era um livro escrito em alemão, com todas as máquinas que compunham naquele tempo uma tecelagem. Na região só havia uma tecelagem, em Sorocaba : Votorantim. Falou e fez o negócio entabulado com o Banco do Brasil. As máquinas vinham da Alemanha.
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Nesse tempo eu já estava no ginásio e começava a namorar. Sempre ganhei muitos livros do meu único namorado, Hélio. Num Natal ganhei a coleção de livros da Sra. Leandro Dupré, mas ler durante o dia era impossível. Tínhamos muito o que fazer. Armei, então, uma estratégia. Logo depois do almoço, quando mamãe ia costurar e nonna remendar meias, eu pegava um livro num trecho bem interessante e começava a ler para elas. Não dava outra, elas queriam saber o resto do enredo (era como se falava da estória). Quando li "Éramos Seis", apesar da choradeira geral, mamãe quis saber o enredo até o fim.
Os rapazes nessa época, depois dos bailes, costumavam fazer serenata com os amigos. Tinham um amigo, Gerson Di Donato, que tocava clarinete, Sr. Ziquinho que era mestre no violão, e os namorados que iam pedindo as músicas. Eles chegavam tão de mansinho perto da janela que a gente até se assustava quando começava a ouvir a música. E o cantor Wilson Salto começava: "Lua , manda a tua luz prateada... ". Não podíamos abrir a janela de jeito nenhum. Depois de várias valsas eles se retiravam em silêncio.
Minha irmã Luiza também já estava saindo de casa para estudar. Formou-se no ginásio e foi fazer Normal em Tietê. Meu tio Antoninho, irmão de papai, havia se mudado para Tatuí, uma cidade próxima de Laranjal. Quando sentia saudades, ele telefonava para nossa casa e a gente ia para lá no domingo. No sábado já começava a aprontação para a viagem. "Pastacciuta", frango com farofa, doce de ameixas com suspiro. No dia seguinte, bem cedinho ,enfrentávamos a estrada de terra, socos de buracos, brigas dentro do carro, mas que alegria. Depois do almoço pegávamos um belo matinê, mas nunca assistíamos o filme até o fim. Por quê? Meu tio era corintiano, meu pai palmeirense, depois de ouvir o jogo pelo rádio saía aquela briga e papai ia nos buscar no cinema. Loucos da vida ,voltávamos para Laranjal.
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Mil novecentos e quarenta- Guerra A guerra trouxe contraempo para todos. Os espertos enriqueceram e os pobres, marré para eles. Começaram as filas para a gente adquirir óleo, pão, açúcar e farinha de trigo, precisava levar o cartão de recenseamento feito na prefeitura. De acordo com o número de pessoas da casa a gente tinha direito aos tickets. Para comprar pão levantava-se às 4 da matina e enfrentava-se uma fila enorme. Lá em casa tínhamos direito a duas bengalas de um pão horrível, feito de farinha de trigo e farinha de mandioca. Quando chegava o açúcar e o óleo distribuíam na prefeitura, onde a fila dava a volta ao mundo. Daí, lá em casa, começamos a comer polenta. De manhã com leite, ao meio-dia polenta frita, e no jantar polenta com queijo. Ainda tinha polenta condida (com molho de tomate e carne moída) e polenta com frango, do nosso galinheiro do quintal. As verduras da horta da minha mãe. E a guerra? Era na Europa. Durante a guerra muitas coisas aconteceram aos italianos em Laranjal, porque o Brasil entrou em guerra contra o Eixo Itália-Alemanha. Uma das coisas foi a troca do nome do Clube Cristóforo Colombo. Uma noite, um deputado amigo de papai, Narciso Pieroni, telefonou: -"Camilo, Vão confiscar o clube daí". Papai voou para São Paulo, já com a diretoria eleita do Clube Recreativo Comercial, nome que substituiu o Cristóforo Colombo. Quando a turma de Laranjal, a do Confisco, chegou em São Paulo, nosso clube já tinha outro nome, não conseguiram. Os italianos eram chamados de quinta coluna. Papai tinha um rádio amador que precisou vender, porque mamãe vivia chorando de medo que pudessem prendê-lo. Os livros que ela achava perigosos foram doados, queimados, e assim por diante. Viviam de olho nos italianos que vieram para cá e trabalharam sempre para o progresso do Brasil.
Depois da guerra, Isa se formou em Tietê. A formatura de professora era uma festa linda. Era um acontecimento. Elegiam a formanda mais bonita do ano. Naquele ano Isa foi a escolhida e ganhou o título de Rainha das Estudantes numa festa maravilhosa. Foi o primeiro baile importante que eu fui. Dancei a noite inteira. Logo Isa começou a trabalhar como professora substituta no Grupo Escolar e nessa época conheceu Paulo, meu cunhado, que era inspetor de ginásio no Colégio onde todos nós estudávamos. Um professor nosso, Dr. Cassano foi fazer uma visita e Paulo foi com ele. Conheceu Isa e gamou. Foi mais ou menos nessa época, depois de feito o negócio na Alemanha com aquelas máquinas, empréstimo do Banco do Brasil, com a guerra afundando os navios, que aconteceu. O maquinário deve estar até hoje no fundo do Oceano Atlântico. Foi um baque. Papai não desanimou, reuniu seus amigos e parentes em nossa casa, explicou o que havia acontecido, propôs fazer uma sociedade caso eles aceitassem participar de outra compra. Nada. Saíram da nossa casa falando que papai havia falido. Que notícia, numa cidadezinha do interior. Foi o caos. A gente começou a perceber que havia diminuído o movimento de amigos em casa. Devagar seu prestígio político foi ficando abalado. Depois disso perdeu todas as eleições para prefeito, mas ele se candidatava assim mesmo. "Democracia tem que ter oposição". E perdia. Uma pena, pois era um homem de visão, nasceu pelo menos 150 anos antes do tempo. Muitos anos depois que meu pai morreu eu soube por um companheiro seu, político, que foi candidato a vereador, um fato deprimente. Alguém chegou na roda dos companheiros de meu pai e disse: -"Seu Camilo, fulano de tal está falando mal do senhor". E ele retrucou: -"Impossível, nunca fiz favor a ele". Veja que amargura, quanto desprezo deve ter recebido para chegar a responder assim. Ele, que era só coração.
Três de Outubro de 1942. Eis a bandeja de prata. Todos havíamos ido ao cinema. Ao voltarmos, em casa já estavam brindando o nascimento de Eda Maria. Nascia a 7ª inquilina. E a casa? Só 3 quartos. Fui escolhida para madrinha e por isso achava que devia olhar a menina. À noite, lá ia eu carregar Eda para mamãe dormir. Resisti duas noites. Nessa época começamos a apertar o cinto. Isa já estava noiva de Paulo, e papai já havia desfeito a sociedade com meu avô. Assumiu toda a dívida em troca do terreno e barracão, e começou a vender as máquinas de algodão e café. Meu avô Luvizotto montou a serraria no terreno, que era o pomar da minha avó, junto com seus filhos (meus tios). Os amigos de papai de São Paulo quitaram a dívida com o Banco do Brasil. Esses benditos amigos começaram a receber devagar o seu dinheiro em espécie (máquinas). Eda foi crescendo, uma menina linda e gordinha. Se ouvia a galinha cantar já corria no galinheiro tomar aquele ovo quentinho. Depois de crescida, um dia, fez uma revolução em Laranjal. Logo após uma eleição em Laranjal, Eda devia ter uns 7 ou 8 anos mais ou menos, os políticos que perderam a eleição ficaram bravos com o padre que havia apoiado outro partido, e resolveram boicotar uma festa de Santa Terezinha. Era costume nesta festa arrecadar rosas em quantidade para, depois de bentas, serem distribuídas para a população que acompanhava a procissão. Bem, naquele ano ninguém deu rosas e Eda teve uma brilhante idéia. "Matou" minha nonna Luvizotto, aquela que gostava de plantas e vivia dando muda de flores para a cidade inteira. Eda e sua amiga Má (Barbieri), saíram pelas ruas de Laranjal; enquanto ela batia palmas nas portas das casas, Má a beliscava para ela chorar. Daí, contavam da morte de nonna e pediam rosas. Nunca a Santa ganhou tanta rosa. Assustados, os parentes todos começaram a ir à casa da minha nonna, que, muito disposta, estava molhando sua horta. Ao vê-la, todos passavam pela frente da casa e cumprimentavam meu avô, que estava sentado na varanda. Meu nonno, espantadíssimo com aquela romaria de parentes e amigos, quis saber a razão. Não deu outra. Na mesma noite mamãe e a mãe de Má, sua amiga D. Etelvina, foram com as meninas pedir desculpas a minha avó. E o padre? Achou que foi uma inspiração divina. Na semana que Eda nasceu, Lilo apareceu com uma coceira nos pés, nas pernas, coisa de doido. Ele e uns amigos haviam brincado vários dias em um monte de palha de arroz. Pegaram mil bichos de pé. Que trabalho para tirar. Tiveram que tomar anti-tetânica.
Logo me formei no ginásio. Isa se casou em 1944 e foi morar em Piracicaba. Eu fazia o científico em Tatuí, morava na casa de Tio Antoninho. Queria ser engenheira química. Doce ilusão. Voltei para Laranjal no ano seguinte cursar o Normal. Começou a cair o nosso padrão de vida. Aprendi a costurar e Néia, Tata e Eda implantaram em Laranjal os vestidos de vários padrões feitos por mim, com roupas que ganhávamos, mamãe desmanchava, lavava, passava o tecido, eu inventava o modelo e as coitadas usavam as roupas com muitos detalhes. Assim mesmo, continuamos estudando no Colégio pago. Disso nunca se abriu mão.
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Novamente a bandeja de prata. 15 de agosto de 1945. Novamente os brindes e o Vinho do Porto. Nasceu nossa primeira sobrinha, Maria Helena. Ela nasceu em casa com o mesmo médico, Dr. Sampaio. Naquele tempo meu irmão José fazia medicina no Rio de Janeiro, para onde papai conseguiu transferi-lo. Era então o orientador das novas mamães. E mais tarde, o melhor pediatra da nossa região. Chupeta? Nem pensar. Dar de mamar à noite? Necas de pitibiribas. Pegar a criança do berço? Só para amamentar. Isa, coitada, seguia religiosamente todas as instruções. Ela ficou em casa uns meses. Que meses Minha nonna Rosa não se conformava. Logo que a menina começava a chorar, de madrugada, ela ia bater na porta do quarto para Isa abrir (e a menina chorando), para Isa carregar a criança (e a menina chorando), para dar de mamar (e a menina chorando). E Isa continuava irredutível, com a porta fechada. Só sei que eu dormia com elas, porque Paulo trabalhava em São Paulo e vinha só nos fins de semana. De manhã eu ia atordoada para a escola. Quando foi a época de batizar Maria Helena deu-se um fato inédito com o Sr. Vigário, padre André Pieroni, e Néia minha irmã. Naquela época, todo mundo ia conversar com o padre para marcar o batizado. Isa pensou em fazê-lo no dia 7 de setembro, às 3h da tarde. Mandou que Néia fosse ver com o padre se isso era possível. Ao chegar na casa paroquial, Néia foi logo batendo palmas e falando ao vigário -"Vim avisar o senhor que o batizado da minha sobrinha, Maria Helena, vai ser no dia 7 de setembro, às 3h da tarde". E foi. O mundo mudou muito, e a nossa religião não acompanhou e complica cada vez mais com exigências desnecessárias a realização de cerimônias como batismo, casamento, mesmo conhecendo as famílias de sua paróquia. Não existe mais aquela compreensão dos padres antigos que conheciam o seu rebanho.
Meses depois Paulo foi convidado para ir trabalhar na França e Isa ficou com a gente até Paulo mandar buscá-la. Minha mãe, cada vez mais triste e fechada, vivia cuidando da sua horta e de seu pomar que eram a "salvação da lavoura", de onde tirávamos nosso sustento. Comecei a fazer tricô para ganhar e com isso pagava o colégio. Papai, vendendo tudo para saldar as dívidas e o estudo de Zé no Rio. Os amigos da cidade foram se afastando cada vez mais. Até os parentes diminuíram suas visitas. A sopa já era feita em caldeirão menor. Continuávamos sempre com a cabeça erguida, em casa pegávamos o rojão pelo rabo, junto com mamãe e nonna fazíamos tudo. Até que um dia aquele terreno, que era o paraíso para minha mãe, foi leiloado. Daí, minha nonna não precisou mais seguir a lei de Lavoisier, porque ela fazia comida do nada. Um verdadeiro milagre. Em casa produzíamos banha feita de toucinho de porco, sabão feito de sebo do boi e soda, tendo como combustível o pó de serra (serragem de madeira), num fogão genial feito de tambor de gasolina. Também se fazia o sabão de cinza e com o líquido da cinza era feita a "adequada" com a qual lavávamos o piso da casa, que era de tábuas de madeira. O assoalho ficava limpinho Depois mamãe fazia uma massinha com a seguinte receita: 1 pacotinho de ácido bórico; 1 cebola ralada; ½ xícara (chá)de açúcar; ½ xícara (chá) de farinha de mandioca crua e depois de bem amassados todos os ingredientes colocava em tampinhas de guaraná e distribuía pela casa embaixo dos móveis, pia da cozinha etc. Isso matava todas as baratas que por acaso quisessem morar lá. "Cuidado com as crianças. Veneno mortal". Essa receita durava 4 meses. Depois era renovada.
Minha nonna sempre teve uma alegria interior muito grande, enquanto mamãe se fechava com sua tristeza. Quantas vezes, antes de sair à tarde, como era seu costume, ela se arrumava e inesperadamente aparecia na sala com seu vestido de seda, sapatos de salto, bolsa e chapéu que ela usava quando ia para São Paulo. Era só risada. Mamãe se divertia com essas loucuras da sogra. Sobre essa D. Rosa tenho uma história contada por Néia ocorrida lá pelos idos de 1970. Minha irmã foi morar num pensionato em São Paulo, onde lecionava. As pensionistas mais antigas souberam que Néia era de Laranjal e conversa vai, conversa vem, uma das senhoras perguntou a ela se ela conhecia a família Palandri. E Néia confirmou. Essa senhora contou que havia morado em Laranjal quando seu marido foi trabalhar na antiga Estrada de Ferro Sorocabana. Lá chegando com as crianças pequenas, alugou uma casa perto da casa de minha nonna. Por causa da remoção de seu marido de uma cidade para outra, os vencimentos dele iriam demorar de 2 a 3 meses para chegar. Minha nonna, então, levou-a para a padaria, açougue, empório e em todos esses lugares disse: -"Pode fornecer o que ela precisar". Essa senhora lembrava com carinho dessa família, que é a nossa. Por isso e por muito mais apoio que ela recebeu. Então Néia falou: -"Essa D. Rosa é minha avó".
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Em 1946 terminei o curso Normal e comecei a substituir no Grupo Escolar Quinzinho do Amaral. Fui designada na classe de D. Ida Groman, que era um amor. Lá consegui fazer muitas encomendas de tricô para aumentar a nossa renda. Em Laranjal havia muitas substitutas e era difícil correr a escala até chegar a vez da gente. Lembro-me como se fosse hoje que peguei uma substituição de três dias. Começaria no dia seguinte. Cheguei em casa toda feliz e recebi a notícia que meu primo Osmar, único filho homem de meu tio Étore, havia falecido. Que tristeza Passei a noite no velório. No dia seguinte fui dar aula, diante dos olhares admirados dos outros professores, que tinham certeza que eu não iria lecionar. Não podia perder esse bendito dinheiro. Nesse ano de 1947 ainda lecionei na Capela de São Sebastião uns 4 meses. Foi nessa época que uma vizinha, D. Leonor Pasquotto, contou-me que mamãe estava esperando bebê. Pedi a ela que cortasse os vários tamanhos de camisa para bebê e confeccionei-as, bordando bem bonitinho. No Natal dei para mamãe o enxoval completo. No dia 19 de janeiro de 1948, lá estava a bandeja de prata. Nasceu meu irmão Carlos, o 8º e último inquilino. Mamãe tinha 48 anos. Nessa madrugada, pela primeira vez, fiz parte das pessoas que brindavam. Papai, nonna, Dr. Sampaio e eu. Abrimos o Vinho do Porto genuíno que eu havia presenteado papai no Natal.
Do meu pai não preciso falar separadamente, porque contei sua vida nesse libreto. Ele vocês conheceram o tempo todo. Era só coração.
Em março de 1948 fui embora para São Paulo. Saí da minha casa. Agora, depois de muitos anos (1990) numa barbearia de Laranjal Paulista, um neto meu, o Thadeu, ouviu o nome de meu pai. Falavam da família Palandri, minha avó, minha mãe. Falaram: - "Se agora Camilo Palandri fosse vivo, a cidade não estaria assim". Veio à minha mente uma frase que papai vivia repetindo: - "Atrás de mim virá quem bom me fará". É, família como a nossa vai ser difícil encontrar. Dentro da nossa casa havia amizade. Sempre aquela mão aberta, estendida a todos.
Como li certa ocasião em um almanaque que as farmácias distribuíam antigamente: "A amizade é como uma gota de mercúrio; é preciso manter a mão aberta para retê-la. Se fecharmos, ela escapa".Recolher