Projeto Conte Sua História
Depoimento de Miriam Leirias
Entrevistada por Carolina Margiotte
São Paulo, 18/05/2017
Realização: Museu da Pessoa
PCSH_HV564_ Miriam Leirias
Transcrito por Liliane Custódio
Revisão: Paulo Rodrigues Ferreira
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P/1 – Bom, dona Miriam, primeiro eu gostaria que a senhora se apresentasse falando o nome da senhora, o local e a data de nascimento.
R – Eu sou Miriam Leirias, nasci em Natal, no Rio Grande do Norte, no dia 27 de outubro de 1944. Minha mãe se chamava Maria do Carmo, antes era Guedes, aí se casou, Maria do Carmo Leirias. E meu pai era Valério Pereira Leirias. Havia um combinado entre meu pai e a minha mãe de que os nomes dos filhos, ele daria o nome dos meninos, e minha mãe daria o nome das meninas. Mas ele não cumpria muito às vezes, não. Então, os nomes dos meus irmãos são: Afonso, nasceu no dia de Santo Afonso - porque ele se orientava pela folhinha, o santo do dia. Então, Afonso, Lourenço, Cesário, Cecílio, Fausto e Brasilísia foram os meus irmãos, frutos do casamento do meu pai com a minha mãe, sendo que os dois eram viúvos e tinham filhos - meu pai tinha dois filhos, uma moça e um rapaz, a moça tinha a idade da minha mãe quando ele se casou novamente. E minha mãe tinha uma filha, que era a Lurdinha, Maria de Lurdes Câmara. E os meus dois irmãos por parte de pai eram Valdomira Pereira Leirias, e o rapaz era Paulo Pereira Leirias. O meu nome, ele queria porque queria pôr o nome do santo do dia, que era São Elesbão, então meu nome, provavelmente, ia ser Elesbina. E minha mãe, eu acho que foi uma das poucas vezes que ela bateu o pé, disse: “De jeito nenhum. O nome dela vai ser Miriam!” – que era um nome que ela achava bonito. E assim eu fiquei com o nome Miriam. Eu acho que foi o primeiro momento, vamos dizer, de confronto, se é possível, vamos dizer assim, do meu pai e da minha mãe para que meu nome valesse - Miriam Leirias. Miriam, eu vim a ser professora, sou psicóloga também. E eu sempre fazia uma atividade, que era a história do nome, com os meus alunos. Não para ver quem era filho de não sei de quem, o nome era do imperador. Não. Era para se situar. Então, eu gostava de ver. E uma das alunas... Eu já sabia o significado do meu nome, mas foi se acrescentando significado. Foram se acrescentando significados. Por exemplo, uma aluna falou: “Miriam, seu nome é... Miriam é um nome bíblico” – e é claro que eu fui pesquisando e tudo – “Que é irmã de Arão e de Moisés”. E tem uma história que eu conto, que eu aprendi, que eu interpretei, que foi: a Miriam, ela via que Deus conversava com os homens, com os varões, e sonhava - era através de sonho. E ela, a Miriam, falou assim: “Mas se revele a mim, eu também sonho”. Isso foi de um afrontamento para esse Deus, que ela foi castigada. Ela ia ser morta, mas os irmãos: “Não. Não faça isso, por favor”. Estou falando do meu jeito. A pena foi menor e ela passou acho que, não sei, foram sete dias, ou quatorze dias, com lepra, fora da cidade. E eu brinco que, com a minha onipotência, eu enfrentei Deus. Eu aprendi com essa Miriam a dizer: eu também sonho. E pagar o preço que for. Então eu brinco e, às vezes, rio até dessa história. E também a Miriam, é ela que, sendo irmã de Moisés, e estando sendo perseguidas e procuradas todas as crianças naquela época, sendo também perseguidos os judeus, tal, procurando... E ela, juntamente com a mãe, cria uma história: sabendo que a princesa ia se banhar no rio lá, ela põe um bebê dentro de um cesto no rio e esse cesto vai passar perto da princesa: “Ai, olha que menino lindo. Nossa, que bonito”. Ela chega toda cândida, toda prestimosa: “Se quiser, eu conheço uma mãe de leite, que pode amamentar”. Era o irmão dela e era a mãe dela. Então, eu acho que assim... A Miriam - a Miriam bíblica - me inspirou umas coisas de sobrevivência, e de salvar também. Eu acho que tem uma coisa assim com o outro, o cuidar do outro. E tem mais ainda outra historinha, que é: Miriam, quando o povo vai atravessar o Mar Vermelho - e que, na História, se abre, todo mundo passa, tal - ela puxa as mulheres, dançando e cantando, agradecendo a Deus, o Deus em que ela acreditava. Eu acho isso também muito bonito, não só essa forma de homenagear a divindade de um jeito que pega o prazer, a beleza. Imagina, mulheres dançando e puxando aquela multidão de mulheres. Então, eu acho que tenho esse encantamento, que se contrapõe a outras coisas não tão bonitas, mas eu acho que isso me encanta. Essas histórias... Eu aproveitei essas histórias para que dessem sentido ao meu nome, à vida. O que mais?
P/1 – Eu queria saber do sobrenome da senhora, se a senhora conhece a origem do sobrenome.
R – Sim. Então... Outra coisa que me encantava era o meu sobrenome. Eu estou chamando encantamento, vamos dizer assim, mas eu acho que meu pai gostava muito desse sobrenome - Leirias - que ele punha o nome Leirias, pôs o nome nos filhos, insistiu, minha mãe também tem Leirias. E ele tem um caderninho, ele pondo o nome dele na filha da minha mãe. Maria de Lurdes Câmara, ele pôs Maria de Lurdes Leirias. Claro que isso não está registrado, nem nada. Não em Cartório, mas tem numa cadernetinha isso também. Adulta, numa busca, num negócio, um piscar que leva, Leirias é o nome de uma cidade de Portugal, só que é sem o S, Leiria. Eu estive lá, rapidamente. Mas o meu tem S. E eu, conversando com outras pessoas, elas disseram que muitas vezes é no Cartório, a letra, eles põem e eles inventam. Então, pode ter sido isso esse Leirias. Na infância. Vamos dizer, da infância. A gente viveu em Natal, a maior parte do tempo foi em Natal. E enquanto meu pai estava vivo havia uma abundância, ele ganhava bem. Meu pai foi militar, depois foi faroleiro, depois comerciante. Minha mãe cuidava da gente, trabalhava em casa, muito, para cuidar de tantos filhos. E eram filhos um após o outro. Minha mãe era muito fértil, acho que meu pai tinha um grande desejo por ela. Primeiro a diferença: ela deu viço à vida dele. Ele era um homem de cinquenta e poucos anos, cinquenta e três, por aí, e ela tinha vinte e poucos. Com a primeira mulher, ele teve dois filhos. Com a minha mãe, ele teve oito. E eu acho que isso dava um cansaço também, nela, era muito... Então, enquanto ele... Eu o peguei já numa fase como comerciante, já era a segunda aposentadoria... De cinquenta, eu nasci, ele devia estar com sessenta e poucos. Era sessenta e oito, por aí. As forças dele estavam já fraquejando, e com oito filhos para cuidar, dar conta, e cada um mais exuberante, para abafar um pouco. Então, acho que a gente deu um pouco de trabalho para ele. Eu me lembro de algumas situações. Ele era muito... Minha mãe dizia, ele era nervoso, era muito calado, ele não conversava com a gente, não tinha essa coisa de conversar. E reprimia muito. E queria ensinar tudo, tudo. Desde fazer o fogo de manhã - os meus irmãos mais velhos o ajudavam a fazer o fogo de carvão, na época já era carvão - até ensinar a tirar a mesa do café, ou do almoço. E não podia ser pegar e jogar os farelos no chão, não. Tinha que ir com um prato e fazer isso muito delicado. Eram muito detalhes. E eu me aborrecia com esse tipo de coisa, eu devia ter cinco ou seis anos. Então, era todo o trabalho de casa que a gente ajudava, e era muito assim quando ele foi embora. Ele estava ensinando tudo. Ele tinha uma pressa para ensinar tudo. E hoje eu entendo a pressa dele. Eu entendo. Imagina um homem ter setenta anos e ter filha de um ano, dois, três, quatro, cinco, seis, doze até. O mais velho tinha doze, a filha da minha mãe, Lurdinha, tinha quinze. E minha mãe, uma jovem, praticamente. Uma jovem. Então ele queria ensinar tudo, tudo. E assim... alfabetizar, era alfabetizado por ele; remédios, era ele, porque ele era homeopata. E ele era naturalista em pleno século... Início do século XX, no Nordeste, este homem não comia carne. E todos os dias ia para a feira ou para o mercado trazer legumes e verduras. Carne ele dava para a gente com parcimônia, mas a gente comia carne, ele não. E assim... remédios. Ele cuidava da gente: eram chás, era óleo amornado, era alimentação, e poucos remédios. Se era para verme, então tinha o remédio, ele dava - ele e minha mãe escolhiam uma data e davam para todos os filhos o purgante. Era tipo um hospital: ficava todo mundo doentinho, era comida especial, era ir para o banheiro. E ele cuidava. Ele ficava por conta disso, ele e minha mãe.
P/1 – Falando nos pais da senhora, para entender um pouco o porquê deles serem assim, a senhora conhece a origem, onde eles nasceram?
R – Então... a minha mãe nasceu numa praia chamada Galinhos, mas não sei como ela foi registrada no outro ponto do estado do Rio Grande do Norte, em Arês, como tendo nascido em Arês. Eu imagino, vendo isso, que deve ter sido o meu avô - era também muito velho, era viúvo e tinha cinco filhos, que viviam em cada praia daquilo lá. E deve ter sido através de carta, e que demora. Quer dizer, meu pai estava velho e, em Galinhos, não tinha Cartório. Então, escreve para um filho que mora na outra ponta, na outra cidade, que nasceu a filha dele, tanto que lá tinha um irmão de criação, de criação não, irmão de parte de pai, de mamãe também. Então, ela nasceu nesse lugar chamado Galinhos. E é chamado Galinhos porque é um tipo de peixe parecido com um galinho, vermelhinho, alegre e tudo mais. Um tio meu voltou lá a esse lugar e boa parte foi soterrada pela erosão, parte da cidade, alguns lugares, porque os ventos eram muito fortes. Então, a minha mãe tinha uma tia-avó... Minha avó, mãe de minha mãe, tinha vários irmãos, mas tinha uma que era muito solidária, mais, que se chamava tia Zefa. A tia Zefa foi um modelo para mim porque ela, diferentemente da maioria das mulheres da região, do que eu via, ela era uma mulher que teve barcos, o marido dela tinha barcos, tal, e ela teve barcos e administrava, quando ele morreu, aqueles barcos e os barqueiros, os peixeiros e tudo mais. E era uma mulher que assim... Ela não teve filhos e pediu para a minha avó: “Deixe-me criar um filho seu? Você passa tanta dificuldade para criar cinco filhos, me cede um filho”. E minha avó cedeu. Tem outra história, eu vou contar. Então essa mulher criou vários filhos de outras pessoas como filhos seus. Eu conheci uma que morava na praia e vinha trazer bolo de batata doce, um bolo divino que ela fazia, e ela vinha visitar a mãe adotiva. E eu, não sei por quê, ela... Não, ela passava lá em casa para ver a minha mãe e eu estava lá, eu comia desse bolo, que eu tento fazer em casa, não sei fazer tão bem esse bolo de batata doce. Que era Francisquinha, morava num lugar chamado Rocas - um bairro, Rocas - e nós morávamos no Alecrim. Essa mulher, os filhos todos cresceram, tal, e ela vinha e pedia à mamãe para eu acompanhá-la para viajar, para bater perna por aqueles interiores para ver os parentes. Eu amava isso. Eu amava essa coisa de sair, de viajar, de conhecer outras pessoas. E mamãe deixava. E assim eu fui, eu a acompanhei a vários lugares. Ela tinha problema nas pernas e o médico recomendou ela tomar sol, então ela ia para as praias - onde tinha praia e onde tinha parente - e ela tinha algum recurso, que não onerava, ela ajudava a nossa estadia lá, e tal. E assim era muito bom, muito bom. E também lembro-me dela quando era para arrancar dente. E sempre fui medrosa, medrosa demais. E ela vinha, ela chamava para a gente ir lá, ela dava uns... Que a gente chamava bala, sempre alguma guloseima, alguma coisa, para ela amarrar o dentezinho numa porta ou no portão. E eu corria com o portão até que, em algum momento, o portão era mais rápido do que eu, e lá ia o dente. E aí eu ganhava alguma coisa. Então, ela tinha essa coisa. E era “inventadeira” de coisa, de não se conformar, talvez, de tal destino. E pagava um preço, provavelmente. Então era muito interessante o que ela inventava. E eu a acompanhava muito.
P/1 – Como a senhora fazia essas viagens com ela?
R – Era de ônibus mesmo. Era de ônibus, a pé mesmo, porque ela não tinha carro. Geralmente era ônibus. E a pé. Tinha lugares que não tinha lugar para ir, íamos a pé. Por exemplo, tinha dunas, e a gente atravessava aquelas dunas para ir para a casa dos pais da Maria Guedes, que era uma parente distante, mas estávamos lá e éramos muito bem acolhidas. Bem acolhidas assim. E ela era de muita conversa, de muito jeito. E lembro o problema das pernas dela, que eram tortas, a gente via. Onde a minha mãe morava, a rua era muito linear, e a gente via de longe aquele balanço, aquela mulher que tinha o balanço. E lá vem tia Zefa!.
P/1 – E como foi a saída de Galinhos para Natal?
R – Eu acho que o meu avô morreu, um tio que queria estudar, que queria fazer negócios... Porque a minha avó, ela fazia tapioca para vender, para custear a vida dos filhos, quando o meu avô morreu. E os outros filhos se apropriaram de todas as coisas. E minha avó, com filhos pequenos e não... Era assim: “Se você precisar, você pede. A gente está aqui”. E ficou assim. E esse meu tio queria trabalhar em Natal. Aí vende as coisas todas, foi para Natal. Foi todo mundo, cada um... Um foi servir à Marinha, foi isso, aquilo outro, mas ele ficou, e mãe Nene ficou na mesma casa. E me lembro das flores que ela plantava, que ela chamava La France. E que mamãe, quando o meu pai, que morava nos faróis, fo... ou pediu... ele veio para Natal - e morava nas Rocas - mas quando a minha mãe ia ter filhos, vinha para a casa de minha mãe Nene, da minha avó, que era no Alecrim. Antes, minha mãe morava com ele também nas praias, nos faróis. E ela engravidava e tinha que vir, caminhar com antecedência para ter filhos em Natal. Meu pai era muito cuidadoso, era muito cuidadoso com a minha mãe. Era orgulho... Primeiro, assim - isso a gente sentia - ele tinha um orgulho da gente e acho que tinha a ver primeiro por ela ser jovem e ele, aquele homem velho que dá conta dessa família, isso era coisa de orgulho. Que ele pôr um filho no colo, e outro aqui, e sair caminhando, cantarolando, isso era muito para ele, para a gente também, muito bom isso, essa coisa. Mas era tudo muito distante também, porque não tinha conversa, não. Mamãe era quem intermediava as conversas. Exatamente por isso, porque a pressa que ele queria ensinar tudo, tudo. A alfabetizar, a fazer o fogo, a se comportar, a falar direito, tudo enfim.
P/1 – E a história do seu pai?
R – Então... Aí eu era meio, quer dizer, insubordinada. Ninguém podia ser insubordinada. Ninguém. Ninguém. Mas, internamente, acho que eu sentia... o meu irmão mais velho sentia, tanto que, quando meu pai morreu, ele parou de estudar. Quer dizer, ele disse: “Ah, mas eu só queria brincar”. Aí outra parente falou... E ele brinca até hoje, porque é o bon vivant sem ser, sem ter condições. Mas eu não gostava, eu acho que... Teve um dia em que eu pensei: “Por que esse homem não morre?”. Eu acho que isso repercutiu em mim depois. Se eu falei ou não... Mas eu me lembro de minha mãe me dar uma bronca, e ele perguntar: “O que foi?” Ela falou: “Nada, não”. Mas eu devo ter falado alguma coisa nesse nível, nesse teor. Porque era muito difícil mesmo. Difícil. Tanto que a gente estava brincando de manhã cedo, quer acordar cedo e ele... Teve um momento em que ele tinha uma mercearia e, por medo de roubar, coisa assim - porque se roubava muito nessa época - ele dormia lá alguns dias e vinha logo cedo. A gente, brincando de gato, de puxar, aquelas coisas todas, aí escutava o barulhinho do chinelo dele, a gente corria, levantava rápido para fazer todas as coisas assim. E mamãe, tentando mediar, falava: “O meu velho é muito importuno”. Era essa a palavra, era “importuno”. Hoje eu entendo, de uns anos para cá eu entendo o que é ter uma família e com essa preocupação de educar, de deixá-los bem, e com segredos. Eu vim a entender que meu pai tinha segredos. Sabe aquelas coisas assim... Parece que... Sabe aquela coisa de jogar migalhinhas de pão, aqui, ali, aqui, acolá? Às vezes o passarinho pega e come, outros não, e aí para você ver o caminho, qual o caminho. Diziam-me - ou eu ouvia, não sei - que ele era filho de uma escrava e o seu dono. Mas isso é a mesma coisa que dizer um conto de fada, uma coisa assim, ninguém nem... Isso não questiona, não se pergunta, isso não tem curiosidade nenhuma. E ele era esse homem inoportuno, diferente, estranho, porque... como esse homem, no Nordeste, não come carne? Como esse homem, no século XX, início do século XX, comia verdura - verdura e legumes? No Nordeste não tinha isso. Isso é recente, essa coisa de comer verdura. Quando muito é alface - e olhe lá - e coentro. E alface já é um banquete. Como ele não ia para médico? Não ia. Só foi quando foi para morrer. E ele aceitou. Então, não levava os filhos para o médico e nem ia para o médico, ele cuidava dali. Minha mãe era católica e ele era espírita, e criticava o espiritismo. Algumas coisas ele parou de frequentar, dizia para mamãe: “Isso não é verdade, isso não é certo. Não é isso. Não é isso”. E foi deixando, e lia em casa os livros, ou quando vinha um amigo, que também lia com ele. Então, ele era esse homem estranho. E assim... era culto, mas a gente... Tinha a filha dele, tocava bandolim, ela estudou... Aí nós não conhecemos, ela estudou numa escola que era uma elite no Nordeste, que era chamada Escola Doméstica, onde se ensinava... As madames formavam-se lá. E meu irmão, esse Paulo, ele morava em Salvador, fez Filosofia e dava aula, e se formou em Medicina. Quer dizer, tinha um médico, um negro médico na Bahia. Eu sei que parece que tinha quatro, quando muito, em toda faculdade. Eu tenho até foto porque andei... Um dos caminhos de procurar essa história do meu pai e da minha avó. Sabe um novelo que você puxa um fio? Ah, vamos ver se esse aqui vai dar. Aí quebra. Eu conheci esse meu irmão médico e foi ele que me salvou o dedo. Eu, brincando quando criança, sabe, brincar de cozinhar, tal, e eu pego a faca cega de cortar sabão, e eu estou lá brincando de cortar verdurinha e passo no dedo, e a ponta do dedo fica solta. E a salvação foi esse meu irmão, que tinha vindo de férias. E ele colou. Eu ainda tenho essa cicatriz. Mas ele colou, eu devia ter cinco, quatro, cinco anos. Porque saiu tudo. Como um homem negro tem um filho médico? Isso me ajudava a estudar. Eu tinha preguiça, eu sempre fui magra, magérrima, mas assim... eu tinha preguiça. Preguiça não era, era, acho que, ou anemia, alguma coisa assim. Mas me lembrava dessa garra do Paulo. E ele era uma pessoa... Não era esse cara duro, não. Negro, professor, e ele era paraninfo de turmas. Eu tenho a foto, guardei essa foto dele sendo paraninfo na escola onde ele estudou. A morte do meu pai... Quer dizer, ele estava velho, tal, mas acho que ele teria muito mais tempo. É que, quando ele recebe a notícia de que Paulo morreu num desastre de avião, tem várias hipóteses... Hipótese, não. Eu tinha o cartãozinho. O cartãozinho não. Eu pedi para a irmã dele me dar esse papel, ela ficou de me dar, e morreu e não me deu. O sobrinho não encontrou mais o recorte desse desastre, que ele teria ido com o paciente, estava levando o paciente para outra cidade, quando morre. Outros dizem que foi uma sabotagem, que era para ir o presidente. E que eu ouvi falar que tinha sido açúcar na gasolina que tinha tido. Então ele morreu moço demais, sabe assim, muito jovem. E era um fulano esclarecido. O meu irmão mais velho disse que havia conflito, às vezes, entre o meu pai, o que o meu pai pensava e o que ele pensava, com relação a uma medicina... Ele fazia parte de uma medicina mesmo, alopata, mas... Ai, que agora não estou lembrada. De grupo de medicina mais avançada, mais humana e social. E ele discordava do meu pai com relação à questão de os americanos estarem entrando em Natal. E como se apropriaram das nossas riquezas em Natal. Isso fazia parte da minha infância, eu fui criando certa ojeriza, porque tinha lugares em que brasileiros não podiam entrar. E era tirada uma areia chamada areia monazítica e disseram que era levada para os Estados Unidos e que estava dentro do projeto americano dos satélites. Essa areia tirada, esse minério retirado do Rio Grande do Norte. E, realmente, tinha lugares... Na minha época de jovem chamavam Barreira do Inferno, que os americanos criaram uma... Uma sede não, tinha um nome próprio, que ninguém podia entrar. Era cercado, não podia entrar brasileiro. Agora já... Agora pode entrar, eu fui lá, visitei, aí mostram todos os satélites que foram lançados lá. Barreira do Inferno lá. Então, algumas coisas da minha infância foram sendo marcadas? Eu não sei. Vinha pelo ar, vinha pelo passarinho? Primeiro certa crítica, que não podia ser dita. Por exemplo, eu, muito curiosa, escutava tudo, porque não era permitido criança falar, criança se meter em conversa de adulto, nem nada. Mas eu escutava e via. Por exemplo, tinha festa dos casamentos, era um hábito. Aquela festa: “Ah, Nossa, a filha de dona Joana vai casar hoje. Nossa, uma festa bárbara”. De noite, a gente escutava um barulho, vozes, no outro dia a gente ficava sabendo, a moça foi devolvida para o pai porque não era mais virgem. Isso, eu, criança, não entendia: “Mas como? Como pode?”. E eu não podia perguntar. Mas de alguma forma era dito, ou eu captava, que algumas coisas... Mulheres tinham que ir de um jeito para o casamento. Isso, a menina já tinha apanhado do marido, chegava, apanhava do pai, dos irmãos, a vergonha. Que isso me fez... Vamos dizer assim: se eu tiver uma filha, eu vou cirurgicamente... E assino embaixo: minha filha não tem hímen. Piração. Piração. Porque era uma coisa que me revoltava. Algumas meninas que eram como se tivesse um carimbo, alguém fez mal a ela, à fulana, e não casou. E isso era tido como a conversa entre os meninos, eu também escutava. Porque eu tinha dois irmãos homens, e mais dois irmãos, eu era a do meio. Então eu escutava tudo. E eu via a conversa dos meus irmãos e eu via os colegas dos meus irmãos: “Aquela ali? Ah, eu já peguei”. Sabe? E teve uma vez, uma menina veio na cerca... Onde eu morava, minha mãe morava, as casas nessa época não eram muros, eram cercas. Ela chamou um dos meus irmãos: “Vem cá. O que você disse?”. Eu estava escutando. Eu me deliciando, morrendo de pena do meu irmão, mas ao mesmo tempo a coragem dela, e na frente de outro rapaz. Então, a minha infância teve muitas coisas que me fizeram ser, talvez, quem eu sou. Não assim: isso deu nisso. Mas algumas coisas me deixavam curiosa. Como os meninos podiam, as meninas não? Aí, inventava-se: “Ah, fulana não, mas ela é virgem sim, é que foi na bicicleta”. Então, isso eu acho que... E assim... como eu tinha muitos irmãos, era... Os meninos não faziam trabalho em casa, e a gente trabalhava duro. Isso me revoltava também. Acho que era uma das coisas, um dos conflitos da minha mãe comigo. Era: “De onde essa menina tira isso?”. A filha mais velha, a Lurdinha, tão boa, fazia roupas, ela mesma costurava, ela ajudou mamãe a cuidar de tantos filhos, tal, era tão legal. E eu queria vestir uma roupa, eu queria ser o contrário. Eu desmanchava. Chegou um momento em que eu desmanchava as roupas e costurava reto, ou sem enfeite, sabe, pirações assim.
P/1 – E, dona Miriam, falando um pouco ainda dessa coisa do relacionamento, a senhora sabe como seus pais se conheceram?
R – O que eu soube... Meu pai era viúvo, já tinha filhos - tinha dois filhos - e, muito provavelmente, solidão. Minha mãe, viúva também. E o primeiro casamento da minha mãe não era muito bom, era o modelo macho: casou, deixa a mulher em casa e vai para a gandaia. E essa minha tia, que eu admiro, tia Zefa, viu uma das vezes a minha mãe sozinha, naquelas praias que eram distantes, assim, sozinha, enquanto o marido estava lá. Aí ela trouxe, disse: “Não, você não vai ficar aqui só. Você não vai”. E levou para a casa da minha avó. Quer dizer, claro que a minha mãe quis, não foi... E ele depois morreu. Bebia muito, tal. E minha mãe morava com a minha avó, meu pai faroleiro. E a mamãe tinha uma irmã, Glória, mais nova, que estudava na escola, no grupo escolar, com a filha do meu pai. Eram amigas, eu tenho foto das duas assim. E parece que: “Ah, por que não casa com Glória?”. Mas tia Zefa chegou: “Olha, o senhor já é viúvo, tem segurança financeira, a Carminha tem uma filha e é mais velha, ela já é dona de casa, tem experiência e tal”. Aí despertou essa possibilidade. Isso que eu ouvi falar. Então meu pai foi pedir em casamento, ao meu tio, a mão da minha mãe. Mas, de início, parece que seria a mais nova (risos). É. E minha mãe aceitou, ou não tinha... Viúva, a essa altura, uma filha de cinco anos, e ele um velho garboso, com situação financeira estável, tinha uns cuidados mesmo. Então se casaram, tal.
P/1 – Juntaram as duas famílias? Os filhos do seu pai e os filhos da sua mãe.
R – É. Isso.
P/1 – E como era viver numa casa com...
R – O rapaz foi estudar Medicina, morava lá. Eu acho que meu pai deve ter tido parentes lá em Salvador, então Paulo, meu irmão por parte de pai, foi morar, já estava morando lá. E Valdomira se casou. Veio um moço, se interessou por ela, mas meu pai achou que ele não tinha segurança financeira, aí ele disse: “Você vai, prepare a sua vida, e depois se casam”. Aí ele veio para o Rio de Janeiro trabalhar e mandou buscar, se casou por procuração com a minha irmã por parte de pai. Então, eu não conheci. Mas a minha irmã por parte de mãe conheceu. E na época também, eu acho que eram duas jovens - mamãe é da mesma idade que a filha dele. Mamãe era a pessoa que tinha até o quarto ano, mas sabia mais do que muita... Salvava a gente nas tabuadas e tudo mais. E ela tinha mais estudos, mas era negra, e isso dá uma diferença no Nordeste. Aqui dá, imagina no Nordeste, naquele tempo. Eu sei que ela veio morar no Rio e só depois de muitos anos eu, já quando eu estava pensando em sair de Natal, eu ficava buscando essas coisas. Do mesmo jeito que mamãe: “Eu não sei de onde essa menina tira isso” – eu também não sei. Assim, de ficar procurando. Então eu procurei e encontrei. Aquelas coisas: uma amiga minha, da escola, conhecia uma família no Rio de Janeiro, que tinha um sobrenome... Então fui me aproximando, e foi assim. O que mais?
P/1 – A senhora se lembra da casa?
R – Eu me lembro de Natal, do Bairro do Alecrim. Lembro-me bem. Meu pai tinha essa mercearia e todos nós morávamos nessa mercearia, que ele queria morar mais perto da minha avó porque ela ajudava no parto da minha mãe. Ali era muito apertado. Aí ele alugou outra casa, maior. E um tio cedeu a casa... Que ele estava... Era militar e estava no Rio, e era uma casa bonita, toda. Era legal essa casa. As outras casas, eu lembro, eram mais simples, mas eram... Lembro-me dessa da mercearia, ficavam os irmãos quase todos em poucos... Tinha poucos cômodos. Já nessa outra, não. Quando ele morreu... o dinheiro de aposentadoria ele guardou todo para comprar uma casa maior, tudo bem planejadinho. Só que, com a morte do meu irmão, foi um choque, ele não suportou - nesse mesmo dia ele teve um AVC, que a gente chamava um colapso. Ele perdeu a voz, já não falava, não andava, e pouco tempo depois morreu. Ele era casado no civil com a minha mãe. Aí a tia Zefa: “‘Seu’ Leirias, o senhor não gostaria de se casar no católico? Aí chama o padre”. Ele não falou, mas, sabe assim: “Tá bom” – concordou. É para alegria de Carminha? “O senhor não quer um médico?” Ele: “Tá bom”. Sabe, aceitou médico, aceitou o padre. Pronto, parece que era assim: “É para tranquilizar?”. E morreu. Aí foi desestruturante para a gente, porque tinha a questão da pensão, que levou vários tempos para mamãe receber. E deixou esse dinheiro para comprar a casa na mão de uma pessoa em quem ele confiava, um parente nosso, esse parente administrou mal o dinheiro. E quando minha mãe viu que o dinheiro já ia acabar, comprou uma casinha bem ruim mesmo, mas era pelo menos... “Não, aqui é a minha casa, com meus filhos, tal”. Essa casa, eu lembro, não me deixava muito tranquila, porque era de taipa e, às vezes, tinha vazados. E isso parecia que alguém de fora estava... Eu estudava até à noite, estudava até tarde, isso me dava muita insegurança. Foi quando... Antes, minha mãe foi para morar em Ceará-Mirim, que era um lugar muito mais tranquilo, que tinha mais condições de mamãe cuidar dos filhos, porque também tinha uma irmã, a Glória, estava morando lá, e foi um período muito bom. Muito bom morar lá em Ceará-Mirim, porque tinha fruta no quintal, mangueiras, mangas, então tudo estava lá. Era milho verde, tudo, quintal grande. Isso foi um período muito bom. E faz parte de um conto meu em que eu falo dessa casa, que tinha dois banheiros: um banheiro mais próximo - não era dentro de casa, era mais próximo de casa - que tinha um cacimbão, que se tirava água do cacimbão e punha a água do cacimbão dentro de um espaço; dali a gente tirava água para tomar banho. E a água para as coisas de casa, tirava e já levava para dentro de casa. E tinha um banheiro nos fundos, bem longe. E era nesse banheiro que eu gostava de ir, porque muitos irmãos, ficava todo mundo batendo. E eu ficava divagando muito, eu inventava muita história lá. Eu me lembro de algumas histórias, que eu iria criar uma escola para criança que não era feliz, e aí eu tinha essa escola. Tinha outra que era para as mães terem férias. Então, as mães deviam ter férias. E eu ficava lá. Só que eu conto uma história, acho que deve ter acontecido, que meu irmão e minha irmã, como eram muito astuciosos e sabiam que eu era medrosa, fizeram medo lá, um barulho, tal, e eu saio correndo. E depois vejo que são eles que estão morrendo de rir. E eu fantasiava muito. E no banheiro lá eu não podia ficar, porque era para as necessidades. Lá ninguém ia, porque era longe, e tinha que levar água depois para limpar mais. Mas foi um período muito bom em Ceará-Mirim. E passava o trem na porta, de manhã e de tarde. A gente acenava para as pessoas, e as pessoas acenavam para a gente. E ele mediava o tempo da gente. E de manhã, passava o pessoal que ia para a Capital, para Natal, e à tarde vinha. E eu ganhava bonecas. As minhas bonecas... Teve um período, mamãe não podia comprar, era boneca de feira. Mas mesmo as bonecas de feira tinham preços diferentes, porque tinham jeito diferente - mais cuidada, mais bem feita, menos bem feita. E eu pegava essas bonecas feias e fazia umas transformações nelas. E não sei se eu usava que eu fiz uma plástica, não sei se era essa a linguagem, mas eu mudava. E eu fiz um conto também com essas, que eu digo que eu mudava destinos. É muita onipotência. É muita onipotência. Porque assim... Vinham feias, tal, e eu criava roupas, criava coisas, tal. O marido, eu tirava - não tinha marido. Eu fazia histórias assim e eram bonecas personagens, parecidas com algumas mulheres.
P/1 – De que eram feitas essas bonecas?
R – Eram de pano. Pano. E tinha um molde assim, pano, e eram enchidas com retalhos. E eu fazia o bordado da sobrancelha, da boca. E como fazia a boca, ela podia ser má, ou não. Eu fazia operação. Eu fiz casa brincando, porque era muito grande e tal, meu irmão acho que me ajudou a fazer uma casa de tijolinho e eu pus para... Elas estavam lá.
P/1 – Tinham nomes as bonecas?
R – Tinham nomes, mas não lembro. Tinham nomes. E eu pegava muita... Tinha a Ninhoca, que era um personagem que era tipo Tarzan. Eu lia tudo, porque meus irmãos liam e eu adorava, as brincadeiras dos meninos eram muito interessantes. E tinha Ninhoca. Eu prestei atenção, ou se eu inventei isso, mas eu vi numa exposição, era um personagem feminino... Claro que não era a Mulher Maravilha, mas era parecida assim, tipo um Tarzan, que resolvia os conflitos nas tribos e também andava nas árvores. Era muito bom ver a Ninhoca, lia. Eu acho que essas coisas me encantaram. Encantaram-me.
P/1 – E a senhora ia para a escola nessa época?
R – Sim. Ia. Ia sim. Era longe. Lá em Natal, era meio longe ir para o grupo. Mamãe, quando foi para Ceará-Mirim, eu fui para um colégio... Tinha um colégio, eu não sei que esforço ela fazia, que ela pagava o colégio. Era um colégio de freiras, e eu cantava e dançava, era uma das queridas das freiras porque eu cantava e dançava também: “Ailili, ailili, ailou, e tal”. E, nas festas, eu estava presente. Eu queria ser freira. Aí depois, quando eu arrumei um namorado, nas férias, eu quis sair, que foi já dentro do movimento estudantil. Eu saí e voltei. A minha mãe tinha voltado com os meus irmãos, aí eu voltei de Ceará-Mirim para Natal. E eu fiz o seguinte: teve uma época em que o governo da época, em vez de... Agora veja, aumentar as políticas públicas, ele fazia o seguinte - quem se submetesse a uma prova dificílima, naquele estado, ganhava uma bolsa, mas para escola particular. Eu ganhei uma bolsa integral, e foi assim que fiquei interna. Em um período eu fui interna, porque eu tinha bolsa. Só que mudou a madre, e quando atrasou a minha bolsa, ela me pôs para varrer um salão assim, enorme. Enorme. E eu sempre magra, magérrima assim, que o vento um dia me derrubou, aí eu desmaiei. E ela sacou. Eu não sei se foi proposital ou não, mas... E foi na frente do padre, melhor ainda, porque aí: “Nossa, como? Tão frágil, acordou tão cedo, com fome”. Quer dizer, antes de tomar café, a gente já varria aquilo tudo. Então eu acho que foi a Miriam bíblica, esquema de sobrevivência, ou de fazer... Eu sei que eu desmaiei, e aí tomavam certo cuidado comigo. Mas era assim... Se eu sou magra agora ... Mas era assim, magra, magra, magra.
P/1 – E nisso, a gente já está entrando na adolescência?
R – Exatamente. Adolescente. E foi quando nas férias... E também veio um Encontro de Estudantes, em Ceará-Mirim, e eu pude participar. E eu, cantando em castelhano neste Encontro (risos). Alienada demais, mas é para divertir. Então, eu sei que já arrumei um namoradinho e já pedi transferência para Natal. Minha mãe não queria: “Mas agora? Agora que você podia ficar lá? Agora, nessa idade?”. Aí eu voltei e fiz um tempo na escola particular, mas depois eu deixei a bolsa, não quis, fui para a escola pública, para a Escola Normal. Porque eu poderia fazer na escola particular esse curso, mas eu preferi. Eu já estava com a cabeça um pouco mais crítica, a questão da alfabetização de adultos vindo... Antes até do Paulo Freire teve uma experiência em Natal, foi paralelo... Não. Foi perto. Um pertinho do outro. Foi uma experiência que chamava De Pé no Chão Também se Aprende a Ler. Esse programa era da Prefeitura e foi Djalma Maranhão, este homem que revolucionou Natal. Revolucionou, assim, porque tudo que ele promovia, vinha uma elite dizer que não era possível: “Não. Não pode. De Pé no Chão Também se Aprende a Ler? Não. Como?”. É uma campanha de alfabetização para acabar com o analfabetismo, que eram 80% de analfabetos no Nordeste. “Nós vamos acabar, sim, com esse analfabetismo”. “Mas não tem lugar. Onde vai criar escola?” “Não importa. É igreja, é em acampamentos.” Onde foi, tinha. Mas era de uma alegria a cidade, os velhos estudando, mostrando a carteira de estudante, e as pessoas de pé no chão também se aprende a ler. E ele criou tipo galpão, e aí não tinha dinheiro, não soltavam dinheiro para criar aqueles galpões. Ele disse: “Não tem importância. Vamos contar com os recursos: folha de coqueiro”. Então pegava... A folha do coqueiro tem um trançado, que é índio, que não penetra água. Em qualquer canto, mas em qualquer canto. Aí a elite: “Ah, mas aí vai acabar com os coqueiros”. “Vamos então plantar”. E ele fez uma campanha naqueles bairros pobres, de plantar coco. Cada família recebia dois cocos para plantar. A minha família ia. Claro que tinha as vergonhas: “Ai, fulano, o caminhão passou, pegou. A família de fulano não pegou, não. Não precisa”. Minha mãe, meus irmãos, pegaram esses cocos, plantaram, e eram esses cocos que muitas vezes, quando faltou dinheiro, era tirar do coco para fazer uma comida com o milho. Eu mesma... Minha mãe passou por dificuldades sérias, e assim... Um irmão subia, que ele subia com tranquilidade, aquilo era besteira, subia, pegava o coco, a gente tomava a água, abria o coco, fazia uma canjica. E naquele dia que mamãe tinha saído numa tristeza, porque não tinha dinheiro para chegar no mês, ela chegava, tinha um alimento. Ou ela mesmo fazia: “Sobe ali. Valério, sobe lá no pé”. Então, isso, a nossa história não conta. A história do Rio Grande do Norte não conta. Essa questão de como chega ao indivíduo, como chega àquela família. Então, ele foi resolvendo questões. Resolvendo. Até que ele foi preso e foi deporta... Ele foi primeiro para uma ilha - a Ilha de Fernando de Noronha, que era um arquipélago que, inicialmente, era o Exército que tomava conta. Não tinha turismo lá. Era longe. Ele, doente, muito doente, conseguiram tirá-lo e ele foi parece que para o Uruguai, Paraguai, por aí. E não pôde voltar mais. Eu conto... A minha história, parece que eu sou testemunha de algumas coisas. Esse eu testemunho, do Djalma Maranhão, como ele foi resolvendo... E me lembra uma coisa... Que a Psicologia também fala, quer dizer, quais os nossos recursos? Você acha que para resolver um problema... Mas a gente sempre se pergunta: que recurso eu tenho para enfrentar isso? Então, eu acho que fui testemunha. E a alegria que era, porque assim... todas as festas de Natal ele trazia os recursos que tinham lá, do folclore, do Bumba meu Boi. Está no bairro: “Olha, o bairro está muito cheio lá”. “Não, vamos para aquele outro bairro”. E tome festa. E era festa. E assim... Na porta, minha casa, passava na porta. E ele passava na porta, e tomava cauim, que era a bebida dos índios. Então ele ficava lá com os índios. Com os índios, que era um bloco, mas era... É que eles não se assumiam como índios. Na época, a gente achava que os índios tinham morrido todos, tinham se acabado todos. E criou-se o bloco dos índios, que ensaiavam meia parede na minha casa, estava lá. E a gente se deliciando com os ensaios, com o som. E esse fulano vinha, esse... Como chama? Esse prefeito vinha. Então, teve essas questões.
P/1 – E a senhora, pelo movimento estudantil, chegou a participar um pouco desse processo de alfabetização?
R – Sim. Teve essa alfabetização, dessa eu não participei. Mas eu participei da alfabetização do Paulo Freire, já estava entrando quase na faculdade. O Paulo Freire já tinha feito a experiência em Angicos, já tinha sido vitoriosa, e ele vinha para expandir para todo o estado. A gente teve treinamento, tanto técnico de alfabetização como também de consciência de povo, consciência de onde estávamos, o que queríamos, que não era esmola, era política pública de alfabetização de adultos. Foi quando veio a ditadura, e o Paulo Freire também teve que se ausentar. E eu não pude chegar a dar aula. Esse programa foi abortado. Eu vou trabalhar com alfabetização na faculdade.
P/1 – Antes da faculdade, como foi... Não sei se a senhora chegou a trabalhar antes.
R – Sim. Eu trabalhava como... Eu era professora de escola pública. Eu alfabetizava, mas não adultos, eram crianças.
P/1 – Mas como foi esse encontro com a Pedagogia, com a educação? O que te levou a ser professora?
R – Era a mesma alegria que eu via naquele momento do Pé no Chão Também se Aprende a Ler. Como é alegre. Como é vivo. Como é potente. E como as pessoas se sentiam potentes. Não era: “Ah, eu vou lá para dona fulana me dar um pouquinho...”. Não. Era se apropriar de algo que pertence. Isso eu acho que fiquei buscando na vida, que a gente tenha essa alegria. Claro que tem... Aprender não é só bolinho. Eu me lembro das minhas dificuldades como criança, de eu diferenciar o P do B na cartilha. O B do D. Como? Qual a diferença do E e o É? Isso eu me lembro. Eu acho que eu tive dificuldades do nascimento, que eu seria um caso de psicomotricidade. Mas como eu nasci no Nordeste naquele tempo, eu andar no trilho dos trens, eu descascar laranja e me cortar, me ajudou a compensar essas coisas.
P/1 – E a senhora se lembra da primeira aula que a senhora deu?
R – Lembro-me. Lembro-me. Umas ideias assim muito avançadas, e chego... E eu não queria mandar, eu não queria, sabe: “Pare de falar”. E eles não paravam. Eles não paravam. Mas como? Se eu critiquei tanto a educação do jeito autoritário, como vai ser? Até eu encontrar um jeito, que era pela Arte - porque era por algumas diferenças - eu fui arrumando um jeito de me fazer respeitada, e que tinha coisas que eu tinha que dizer para eles: “precisa fazer, sim”. Mas teve esses descompassos.
P/1 – Mas era para crianças ou adultos?
R – Era. Para criança. Para adulto... Eu acho que era para eu ter sido professora de adulto mesmo. De adulto é o sorriso que abre. Eu só fui trabalhar com adulto, alfabetização de adultos, na faculdade, no projeto que era chamado Crutac, que era... A diretora, vamos dizer, de Pedagogia, ela era muito... A Vanilda Chaves, era uma pedagoga, ela era carioca, foi casada, se casou com o diretor da faculdade, e ela estudiosa, era outro ídolo. Ela conseguiu... Como ficou um buraco, depois da ditadura, na Universidade, ela criou esse projeto... Não foi ela, a Universidade, mas ela se incorporou para que... A faculdade precisava se expandir, a Universidade tinha polos no interior, então ela era encarregada de orientar a parte educacional de alfabetização de adultos. Claro que a gente não chamava o método de Paulo Freire, nem podia, mas tinha um pouco disso. Então era cansativo, porque eu saía de tarde da faculdade, pegava uma Kombi, ia para aqueles interiores - e eu ficava mais na supervisão. Orientava professores e voltava de madrugada, abrindo porteira e fechando porteira, até chegar à casa, de madrugada. E fazia faculdade também, então tinha alguns dias que eu saía mais cedo para fazer esse trabalho. Eu não sei, mas aí a gente trabalhava a consciência. A questão de... Não era tijolo... E eles me respondiam. Eu não sei por que não pegaram a gente. Mas é por causa do respaldo dela. Qualquer coisa estava... Enfim.
P/1 – Teve alguma história marcante dessas viagens que a senhora fazia pela faculdade?
R – Olha, teve várias. Como eu vou chegar à minha avó? Que eu estou pensando aqui. Porque eu estou muito em Miriam, tudo bem?
P/1 – Tudo. Tudo bem.
R – O tempo...
P/1 – Está tudo bem?
P/2 – Está dentro do plano.
R – Não sei. A minha sensação é de que eu estou me alongando. Mas então...
P/1 – Depois disso a gente pode falar um pouco da sua vinda para São Paulo.
R – Sim.
P/1 – E desses encontros com a escrita.
R – Tá. Tá.
P/1 – A gente pode depois já vir para o tempo agora dessa busca.
R – Certo. Então, tinha... Porque assim... numa dessas que eu fui para a supervisão - eu era supervisora das escolas lá do interior - e uma das vezes eu chego, e todas as casas tinham um ramo de planta. Por quê? Um ramo, um galho de árvore, de folha. Eu perguntei à professora: “O que aconteceu?”. Ela disse: “É que o...”. Era um capuchinho que andava pelo Nordeste, agora eu não lembro, que era uma das histórias que faziam parte da minha infância, ele também... Quando ele chegava àqueles lugares em que eu morava... Ele passou por aqui, benzeu todo mundo e disse que o demônio estava solto e que a proteção era essa planta, eram as plantas. Então, todas as casas estavam com plantas. Agora eu não estou lembrando o nome dele. Ele era a Igreja Católica mais... Não diz nem tradicional, era aquele que ia para aqueles lugares bem longínquos, batizava, fazia casamento, e dizia quem não fosse casado virava bode, e as pessoas viravam bodes. Saía de noite alguém gritando, porque era amancebado. Então tinha isso. Eu vivia isso muito. E fui tomar água benta, fazia aquela fila enorme, ou benzer a vela, porque ele tinha esse poder de mexer com as pessoas, e ai de quem risse daquilo lá. Era de tal forma criado um clima, que, realmente, se havia a história do cara que não quis casar, que debochou, e depois saiu berrando. Sempre acontecia alguma coisa, e isso ficava. E esse... Eu já jovem, eu chegando, ele tinha passado por lá, e todo mundo estava com a planta. E outra história, às vezes a minha filha fala assim: “Ai, mãe...”. Essa questão social me pega muito. Uma das viagens, a professora me chamou para tomar um lanchinho, tal, ela comeu uma macaxeira, alguma coisa, e o cemitério era bem pertinho, ali passava o riozinho pertinho do cemitério, então água eu evitava tomar. A água vinha, era barrentazinha, era do cemitério ali, era infiltrada. Então essas coisas assim. Quando eu vim para cá, para São Paulo, eu queria também fugir um pouco do olhar de fome que eu via, que eu detectava em muitas pessoas. Eu não queria ver. Eu olhava, eu percebia pela cor da pele, pelo lábio, não sei, que passava fome. E não é aquele “estou com fome de dois dias”. Não. Vai dando, e eu... Eu, criança, escutava o rádio anunciando fosse enchente - as enchentes que vinham, e aí as pessoas perdiam tudo - ou a seca. A seca. E aí não tinha alimento para ninguém. Tinha para alguns. Para muitos tinha. Mas para muitos não tinha. E aí teve uma... Como chama? Uma frente de trabalho. Era aberto, vinham aqueles camponeses carpir, fazer qualquer coisa na cidade para não haver tensionamento maior. E aqueles olhares, eles não conversavam. Não era essa coisa que você vê homem conversando. Onde homem junta, ou mulher junta, é aquele alarido, aquela conversa. Não. Era aquele olhar de vergonha, de indignação. E eu via isso. E eu rezava, o que eu podia fazer. Eu escutava, mamãe escutava o rádio, eu escutava, e era... Ai, meu Deus. Eu achava injusto. Se é Deus, como que... Chove lá! Chove um pouquinho! Olha, já passou o dia, chove! Não. Não chovia. Quando chovia, era aquela coisa absurda e carregava tudo. Eu morava em Ceará-Mirim quando houve o que se chama tromba d’água. Vem tudo. Vem tudo, não dá para segurar. Vem tudo: animal, vem casa. Claro que a gente de longe, porque criança vai onde não é para ir. E tinha mais um detalhe: nessas campanhas, nesses momentos de muita seca, tinha uma campanha americana, que era distribuir alimento, e alguém sempre ficava com alimento. Eu achava interessante uma época que era uma moda, era mescla, é um tecido que quase não se vê. Vinha, parece que era dos Estados Unidos, para aqueles lados. Levava muita coisa daqui, e para abafar mandava uns tecidos, e que virava moda, porque era apropriado por alguns comerciantes por ali. Alpercata... Não é para não ser indignada? Por que eu ouvia? Por que o meu olho ia para essas coisas? Dos meus irmãos, às vezes, não iam. Ou iam, mas, olha: “Ah, não vale a pena, Miriam”. Mas, enfim, vim para São Paulo. Primeiro eu namorava, depois se tornou meu marido, a gente... Eu ia estudar em Recife porque queria fazer Psicologia - em Natal não tinha Psicologia na época.
P/1 – Você já tinha terminado Pedagogia?
R – Não. Não. Psicologia eu fiz aqui. Mas não teve, aí eu resolvi deixar. Eu ia fazer em Recife, mas eu via o seguinte: para eu estudar em Recife... Tinha que ajudar a minha família. A minha família, o meu salário entrava nas despesas. Eu não fui e fiz Pedagogia, que era onde eu estava também. É, Pedagogia, não tinha mais alfabetização de adultos, ou estava... Eu fui dar aula, depois fui para a faculdade de Pedagogia. O meu namorado foi denunciado por um primo, porque a gente era da Juventude Estudantil Católica, que queria evangelizar o mundo, mas queria depois com o bispo. Não, o João XXIII, que era o papa, tornou-se... Ampliou a pedagogia do oprimido, essas coisas todas. Não, Pedagogia é o nome do livro. Mas mudou a visão do cristianismo. Então a gente quer reforma agrária. E meu namorado foi para Recife fazer um exame lá e ficou na casa de um primo, de uma pessoa, um parente, e o primo denunciou, que ele era um sujeito perigosíssimo. E aí veio a ordem de vasculhar a casa dele, vasculharam, pegaram livro, tudo, e ele ficou indo todas as vezes responder em Recife. E ir para Recife era um medo lascado, porque uma coisa é quando você é acusado em Natal, vamos dizer, que ali está a sua família, tem o seu vizinho: “Ah, o comandante que eu conheço é pai da minha amiga”. Havia algumas possibilidades. Era menos perigoso, vamos dizer. Ir para Recife, Recife estava no auge da arrebentação. Aí foi na época também que o pessoal que deu o curso de alfabetização de adulto do Paulo Freire foi preso. Era o mesmo advogado que resolvia, até que foi provado, quer dizer, ele não era esse elemento perigoso, mas tinha que responder e ficava lá a fichinha. E eu saí da JEC, Juventude Estudantil Católica, que aí todo mundo saiu. O padre foi preso, o padre Henrique foi morto em Recife, Dom Helder, perseguidíssimo, todas as pessoas que... Só ficou quem era reacionário, tal, e aí a gente saiu. Eu saí, Fábio também saiu. Teve um contato para eu pertencer a uma organização, que era uma das mais... Que não fez nada, praticamente. Não fez. Mas tudo que era... Eu sei que era clandestino. Eu tinha um nome clandestino, não fiz nada. Se a polícia for vasculhar, não fiz nada, não fiz nenhuma ação. Mas o fato de pertencer, eu tinha um nome. Só que nesse dia que ia para o meu contato, eu fui ao dentista. E dentista, eu morro de medo. E ele está lá, trrrr, com aquela broca lá, vai, eu peço uma... “Não dá para passar? Porque está doendo”. “Como doendo, Miriam? Não é cárie tão grande”. Aí ia dar a anestesia, quando ele veio com aquela agulha, eu falei: “Não dá para pôr uma pomadinha? Aquela pomadinha rosa?”. Ele ficou louco da vida, fez, tal. E eu fiquei pensando: “Como eu vou para um encontro clandestino, eu tenho um nome clandestino, e estou pedindo pomadinha?”. Eu saí de lá, fui para o meu contato, e falei: “Companheiro, eu vim falar que eu não tenho estrutura para a atividade”. Ele falou: “Companheira, estrutura a gente adquire na luta, é no processo”. Mas aí eu sabia o que estava acontecendo com amigos, tal, eu falei: “Mas eu não quero. Eu não quero esperar que eu consiga ter essa estrutura, ou apostar. Não quero”. E ele me respeitou. Saí e não tive mais contato. Mas era aquela coisa, não estava ligada diretamente a nada, mas a minha consciência política... o meu namorado era jornalista e as manifestações, eu ia e ele dava um toque: “Tome cuidado, porque o fotógrafo manda para a Polícia Federal, ele é ligado”. E mandava. Muita gente lá em Natal... Que era o fotógrafo. E ele era o jornalista e não podia dizer, porque senão, de onde vem? Quem garante? Mas, enfim, foi como eu não entrei na luta, por causa do dente, diante do medo. Mas, enfim, vim para... Natal ficou sem sentido, vamos dizer. E acontecendo mil coisas, e Natal era muito pequeno, qualquer coisa... Uma manifestação contra a Guerra do Vietnã já era perigoso. Eu ia para Recife, mas acabei não indo. Aí o meu namorado veio para São Paulo. Um amigo nosso veio trabalhar nesses órgãos aí da imprensa, veio trabalhar, eu falei: “Mas o que eu vou ficar fazendo aqui?”. Tinha uma repressão sexual muito grande no Nordeste, e eu ficava assim: “Mas o que é isso? Onde vai?”. Minha amiga ia para o mato. Isso na cidade. Onde vocês se encontram, se não é na casa? Sabe, tinha uns esquemas todos. Enfim, ele veio, aí eu fui passar as férias no Rio. Do Rio vim para cá, e não voltei. Eu deixei mais ou menos organizado lá. Se desse certo, ficaria. Minha mãe aceitou, mas a família, outras pessoas não, e me chamaram de puta: “Como uma mulher... Ela não era mais moça. Se saiu daqui para ficar com o namorado, não era”. É besta, mas naquele tempo machucava as pessoas, machucava a gente. Pô, me sacrifiquei tanto para segurar essa meleca, e diz que eu não era mais? Poxa. Se tivesse um quartinho lá para me ajudar, mas, enfim. Mas tinha essas coisas. Eu estou falando é uma questão individual, mas era a questão social da época. Era a questão das mulheres, a questão da repressão. O meu marido, experiente na vida, conversávamos sobre tudo, só que nós não transávamos, ele ia para o puteiro, eu ficava em casa. O que é isso? Para ele era normal: “É isso mesmo. É”. Vim, fiquei. Tinha um amigo nosso, Dorian Jorge Freire, que era jornalista, fiquei uns dias lá, aí eu fui morar com o meu namorado.
P/1 – Onde vocês moraram aqui em São Paulo?
R – Na Liberdade. Era um apartamento que era muito um pessoal de esquerda, frequentava muito, tal. Gente muito legal. Muito legal. Depois a gente quis um espaço mais nosso. É, um espaço mais nosso. E fomos morar na Amaral Gurgel, que é ali na Santa Cecília, por aí. Quando eu engravidei, a gente queria mesmo uma casa, fomos para a Pompéia. Eu tive meus filhos, Fábio era jornalista, eu depois fui trabalhar como professora. O meu filho, o Fábio, eu o tive na época da ditadura, 1971. Era de uma dor... E eu escrevo aquele conto, essa coisa: não dá para a gente ser feliz sozinha. Dá por um momento curto. Eu acho que ele sofreu as consequências, sim, de ter nascido em 1971, cuja mãe, cujo pai, tinham amigos e sabiam o que estava acontecendo. A minha amiga não podia ficar com a filha, um amigo que a gente não teve mais contato, o filho dele foi torturado com um ano e oito meses, e esse não se recuperou nunca mais. Ou um rapaz que a gente conheceu, assim, um amigo, que era o irmão, foi morto com injeção de cavalo. E era um medo, era um medo, era medo de qualquer pessoa, porque se a pessoa conversava com a gente: “Por que ela está falando isso? Por que ela disse isso?”. Quer dizer, quando chegar à casa, chegar perto de casa, como o síndico, por exemplo, recebeu? Como estava o riso dele? Era uma loucura. Uma loucura isso. E eu fiquei com medo quando começaram a gritar a volta da ditadura lá e a bater panela. Eu tive uma somatização que aumentou o grau. O meu medo foi tanto, foi tanto, eu disse: “Eu não quero ver. Eu não quero existir. Eu não quero ver isso de novo”. É o ver e você saber, mesmo que você não veja, que se feche, vá se esconder, mas você sabe que está acontecendo. Eu, depois, quis me separar. Aquela coisa: “Não, eu quero o que...”. Eu queria coisas que, naquele momento, não tinha, ou era... É, eu quis me separar, e a gente se separou. Ele foi viver com outra pessoa, eu tive namorados. Fiz outra faculdade, a Psicologia, que eu quis fazer. Mas quando eu faço Psicologia, não é mais a Psicologia individualista que eu estava naquele tempo pensando. Não, era uma social. E aí, consultório não... Mas mesmo assim atendi em consultório, mas era muito difícil eu vir com esse acolhimento que o cliente precisa, o paciente precisa, saindo de um caminhão. Eu quis experimentar ser militante do sindicato e foi muito boa a minha agressividade, você lutar por uma coisa por 40 horas, 30 horas, pernoitar com outros trabalhadores que estão pleiteando. Eu estava vendo fotografia, a gente estava pleiteando 36 horas para os fulanos que trabalham 40, eles já estavam anos atrás lutando para terem 30 horas de trabalho. E como o meu sindicato, o Sindicato dos Psicólogos, era pequeno, mas ele lutava, ele luta pelas questões específicas da categoria, mas também porque nós fazemos parte da saúde, da questão da educação. Então eu estava em todas as ações, praticamente, sobre 30 horas, 36 horas para o metalúrgico. Era para educação, a questão da Lei de Diretrizes e Bases; da saúde, a questão do SUS. Eu fiquei possuída por isso e achando ótimo também. E era briga aqui pela questão das mulheres, porque o sindicalismo, ele reflete a sociedade, é machista, é tanto quanto. Então, quer dizer, a gente lutar por paridade dentro da categoria, dentro da direção da CUT, da direção do sindicato, parece tão besta, mas era, minha Nossa, eram brigas... E muito bom. Animava também. Animava. E vinha um negócio também assim: e meu pai? Por que esse pai era tão... Como se diz, meu Deus? Tolhedor, vamos dizer. Ele não era agressivo, mas nem precisava. O olhar dele nem... Claro que eu apanhei de surra, de corda. Mas era assim, era muito, e essa pergunta, essa coisa. E a militância pelo movimento das mulheres e o movimento negro. A questão racial, eu entrei nos coletivos também e vi. Eu disse: é vergonha, sim. Não é ser negro. E eu passei um período meio assim: “Ah, meu pai era negro e eu luto pela causa negra”. Mas era muito fluflu assim, tal. E aí: “Ah, eu vou procurar, ainda vão ver a questão da negritude, vendo a minha irmã por parte de pai, que é negra, tal”. Meu filho tinha o cabelo encaracolado, bem encaracolado, e os olhos claros. Era um pixaim, vamos dizer assim. Agora ele está estirado.
P/1 – Dona Miriam, acho que a senhora já está começando a responder um pouco de como a participação nesses movimentos fez a senhora começar a enxergar essa ancestralidade, seu avós.
R – Isso.
P/1 – Então eu queria que... Se a senhora pudesse falar um pouco como era essa relação com a família longe e como a participação nesses movimentos - e por estar longe - começou a trazer essas questões para a senhora da própria história da família, que era um ponto que a senhora também queria comentar.
R – É. Isso. Então, havia uma expectativa da minha mãe de que eu ajudasse mais com grana, porque assim... “Pô, Miriam estudou duas faculdades”. E eu não tinha dinheiro para mandar. Eu ajudei lá, quando eu estava lá, ajudei tudo, tudo. Mas assim... Não tinha porque eu fiz algumas escolhas que não davam dinheiro. Meu tempo estava em outras coisas, que muitas vezes não davam dinheiro. Eu sentia saudade, mas era meio... Depois minha mãe entendeu, entendeu um pouco mais assim. Porque um dia ela... Eu acho que ela via sentido. A questão da opressão é tão difícil e o que o outro quer proteger o outro, então: “Ah, minha filha, deixe assim. Isso melhora. Isso com o tempo melhora”. Um pouco isso. Mas meus irmãos me viam assim meio também estranha. Meio diferente: “Ah, Mirinha tem umas coisas, Nossa”. E, realmente, eu devia ser chata também. Era chatinha, pentelha, critica tudo, quer mostrar para o outro. Era interessante, como se fosse um pano de fundo, que às vezes ele se aproxima, depois volta. Essa questão da identidade do meu pai, essa questão de o meu pai ser tão taciturno. É essa palavra? E como ele tinha... Ele tocava. Ele tinha um instrumento e eu nunca vi esse homem tocar. Como? Então, era um enigma esse homem. A outra filha aprendeu bandolim, sabia mil coisas, e com a gente era essa pressa, essa coisa, tal. E eu vendo nos movimentos, vendo o que é a questão da negritude, a questão dos negros, aí eu resolvi ir viajar, viajar para: “Ah, eu vou descobrir a minha ancestralidade. Vou para lá”. Eu sem nenhum... Eu não sabia como orientar. Eu tinha faculdade, aí vou, assim, vou lá. Comprei uma passagem, tinha uma pousada: “Tudo bem? Eu sou filha de uma pessoa que morou aqui”. “Ah, quem é?”. Ninguém conhecia. Não tinha Leirias nenhum lá. Aí encontrei a Irmandade da _____01:54:27_____, no Norte. A festa, uma delícia, fiz alguns amigos lá, dancei, comi a comida da mãe de santo - que tem depois da festa, da procissão, aí tem o samba de roda. E aí: “Miriam, você prometeu para tanta gente que iria contar a história da sua avó”. E nada. Fui três vezes e nada.
P/1 – Você foi em busca da cidade em que seu pai nasceu?
R – É.
P/1 – Que é São...
R – São Félix. E eram umas coisas tão distantes... Claro que eu já tinha ido para os faróis, aquela coisa. Já tinha ido aos faróis, já tinha ido à Marinha. Mas assim... Muito sem sistematizar, sem fotografar. Foi passando o tempo e eu comecei a procurar documento, eu vi que: “Pô, se a minha irmã mais nova se chama Brasilísia e quem deu foi o meu pai para homenagear a mãe dele” – mamãe abriu mão disso para ele homenagear a mãe dele – “E, no documento, tem o nome de outra mulher. Então o que é isso?”. Aí fui ver, também não encontro nem uma, nem outra. Fui aos mórmons e encontrei, isso depois de muita luta, de muito rolo, de muita... Vi que encontrei o batistério do meu pai, que eu esperava que fosse negro, ou que a mãe dele fosse negra. Não diz. Tem parvo o nome... Eu não sei se é parvo ou é pardo, pois eu olhei de novo, porque tem uma categoria lá, que eu abri os arquivos de 1600 e fui vindo... Os batistérios, africanos que vieram, tem negros escravizados, com nome de Alegria, com nome de Aventura, uns nomes incríveis, e nome de santo... E eu esperava que meu pai... Já que ele é filho de uma... Disseram que ele era filho de escrava. Não. Está o nome dessa outra mulher, mas não está o nome do pai dele. Filho natural. Eu fui procurar o que é filho natural, aí tem no dicionário: é filho de rama, é filho disso, tem mil filhos. Eu disse: “Não, meu pai é filho natural, não é filho de rama, não é filho da puta, não é filho disso”. Eu fui ver na literatura, filho natural. Tem um livro, que é do Camilo Castelo Branco, O Filho Natural. É uma figura, é de uma personagem essa questão do filho natural. É uma dor. É uma dor. Este Camilo Castelo Branco, que a gente estuda quando vai fazer vestibular (risos), eu não li nada dele, li depois, quer dizer, ele era filho natural, mas ele teve filha que foi para a roda dos enjeitados. Quer dizer, ele sofreu a dor de ser filho natural e não conseguiu deixar que a filha dele não sofresse. Eu vim para o meu pai, eu voltei para o meu pai. O meu pai era filho natural, e que esforço, não sei, que ele fez para que a gente fosse filho legítimo. Quer dizer, é outra categoria, é discriminação? Sim. Porque ele poderia... Faz parte da tal psicologia do homem que não consegue manter sua sexualidade. E eu até escrevi agradecendo ao meu pai. Pô, deve ter sido um esforço enorme. Não a questão do filho legítimo, de um filho natural, mas assim... Ele conseguiu barrar essa corrente, que provavelmente se perpetua de pais, de filhos que não são assumidos. E eu acho que foi um momento em que eu mais olhei assim, agradeci. Porque é uma dor. O livro O Filho Natural, Nossa, é dolorido... Esses personagens que viveram. E era muito normal, normal, esse sofrimento nas pessoas. Fui embarcando nessa coisa. E também na Psicologia eu tinha visto que tinha... Essa fulana... Ai, minha cabeça, na época, era muito, vamos dizer, fechada, ler _____02:00:51_____, que ela vai dizer: “Ou você...”. Tem que cuidar da ancestralidade. Quer dizer, esses segredos, ou estupros, ou contenda, ou qualquer problema que exista numa geração vai repercutir em outra, em forma de sintoma. Eu já estava com uma cabeça um pouco mais, não só marxista, mas tentei entender essa visão de transgeracional. O Leirias não era só porque era bonito, diferente, mas vamos... Se é possível ajudar, talvez menos sofrimentos existam. Nessa minha procura foram vindo coisas, vindo leituras, que eu não queria numa época, e fui me aproximando também dos meus nesse sentido. Mas alguns deles estão sempre pensando que a busca da ancestralidade é buscar quem foi o... Bom, se a minha família não está ali com o Dom Pedro, ou com alguém importante. E nessas minhas andanças, eu encontro gente lá na Festa da Nossa Senhora da Boa Morte, netas buscando... Eu pergunto: “Por que você está aqui?”. Ela falou: “Olha, não sei” – branquinha – “O meu avô era dono de escravos, muitos escravos. E eu estou vindo, quero ficar aqui”. Então. ao mesmo tempo... Quer dizer, tem outra visão... Não sei como poderia, mas, enfim, estou me abrindo para essas questões e se aproximam pessoas... Umas coisas muito, muito bonitas, muito interessantes. Numa das viagens, eu fui pelo nome - ou Leirias ou Menezes, porque a minha avó Brasilísia Augusta de Menezes. Para quem foi escrava? Augusta de Menezes. Eu encontrei buscando muitos Augusta de Menezes, encontrei famílias, tem uma família, a mulher é Augusta de Menezes, e ele é Leirias e outro sobrenome. Um é sobrenome de uma das mulheres, que está no documento, e a mulher é de outro. E eu andei vendo, eles tiveram uma escrava chamada Brasilina. Uma escrava com nome Brasilina e que a dona perdeu, pelo visto, perdeu filhos, ela vai ter filhos mais tardiamente, os primeiros ela perde. E dentro da historinha, que dizia que meu avô... O meu pai era filho de uma escrava com o seu dono, porque o seu dono branco... Porque a dona, a dona que era branca, não podia ter filhos, aí ele foi ter filhos com a escrava. Tão bonito, tão romântico. Quer dizer, pode ter sido isso, mas também pode não ser. E essa mulher tem assim, o batismo com os santos óleos. E parece que, quando o batismo é com os santos óleos, é um óleo que se põe, já é porque está morrendo. Então tem dois batismos dessa senhora. Então isso foi o que eu consegui. Isso. E fui a outra viagem, fui procurando e conversando, aí encontro, um moço fala assim: “Olha, eu vim...” – do Cartório – “Eu vim porque o nome da minha sogra está errado, é não sei o quê de Menezes”. Eu disse: “Pronto, é o sobrenome de uma possível avó minha”. Eu fui lá conversar com o moço, o moço falou: “Olha, é, pode ser”. “E onde o senhor mora?” “A minha sogra mora no Tororó” – é um bairro lá de Cachoeira. Tororó. Eu digo: “Está bom”. Fui bater lá. Peguei um táxi, chamei uma pessoa que foi comigo, ele falou: “Eu conheço a dona...” – Nusa o nome dela – “Mas ela é meio nervosa”. Mas assim... Eu fui lá, e aí eu já achei que aquela senhora tinha tudo a ver comigo. Achei a mulher toda assim me olhando, me pondo lá. E eu: “Olha, é que eu vi seu nome, talvez seu nome, a senhora seja até minha parente”. A ingênua. A ingênua no sentido assim de quem... A frufru. Porque uma coisa é a dor do outro, o que o outro sente. Outra coisa é você... Imagina, você está procurando seus ancestrais. Olha que bonito. E a mulher ficou uma vara comigo, falou meio enrolado: “O que você ganha com isso?” Depois de muitas... Eu falei: “É que eu estou procurando a minha ancestralidade, eu quero passar para os meus netos”. Ela me olhou: “O passado passou”. Assim: “O passado passou”. Cortou conversa. Aí eu caí em mim. Caí em mim. Se essa mulher... Quer dizer, a história da escravidão, gente, está no corpo ainda. Está no nosso corpo, está na nossa mente, que a gente quer tirar de qualquer jeito. Quem passou não quer ver ancestralidade, só se você estiver muito bem respaldada por um grupo que acredita, muito bem respaldada. Mas a dona fulaninha, que nasceu sendo... Mesmo a avó, sabendo que foi escrava, escrachada, imagina que vem uma pessoa da cidade mexer nessa ferida! Eu agradeci muito, muito, muito. E ela disse mais, que ela estava fazendo isso não porque ela fosse mal educada, não, porque ela tinha educação, sim, e quem deu foi esse pai aqui, mostrou lá. Isso numa voz toda embolada. E eu caí em mim nessa questão, de que é dolorido e muito. E a gente vem com essa história de: “ah, eu quero”... Como é bonito, como é charmoso, eu estou vendo minha ancestralidade, estou buscando. Olha que generoso. Eu fico lá, aí eu curto um pouco Cachoeira, vou à biblioteca... Biblioteca não, num espaço lá que tem livro, num encontro. Encontrei da outra vez em livrão, três livros. Aliás, voltando um pouco, na primeira vez que eu fui, eu chego lá dia dois de janeiro, dois de janeiro, quer dizer, tudo fechado, tudo fechado, e eu invento de tomar água de coco, para pretexto, e fui para a pracinha e converso, puxo conversa: “Meu pai nasceu aqui. Foi sim”. “Como é o nome dele? Ah, não conheço”. Eu falei: “Pois é, mas eu estou aqui e está tudo fechado, o arquivo está fechado”. O moço falou: “Eu tenho a chave”. Aí aquele truuuu: “Espere aí, está muito fácil”. Puxei mais conversa para até perceber se realmente era. Era mesmo o arquivista, olhou, ele encontra uma Adelaide. Só que eu não estava preparada para considerar que talvez aquela Adelaide pudesse ser... Ela tinha anos e foi alforriada pelo Castro Alves. Eu falei... Sabe, desliguei, fui fazer outras coisas, tal, acabou. Da outra vez que eu fui, eu pedi, eu digo: “Por que não?”. Ele falou: “Ah, aquele lá está no arquivo pessoal”. Já estava querendo... Quer dizer, se está ali, não é pessoal. Ali ele está ganhando... Mas, enfim, ele viu que eu fiquei meio chateada, porque estava havendo um movimento de tirar o arquivo e pôr para a Universidade, porque acho que estava tendo alguns, não sei, alguns problemas, e ele pediu para eu falar... E eu disse: “Olha, é importante porque a Universidade fica distante”. Era importante, mas que funcionasse. Que quando alguém venha pesquisar, tenha uma pessoa lá e tudo mais. Foi quando ele falou: “Tem ali três livros”. Ele foi buscar para mim, trouxe um, depois trouxe outro, sabe conta gota? Trouxe três livros, que também não gravei, pesquisei esse livro muito interessante, que é... O nome é Depois que Atravessaram o Mar: Família Castro e Grupos Afins (1568-1750-2011). Quer dizer, é um moço chamado José... Não, Jorge, Jorge Ricardo. Fez uma pesquisa biográfica, memorialista... Não, biográfica, mas assim... Desde Portugal até aqui. E nas famílias afins, no último, está lá Leiria. Leiria, Menezes, Augusta, estão lá. Tem mil nomes, aí eu encontro essa família, mas eu não encontro o Valério, eu não encontro Adelaide Clementina de França, Brasilísia Augusta de Menezes, não encontrei. Entrei em contato com esse senhor, ele falou... E ele pesquisou inclusive escravos, de muitos que pegaram, que foram... Que o dono deixou usar o nome. Mas não está. Ele não encontrou essas pessoas. Essas pessoas. Aí teria que ter dinheiro para... Saúde eu tenho, mas mais disposição. É, teria que ser uma Universidade, coisa assim. E eu fiquei assim: “Pronto, e agora? Não tenho a história, como eu vou...”. A essa altura eu estava já... Seduziu-me o livro contando a história para ficar mesmo. Não tenho história, vamos dizer, e não a encontrei para dizer: “Ela era filha de tal pessoa, teve seu pai, tá tá tá, teve o filho”. Não tem isso. E eu resolvi... Não tinha mais dinheiro, aí eu disse: “Vou levar...”. Viajei com os netos, para os meus netos conhecerem, lá no Rio Grande do Norte, em Natal, a Fortaleza dos Reis Magos, onde o avô deles morou um tempo enquanto ia para outra cidade. Então, eles viram um pouco isso. E eu, nessa busca da escrita. E foi quando... E alguns professores me chamando muita atenção para... A minha escrita é muito, vamos dizer, não é literatura, é mais um relato. Porque a minha ideia era essa mesma, de relato, eu quero ser testemunha de que houve, individualmente, uma mulher, uma, ou duas, ou três, foi silenciada, que isso foi na época da escravidão, mas continua, porque mesmo depois, meu pai não falava dela. Não se falou dessa mulher. Não se falou das origens dele. Nunca. Nem a cadernetinha dele, que ele anotava tudo, até nome de remédio, e não tem anotado o nome dos pais dele? Aí eu percebi que o nome do pai dele aparece nos documentos da gente, não no dele. É como se ele tivesse se dado, ao se dar o avô, ele se deu o pai. Quando ele registra, ele pode, não precisa provar. Ele disse o nome dele, está assumindo, e o avô é Antônio Leirias, Antônio Pereira Leirias, e Adelaide Clementina de França. Então para a gente está resolvido isso, mas para quem... Eu que fui ver o que não era para ver, vi essas coisas, que não são fantasmas, mas enfim...
P/1 – E como costurar, não é?
R – Como costurar? (breve interrupção).
P/1 - Então voltando, dona Miriam, já pensando nessa costura dessas informações que a gente estava falando, como você vem trabalhando toda essa pesquisa?
R – Sim. Então, como eu, simultaneamente, mesmo tendo curso superior... Mas, para contar essa história eu achava que não podia contar de qualquer jeito. Não dava para contar de qualquer jeito. E aí eu fui fazer cursos de redação criativa, literatura. E aí foi mexendo com algumas coisas, com alguns desejos, que, provavelmente, eu tinha mas não me atrevia, porque não era para mim, mesmo eu pedagoga, psicóloga, crítica, muita coisa, tenho informação, mas escrever no nível que eu possa dizer: “Olha, está bom!” – eu não tinha. Não tenho. Primeiro, porque eu tive problema no parto. No meu nascimento, eu tive alguns problemas, que eu nasci roxinha, aquela coisa, talvez precisasse motricidade, tal, então a letra, a minha letra é muito ruim. Era para encher caderno, vivia enchendo caderno de caligrafia. E isso me trouxe muita insegurança. Muita insegurança. Porque eu vi gente chegar e dizer: “Olha, eu tenho tais dificuldades e manda a ver, escreve”. Não. Paralisa-me. É pior do que ficar nua. Tire a roupa. Eu acho que é mais tranquilo do que: “escreva aqui em público”. Eu fui mas, ao mesmo tempo, eu fui entrando, quer dizer, eu fui fazendo essa coisa de escrever e fui descobrindo talvez... Eu ainda duvido que tenha tido... Eu tinha esse desejo de escrever, mas que eu já tinha... E contar a história da minha avó me suscitou ser testemunha. E ser testemunha tem uma responsabilidade. Mas eu acho que também tinha um desejo. Eu descobri uma coisinha gostosa em escrever, e, claro, muito crítica também, e fui fazendo. Minha filha fala: “Mãe, você não para. Pô, quanto tempo? Quando vai sair esse livro?”. Eu falei: “Filha, olha, não sei. Não. Não sei”. Porque ela vê o tempo, quer dizer, é muito maior, porque até eu dizer que ia escrever, foi quando já tive coragem de dizer, porque antes não tinha coragem. Eu vou fazer cursos e cursos de aprender, uma coisa que eu gosto de aprender, e tinha um curso lá no Sesc Pompeia, que era fazer capa de um livro que não existe. Eu disse: “Isso é coisa de doido. Isso é coisa de artista, eu não sou artista, eu não vou fazer”. E fui. Então o meu “não”, às vezes, não dá para confiar. Nem eu confio muito no meu “não”. Aí eu fui e foi muito interessante. É o Fábio Morais, artista plástico, que escreve muito bem, e que me ajudou a trazer isso. E a gente tinha que fazer como se fosse uma instalação desse livro que não existe. Eu fiz não uma capa, fiz duas porque eu peguei os desenhos dos meus netos. Eu pedi aqueles desenhos lindos, aquelas coisas de criança, de misturar tinta. Ficaram lindas, lindas, lindas. Eu fiz duas capas e dei um nome: O Herói dos Sete Faróis. Porque eu queria usar o sete e o herói seria esse pai. E meu pai era faroleiro. Eu já tinha ido a vários faróis, tal. Mas ao me debruçar contando a história do meu pai, eu vejo a da avó. Qual a minha avó? É quem? Quem é a mãe dele? Eu retomei, foi essa a questão, retomei, e estou neste buscar que, às vezes, já parei... Isso faz anos e anos e anos. Quando eu percebi que não tinha uma história da avó, vamos dizer, concreta - ela é filha de tal, ela morou... Só existe um nome, não existe nem documento. E eu, já com esse desejo de não parar de escrever, criei um personagem a que dei o nome de Mirá, e essa Mirá, é ela que vai buscar essa avó. Eu criei um conto que eu findo, que ela encontra em sonho. Essa Mirá é feminista, está num lugar, tal, escuta uma música: “Eu vi mamãe oxum na cachoeira”. E ela vai para a cachoeira porque ela está com um grupo de mulheres de formação, tal, que é num lugarejo aqui de São Paulo. E ela vai. Quando chega lá, ela escuta, vê uma luz, uma coisa assim, e alguém dizendo que ela precisava procurar alguém. Ela ri, diz: “Eu nem me encontro, eu vou procurar mais alguém?”. Então ela debocha disso, tal. E ela sonha com uma menina e... Eu sei que aí tem toda uma história. E ela vai para a África e volta, e ela lá encontra... A menina diz o nome dela, Basú, ou é outro nome, e ela vai lá, num dos museus da diáspora e conta que uma família foi para o Brasil, a família, e que eles tiveram que passar, dar volta, as sete voltas, as mulheres davam sete voltas em torno da árvore do esquecimento, e os homens eram nove. E ela se negou. Para não esquecer a história dela, ela se negou e foi castigada, muito, porque tinha que passar. Mas mesmo assim vem para o Brasil. E, no Brasil, eu sei que vai indo, juntando, que essa Mirá vai, neta da Basú. E quando a Mirá vai lá a São Félix e Cachoeira, vai fazer o lançamento do livro lá, contando a história, aparece uma mulher, uma mulher bem assim, com cheiro de lírios, um cheiro de lírios, tal, que ela pensa até que está atordoada porque tomou alguma coisa, ou é ansiedade, aquela coisa. E essa mulher se aproxima e dá uma flor para ela. Ela vê que essa mulher tem uma cicatriz no dedo, aí ela olha e vê que é um olhar que as mulheres da sua família têm. É um olhar parecido com sonho. É um olhar que é característico de algumas mulheres. Ela fala: “Basú?”. E assim termina o conto. Esse é um conto. Mas tem outra saída, que esse eu fiz muito, muito, em outra oficina, foi o destempero de ir para essa coisa do sonho, do misterioso, que isso não é para mim, não é do meu feitio essa coisa de ver tocha de luz, de sonhar. Minha narrativa era muito concreta, tal. E eu escrevi Sonho há muito tempo, numa oficina, e deixei. Mas continuei fazendo oficinas. Como fazer esse gancho? E aí eu crio essa personagem, pego a personagem Mirá. E Mirá nesse processo em que ela vê que não tem a história... Quer dizer, eu vejo que não tenho a história concreta da minha avó, eu crio essa personagem, e essa personagem vai perceber que tem mais. Além da procura, tem algo em comum entre a avó Basú e Mirá: é que ambas, em algum momento, perderam os filhos. A Basú perde o filho, entrega o filho para alguém, para que ele não seja escravizado. E a Mirá perde... Por um tempo, ela tem que abandonar a filha - ou o filho, a filha - porque ela era militante de uma organização, e o filho corria risco e ela também. E ela deixa com uma irmã. E a irmã se apropria da filha e coloca para a sobrinha: “Se sua mãe estava escondida, ficava escondida, é porque não era boa coisa. Boa coisa não estava fazendo”. Então são perdas, e que eu, escritora, consegui juntar isso. Mas tem um momento em que aconteceu, aqui em São Paulo, a entrega dos restos mortais do... Não é Jessé. É de um espanhol que foi morto pela ditadura brasileira, na Operação Condor - que eram as ditaduras latino-americanas que se juntavam, e se era procurado num canto, procura em outro, tal... E o Brasil matou esse jovem. E eu faço um conto em que Mirá estava numa organização responsável por cuidar dele, naquele momento. E ela engravidou desse jovem... Por isso, eu tenho que estar com os papéis aqui. Por isso que ela entrega o filho depois, porque corria risco e tal. Esse conto eu achei tão... Achei legalzinho. E tem um momento então, ela tenta se aproximar da filha, a filha nega completamente: “Esse pai não é meu. O que você está fazendo aqui?”. Assim, negou mesmo: “Não fique perto de mim”. Mas teve um evento, que isso aconteceu... Que era para entregar os restos mortais, em que foi a ministra... E foi emocionante. Eu estava lá, como sindicalista, e ficava nos lugares assim mais interessantes. Eu estava lá. E eu ponho a personagem... Que ela está lá porque o governo brasileiro chamou, vai entregar os restos mortais. E quando ela está lá, quando chamam o nome dele, aí vem a voz, ela entra intempestiva: “Ele é o meu pai” - uma coisa assim o conto – “E essa é a minha mãe”. Aí é o momento do encontro torto, ou não, mas dessa filha da Mirá, que estava... Se estava preso naquela época, ou que estava escondida, não era boa pessoa, tal, e que ela não queria nada com aquele pai e, nesse momento, ela assume que ele é pai dela e que aquela mulher é mãe. Então é isso. Agora falta fazer o texto poético, o texto que se torne literatura, e não um relato. É fantasia? É fantasia, sim. Eu pus uma filha brasileira para esse moço.
P/1 – E como é seu dia a dia com a questão da escrita desse processo?
R – Então...
P/1 – De finalização. Ou não é uma finalização?
R – Eu não estou conseguindo, porque assim... eu teria que ter, eu acho, alguém que... Tem um nome aí. Quer dizer, pega, lê e diz: “Isso não se encaixa. Miriam, isso aqui, isso aqui se encaixa”. Ter um olhar crítico. E precisa de dinheiro. Precisa pagar para corrigir gramática, concordância, literatura, e eu estou vendo como consigo. Continuo fazendo o curso, vou tentando, mas eu percebo que a minha... Figuras de linguagem é interessante, mas parece que eu sou mais contadora da história, histórias assim. Provavelmente. Aí é que está, se eu baixar a bola nesse sentido assim de: “Olha, você vai escrever o que for possível, alguns vão gostar, alguns não vão gostar, mas foi o que foi possível. E pronto”. E isso estando num bom termo. E eu, veja, recursos financeiros para... Algumas coisas vai precisar fazer mesmo: correção. Minha amiga corrige, mas tem uma amiga... Mas ela fica achando ótimo, lindo: “Ai que lindo”. Eu fico vaidosa. Fico supercontente, mas sei que não está, não é suficiente. O “lindo” da minha amiga não é suficiente. Mas eu acho que a minha vida tem aquela coisa de traçar - eu traço, pego o compasso, mas aí vêm outros traçados. Eu vou. Meu medo é morrer antes de fazer, e ficar tudo assim para os filhos: “Ah, o que eu vou fazer com isso aqui? Ah, coitadinha da minha mãe”. Isso eu peço, quero negociar com o tempo, aquela música: “Tempo, tempo, tempo”. Dê-me um tempo para eu fazer isso aqui. Eu vou fazer sim. Então eu acho que eu estou... Eu escrevo todo dia, mas não literatura. Eu tenho alguns exercícios de escrever, é mais diário. Escrever para me organizar, tal. Mas pegar isso aqui, reler, pôr figura de linguagem: “Aqui é qual figura?”. Eu acho bonito, eu gosto assim, mas algumas pessoas acham que não, precisa de mais rebuscamento, mais... Coisas que eu acho bonito também no texto dos outros.
P/1 – Dona Miriam, já caminhando um pouco para o final...
R – Sim.
P/1 – Eu tenho algumas perguntas para a senhora que talvez se encaixem um pouco nisso do livro, dessa construção, que é um pouco do dia a dia da senhora. Como a senhora divide o seu dia a dia? Pode ser com as atividades do livro, mas também essa parte mais pessoal, por São Paulo, sair?
R – Eu tenho um cotidiano... Quer dizer, eu agora estou aposentada, eu saí do sindicato e estou tentando, vamos dizer, naquela história: que recursos eu tenho? Eu sou psicóloga, eu sou psicodramatista, eu faço trabalhos interessantes, fiz, fiz, deixei porque a militância... Então eu estou mexendo nessas questões: que recursos eu tenho para tocar? Eu estou com mais tempo, que ocupo em manter a minha sobrevivência, fazer o meu almoço, eu faço tudo. São Paulo... Tem sempre coisas que eu estou fazendo. Estou lendo, leio bastante, mas não sou de memorizar para citar, não. Mas eu leio, me dá prazer. E faço muito curso, faço... Agora mesmo eu vou fazer um no Sesc Belenzinho, novamente - é outro grupo. Tinha um grupo em Santos, mas eles não me aceitaram... Quer dizer... Claro, não me chamaram. Você ia para Santos uma vez por semana. Mas eu acho que um dia vai acontecer. Eu chego lá de dar conta. E estou resgatando, ao mesmo tempo, essas coisas do que eu disponho, do que eu tenho. Vou fazer uma oficina usando o psicodrama pedagógico e a arte do movimento, porque eu fui professora. E saí um pouco para outros encantamentos, mas eu vou e vou divulgar, e vou tocar esses meus projetos.
P/1 – E quais são os sonhos da senhora?
R – Sonhos? Um sonho assim bem... É publicar este livro lá em São Félix, em Cachoeira. Exatamente. Lá. Farei um lançamento lá. Farei um aqui também, em São Paulo. Mas lá é... Deve ter sido por lá. Claro que se eu fosse para a África, faria lá, mas eu acho que São Félix... E lá é como se fosse para apaziguar. Eu acho que essa coisa de dar a voz... Ninguém dá voz a ninguém. Mas eu acho que, em certa medida, é dizer para que não aconteça mais, que não precise haver sumiços de Brasilísias, sumiços de Adelaides. É como se... Apaziguar não no sentido de paz por coisas em cima e lá em ebulição, mas é... Isso existiu e não é para existir mais: escravidão, ditadura. E que essas mulheres e homens possam existir, sem vítimas e sem agressores, torturadores, porque isso não é bom - nem a figura da vítima, nem a figura do torturador. Para uma sociedade, isso não é bom. Para o nosso corpo não é bom, para os nossos filhos não é bom. Para ninguém. Então é isso.
P/1 – Tem alguma coisa que a senhora queira falar que eu não perguntei?
R – Que eu lembre... Tenho dois netos, tenho uma filha... Tenho dois filhos: Fábio, Gabriela. E dois netos: Caetano e Lia Morena.
P/1 – E como foi contar a sua história para a gente?
R – Gostei muito. Muito. Porque eu fico, às vezes, com sensação de: “Lá vem Miriam contar essa história, lá vem!”. Entendeu? E sou interrompida, porque também enche o saco. E depois, é para pôr no livro, não para falar. Eu agradeço muito, muito mesmo, a você, a você que teve esse tempo todo, e ao projeto, esse projeto, que é muito interessante. Uma última coisinha, essa família Leirias, agora lembrei, essa família Leirias, eu tive contato com um senhor, Jansen Leiros, no Rio Grande do Norte, e ele falou que essa família Leiria, Leiro, Lira e mais outras duas, são todas do mesmo tronco e que vieram lá da Europa. Mas pela, vamos dizer, Alemanha, por ali, vieram fugidos, com algumas dificuldades, passaram pelos Pirineus, mais ou menos, passaram Portugal, chegaram a Portugal, e eles foram aconselhados a mudar o nome - era um nome alemão, que ele não se lembra. E ele fez essa pesquisa, o filho dele também, e eles decidiram mudar. Eram cinco filhos e cada filho ficou com um nome. Então, Leiros - ele é dos Leiros - Leiria, Lira, Leiró e mais outro, que eu não lembro. São cinco que eu anotei, tenho anotado, porque achei muito interessante. E disso vim para cá. Pois é.
P/1 – Muito obrigada.
R – Obrigada a você.
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Dúvidas em grafia de nomes e trechos:
Aí encontrei a irmandade da _____01:54:27_____ no Norte, a festa uma delícia, fiz alguns amigos lá, dancei, comi a comida da mãe de santo, que tem depois da festa, da procissão, aí tem o samba de roda. – Página 14
E também na psicologia eu tinha visto que tinha... Essa fulana... Ai, minha cabeça na época era muito, vamos dizer, fechada, ler _____02:00:51_____, que ela vai dizer: “Ou você...”. –Página 15
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