Plano Anual de Atividades 2013
Projeto Nestlé - Ouvir o outro compartilhando valores – Pronac 128976
Depoimento de Camille Consuegra Bordon Carletti de Oliveira
Entrevistada por Tereza Ruiz
São Paulo 07/08/2014
Realização Museu da Pessoa
NCV_HV44_Camille Consuegra Bordon Carletti de Oliveira
Transcrito por Liliane Custódio
MW Transcrições
P/1 – Primeiro, Camille, fala pra gente seu nome completo, data e local de nascimento.
R – Camille Consuegra Bordon Carletti, eu nasci no dia 22 de dezembro de 1973, aqui em São Paulo.
P/1 – Agora o nome completo do seu pai e da sua mãe, e se você lembrar, também data e local de nascimento deles.
R – A minha mãe chama Antônia Consuegra Munhoz Carletti, ela nasceu no dia 22 de março de 1953, nasceu na Argélia. Ela tem a nacionalidade espanhola... Naturalidade... Ela nasceu na Argélia quando era colônia da França, e ela é naturalizada espanhola. O meu pai chama Reinaldo Bordon Carletti, ele nasceu no dia quatro de dezembro, mas eu não sei o ano, aqui em São Paulo também.
P/1 – E o que seus pais faziam, ou fazem, profissionalmente?
R – A minha mãe trabalha numa empresa de eventos e o meu pai é representante comercial.
P/1 – E conta pra gente um pouco como eles são de jeito, de personalidade, temperamento.
R – Então, na verdade, eles sempre foram... A minha mãe foi mãe muito jovem, a minha mãe e meu pai. Foram pais jovens. Então nós somos três irmãos: eu, eu tenho um irmão mais velho e um mais novo. E assim, eu acho que a vida antigamente era mais simples. Era menos correria, o cotidiano era um cotidiano que a mãe era mãe dentro de casa, o pai saía pra trabalhar. Minha mãe começou a trabalhar depois que a gente já saiu de casa. O meu pai sempre foi o provedor da família. Então a minha infância, ou minha educação, ela teve sempre a base familiar e minha mãe muito presente. E eles sempre foram muito liberais. Dentro de casa é uma casa muito democrática, todo...
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Projeto Nestlé - Ouvir o outro compartilhando valores – Pronac 128976
Depoimento de Camille Consuegra Bordon Carletti de Oliveira
Entrevistada por Tereza Ruiz
São Paulo 07/08/2014
Realização Museu da Pessoa
NCV_HV44_Camille Consuegra Bordon Carletti de Oliveira
Transcrito por Liliane Custódio
MW Transcrições
P/1 – Primeiro, Camille, fala pra gente seu nome completo, data e local de nascimento.
R – Camille Consuegra Bordon Carletti, eu nasci no dia 22 de dezembro de 1973, aqui em São Paulo.
P/1 – Agora o nome completo do seu pai e da sua mãe, e se você lembrar, também data e local de nascimento deles.
R – A minha mãe chama Antônia Consuegra Munhoz Carletti, ela nasceu no dia 22 de março de 1953, nasceu na Argélia. Ela tem a nacionalidade espanhola... Naturalidade... Ela nasceu na Argélia quando era colônia da França, e ela é naturalizada espanhola. O meu pai chama Reinaldo Bordon Carletti, ele nasceu no dia quatro de dezembro, mas eu não sei o ano, aqui em São Paulo também.
P/1 – E o que seus pais faziam, ou fazem, profissionalmente?
R – A minha mãe trabalha numa empresa de eventos e o meu pai é representante comercial.
P/1 – E conta pra gente um pouco como eles são de jeito, de personalidade, temperamento.
R – Então, na verdade, eles sempre foram... A minha mãe foi mãe muito jovem, a minha mãe e meu pai. Foram pais jovens. Então nós somos três irmãos: eu, eu tenho um irmão mais velho e um mais novo. E assim, eu acho que a vida antigamente era mais simples. Era menos correria, o cotidiano era um cotidiano que a mãe era mãe dentro de casa, o pai saía pra trabalhar. Minha mãe começou a trabalhar depois que a gente já saiu de casa. O meu pai sempre foi o provedor da família. Então a minha infância, ou minha educação, ela teve sempre a base familiar e minha mãe muito presente. E eles sempre foram muito liberais. Dentro de casa é uma casa muito democrática, todo mundo se respeita, cada um tem a sua opinião, existe muito diálogo lá dentro. Isso é legal, porque apesar de a minha mãe ter sido uma mãe e meu pai ter sido um pai muito jovem, eles sempre respeitaram o nosso ponto de vista e nunca colocaram a verdade deles como sendo verdade absoluta, então é legal.
P/1 – Que idade eles tinham quando eles...?
R – A minha mãe quando teve meu irmão, ela tinha 19 anos, e meu pai, acredito que 21. Vinte e um, 22. São outros tempos.
P/1 – Você sabe como eles se conheceram? Eles já contaram essa história pra você?
R – Putz, você sabe que eu não sei. Espera aí, parece que foi uma coisa de trânsito, uma briga de... Sabe, um carro bate no outro, e minha mãe tava no carro num carro, e meu pai em outro carro, e aí acabaram se conhecendo. Parece que foi isso. Olha, vou falar, minha memória não é boa (risos).
P/1 – (risos) Você tem dois irmãos, você falou. Qual o nome dos seus irmãos e o que eles fazem?
R – Meu irmão mais velho chama Marcelo, é empresário, e o mais novo é o Paulo e ele trabalha com eventos, ele é produtor de eventos.
P/1 – E você falou que sua mãe nasceu na Argélia.
R – Isso.
P/1 – Eu queria te perguntar, você qual a origem da sua família, do teu pai e da tua mãe?
R – A parte do meu pai é italiana e a parte da minha mãe é espanhola. Minha mãe nasceu na Argélia por causa da guerra. O meu avô foi pra Argélia por causa de guerra, conflito, tal. Por isso que eles vieram para o Brasil também. Por isso que minha mãe veio para o Brasil. Mas a família toda da minha mãe é espanhola; e a do meu pai, italiana.
P/1 – Você falou que seu avô foi pra Argélia por causa de guerra. Mas ele era militar? Você sabe qual é essa história?
R – Putz!
P/1 – Não?
R – Não sei falar. Não sei falar. E uma pena eu não saber falar, porque na verdade eu também não tive nem oportunidade de conversar com ele sobre isso. Que eu acho que quando a gente vai... Na verdade, o meu avô sempre foi um avozão. Sabe vovô, vovô gostoso, aquele vovozinho? Só que eu também era muito criança ainda quando ele convivia com a gente. Quando a gente vai tendo consciência e criando algumas expectativas e querendo saber um pouco mais da história, nessa época ele foi embora, ele faleceu. Então eu não tive a oportunidade de conversar. Eu sei que ele veio fugido da guerra para o Brasil. Ele ficou 30 anos sem poder voltar pra Espanha, então sem ver os pais dele, a mãe dele. Depois de 30 anos aqui no Brasil, que aí ele refez a vida dele, virou comerciante. Enfim, ele foi um batalhador e vencedor aqui no Brasil. Aí ele voltou pra Espanha, pôde rever toda a família dele, os irmãos. Porque eles eram cinco irmãos, então, imagina, 30 anos sem ver a família toda, os irmãos, o tanto de história que ele perdeu nesse período. Quando ele voltou, aí ele pôde entrar na Espanha sempre, então ele ficava seis meses lá, ele e minha avó, e seis meses no Brasil. Eles faziam isso. E é legal, porque aí ele pôde retomar o vínculo. Na verdade, eles nunca perderam os laços. Eles sempre se escreviam, todo mundo, sabe, mandava foto. Então quando ele chegou à Espanha, depois desse tempo todo, ele sabia o que tava acontecendo, porque ele tinha toda essa história documentada, mas não pôde vivenciar porque não teve oportunidade, porque ele tava impedido de entrar no país dele. Mas depois que ele pôde, ele sempre foi. Infelizmente, eu nunca tive a oportunidade de conversar com ele a respeito disso e saber realmente de fato o que ele passou. Porque eu sei, por exemplo, que ele foi pra campo de concentração, mas eu não sei da história, e isso é uma pena. Mas tudo bem.
P/1 – A sua mãe veio para o Brasil com que idade?
R – Ah, ela tinha dois anos.
P/1 – Bem pequena então.
R – Bem pequena.
P/1 – Então ela quase não deve ter nenhuma recordação do...
R – Ah, se tiver, é muito pouca. Mas não tem problema também porque ela tem agora a experiência de hoje, porque hoje ela tem a oportunidade de ir, ficar com a família, rever os primos. E aí é legal também porque quando a gente vai tem muita história pra contar: “Ah, porque a sua tia, a tia tal, fazia assim, assim, assim. Ela era assado, assado...”. Então isso é interessante.
P/1 – Tem alguma dessas histórias assim de família que você tenha escutado que tenha te marcado?
R – Putz, não tem, eu acho.
P/1 – Nada que você lembre agora em especial assim?
R – É. Não.
P/1 – Conta um pouco pra gente então como é que era a casa em que você passou a infância. A casa, o bairro...
R – Então, eu cresci numa... Eu morava em prédio, então eu cresci num prédio onde esse prédio ficava numa rua sem saída e tinha muitas crianças. Tanto é que essas crianças, hoje todos adultos, nós somos amigos até hoje. Os meus laços da infância permanecem até hoje na vida adulta. Isso é muito legal. Era um prédio que tinha toda a infraestrutura, então a gente tinha piscina, quadra, sei lá, parquinho. Então a gente tinha muita atividade, a gente brincava muito dentro do prédio e na rua também, porque pelo fato de ser rua sem saída e a violência ser menor, é uma rua que só tinha prédio. Então as crianças, além das crianças do meu prédio, tinha as crianças dos outros prédios. Então era muito divertido. Não existia videogame, então a nossa brincadeira era com bicicleta, era polícia e ladrão, era queimada, era com bola, com... Enfim, na piscina. Foi muito legal. Eu tive uma infância que foi muito privilegiada em todos os sentidos, de poder aproveitar todas as fases... Eu realmente fui uma pessoa que eu aproveitei a minha infância até os 15 anos. Eu era um moleque. Eu jogava futebol, eu era a dona da bola, sabe aquelas coisas? A bola era minha, então eu jogava futebol, eu batia figurinha, jogava bolinha de gude, pulava elástico e isso eu não tinha preocupação de namorar, eu tinha preocupação em me divertir e em estudar. Era esse o nosso compromisso. Hoje é bem diferente, porque hoje você vê uma menina de 15 anos, normalmente já tá grávida, já tem dois filhos, porque é essa realidade que eu trabalho hoje. Você vai a uma comunidade, você vê as crianças que têm 12 anos já são mães e isso é muito triste. O conceito, o ser criança, eu acho que precisa ser resgatado, porque a gente precisa ter essa atividade. Não pode pular etapa. Eu acho que eu não pulei nenhuma etapa na minha vida. Nem eu e nem todos os meus amigos, nem os meus irmãos, então isso foi muito legal, porque até hoje a gente mantém os vínculos e tem muita história pra contar: “Ah, lembra daquela vez que a gente tava brincando, sei lá, de polícia e cidade”. A gente brincava de cidade, de bicicleta. Então tinha o banco, tinha a parte onde era estacionamento das bicicletas, aí a gente ia pra garagem. Puta, era uma bagunça.
P/1 – Como que era isso, brincar de cidade? Explica um pouco.
R – Todas as crianças, todos os meus amigos a gente tinha bicicleta, então aquele dia um era da polícia, o outro era o dono do banco, o outro era, sei lá, o dono do supermercado. A gente tinha dinheiro, que eram as folhas das árvores, e tinha que fazer compras na padaria, ia lá e pagar. Era divertido. Eu gostava.
P/1 – Onde que era esse bairro que você passou...
R – Na Lapa.
P/1 – E o apartamento, você lembra? Ele existe ainda?
R – Existe. Inclusive, tem amigos meus que ainda moram lá, então é um lugar que eu sempre frequento. Não é uma coisa que ficou esquecida, a gente tem muito vínculo lá. Muito vínculo. E aí você acaba visitando. Na verdade, o prédio que eu morava, hoje não tem mais as mesmas características do que tinha antigamente, então você entra no prédio, a gente se lembra de várias situações, mas é engraçado que o layout do prédio foi modificado. Então tinha, por exemplo, um murinho verde e aí a gente tinha campeonato de futebol na quadra. Então enquanto os meninos estavam jogando futebol, as meninas ficavam no murinho verde, em cima do murinho verde. Esse murinho verde não existe mais, mas quando você entra no prédio que você olha: “Ah, lá ficava o murinho verde”. É divertido.
P/1 – Você gostava de futebol?
R – Gostava. Todas as brincadeiras com bola eu gostava.
P/1 – E você tem um time? Você torce pra algum time?
R – Eu torço pelo Palmeiras, mas eu não sou fanática. Quem é o fanático é meu marido, mas ele é corintiano, então... Aí existe uma rivalidade, né?
P/1 – Conta um pouco pra gente como é que eram as refeições da sua casa. Quem que cozinhava? O que é que vocês comiam?
R – Minha mãe. Minha mãe sempre cozinhou. Sempre cozinhou. Eu e o Marcelo, que é o meu irmão mais velho, a gente foi educado de uma maneira diferente do Paulo, que é o meu irmão mais novo, porque o Paulo é o temporão. Então são oito anos de diferença que eu tenho com ele. Então era engraçado, a minha mãe, quando eu e o Marcelo, a gente acordava, por exemplo, pra ir pra escola, época de frio, aí minha mãe colocava nosso uniforme dentro da máquina de secar pra ficar bem quentinho, tirar o pijama quentinho, colocar o uniforme quentinho, ficar tudo... Aí sentava pra tomar café, aquela gemada. Então você já acordava, eu já acordava com o barulhinho da minha mãe fazendo a gemada. O Nescau, e aí um pedaci... Um pão... Tinha que comer gemada, leite, o pão, pra depois comer uma bolacha recheada. Quando o meu irmão nasceu, o café da manhã dele era um pacote de bolacha recheada. Nunca tomou leite. Então é engraçado isso. Porque você tem como comparar. Mas em casa sempre foi minha mãe que cozinhou. Como minha mãe era uma mãe presente realmente, ela fazia parte, ela cuidou da gente desde pequeno. Então era almoço, à tarde café da tarde, aí chamava todo mundo pra comer bolo em casa, porque ela sempre fez bolo, então tomava café à tarde, aí meus amigos iam lá e comiam bolo.
P/1 – E almoço e jantar assim o que era a base da alimentação de vocês?
R – Arroz, feijão, bife, salada, batata. O trivial, nada de... Macarrão, né?
P/1 – E o momento da refeição vocês se sentavam juntos?
R – Sempre, sempre todo mundo junto. Sempre na mesa, sempre comendo junto. Sempre tinha aquilo lá, sabe, comia mais rápido e queria sair não podia, tinha que esperar os outros terminarem. Eu acho que na hora, talvez, eu deva ter ficado com raiva em algum momento, porque você tem pressa de fazer outras coisas, mas hoje você vê que os valores estão tão diferentes, que é tão importante você sentar, comer junto, conversar. Aquele momento é um momento único. E nós tivemos isso em casa. Isso é muito legal. Nós tivemos. A minha casa sempre foi uma casa bem familiar. Nunca foi uma casa onde cada um fazia o que queria. É óbvio que tem a democracia dentro de casa, mas existiam as regras que a gente cumpria e que era cumprida de uma forma tão saudável que não fez mal pra ninguém. Eu apanhei, eu levei bronca, eu fiquei de castigo, mas eu não tenho raiva de nada disso, entendeu? Muito pelo contrário. Naquele momento, eu precisava ficar de castigo pra aprender alguma coisa, pra ter algum limite pra minha vida hoje. É um reflexo, entendeu? Algumas coisas que a gente passa na nossa vida servem realmente pra gente refletir num futuro. Então eu acho que tudo que aconteceu tem um lado positivo. Por pior que tenha sido em alguns momentos, que eu não queria ficar de castigo, que eu queria descer pra nadar com todo mundo e a minha mãe falou que naquela hora eu tinha que ficar de castigo, poxa, hoje eu sei o que é limite, entendeu? Você sabe até onde ir, o que fazer, como fazer, respeitar, que infelizmente não existe hoje isso. Eu trabalho com pessoas que não têm limite. Não têm limite. E é muito complicado você desconstruir aquilo que já foi construído. Então eu acho que foi tudo bem. É tudo bem.
P/1 – Camille, e a escola? Quais são as primeiras lembranças que você tem da escola?
R – Escola? Primeiro, assim, eu sempre estudei em escola estadual, escola do governo. Eu nunca estudei em escola particular. Na verdade, quando eu saí do primário, meu pai me colocou numa escola particular, só que aí eu não queria, porque era uma escola muito conservadora, quem estudava naquela escola eram as... Eu fui para o colegial, só que quem estava estudando no colegial já estava junto desde o primário, então eu tava inserida dentro de um espaço que não fazia parte do meu habitat natural. Então eu passei muito mal e aí eu fui pra escola onde todo mundo que estudou comigo foi. Mas a escola foi um período também que foi muito bom. Primeiro, assim, existia também todo o respeito com o professor, eu entrava na escola, eu tinha que cantar o hino, tinha a fileira, as filas que se faziam das salas e aí a gente cantava o hino. Respeitava o professor. Quando o professor entrava na sala, eu lembro que eu tinha que levantar, porque o professor era realmente uma autoridade, existia o respeito. Independente de ser escola estadual, ou escola particular, existia esse respeito. Mas também foi um lugar onde eu também fiz novos vínculos de amizade, além de ter tido toda a base dos meus estudos.
P/1 – Quantos anos você tinha quando você começou a frequentar a escola?
R – Seis anos.
P/1 – E as primeiras recordações que você tem da escola, da estrutura da escola, de como você se sentiu. Você lembra?
R – Puta, eu me lembro da tia Elza, que é a mãe de uma amiga nossa, que também morou no mesmo prédio que a gente, ela trabalhava na secretaria da escola e eu me lembro dela rodando as provas no mimeógrafo, aquele cheiro de álcool. Eu lembro muito da cantina, da sala de aula. Da sala de aula, assim, nada de especial mesmo, mas dos momentos onde todo mundo tá junto confraternizando alguma coisa, ou de passagem, essas coisas... Eu me lembro de tomar vacina na escola, eu não sei se existe hoje. Aplicação de flúor na escola, eu também não sei se tem isso hoje. Eram algumas coisas que existiam na minha época, que hoje talvez tenham se perdido ou não tenham valor.
P/1 – Essa escola existe ainda?
R – Existe. Existe! Essa escola existe, mas eu também não sei como que... Também não fui mais.
P/1 – O nome, você lembra?
R – Marina Cerqueira César. Eu estudei no Marina até a oitava série. Meu, era muito divertido também. E aí eu tenho uma amiga, que é minha amiga até hoje, a gente morava junto, estudava junto. Era muito legal essa... Todo mundo saía do prédio, ou da rua onde a gente morava, e ia a pé pra escola e voltava a pé pra escola. Então tinha um grupo que sempre ia junto. Algumas pessoas tinham raiva de mim e dela, porque sempre tem aquelas rivalidades. E era engraçado, porque eu sou mais velha que ela, então a minha série era uma na frente, quando eu saí da escola, pra ela não ficar sozinha, ela teve que mudar de escola, porque ela sabia que não ia aguentar, suportar o “diz que me disse” sem a minha presença. Puta, mas era legal. A gente jogava vôlei, aí a gente competia pela escola com outras escolas. Eu não sei se existe hoje isso, mas existia um torneio entre as escolas, os times de vôlei, ginástica olímpica. Ah, fazia ginástica olímpica também. Eu era meio que atleta. Hoje não (risos).
P/1 – Você teve algum professor marcante na sua vida escolar assim, de ensino básico?
R – Tive uma professora... Não, mas não foi... Foi no colegial. Eu tive uma professora de história que ela era muito boa. Muito boa. Carmem. E ela fazia a gente fazer seminário sempre, era um tormento. Então o que eu li de Capitalismo, Stalin, tudo com ela. E aí fazia seminário. Quando eu fui pra faculdade, todas as minhas aulas de Economia eu não precisava fazer... Quer dizer, eu participava, mas na verdade eu já sabia tudo que o professor tava falando, porque eu tive uma base no colegial, por causa da Carmem, muito boa. Ela ampliou a visão de uma maneira que isso me marcou muito. Marcou-me também porque ela era ruim. Não ruim, ruim. Aquelas professoras exigentes que... Ela tinha uma autoridade dentro da sala de aula que se você falasse alguma coisa, ela duvidava de você. Ah, mas tudo bem. Tinha também uma de Geografia que ela fazia a gente desenhar mapa. Era engraçado.
P/1 – E nessa fase de infância assim, ou começo de adolescência, você lembra o que você queria ser quando crescesse?
R – Não. Não pensava nisso. Eu só fui pensar na minha vida profissional, realmente, no colegial, e no fim do colegial mesmo. Antes eu não pensava. Eu tinha outras coisas pra pensar. Eu tinha que pensar naquela... Eu sempre vivi o hoje, entendeu? Esse negócio de fica planejando, programando, projetando, é óbvio que hoje eu tenho as minhas ambições e eu sei que eu preciso ter alguma segurança no futuro, mas naquela época eu não tinha esse conceito que eu vejo que muita gente tem, muitos adolescentes: “Não, eu quero fazer isso, eu to estudando pra isso, porque no futuro eu quero ser tal coisa, quero estar em tal lugar”. Eu não tinha essa visão. E aí no colegial, quando a gente começou a pensar em vestibular, aí eu fiquei pensando o que eu poderia fazer. E eu sempre pensei em trabalhar com pessoas. Eu nunca me imaginei trabalhando dentro de um escritório, em frente a um computador, ou naquele trabalho quadradinho, sabe, burocrático. E aí eu fui buscar informação e aí eu vi o curso de Serviço Social, na verdade, que ninguém falava, ninguém sabia, tanto é que quando eu falei na minha casa: “Ah, eu vou fazer Serviço Social.” Minha mãe falou: “Ué, mas o que é isso?”. Meu pai... Bom, mas eu vou, porque não é... Todo mundo fazia Direito, Administração, Comunicação, esse era o auge na minha época. “Ah, eu vou fazer Comunicação, vou fazer Direito, vou fazer Administração.” E eu vou fazer Serviço Social, totalmente diferente.
P/1 – Como é que você chegou no Serviço Social? Você lembra? Como é que você descobriu?
R – Não, fui pesquisando, e de acordo com o que eu fui lendo, eu fui vendo que eu me identificava, porque era realmente isso que eu queria fazer, trabalhar com pessoas. E aí o que significa trabalhar com pessoas? Estar em contato com essas pessoas, fazer o que por essas pessoas, entendeu? Eu acho que eu sempre pensei, quer dizer, na verdade, inconscientemente, em ser um agente transformador em relação a alguma situação dessas pessoas, entendeu? E aí eu acho que a minha profissão, quer dizer, eu tenho certeza que a minha profissão me permite isso. Só que a época que eu me formei, que foi em 96, o assistente social, na verdade, ele existia muito em serviço público. Ou você era funcionário público... As empresas não viam o assistente social, o profissional, como uma pessoa importante dentro da empresa, como muitas ainda não enxergam isso. E aí dentro do serviço público você encontrava assistente social. E dentro dos centros de acolhida, dos albergues, você encontrava. Então era um trabalho realmente de ajuda. Mas também não era... A minha intenção é ajudar, mas é sempre mostrar o potencial que essa pessoa tem. Não ajudar por ajudar, tem que ter um motivo, entendeu? Você é capaz de fazer alguma coisa, então vamos ver onde eu posso te ajudar nesse sentido. Num primeiro momento, o assistente social é visto sim fazendo um trabalho de abraçar essa pessoa. Então essa pessoa, dependendo onde você tá inserido no seu trabalho, essa pessoa precisa resgatar a cidadania através de um documento, e muitas vezes esse ser humano não é daqui de São Paulo, é de sei lá de onde do Brasil. Então buscar a certidão de nascimento, como que ele faz isso. Aí o assistente social tem ferramentas pra facilitar essa busca e fazer com que a pessoa volte a ter um documento e possa ser reinserida na sociedade de uma forma mais digna. Só que não é só isso, entendeu? É muito além. Além do documento, do que essa pessoa é capaz? Então eu acho que eu acredito mais nessa capacidade do indivíduo. E o meu trabalho me permite isso.
P/1 – Deixa só eu voltar um pouquinho.
R – Pode voltar.
P/1 – Eu vou conversar contigo sobre faculdade, tudo isso, mas quero voltar ainda pra fechar essa coisa da sua infância, te perguntar se tem alguma história de infância assim que tenha sido mais marcante, um episódio. Sabe aquelas histórias que você sempre lembra ou a família sempre lembra?
R – Ah, eu acho que não. Eu não tenho... Puta, olha, eu vou falar uma coisa, outro dia eu tava pensando nisso, né? É impressionante como a minha memória não é boa (risos). Ou como minha memória serve pra guardar as coisas ruins e apagar as coisas boas. Isso também é triste. Não que tenha tido fatos relevantes de coisas ruins na minha vida, porque mesmo o ruim que aconteceu, ou algum fato que foi negativo que aconteceu na minha história de vida, eu tento buscar sempre o lado positivo, mas é engraçado que quando eu to com os meus amigos, quando eu to com os meus irmãos e eles começam a contar as coisas, eu falo: “Mas eu participei disso?” “Lógico que participou, Camille, você também estava lá”. Então é complicado, porque eu tenho uma memória meio fraca pra essas coisas, mas eu lembro muito, por exemplo, dos bailinhos que a gente fazia na minha época de infância, desses encontros que a gente tinha no meu prédio com as crianças, dos campeonatos de futebol que tinha dentro do prédio. Por exemplo, quando chegava a época de verão, porque a piscina do prédio ficava fechada na época de inverno, daquele dia que abria a piscina e todas as crianças lá embaixo esperando o portão abrir. Aquilo lá era uma festa pra todo mundo, pra mim também. Isso eu lembro muito. Eu lembro muito da gente brincando na quadra com água e sabão, sabe, de escorregar. Eu lembro quando a bola caía pra casa dos vizinhos, porque o meu prédio ficava em cima, então a quadra ficava aqui e aqui tinha um morro, só que, lógico, tinha o muro do prédio, tinha um morro e umas casas aqui embaixo. Então a bola caía pras casas. A gente pulando o muro, indo buscar... Essas coisas eu lembro, porque a gente era muito arteira. Eu e minhas amigas, a gente era criança mesmo. Meu irmão tinha um carrinho de rolimã, a gente descia com o carrinho de rolimã os morros, sabe? Uma viela que tinha, sem pensar no perigo. Eu me lembro de eu andando de bicicleta sem mão, sem pé, sem nada, umas descidas. Não sei como nunca aconteceu nada. Gente, é uma loucura. Mãe deve sofrer. Mas a gente se divertia. Eu lembro que eu não tinha medo do perigo, porque a gente não vê perigo. A gente descia a escada do prédio, eu morava no terceiro andar, então eu descia a escada do prédio, ao invés de elevador, escada, pulando. Não era descendo o degrau. Uma vez eu bati o queixo na parede e eu tava indo pra educação física, aí eu comecei a ver umas gotas assim de sangue, mas eu continuei indo sem preocupação.
P/1 – E abriu?
R – Abriu. Fiz um ponto. Lembro uma vez que eu tava... Ah, nem isso não dá pra contar.
P/1 – Não?
R – (risos) Essas coisas... Tem coisa que não pode contar. Mas que eu também me machuquei e que machuquei o tornozelo. Tive que tomar uma antitetânica, é isso? Aí a mulher ao invés de dar... Deu no braço, não levantava o braço. Putz.
P/1 – E nessa transição assim da infância pra adolescência, o que mudou na sua vida, pra adolescência e pra juventude em termos assim de lazer, de amigos, de passeios?
R – Então, aí você vai construindo novas relações. O prédio acabou ficando pequeno e aí a gente começou, por exemplo, eu tinha uma amiga, tenho uma amiga que a gente ia muito para o interior. Então a gente passava as férias no interior na casa da tia dela e lá a gente foi construindo novas relações. E essas relações eram pessoas também que moravam próximas ao nosso prédio, que ela morava na mesma rua, moravam próximos ao nosso prédio e que a gente também foi ampliando nossos horizontes. E também tenho outra amiga que eu ia muito pra praia com ela. Então também são outras relações que foram sendo construídas. E as de raiz continuam. Isso é muito legal. Então só teve... Eu acho que na minha vida, isso é muito legal, eu relembrando agora, eu não tenho nenhum momento de exclusão de pessoas. Eu só agrego pessoas para o meu lado. E o fato de eu trabalhar com pessoas faz com que o meu círculo cada vez seja maior. Se eu montar uma rede aqui, a minha rede acho que vai ser bem ampla.
P/1 – E o que você fazia pra se divertir? Pra onde você saía?
R – Então, a gente saía pra dançar, ia às matinês. Não sei se... Deve ter hoje, né?
P/1 – E como é que eram essas matinês?
R – Puta, divertida. Eram...
P/1 – Descreve um pouco pra gente. O que tocava? Como é que era o espaço?
R – A gente ia muito pra Woodstock, que é da minha época, não sei se é da... Era muito legal. Era uma danceteria bem pequenininha que todo mundo ia. A galera da escola, a galera do prédio, a galera dessas relações que a gente construía de viajar, tal. Então no domingo todo mundo ia pra Woodstock. E depois abriu... E lá tocava uma banda que chamava Rock Memory, que era divertidíssimo também. A gente se divertia. Um espaço pequenininho e tal. Também lá foi um momento de descobertas de muitas coisas, porque você acaba encontrando novas pessoas, paquerando, coisa que você não fazia, eu não fazia.
P/1 – O que tocava? O que tocava de música nessa época?
R – Ah, meu, eram músicas boas, porque hoje só tem música ruim. Puta, eram músicas... Eu lembro muito sabe do quê? De RPM. RPM também foi um marco na minha vida. Assim, foi o auge. RPM, Legião Urbana, Ira, Lobão, bandas nacionais que hoje você não tem a mesma qualidade, e que até hoje elas tocam em todos os lugares que eu vou, por exemplo, entendeu? Se eu vou dançar a um lugar que é pra minha faixa etária, sei lá, que eu não vou a uma matinê, por exemplo, vai tocar esse tipo de música. Isso é muito legal.
P/1 – Você tem uma canção que tenha te marcado assim de alguma dessas bandas?
R – Ah, não tenho.
P/1 – Tenha marcado um relacionamento.
R – Putz, não tenho.
P/1 – Não?
R – Ah, não tenho.
P/1 – Ou um show de algum...
R – Eu sou o desapego total. Gente, eu não tenho. Um show, eu me lembro do Menudo. Gente, isso também foi o auge (risos). Engraçado. Lá vamos nós para o Menudo no estádio, uma chuva, uma chuva e os caras se atrasaram. Tipo, não lembro, mas sei lá, o show era pra começar uma hora, era cinco horas, seis horas da tarde eles não tinham chegado e não tinham nenhuma perspectiva de início de show. E aquela chuva... No fim, eu não assisti ao show. Fui embora. Minha mãe também acho que falou: “Chega, né? Vai ficar doente”. Uma chuva, um frio e aqueles Menudo, nada. Pelo amor de Deus, que engraçado.
P/1 – Que idade você tinha? Não lembra (risos).
R – Não faço a mínima ideia.
P/1 – Mas você gostava de Menudos?
R – Adorava. Na verdade, eu gosto de tudo quanto é tipo de música, até hoje. Eu sou tipo que você tá no inferno, abraça o capeta. Se tocar sei lá o quê, pra mim tá bom. Se todo mundo tá se divertindo, eu vou me divertir também. Entendeu? Se eu to me divertindo, é isso que importa. Então eu não tenho aquela coisa: “Ah, tá tocando...”. É óbvio, tem coisa que eu não consumo, mas eu não me importo em escutar. Se eu to me divertindo, tá tudo bem. Eu não sou aquelas pessoas ranzinzas que falam: “Ah, não gosto disso e... Ah, não gosto de samba”. Beleza, meu. Mas é legal você ir a uma feijoada com um pagode de vez em quando. Eu ia. Hoje eu não vou mais, não sei por que também. Acho que quando você vira dona de casa também é complicado. Mas eu ia bastante com umas amigas, era divertido. E eu me divertia, entendeu? Eu acho que a ideia é essa, a vida é um presente realmente e você tem que fazer com que seja uma dádiva. Tem que se divertir, tem que aproveitar. E eu procuro fazer isso.
P/1 – Você comentou assim, na Woodstock, essa coisa de paquera, que você também despertou, teve algum relacionamento, algum namoro marcante nessa fase?
P/1 – De lá? Não.
P/1 – Nessa fase de adolescência em geral. Não só na Woodstock, mas da adolescência e juventude.
R – Não, porque... Sabe o que aconteceu? Eu não me preocupava com namoro. Eu fui começar a namorar quando eu tinha 17 anos. Então eu ia à Woodstock quando eu tinha 15, que podia ir na matinê, mas eu tinha cara de 12, sabe umas coisas assim? E todas as vezes que eu ia, me pediam o documento pra entrar. Então também tinha isso, eu acho que os meninos olhavam pra mim e me viam também como criança. E eu também não tinha essa preocupação, não fazia parte. Naquele momento, eu tava lá pra me divertir, pra descobrir as coisas que estavam acontecendo de novas. E eu gostava de ir, dançar, conversar, mas eu não tinha a preocupação de beijar. Não tinha a preocupação de paquerar. Não tinha. Eu podia até olhar um menino bonito, tal, mas tá bom, sabe? Eu ainda era muito imatura e eu respeitei isso. Quando eu senti a necessidade, ou percebi que “putz, chegou a hora”, aí eu fui, beijei, enfim, e descobri outras coisas na minha vida. Mas até então, o fato de eu sair com os meus amigos, por mais que os meus amigos fossem pra paquerar, pra beijar e tal, eu não tinha essa preocupação, então eu ia pra me divertir realmente, pra estar junto e participar. E a gente se divertia.
P/1 – E esse namoro aos 17 anos, qual a história?
R – Ah, primeiro amor, né? Agora vem a parte (risos).
P/1 – (risos).
R – Então, mas vocês vão chegar até os 40 anos?
P/1 – Vamos (risos).
R – Caraca.
P/1 – Fique tranquila (risos).
R – Então, aí comecei a namorar. Puta, foi muito legal. E é divertido.
P/1 – Quem era esse primeiro namorado? Como vocês se conheceram?
R – Então, eu ia muito para o interior e lá a gente fez novas amizades, e ele fazia parte desse grupo. Então a gente se conheceu no interior. Mas ele é de São Paulo ainda. E ele era mais novo que eu, mas como eu era imatura também, por mais que a mulher seja mais madura do que o homem, eu também... Pra mim... Continuava gostando de jogar vôlei, continuava gostando de jogar basquete, eu fazia as coisas que eu gostava de fazer, independente de eu ter 17 anos ou... Enfim. E ele também, a gente se conheceu lá. E lá tinha uma danceteria que a gente ia todo final de semana. Eu e a Camila, a gente passava as férias lá, então a gente passava 15 dias lá nessa cidade. E tinha uma danceteria que todo mundo ia à danceteria. E acabou que a gente se conheceu lá, ele fazia parte do mesmo grupo de amigos. Eu e a Camila ficávamos na casa da tia dela, que era dentro de um... Como fala? Um condomínio fechado. E todo mundo era desse condomínio, e ele também participava disso. E aí a gente se conheceu, enfim, e começou a namorar. E divertido. Foi um namoro que durou bastante. Mas quando acabou, ele falou assim pra mim... (risos). Falou assim: “Então, olha, a gente já namorou dois anos”. Eu falei: “Puta, mas a gente namorou quatro. E esses outros dois eu devo ter namorado sozinha”. Mas eu fiquei bem triste, óbvio, porque foi ele que terminou o namoro. Durante todo esse tempo teve idas e vindas, mas quando acabou mesmo, de fato, foi ele que terminou, então foi uma dor pra mim, com certeza. E o mais engraçado é que a gente saía e a gente saía junto, ele continuava fazendo parte... Porque os nossos amigos eram em comum. Aqui em São Paulo quando a gente saía, ele também tava, eu também tava, mas não tinha mais nada a ver. E tudo bem, a vida continuou. Foi legal também, porque hoje você tem maturidade pra entender tudo isso. Porque você fala: “Nossa, nunca mais eu vou conseguir gostar de outra pessoa como eu gostei dessa pessoa. Nunca mais eu vou ter a possibilidade... Sei lá, nunca mais”. E esse “nunca mais” é uma mentira, porque graças a Deus as pessoas são tão diferentes, e que a vida consegue surpreender a gente com coisas muito boas. Então outras pessoas apareceram, tive outros namoros, mais sofrimento, que faz parte da vida mesmo, eu fiz sofrer, eu sofri. Eu me diverti pra caramba, entendeu? Devo fazer sofrer até hoje o meu marido, coitado. Do mesmo jeito que ele me faz sofrer às vezes. Mas eu acho que tudo faz parte de um crescimento mesmo. É o ciclo natural da vida. Parece que é uma história: você nasce, vai acontecer isso, depois isso. E todas as etapas, eu vivi com propriedade. Eu vivi, eu não pulei. Tem gente, por exemplo... Ah, tem muitas amigas minhas que namoraram sério durante cinco anos, seis anos, dez anos, sei lá, e todas... Eu nunca tive problema em ficar sozinha, eu sempre me diverti comigo mesma. Então todas as vezes que a gente saía... Por isso que quando eu ia às matinês e não ficava com ninguém, eu tava me divertindo do mesmo jeito, de outras maneiras. E quando eu saía depois de já ter ficado com algumas pessoas, ia pra dançar ou ir para um bar, eu me divertia do mesmo jeito comigo mesma, entendeu? Então eu acho que sei lá também, não é tão legal, mas eu me basto (risos). E eu acho legal isso, quando você se gosta e quando você consegue se divertir com você mesma, quem vier pra perto de você só vai somar, não vai criar uma relação de dependência. E eu acho que o grande prazer da vida é esse. Cada pessoa é uma pessoa, não é “ah, a gente se completa”. Você tem o seu ser, eu tenho o meu, o meu individualismo, e a gente está junto, mas respeitando as prioridades de cada um. Isso é muito legal. E aí eu acho que isso realmente se completa. O fato de eu não, sei lá, saber falar russo, e você saber falar russo, não faz com que a nossa relação seja completa, entendeu? Então eu sou muito bem resolvida. E o fato de eu ser bem resolvida faz com que as pessoas que venham e estejam do meu lado estejam pra somar, são uma somatória pra minha vida.
P/1 – Eu queria falar um pouco contigo agora sobre essa entrada na faculdade. Você contou como você decidiu que ia fazer o Serviço Social. Queria saber assim, quando você entra de fato na faculdade, o que muda na sua vida? Como é sua experiência universitária, experiência com o curso?
R – Então, primeiro que eu acho que quando você... Não sei hoje, mas assim, com 17 anos, eu entrei na faculdade com 17 anos, ainda existe muita imaturidade e muitos questionamentos: “Será que é isso? O que é isso?”. Esse novo. Isso é o normal também na nossa vida. Quando a gente tá acostumado, você tá na sua zona de conforto, você sai da sua zona de conforto, esse novo causa uma expectativa que causa um medo, um receio. Como eu vou enfrentar tudo isso? Mas também é um novo desafio que serve pra gente amadurecer. E aí quando eu entrei na faculdade, o primeiro ano... Primeiro que eu entrei, era só mulher. E mulher é um bicho complicado, porque querendo ou não, eita... Eu sei, eu sou mulher. E aí era só mulher, aquele bando de mulher, e uma mais... Todas... Então eu levei um susto. No primeiro momento, eu levei um susto. Porque eu saí do colegial onde eu tinha muitos amigos, e continuo com eles até hoje, e eram amigos homens e mulheres. E aí de repente eu entro numa faculdade onde eu só encontro mulher e nenhuma que faz parte do meu círculo de amizade. Eu tenho uma amiga que também fez faculdade, ela fez Pedagogia e era no mesmo prédio, então era legal, porque a gente ia junto e voltava junto. Eu lembro que também pra ela foi um choque, porque a gente... Apesar de que pra ela menos, porque como ela tinha feito o magistério, então ela já tava acostumada com esse novo universo. Pra mim era um novo universo mesmo. E aí eu me questionava: “Gente, o que eu to fazendo aqui? Será que é isso mesmo?”. Mas querendo ou não, o primeiro ano de faculdade, assim, eu já tinha muita clareza do que eu queria. Por mais imatura que eu fosse no âmbito profissional, eu já tinha muita clareza do que eu queria, como eu queria desenvolver a minha vida profissional. E o primeiro ano de qualquer faculdade é um ano que você fica... É muito genérico, não é nada específico. E também foi um momento de descobertas e que ok.
P/1 – Deixe-me te perguntar uma coisa que ficou lá atrás. Você falou da cidade do interior, que vocês iam, que cidade era?
R – Tatuí.
P/1 – Tatuí.
R – Tatuí.
P/1 – E qual foi a faculdade que você fez?
R – FMU.
P/1 – FMU.
R – É.
P/1 – Tá. E durante a faculdade, você fez estágios?
R – Fiz. Eu fiz estágios no poder público.
P/1 – Conte-me como foi, como foi a experiência, o que você fazia.
R – Não, o que aconteceu? Eu tive que virar gente grande. Porque assim, na minha casa, felizmente, eu nunca precisei arcar, pelo menos no meu período de estudo, na minha época de infância, adolescência, até a vida adulta, meu pai e minha mãe sempre proveram tudo. Então eu não tinha o compro... O meu único compromisso era estudar. Essa era a minha única responsabilidade. E aí na faculdade, no segundo ano, eu tinha que fazer estágio, só que eu ainda vivia no mundo do faz de conta, no mundo que eu gostava de viver. Eu ia pra faculdade à noite, depois eu saía, chegava a casa, podia dormir até uma hora da tarde, acordava. Eu tinha uma vida bacana, sem responsabilidade. E aí no segundo ano eu fiquei de DP de estágio (risos). Meu pai falou assim: “Olha, não vou pagar, se vira”. E aí eu fui fazer estágio. E fui para o CIEE, nem sei como funciona hoje, mas, puta, foi muito legal. Era muito legal você receber um telegrama do CIEE e abrir, falar: “Você está convocada para uma entrevista em tal lugar”. Você se sente importante também. E lá fui eu fazer a entrevi... (corte no áudio).
P/1 – Então, Camille, só pra retomar, você tava contando quando você tava indo pra sua primeira entrevista no Iprem, é isso?
R – É. E lá no Iprem também era uma experiência nova a contratação de estagiários. Então foi legal. Eu fui a primeira estagiária a ser contratada lá no Iprem. E tinha outras vagas abertas, aí eu chamei minhas amigas que estudavam comigo pra virem trabalhar. E foi muito bacana, só que trabalhar no poder público é complicado também. Então naquele momento eu já percebi que ser funcionária pública não era uma perspectiva de vida que eu teria. Esse negócio “ah, vou estudar pra...”. Não vou. Não quero. Porque infelizmente as pessoas estão dentro da máquina e elas se acomodam. Então além do meu trabalho... Eu trabalhava com processo de pensão. Então, por exemplo, o servidor público morre, ele deixa um beneficiário, esse beneficiário vem buscar o direito que é dele, então a esposa do cara que faleceu vai lá ao Iprem e vai requerer a pensão pra ela. A moça já tá debilitada, ou o cara já tá debilitado, então acho que essa burocracia, aí começa um monte de documentação que é necessária, ok, mas saía do meu espaço, eu tinha que montar o processo de pedido de pensão, aí eu montava, passava pra outro setor. Às vezes eu tinha que ir atrás do processo pra dar andamento, porque a pessoa que tava lá trabalhando, infelizmente, não tinha uma preocupação com a pessoa que tava requerendo o benefício. Poxa, por mais que você receba retroativa, você tá acostumado a receber um X por mês e você tem a sua vida. Você tá debilitado porque você já teve uma grande perda, e ainda por cima ficar dependendo da boa vontade dos outros, sendo que é sua obrigação. E aí eu acabava fazendo mais do que o meu trabalho. E a verdade é que a minha vida profissional é meio que assim. Eu começo fazendo uma coisinha, mas aí eu vou buscando, vou fuçando no trabalho de todo mundo, de uma forma sutil, mas quando eu vejo, já to envolvida. Não sou quieta. Podia ser quieta, mas não sou quieta. Assim, o tempo que eu fiquei no Iprem foi muito legal porque eu tive muita experiência profissional. Eu fazia muita visita domiciliar, eu tinha contato com pessoas de diferentes situações, eu tinha todo o trabalho burocrático pra fazer, mas também eu tinha o lado que era mais humano, que eu acabei desenvolvendo. Então foi um aprendizado muito grande, no caso na área que eu escolhi.
P/1 – Você se lembra dessas visitas domiciliares, desse contato direto que você tá chamando de aprendizado mais humano, se teve assim uma pessoa que tenha te marcado mais, uma situação, uma vivência?
R – Não. Não tem uma pessoa, mas assim...
P/1 – Uma história, uma situação que você tenha vivido que tenha sido marcante, porque você tava começando a profissão.
R – Então, na verdade, por exemplo, eu ia fazer visita domiciliar, aí eu entrava em realidades que não faziam parte da realidade que eu vivia. Então eu ia fazer uma visita domiciliar, e era engraçado, uma visita domiciliar que eu fiz, você solicitava o carro pra fazera visita, aí você pede referência pra pessoa: “Onde é? Dê-me uma referência”. Aí a moça falou assim... Eu lembro que ela falou assim: “Olha, quando você passar uma pedra... Você vai, segue a avenida” – não lembro que avenida – “mas você vai ter uma pedra do seu lado direito, quando você passar a pedra, você conta dois pontos de ônibus e vira à esquerda”. Eu falava: “Nossa, mas isso é referência? Mas é uma pedra?” “Não, é uma pedra”. Eu falei: “Não é possível”. Aí lá vamos nós. Eu falei para o motorista: “Vamos na avenida, quando chegar a essa pedra...” “Camille...”. Eu falei: “Pois é, vamos ver”. Mas era uma pedra. Não era uma pedra, era uma pedra. E você passava a pedra, contava dois pontos de ônibus, mas dois pontos de ônibus numa distância de cinco quilômetros, dez quilômetros cada ponto. A referência que ela tinha dado, que parecia ser surreal, na verdade era a realidade que ela vivia e que funcionava. E quando você entra numa comunidade é muito louco, porque número 350, o 350 tem dos dois lados, não é que nem a gente tá acostumado. Trezentos e cinquenta é par, mas pode estar do lado ímpar, pode ter três 350, e aí você vai batendo, batendo, e a galinha, tem galinha, cachorro, passarinho. Então, assim, são histórias que eu vivenciei que realmente fizeram e fazem parte da minha vida profissional. E que fazem parte da realidade que existe até hoje e que infelizmente é esquecida. Você entra numa favela, ninguém tá preocupado com saneamento básico, ninguém tá preocupado com asfalto, com a questão de saúde. Eu entrava na favela com o carro da prefeitura, porque é um carro oficial, aí você entra, sei lá, dez horas, dez e meia da manhã, você vê um monte de gente que é produtiva e que está ali parado e não quer fazer nada, e quando vê o carro oficial, chega pra você e fala: “Então, você veio me trazer uma cesta básica? Você veio me trazer...”. Então esse tipo de trabalho aí é... Bom, eu nunca levei acho que cesta básica pra ninguém. E também vai ser muito difícil. Não vou falar “nunca”, mas vai ser muito difícil eu fazer isso. Mas de qualquer maneira, você vê como as pessoas se acomodam nas suas zonas de conforto e sabem que o poder público tem algumas obrigações, e eles sabem quais são as obrigações, e fazem as cobranças. Então se eu trabalhar, ou se eu não trabalhar, se eu for uma pessoa produtiva ou não, eu vou comer do mesmo jeito. Se a saúde tá precária, não tem problema, ela existe e eu vou ter que ser atendido.
P/1 – Você lembra como você se sentiu nessas primeiras visitas?
R – Então, num primeiro momento, você leva um susto. E também, eu nunca... Eu levava um susto, mas eu também via outra realidade que muitas pessoas não enxergavam. E eu também começava a trabalhar muito isso dentro da minha cabeça, porque querendo ou não, quando você trabalha com as pessoas e enxerga o potencial das pessoas, se você não se policia, você acaba ficando frustrada. Então tem isso também. Então eu tinha que tomar cuidado, e tenho que tomar cuidado até hoje, porque por mais que eu acredite no seu potencial, eu tenho que respeitar o seu tempo, senão eu que vou me prejudicar. Então eu não podia ficar frustrada diante de tudo isso. E também não conseguia achar aquilo uma situação normal. E eu não vou acreditar que isso seja uma situação normal. Eu não posso compartilhar com isso, entendeu? Então, assim, as pessoas vinham falar comigo, num primeiro momento você olha, fala: “Ué”. E você começa a entender também... Eu comecei a entender o que representava uma logo da prefeitura, um carro oficial, um crachá do poder público, pra elas, pra essas pessoas. E eu via a importância que eu tinha em relação às pessoas que eu encontrava, porque elas confiam também no seu trabalho. E eu sempre fui muito verdadeira: “Olha, eu posso fazer até aqui. Mais do que isso não tem como, mas eu acho que você pode ir além”. E sempre mostrei isso no ser humano, entendeu? É possível você ir além, é só você querer. Eu posso te ajudar até aqui, mais do que isso não dá. Então no primeiro momento, eu podia até ficar assim, mas depois você vê que a coisa é um normal anormal, que você tem que começar a mudar a sua postura. E foi isso que eu fui aprendendo a fazer, entendeu? E que eu faço até hoje, essa é a verdade.
P/1 – E você falou essa coisa de aprender a respeitar o tempo do outro e o limite do outro. Você se lembra de algum exemplo concreto que você tenha vivido na sua vida profissional que esteja relacionado a esse aprendizado?
R – É o que eu vivo hoje. Por exemplo, eu trabalho com cooperativas de reciclagem, aí a gente trabalha muito a gestão administrativa dessas cooperativas. Várias questões. Quando você monta uma cooperativa, tem o estatuto, o estatuto de constituição, a ata de constituição, o estatuto de formação de cooperativa, e você explica pra essas pessoas a importância desse documento, várias vezes. E até hoje, muitas pessoas que eu trabalho não entendem. Ou melhor, não querem entender. A questão é essa, não é que não entende, é não querer entender. Então o que eu tenho que trabalhar comigo é assim, eu não me importar de falar 25 milhões de vezes a mesma coisa, porque esse é o meu papel. Eu não vou fazer por você, mas eu vou te orientar 25 milhões de vezes, pra você fazer uma coisa que você poderia ter feito 25 milhões de vezes antes, entendeu? Então até hoje eu tenho que trabalhar muito essa minha frustração em saber que a pessoa pode ir além e que muitas vezes ela não quer ir além por outros fatores. E esse tempo eu tenho que respeitar. Agora, uma coisa que eu não deixo de fazer, mostrar pra essas pessoas que eu vou além. O fato de você não querer ir mais do que você pode ir, eu respeito. Só que como eu trabalho com você, você tem que entender que eu vou além. Então as minhas expectativas e as minhas ambições, tanto pessoais, como profissionais, eu não anulo porque você quer se anular. O fato de eu poder comprar, sei lá, ir ao McDonald’s... Eu não vou ao McDonald’s, eu odeio o McDonald’s, então isso eu não vou fazer. Mas por exemplo, ir a uma lanchonete, sentar e comer um sanduiche, e ter o prazer de pagar a minha conta, eu não vou deixar de fazer isso porque você não pode fazer. Eu vou mostrar pra você que você também pode fazer, é uma questão de você querer mudar a sua postura. Agora, o tempo que você vai levar pra fazer isso é você que vai decidir. Você entende?
P/1 – E, Camille, e um caso de transformação que você tenha acompanhado? Eu entendi bem, que você tá falando de uma maneira geral, mas to pensando numa história mesmo, pra trazer assim pra uma coisa mais... Uma experiência humana.
R – Específica?
P/1 – Você tá falando mais dessa coisa da resistência. Não sei nem se “resistência” é a melhor palavra, mas o tempo de cada um. Mas nesse seu tempo todo de profissão, de carreira, de trabalho, tem uma história que tenha te marcado, de uma pessoa que tenha conseguido passar por uma transformação ou por uma mudança?
R – Tem várias histórias. Eu sou cercada de pessoas que são iluminadas. Isso é muito legal.
P/1 – Conta uma pra gente.
R – Por exemplo, na cooperativa lá do Butantã, na Recicla Butantã, tem a Graça e a Helô. Quando eu comecei a trabalhar... (interrupção).
P/1 – Então, Camille, só pra retomar, você ia começar a contar uma história da Cooperativa Butantã, com a Graça.
R – Isso. Então, aí lá na cooperativa... Faz sete anos que eu trabalho na Reciclázaro, então faz sete anos que eu acompanho o trabalho da Cooperativa Recicla Butantã. E lá, quando eu comecei o trabalho lá, tinha outra liderança, que na verdade era uma liderança totalmente negativa. E o que a gente começou a fazer lá? Trabalhar as pessoas pra elas entenderem o que tava acontecendo no espaço, entender qual era a potencialidade que elas tinham, como era a postura que elas deveriam ter frente a tudo que elas estavam vivendo. E aí tem duas pessoas que chamam a Heloísa e a Gracinha. A Gracinha, a primeira vez que eu encontrei a Gracinha lá na cooperativa, ela era tão tímida, tão tímida, que você conversava, ela só olhava no chão, não conseguia olhar no seu rosto. E a Helô, o fato de ela não ser alfabetizada fazia com que ela mesma se limitasse. E quando essa liderança saiu, outras lideranças tiveram que assumir a cooperativa, e quem assumiu foi justamente a Heloísa e a Graça. Então você vê a transformação que elas tiveram. Porque a responsabilidade que elas têm não é só uma equipe. Quando você trabalha dentro de uma cooperativa, você trabalhava com pessoas que você conhece, porque normalmente elas são da comunidade, então você sabe como é a vida dela dentro de casa, quantos filhos tem. Então eu trabalho com você e sei tudo da sua vida, e sei quais são as suas necessidades. Então a minha responsabilidade em fazer isso daqui funcionar pelo fato de eu ter uma liderança é maior do que a sua, mesmo a gente sendo cooperado e tendo o mesmo nível de entendimento. Então a Helô assumiu a cooperativa de tal maneira, e a postura dela mudou, que mesmo o fato de ela não saber ler, nem escrever, não impediu de ela ter uma liderança positiva e fazer com que a cooperativa tivesse um progre... Tenha, né? Na verdade, ela tá numa crescente que eu fico admirada. E isso é reflexo do trabalho dela e da Graça. A Graça é meio... Hoje ela já olha a gente. É engraçado. Não tem mais tanta vergonha. Ontem, por exemplo, a gente tava com o subprefeito da região, a Gracinha acompanhou o subprefeito, conversou com o subprefeito. Antes não fazia. Então você vê um progresso nessas pessoas e um trabalho que a gente faz de mostrar a importância em você se colocar, em falar, em lutar pelo que é seu de direito, em entender que você tem direito, mas também tem seus deveres e é importante que você os cumpra. Hoje a gente tá falando de pessoas que recolhem o INSS, e isso é uma luta de dentro da cooperativa, de tanto que a gente falou da importância na gestão em recolher o INSS pra caso aconteça alguma coisa, ou pra uma aposentadoria. Então eles sabem da importância disso e fazem com que isso aconteça. Há pouco tempo, vai, menos de dez anos, querendo ou não, eles trabalhavam na informalidade. E hoje eles entendem, e principalmente a Helô, ela vai à reunião, ela se coloca. Antes ela não falava, hoje ela sabe o que ela quer e o que a cooperativa dela precisa. Eu enquanto Reciclázaro não preciso falar no lugar dela, é ela que vai falar e ela que vai defender o grupo de trabalho dela, que ela tá lá e faz parte. Então essas histórias de evolução tem várias. São várias. E é engraçado que eles começam a defender primeiro um espaço, depois eles começam a entender da comunidade, o que a comunidade precisa e o que eles podem fazer pra lugar pela comunidade. Então além de ser um líder de dentro da cooperativa, passa a ser um líder comunitário. Eles entendem que, por exemplo, se eu to conversando com uma autoridade, um subprefeito, um secretário, tal, eu to falando no caso do subprefeito, to falando de uma cooperativa, essa cooperativa existe no bairro tal, esse bairro existe uma favela, os cooperados são provenientes dessa favela, só que eles também precisam ser atendidos nas suas necessidades básicas. Então a liderança já começa a articular de uma forma mais ampla, aí você vê que o seu trabalho tá dando resultado. Por exemplo, aqui na Vitória do Belém, outro dia a gente recebeu um parceiro que ele tava falando da formação que ele faz em algumas cooperativas, ensinando os cooperados a, por exemplo, entenderem no que é transformado o material quando sai daqui. E aí é uma formação específica, tal, que ele tava dando numa cooperativa X, que eu não sei qual é. E a Juliana, que é daqui da cooperativa, ela é coordenadora de produção da Vitória do Belém, aí ela tava participando da reunião junto com o seu Ademir e a gente tava falando sobre outros assuntos, aí a reunião acabou, eu perguntei: “Jú, você tem alguma coisa pra falar? Seu Ademir, você tem alguma coisa pra falar?”. Ela falou assim: “Não, em relação à proposta dele, eu não tenho nada a acrescentar, mas eu gostaria de receber essa formação que ele tá dando em outro lugar”. Ele olhou pra minha cara, porque partindo de um cooperado essa iniciativa realmente causa estranheza. Porque o cooperado, na verdade, ele sabe que quando ele sai da produção, ele não ganha. Só que essa cooperativa, e a Juliana tem essa consciência por causa da formação que ela teve, que se ela tem mais informação, ela vai ter mais capacidade pra desenvolver o trabalho. Então tá mudando e isso é muito legal. Só que é óbvio que leva um tempo. Essa postura que ela teve, por exemplo, que eu fiquei surpresa e feliz, é uma postura que eu gostaria que todos tivessem. E eu trabalho pra que todos tenham. Só que é difícil, porque eu sei também que se eles saem da cooperativa, eles deixam de produzir, o salário deles, a retirada mensal, acaba diminuindo. Então a realidade é uma, enfim... Mas é muito bacana. E isso faz com que a minha realidade e a minha história de vida realmente fiquem mais enriquecedoras. Eu ganho muito com todas as experiências que eu vivo. Eu falo que o meu trabalho, isso eu falo pra todo mundo, o meu trabalho me dá a oportunidade de repensar a minha vida várias vezes. Eu não preciso ter uma grande perda, sabe? Normalmente alguém: “Ah, perdi. E agora? O que eu faço? Vou repensar”. O meu dia a dia me dá essa possibilidade, porque eu enfrento situações diferentes e situações que eu jamais imaginaria estar inserida e que eu repenso algumas situações na minha vida pessoal. E isso é muito legal.
P/1 – Você se lembra de um exemplo assim agora?
R – Não. Não lembro, mas assim, o que eu deixo... Não, é bem genérico, mas assim eu não deixo de ter, de fazer as coisas que eu posso fazer. Por exemplo, o meu marido me proporciona jantar fora, num restaurante X e eu vou gastar um absurdo, sei lá, um valor Y. Esse valor Y, eu sei que corresponde a um terço do que eles recebem, do que os cooperados recebem, mas isso não me faz ter remorso. Porque eu poderia ser uma profissional falando: “Nossa, eu não vou gastar isso, porque isso representa...”. Não. Eu repenso algumas ações na minha vida, mas não deixo de viver a minha vida. Os meus valores, eles vão se transformando, mas é óbvio que eu respeito o todo. O que eu passo, você não passa. O Marcelo, meu marido, não passa. A realidade que ele vive é uma realidade... A realidade profissional que ele vive é uma realidade profissional diferente da minha, e a minha me dá a oportunidade de repensar alguns valores, mas eu não me anulo a realidade que eu posso viver. Entendeu? Confundiu?
P/1 – Sim. Sim. Não, não, ficou claro. Ficou claro. Eu queria voltar um pouco nessa primeira experiência no poder público, sua primeira experiência profissional. Você lembra o que você fez com a... Você tinha uma bolsa? Era remunerado?
R – Tinha.
P/1 – Você lembra o que você fez com esse dinheiro? Tinha alguma coisa que você queria comprar e tenha conseguido comprar com esse dinheiro?
R – Não. Porque, na verdade nunca me faltaram as coisas.
P/1 – Mas às vezes não é uma coisa que falta, é um desejo só, sabe?
R – Sei.
P/1 – Alguma coisa que você desejava.
R – Não.
P/1 – Não?
R – Não.
P/1 – Nem uma viagem, nem...
R – Não. É óbvio que... Eu imagino... Porque, por exemplo, eu não tinha despesa, entendeu? Eu não tinha despesa nenhuma. E as minhas necessidades básicas eram atendidas dentro da minha casa. E mesmo quando eu saía, que eu saía mesmo, o meu consumo era muito baixo. Eu nunca fui uma pessoa de extravasar. Então o que me era permitido era suficiente. Quando eu passei a receber uma bolsa... Nem lembro como chama. Uma ajuda de custo, né? Assim, não fez tanta diferença na minha vida. Sei lá, talvez eu quis comprar alguma coisa que meu pai e minha mãe não poderiam me proporcionar por causa da situação.
P/1 – Mas você não se lembra de nada especial assim.
R – Não me lembro de nada especial. Não lembro.
P/1 – Queria saber então um pouco, você contou dessa primeira experiência profissional, como é o percurso até você começar a trabalhar com reciclagem. Como você chega a isso? Como você chegou a isso?
R – Então, depois que acabou o meu estágio no Iprem, e aí eu me formei, eu fui trabalhar, na verdade... Essa parte é uma parte triste da minha vida, bem triste, uff. Mas beleza. Eu fui trabalhar... Do lado da minha casa, porque aí eu já não morava mais no prédio, morava numa casa, os nossos vizinhos tinham uma metalúrgica, que fazia banho de zinco, fosfato, uma galvanização. E aí eles fizeram uma proposta para o meu pai pra comprar outra metalúrgica, que a metalúrgica que eles tinham, que já fazia muitos anos, tava meio ruim das pernas. E o que eles queriam fazer? Pegar os clientes dessa empresa e levar pra uma empresa saudável, e ofereceram uma sociedade para o meu pai. Só que o meu pai não podia, porque ele já fazia parte de outro contrato, era outra coisa, então ele não podia se envolver. Sei lá também. E aí ele me ofereceu: “Camille, você quer?”. Eu questionei, na minha imaturidade, tal, questionei. Ele falou: “Não, é uma coisa que vai ser casada. O pessoal da empresa X vai fechando a empresa aos poucos, eles vão fechando a empresa aos poucos, e os clientes vão pra essa nova empresa e vai fazer a mesma coisa”. Então, quer dizer, eles tinham o know-how, eles tinham os clientes, eles tinham o mercado, eles só precisavam de uma empresa saudável pra poder continuar trabalhando, porque na verdade eles tinham muita dívida, muitas dívidas, né? Eu falei: “Bom, tá bom então. Se você acha que tá bom, então vamos”. Na verdade, tinha acabado o meu estágio, eu ainda não tava empregada, então era uma oportunidade. E aí começamos a trabalhar nisso. Só que era uma coisa que não tinha nada a ver, assim, eu não conhecia nada, absolutamente nada. Por exemplo, banho de zinco e fosfato, tinha uma engenheira química que fazia o PH das coisas, tal. Bom, eu nem sabia o que era, eu fui descobrir na prática como funcionava, tal.
P/1 – Qual era a sua função? Mas qual era a sua função?
R – Eu ficava lá gerenciando todo o processo, porque essas outras pessoas que eram os nossos sócios, eles não podiam largar a empresa que eles tinham imediatamente. Então eles iam uma vez, sei lá, um período do dia, e eu ficava full time na nossa empresa. Só que eu não tinha experiência nenhuma e na verdade o que foi combinado não foi cumprido. Então ao invés de ser um projeto, ou um trabalho de sucesso, foi um grande fracasso, entendeu? E que aí eu tive muitas... E continuo tendo muitas consequências desse fracasso na minha vida, porque é o meu nome que consta em contrato social. (corte no áudio).
P/1 – Vamos retomar. Eu só quero fazer duas perguntas, antes de você continuar falando, pra entender exatamente qual era a sua função. Você saiu um pouco da área então, foi isso?
R – Saí. Saí.
P/1 – Você disse que foi um grande fracasso, por quê? Explica um pouco melhor pra gente o que aconteceu.
R – Porque a empresa não deu certo. Um fracasso pessoal também, porque querendo ou não, eu tinha uma profissão que eu tinha escolhido e de repente eu entrei numa área que não tinha nada a ver comigo, e quem... Querendo ou não, por mais boa vontade que todo mundo tenha tido na época, quem responde por tudo isso sou eu. Entendeu? Sou eu, porque é o meu nome que consta lá, não é o nome de mais ninguém. Então foi uma grande decepção. Tanto é que eu fiquei durante muito tempo sem saber, perdida. Porque querendo o não, eu sempre tive o controle da minha vida, e de repente eu não tinha mais. E aí? Como funciona? Então foi complicado. Foi uma época, uns anos aí que duraram, que foram muito complicados. Porque, assim, quando você entra pra fazer um trabalho novo, só que você tem a formação para o trabalho, por mais medo que te cause você ainda tem a teoria que tá te embasando. Eu entrei pra fazer um trabalho novo sem experiência nenhuma e nada de teoria. Então a minha prática era uma prática totalmente diferente da prática que eu tava vivenciando. Então era tudo muito novo. Tudo muito novo. Eu vender, eu fazer compras, eu vender o meu produto, eu organizar produção, eu me preocupar com o funcionário se tá usando o EPI ou não, eu entender da linha de produção e saber que aquilo lá era totalmente perigoso pra qualquer pessoa, se colocar a mão lá, a gente tá falando de ácido, ia derreter, imagina o problema que... Então eu entender de tudo isso também levou um tempo. Só que o tempo que levou pra eu entender, infelizmente, é um tempo muito longo, e o que foi programado pra ser feito não foi feito. Então foi um grande fracasso. E as pessoas que se prontificaram a fazer todo o combinado não fizeram. E a partir daí, eu passei a duvidar muito do ser humano, isso é uma pena, porque querendo ou não, eu sou uma pessoa que sou muito pura. Se você me fala alguma coisa, eu vou acreditar até que me prove o contrário, mas não minta, não fale assim: “Olha, eu vou... Camille, eu vou chegar aí às dez horas”. Você chega meio-dia e meia, eu falo: “Putz, meu”. Sabe coisa besta? Eu já começo a desconfiar. Então eu passei a desconfiar muito das pessoas quando eu vivenciei essa época da minha vida. Porque por mais que você queira o meu bem, você consegue me colocar numa saia justa e sair de campo como se nada tivesse acontecido, poxa, que mundo é esse? E assim, a minha vida, pra mim eu tenho uma clareza muito grande, eu vim pra cá pra fazer o bem, entendeu? Eu não vim pra cá pra pisar ou tirar vantagem em cima de alguém, eu não quero isso. O mundo é redondo, você faz alguma coisa, vai voltar pra você. Então plante o bem, que vai voltar o bem. Se você faz alguma coisa de mal, é você que vai sofrer as consequências. Então pra mim foi um período muito difícil. Muito difícil mesmo. No fim a gente teve que fechar. Aí eu fiquei um tempo perdida. Perdida, sem saber o que fazer, como eu volto para o mercado de trabalho. O fato de eu desconfiar das pessoas fazia com que eu pensasse que as pessoas também poderiam desconfiar de mim. Eu queria mostrar para as pessoas que eu nunca agi de má fé, entendeu? E as pessoas agiram de má fé comigo. Então é complicado. Então eu me sentia... Como entender tudo isso na minha cabeça? Então fiquei um tempo muito depressiva mesmo. Mas no fim eu voltei para o mercado de trabalho também não trabalhando como assistente social, mas na parte administrativa de uma escola de inglês. Então eu fazia todo o trabalho com todos os alunos da escola, de manutenção desses alunos da escola, comercialização do produto que a escola fazia, controle de compras, prestação de contas. Então eu fazia toda essa parte na escola. E fiquei lá durante oito anos. Eu não sei por que a gente cria raiz nos lugares. Mas é impressionante. Não sei se isso é bom ou se isso é ruim, mas foi muito bom, porque também eu criei outros vínculos, fiz outras amizades, tenho as pessoas até hoje na minha vida, voltei a acreditar em mim, no meu potencial. Porque também teve muito isso, entendeu? Uma vez que você é derrotado, independente... Eu fiz parte de uma derrota, então eu também tenho que me responsabilizar por tudo que... Ninguém colocou uma arma na minha cabeça e falou: “Você vai participar disso”. Foi consenso. Então eu fiz parte de uma derrota e eu também tinha que acreditar no meu potencial. Teve uma hora que eu falei: “Chega, não quero mais trabalhar aqui”. E eu comecei a buscar cursos pra entender como funcionava o Terceiro Setor. Porque eu falei: “Bom, já trabalhei no poder público e não é isso que eu quero. Já fui dona de uma empresa e também não é isso que eu quero. Trabalhei numa empresa privada e percebi que o lucro, infelizmente, não é repartido para as pessoas. Poxa, também não é isso que eu quero. Eu quero trabalhar, fazer meu trabalho bem feito e também ser remunerada de acordo com o que eu faço, porque existe a compensação de tudo isso, é o natural”. E eu via que deixava muito a desejar. Eu entendo, infelizmente ou felizmente, eu sou uma pessoa que busco compreender muita coisa, que naquela época era aquilo e ponto, mas aquilo e ponto não tava mais me satisfazendo. Aí eu comecei a buscar então o Terceiro Setor. Eu falei, gente, o Terceiro Setor talvez o fato de ser uma organização não governamental sem fins lucrativos, o que vai acontecer? Aquilo que você pensar ou tiver trabalhando vai ser revertido pro seu trabalho, entendeu? Não to falando Camille, eu to falando trabalho. Vamos ver como funciona. E aí eu comecei a buscar cursos e fui fazer cursos pra entender o Terceiro Setor. Na escola que eu trabalhava, o padre José Carlos Espínola, que é o fundador da Reciclázaro, ele estudava. E aí uma vez eu falei pra ele: “Eu sou assistente social e quero voltar pra minha área”. Aí ele falou: “Vai lá conversar com o RH”. Aí lá vou eu conversar com o RH. Fui lá e falei: “Olha, o Padre José Carlos Espínola me mandou aqui conversar com vocês pra entender o trabalho e tal”. Só que o padre José Carlos Espínola mandava todo mundo conversar (risos). Só fui entender isso depois também. Falei: “Esse padre é fogo mesmo”. E aí eu comecei a trabalhar na Reciclázaro, aí eu fui entender, mas de qualquer maneira...
P/1 – Mas deu certo, essa conversa então?
R – Deu muito certo.
P/1 – Como é que foi assim? Você chegou e aí eles...
R – Aí eu conversei, conversei com a Adriana, falei: “Olha, eu sou assistente social”. Falei um pouco da minha história profissional e falei: “Eu quero trabalhar agora no Terceiro Setor. Não tenho mais experiência, porque como você fica muito fora do mercado, você acaba adquirindo outras experiências que não da sua área. Então eu to disposta a trabalhar como voluntária, sei lá, pra resgatar um pouco e voltar pra minha área de atuação”. Ela falou: “Ah, tudo bem”. O que a gente fez? O que ela fez? Levou-me pra conhecer todos os projetos da Associação Reciclázaro e aí ela falou: “Olha, esses são os projetos, você pode ver o que você gostaria, tal”. E aí no fim, a casa que me absorveu, o projeto que me absorveu pra fazer o trabalho voluntário, mas na verdade era mais voluntário pra eles do que pra mim, porque eu que tava com sede de informação, queria entender como que tava funcionando as coisas e queria também entender como que funcionava, por exemplo, um albergue, um convênio com a prefeitura, que tipo de trabalho que desenvolvia, se era só aquilo que o Terceiro Setor fazia ou outras coisas, entendeu? Então quem tava buscando informação era eu. Então a Reciclázaro foi a fonte de tudo que eu precisava. E aí a Casa de Marta e Maria, que é um centro de acolhida pra mulheres, deixou com que... Abriu as portas pra que eu fizesse o meu trabalho lá. E a assistente social da casa na época, que era a Patrícia, ela me recebeu de braços abertos e aí ela começou a me falar como que funcionava, o trabalho que ela desenvolvia. Então como que era a prestação de contas que eles tinham que fazer pra prefeitura, como que era o atendimento social, a pasta de todas as pessoas que ela atendia, o prontuário, os relatórios e aí eu fui resgatando tudo que eu fazia já na prefeitura. Porque na prefeitura eu fazia a mesma coisa, todos tinham prontuário, tinham processo, visita domiciliar, visita domiciliar a Casa de Marta e Maria também fazia. Enfim, e aí eu fui de novo. E um belo dia surgiu uma oportunidade na Reciclázaro. Eu fiquei durante um ano, se eu não me engano, fazendo esse trabalho.
P/1 – E como é que foi essa experiência de trabalho voluntário?
R – Pra mim foi sensacional. Eu trabalhava, o meu trabalho na escola era à tarde, eu entrava às duas horas, então na parte da manhã, duas vezes por semana, uma vez por semana, eu vinha pra Reciclázaro e ficava só absorvendo as informações e entendendo como que funcionava.
P/1 – Mas qual que era a sua função? Como voluntária, de que maneira você participava?
R – Eu participava muito com a assistente social da casa. Então ela chamava pra fazer entrevista social, aí eu ficava do lado escutando ela fazer a entrevista social com a pessoa. A pessoa ia embora, aí a gente conversava: “Pati, você podia falar isso? Você podia perguntar isso? O que você acha disso e daquilo?”. E a gente trocava as experiências que nós tínhamos, mesmo porque nesse momento eu acabei resgatando da minha memória o meu trabalho na prefeitura. Então a gente acabou trocando várias. Ela fazia algumas coisas, por exemplo, ela acompanhava as meninas, porque só são mulheres, aos médicos, entendeu? Ela acompanhava... Muitas ficavam grávidas, então ela tinha que fazer internação. Então era coisas que eu, por exemplo, não fazia, que eu passei a entender. A gente trazia alguns tipos de serviços pra dentro da casa, como existe até hoje. Eu lembro que na minha época a gente fez uma parceria com, eu não lembro qual era a outra organização, que eles vinham, eles colocaram uma ambulância dentro da casa e trabalharam a conscientização da importância da mulher fazer o exame de toque. E no mesmo dia fizeram o exame Papanicolau, todos os exames mais básicos pras mulheres e aí eles fizeram... Porque muitas mulheres falam assim: “Ah, eu não posso ir ao médico porque eu to trabalhando. Ah, eu não posso fazer isso porque...”. Então pra facilitar a vida delas, a gente trouxe uma organização parceira que fazia tudo isso no local, entendeu? Então não tinha desculpa pra não fazer. O meu trabalho com a Patrícia, na verdade foi mais trabalho dela comigo, porque eu tava lá cheia de curiosidades pra entender um pouco do nosso trabalho. Assim, acabou sendo de uma grandiosidade porque eu tive muita informação e também tive o entendimento de como funciona um centro de acolhida, um albergue. Como que é o trabalho de uma assistente social dentro desses espaços? Até onde você pode ir, qual que é o seu papel e o que você não pode fazer mais, entendeu? Então isso é legal também, as limitações. Isso tudo eu aprendi dentro da casa. Foi muito legal.
P/1 – E aí nessa experiência de um ano, antes de surgir a oportunidade de ser contratada pela Reciclázaro, você se lembra de alguma história, de algum episódio nesse albergue assim? Você tá falando de aprendizado, mas de uma história que ilustre.
R – Então, uma coisa que me marca muito dentro da Casa de Marta e Maria é porque lá tem muitas crianças. Quando eu me formei eu falei: “Na área da saúde, eu não quero”. Sabe, tipo, hospital? Não quero trabalhar. E com criança também não queria trabalhar. E é impressionante a carência dessas crianças. Então isso é uma coisa que me chama muito a atenção até hoje. Se você vai a algum lugar, algum equipamento que tenha criança, as crianças querem estar do seu lado, querem entender quem é você. Você senta elas pulam no seu colo, entendeu? Então isso é uma coisa que me chama muito a atenção. E aí você tem que ter também um preparo, porque é uma criança, gente, que mal que tem essa criança? Que culpa que ela tem? Nenhuma. Então você tem que ter essa sensibilidade de abraçar, pegar, conversar, parar seu tempo e se dispor pra ela, mas mostrar pra elas o que você tá fazendo lá também. E aí eu fui aprendendo muito isso dentro da Casa de Marta e Maria, coisa que eu não tinha essa experiência e que me dava um pouco de receio, porque criança é a coisa mais especial. É tudo fofinho, né? E aí por um motivo, que não é o melhor, eles estão dentro de um espaço de proteção, que não é a casa deles. E aí? Entendeu? Eu saio de lá, eu tenho a minha casa, eu saio de lá, tenho minha família. Como trabalhar isso também na minha cabeça? Então isso foi também um aprendizado que eu tive e vivenciei lá dentro. Foi ótimo, porque hoje eu vou a qualquer lugar que tem criança, eu também sei como me portar. Porque você não pode chegar lá e chorar. A criança vai chorar, você vai chorar? A criança quer um chocolate, você sabe que você pode dar um chocolate, mas e aí? É um chocolate pontual, né? E o resto? Complicado.
P1 – E aí como é que surgiu, depois da experiência de um ano, como é que surgiu a oportunidade com a Reciclázaro?
R – Então, aí na sede da Associação Reciclázaro tinha uma assistente social e essa assistente social saiu. E o trabalho na sede era um trabalho com as pessoas da rua. Então, por exemplo, a Reciclázaro quando ela surgiu... Quem fundou a Reciclázaro foi o padre José Carlos Espínola, ele era um pároco da São João Maria Vianney, que é uma igreja que fica na Praça Cornélia, lá na Lapa, em frente a uma praça mesmo. E essa praça, contando assim bem rapidamente, essa praça era tomada por moradores de rua que tinham dependência química e que na maioria o trabalho deles era a catação e a comercialização desse material que eles pegavam na rua e vendiam pro ferro velho. Isso há 18 anos. Então há 18 anos, que foi quando a Reciclázaro surgiu, o padre José Carlos Espínola alugou uma casa do lado da igreja e aquilo se transformou na sede administrativa. Lá existia um psicólogo, uma assistente social, um advogado, enfim, um grupo de profissionais que trabalhava com essas pessoas e buscava ações de inclusão e de uma melhor perspectiva de vida. Isso é bem resumidamente, porque o trabalho da Reciclázaro é muito amplo, entendeu? E aí existia então uma assistente social que fazia esse atendimento das pessoas e surgiu essa oportunidade. Aí a Adriana falou: “Olha, Camille, não é dentro de um centro de acolhida, é aqui na sede administrativa. Então você vai trabalhar com as pessoas da rua. E, além disso, você vai fazer o acompanhamento social da Cooperativa Recicla Butantã”. Que, na verdade, ela ainda não era uma cooperativa, ela era uma comunidade. Então as pessoas estavam organizadas, trabalhando, só que elas não estavam constituídas juridicamente como cooperativa. Então tinha todo o trabalho social que permeava o trabalho que estava sendo feito lá. Aí eu falei: “Bom, tá bom”. Então foi um desafio totalmente diferente, porque até então dentro de um espaço, dentro de um albergue, de um centro de acolhida, você tem aquele protocolo a seguir. Quando você tá com a porta aberta, a pessoa entra e você não sabe qual que é a demanda que ela tá te trazendo, qual que é a necessidade, como ela está chegando. Porque se você tá num centro de acolhida, antes de a pessoa falar com o assistente social ou com o psicólogo tem os educadores também. Então se você tá alcoolizado, se você tá sob o efeito de outros tipos de droga, o educador já tem como mapear isso e aí ele vai saber trabalhar esse beneficiário antes de chegar num técnico, entendeu? Num atendimento de rua chega qualquer pessoa e você está à disposição. Então também foi outro tipo de aprendizado que eu tive, que fez com que eu tivesse mais jogo de cintura, que fez com que eu fosse mais... Não é rude, mas que colocasse alguns limites também. O fato de eu estar aberta não significa que você pode me desrespeitar chegando alcoolizado, chegando sujo. Eu também exijo respeito. Eu venho aqui de uma maneira organizada pra te atender. Eu sei que muitas vezes você não consegue chegar dessa maneira, mas eu sei que quando a coisa é frequente, aí vamos colocar uma ordem, entendeu?
P/1 – Você lembra como foram esses primeiros atendimentos?
R – Um susto. Um susto, porque tinha pessoas que já faziam parte do atendimento da outra assistente social, e a postura profissional de cada um é diferente. O indivíduo é um ser único, então por mais que a gente tenha tido a mesma teoria, a prática, a sua postura profissional segue uma linha de atuação, que talvez não seja a mesma do meu colega, entendeu? E realmente não era. Não era. Mas tudo bem, eu tive a sensibilidade de entender e essas pessoas que vinham todos os dias... Tinha pessoa que chegava lá que queria simplesmente conversar, tinha esse hábito de conversar. Então tá, então vamos conversar. E aí eu aprendia, eu aprendia muito também porque é uma troca. Então vamos conversar. Tinha pessoas que chegavam lá e falavam assim: “Olha, eu preciso de um acompanhante pra ir ao médico” “Gente, mas eu não sou da sua família. Espera aí, deixa-me entender”. Então vamos buscar quem pode ser esse acompanhante. Tinha pessoas que chegavam lá totalmente alcoolizadas e que a minha sala, por exemplo, a sala que eu trabalhava, era uma sala que eu tinha que ter privacidade, então eu tinha que fechar a porta. Então imagina você com uma pessoa que você não sabe qual que vai ser a reação também. Então a minha postura, eu tinha que ter uma postura que eu passasse respeito, segurança e que a pessoa que estava sendo atendida não me colocasse medo em nenhum momento, entendeu? Por mais que muitas vezes eu ficasse receosa, porque é o natural do ser humano, você não sabe qual que vai ser a reação da pessoa quando ela escuta uma negativa. Então você não sabe, você fica... E eu não sabia. É óbvio que tinha pessoas ao meu redor que ficavam em outras salas, que dependendo da situação que eu me encontrava, eu já falava: “Presta atenção”. E aí todo mundo ficava atento, óbvio. Mas também foi um aprendizado. Um aprendizado que fez com que eu tivesse mais jogo de cintura, que entendesse o ser humano de uma maneira mais ampla, que não trabalhasse o imediatismo. O seu problema não é a bebida, entendeu? O seu problema não é o crack. Isso é uma resposta pra algum problema que de fato você tem. E qual que é esse problema? Então vamos descobrir esse problema pra poder... Pra mim, você é muito maior. E eu fui aprendendo isso. E de acordo com a metodologia de trabalho que a Reciclázaro desenvolve também, a gente vai fazendo com que as coisas funcionem. O fato de você beber, por exemplo, hoje quando vocês chegaram, eu tava atendendo uma pessoa e é uma pessoa que.. O Edson é uma pessoa sensacional, só que ele, infelizmente, toda vez que ele recebe a retirada na cooperativa, ele é um cooperado da Vitória do Belém, ele passa no bar e bebe. E ele bebe muito. Mas é o tipo da pessoa que não fica agressiva, que fica de bem com a vida, só que o problema é que a gente tem que cuidar disso, entendeu? O problema não é a bebida. Eu falei isso pra ele: “Edson, o seu problema não é a bebida. O seu problema tá além”. Só que eu vou ser mais uma assistente social, porque ele já tá dentro do sistema de proteção há alguns anos, então a assistente social que pegou ele a primeira vez e conversou com ele já deu o ponto de vista dela. Então ele já passou por dezenas de profissionais e eu sou mais uma pra falar talvez a mesma coisa. Então nesse momento eu não tenho o que falar, eu preciso escutar. Eu quero saber de você qual que é o compromisso que você tem em me falar que vai melhorar e que vai reverter essa situação. É você que tem que assumir essa responsabilidade. Então eu o peguei, o que ele esperava que eu fizesse, eu não fiz, porque entendendo a história de vida dele, pelo menos nesse tempo que ele tá aqui com a gente, entendendo um pouco a história de vida dele, eu não posso ter o mesmo discurso dos outros profissionais. Eu tenho que fazer com que ele se comprometa a ter uma postura diferente. E se ele não se comprometer, ele vai continuar bebendo. Então é esse o meu diálogo com ele. Por isso que ele vai e, quando conversa comigo, ele que fala. Naquele momento, eu tenho que escutar e tenho que fazer com que ele se convença do que realmente ele tá falando e tá acreditando. E ele é penalizado, porque tem regra, entendeu? Então essas regras a gente tem que cumprir. Então ele ficou suspenso. Tá suspenso e não pode trabalhar. E também não pode entrar aqui alcoolizado, e ele sabe disso.
P/1 – Ele tá suspenso porque ele veio alcoolizado?
R – Veio alcoolizado. Na verdade, ele trabalhou, trabalhou na parte da manhã tudo bem, aí quando ele pegou o cheque pra trocar no banco, ele já passou no bar. E aí chegou aqui alcoolizado. E aí o Henrique, que trabalha com a gente, falou: “Olha, você não pode”. Porque é uma orientação que ele tem. A cooperativa, querendo ou não, é um espaço que tem que ter cuidado. Eu tenho máquina lá dentro. Se acontece alguma coisa, a responsabilidade é da cooperativa. Aqui o Cefopea é um espaço para o público, entendeu? E tem muita gente que vem. E ele sabe que ele não pode estar nessa situação aqui dentro. Aí ele falou assim: “Aí eu fiquei sentado, deitado lá no banco dormindo”. E aí eu mostrei pra ele... Aí ele falou: “Bom, aí eu não incomodei ninguém”. Só que eu mostrei pra ele outro lado, eu falei: “Edson, tudo bem, você não incomodou ninguém, mas você viu a situação que você se colocou perante a todo mundo?”. Então são visões que ele não tinha e que passa a ter. E são atitudes que eu tenho que ter, não pensando no imediatismo, mas entendendo pelo menos um pouco da história dele, que eu aprendi com toda essa experiência que eu tive no dia a dia, que a Reciclázaro me proporcionou nesses atendimentos de rua. De rua. Na verdade, eu ficava dentro do escritório, mas as pessoas que estavam na rua vinham me procurar.
P/1 – De porta aberta.
R – De porta aberta.
P/1 – E aí como é que você chegou nesse cargo que você ocupa hoje?
R – Então, e aí eu sou uma pessoa que vou e fico buscando sarna pra me coçar. Sou mais do que pró-ativa. Quando eu comecei a trabalhar na sede da Associação Reciclázaro, eu fazia o trabalho social da cooperativa, que não era cooperativa, da Recicla Butantã. E uma das atividades que a gente desenvolveu foi a constituição jurídica dessa cooperativa, foi a formalização dela. E aí eu fui entender um pouco as pessoas que estavam trabalhando lá e entender um pouco o processo como um todo. O que é uma cooperativa? O que trabalha uma cooperativa? Quais são as condições que uma cooperativa tem que ter pra desenvolver um bom trabalho? E quem trabalhava comigo, quer dizer, na cooperativa também, era o João, que continua trabalhando na Reciclázaro. Porque assim, quando o padre José Carlos alugou a casa do lado da igreja ele começou a fazer, imagina 18 anos atrás, uma campanha de educação ambiental na comunidade, na Vila Romana, na Lapa, Perdizes, Pompéia tudo, pra que as pessoas, os paroquianos, ou a comunidade, independente de ir à igreja ou não, levassem material reciclável pra igreja. Esse material, ele disponibilizava pra cooperativa, que na época era uma comunidade produtiva, era um projeto da associação Reciclázaro que a Reciclázaro administrava. Aí a igreja começou a receber muito material reciclável, então a gente tinha um trabalho de logística de caminhões intenso pra levar esse material para o espaço pra ele ser trabalhado. O João trabalhava com isso. Aí eu fui entendendo como funcionava a cooperativa e fui dando umas sugestões: “Olha, e se a gente fizer assim? E se fizer assado?”. E naturalmente a Reciclázaro foi me absorvendo pra esse cargo que eu ocupo hoje. Hoje eu coordeno projetos e projetos ligados à área de coleta seletiva. Então a Recicla Butantã se constituiu juridicamente, a gente teve um trabalho lá dentro de organização, organização de produção, o falar “não”. Porque assim, “ah, você tá doando, então eu sou obrigada a aceitar”. Você não é obrigada a aceitar. Às vezes, o que não tem mais utilidade pra mim não necessariamente vai ter utilidade pra você. Então o fato de eu doar não significa que você tenha a obrigação de aceitar. Então comecei a mostrar esses pontos que a cooperativa deveria ter pra começar a gerir o lugar, a empresa, a empresa delas. A cooperativa é uma empresa. Então não visa o lucro, mas é de lá que sai o sustento de 20 pessoas, 30 pessoas. Então como que é a minha postura profissional? Então eu fui trabalhando isso. E a partir daí, da experiência que a gente teve com a Recicla Butantã e com toda trajetória também, porque hoje a Reciclázaro, a Associação Reciclázaro é referência quando se fala de coleta seletiva. As pessoas ligam pra saber onde pode encaminhar o material, que cooperativa aceita, que cooperativa não aceita. Então essa essência nunca foi perdida. O padre José Carlos fala uma coisa, “que tudo se transforma, inclusive o ser humano”. E o nosso trabalho é esse, é o de transformação, e estar em constante transformação. Através dessa experiência da Recicla Butantã surgiram novas possibilidades e novos projetos, e aí o nosso trabalho foi ampliando. Então apesar de ser assistente social, hoje eu coordeno projetos, mas eu tenho uma visão totalmente social. Pra mim, as pessoas que fazem parte das cooperativas têm uma importância muito maior, muito maior, eu to muito mais preocupada no bem estar do ser humano, porque eu sei que se eles têm uma qualidade bacana pra desenvolver o trabalho que eles assumiram, tudo vai funcionar. Então como que eu posso melhorar a qualidade de vida deles? E aí os projetos vêm agregando toda essa lógica pra que funcione, entendeu?
P/1 – Só uma coisa, a Reciclázaro trabalha com várias cooperativas, é isso?
R – O programa de coleta seletiva trabalha com várias cooperativas. A Reciclázaro hoje tem sete projetos na cidade de São Paulo: Centro de Acolhida São Lázaro, Casa de Simeão, Casa Guadalupe, República de Idosos, Casa de Marta e Maria, o Gasômetro e o Cefopea. Então a gente tem sete projetos. E tem programas específicos: programa de atenção a pessoas idosas e o programa de coleta seletiva. Então a Reciclázaro atende mais ou menos 600 pessoas diariamente nos projetos e busca, através da realidade que a gente encontra, respostas pra que essas pessoas sejam de novo inseridas no mercado formal, resgatem os vínculos familiares, busquem autonomia. E esse espaço que é o Cefopea, Centro de Formação Profissional e Educação Ambiental, proporciona esse resgate. Porque aqui a gente tem cursos de jardinagem, compostagem, artesanato, inclusão digital, alfabetização. A gente tem trabalho com geração de renda, uma padaria montada aqui que as meninas... É uma padaria que chama Pão de Moça, são microempreendedoras individuais que fazem o produto, todos os produtos que vocês encontram em padarias convencionais vão encontrar na nossa padaria também, e comercializam e essa renda é revertida para o grupo. Tem o tijolo ecológico, a oficina de tijolo ecológico que também são microempreendedores individuais, eles produzem o tijolo, comercializam o tijolo e aqui também tem a cooperativa Vitória do Belém. Então essas ações fazem com que as pessoas sejam inseridas, incluídas, tenham esse resgate. É um pouco essa a missão da Associação Reciclázaro.
P/1 – Qual que é o público que vocês atendem em geral?
R – Pessoas em situação de vulnerabilidade. Então normalmente são moradores de rua.
P/1 – E deixa-me só entender direito qual que é a... Desculpa, pode terminar.
R – Não, não, pode falar.
P/1 - Moradores de rua...
R – Pessoas que estão em centro de acolhidas, que estão nos albergues. E a comunidade. Na verdade, a gente também atende aqui nesse espaço a comunidade do Belém. A comunidade do Belém é uma comunidade participativa. Quando nós viemos pra esse espaço, esse espaço não tinha nada do que vocês encontram aqui hoje. E uma das coisas que nós fizemos foi um diagnóstico do entorno pra entender qual que era a realidade que a gente tava inserido e o que essa realidade representava. A gente foi entendendo que, por exemplo, aqui é uma comunidade que tem muitos idosos. Então, por exemplo, aqui no Cefopea a gente dá curso de cuidadores de idosos, porque é uma necessidade que a própria comunidade tem. Ela precisa de pessoas que cuidem delas, então a gente forma essas pessoas que têm interesse. A comunidade, por exemplo, queria um espaço onde elas pudessem fazer atividade e tivesse aparelhos de ginástica, então aqui dentro a gente tem uma academia que a comunidade vem e participa. Todos os cursos que nós damos aqui, além das pessoas que estão em situação de vulnerabilidade, a gente atende, participam, a própria comunidade participa. Então de repente tem um morador aqui do bairro do Belém fazendo curso de inclusão digital com um menino da Fundação Casa, e todo mundo no mesmo espaço. Tem uma criança de oito anos com um idoso de 80 anos trabalhando na inclusão digital. Então a gente trabalha essa “intergeracionalidade”. Então existe muita história por trás de tudo isso. Tem um porquê de todas as ações que a gente realiza aqui dentro do nosso espaço.
P/1 – E a relação específica com as cooperativas de coleta, eu queria entender assim, o envolvimento da Reciclázaro com isso é: atende esses cooperados e também... Como fala? E também indica pra pessoas que venham até aqui essa possibilidade como um possibilidade de emprego, de geração de renda?
R – Sim.
P/1 – Como é que é essa relação específica?
R – A Reciclázaro também através dos projetos que a gente tem... Então a Reciclázaro incubou duas cooperativas: a Recicla Butantã, que fica no Butantã, e a Cooperativa Vitória do Belém, que é essa que tá aqui no Cefopea. Além dessas duas cooperativas, através dos projetos que nós temos voltados pra coleta seletiva, a gente trabalha com mais cinco cooperativas em um projeto específico, que agora serão dez, então dez cooperativas num projeto específico, e a gente faz parte de redes. E essas redes atendem mais outras cooperativas, entendeu? Nesses trabalhos que a gente vai desenvolvendo, principalmente... Porque assim, as cooperativas específicas que fazem parte do projeto, a gente já conhece, a gente já tem um diagnóstico, já conhece a realidade e já sabe como a gente vai atuar, quais são as falhas que essas cooperativas têm e onde a gente vai melhorar ou minimizar o problema que eles estão tendo. Agora, por exemplo, eu faço parte de uma rede que tem a Coopercaps, só que a Coopercaps, eu to aqui na zona leste, a Coopercaps fica lá na zona sul. Então eu sei qual que é a realidade da Coopercaps e eu sei o que eu posso fazer ou se eu preciso fazer alguma coisa enquanto Reciclázaro pra potencializar o trabalho deles, entendeu? Então as redes nos proporcionam também atingir cooperativas em nível Brasil. E isso a Reciclázaro tá inserida e vai trabalhando as possibilidades que existem. Esse espaço aqui, Tereza, a gente quer transformar também num centro de referência para as cooperativas. A partir, eu acredito, de setembro, próximo mês, a gente tá em agosto, até o final do ano a gente vai ter aqui todo mês cursos de formação de acordo com as necessidades que a gente encontra dentro das cooperativas. Então, por exemplo, as cooperativas não se preocupam na questão de segurança do trabalho, na importância de estar marcado o chão, delimitar onde o cooperado pode andar, onde sai o material, na importância do uso do EPI, e não só luva, mas uso do EPI inteiro. Então a gente vai trazer essas cooperativas pra cá e vai trazer um profissional da segurança. Isso é um exemplo, que vão ter várias ações. Mas um profissional da segurança do trabalho pra explicar qual a importância de tomar alguns cuidados básicos e fazer com que as cooperativas que já tomam esses cuidados básicos, elas passem quais estão sendo as boas práticas. Então o representante da cooperativa X vai falar qual é a boa prática que está acontecendo dentro da cooperativa dele. O representante da cooperativa Y vai explicar qual é a realidade que ele vive e que não tem nenhuma boa prática. Com isso, a gente vai fortalecendo o trabalho e mostrando a importância do trabalho em rede, a importância de fortalecer toda a equipe, a importância de trabalhar assuntos que antes não eram pensados. Por exemplo, aqui na Vitória do Belém a gente tem uma preocupação com a saúde também, já existe essa preocupação. É que essa cooperativa é atípica, né? Atípica, porque a construção dela é uma construção diferenciada, é a única construção do Brasil que foi pensada com tecnologias alternativas da construção tradicional. Enquanto a construção tava acontecendo, o grupo que estava trabalhando foi tendo formações, entendeu? Então eles têm uma consciência e uma visão mais aberta. Por isso que muitas vezes eles solicitam mais formações, porque eles sabem da importância que isso tem. Então por isso que é atípica, mas a gente quer fazer com que ela seja referência de boas práticas e que essa boa prática possa ser reaplicada em todas as outras, porque é possível. É possível. Todo mundo tem que ter qualidade no trabalho. Pra você desenvolver um bom trabalho, você tem que ter qualidade. As pessoas que estão trabalhando em cooperativa, elas trabalham com material reciclável que muitas vezes o que chega na cooperativa não é o material reciclável. E como que eu tenho que me portar diante daquilo que chega que não deveria chegar? Qual é a ação de comunicação, de educação ambiental que as cooperativas devem fazer pra conscientizar as pessoas? Isso é uma coisa fundamental que precisa acontecer, e precisa acontecer com mais veemência mesmo, porque infelizmente as pessoas querem fazer, mas não sabem como fazer, não sabem onde descartar. E é um trabalho de formação que as cooperativas devem ter pra poder formar outras pessoas. Então a ideia é essa. Então a Reciclázaro, Tereza, atinge muitas cooperativas. O nosso trabalho... É óbvio, eu fico aqui, mas eu consigo estar em vários lugares ao mesmo tempo. E sei que algumas cooperativas precisam mais da presença da Reciclázaro, e outras, menos. Precisam mais de ações de alguns projetos específicos, e outras, menos. Cabe a nós termos o discernimento de entender a realidade de fazer do jeito correto. Mesmo errando, porque às vezes a gente erra também, que é o normal.
P/1 – Claro. Claro. Camille, eu queria entrar agora um pouco mais na questão da relação de vocês com a Nestlé. Mas antes, eu quero fechar uma coisa da sua vida pessoal, da sua história pessoal.
R – Ih!
P/1 – Que é como você e o seu marido se conheceram.
R – Ah, essa história aí é engraçada. Eu tenho uma amiga que é de Assis, a Luiza. Aí a Luiza foi morar na Austrália. Uma época da nossa vida, ela foi morar na Austrália. E ela ficou lá na Austrália um tempo. E aí ela voltou. Quando ela voltou, ela voltou pra casar. E o Marcelo, meu marido, ele é de Assis também. E antes de ela ir pra Austrália, tal, a gente saía muito juntas. E uma vez a gente foi a uma festa e o Marcelo tava na festa. E aí ela apresentou todo mundo, apresentou o Marcelo, só que o Marcelo namorava na época. E o Marcelo falou assim pra... O Marcelo começou a conversar comigo e eu conversei normal, mas eu vi que ele tinha namorada, então... E ele virou pra Luiza e falou: “Se um dia eu namorar a Camille, eu caso com ela”. A Luiza falou: “Você tá quase casado, que casa com ela!”. E nisso passaram dez anos. E a Luiza foi pra Austrália, voltou da Austrália e voltou pra casar. Eu fui madrinha do casamento dela. Ela convidou o Marcelo, mas porque é amigo. E eu nunca mais tinha visto o Marcelo. Aí o Marcelo, a primeira pergunta que ele fez: “A Camille vai?”. Ela falou assim: “A Camille é minha madrinha”. Ele falou assim: “Ah, então tá”. Aí ele foi. E a gente conversou, mas nada demais, e depois ele me convidou pra sair, mas aí ele me ligou, me convidou pra sair. E aí a gente começou a sair, começamos a namorar, e em um ano e meio a gente casou. Noivou e casou. Foi rápido. O Marcelo é persistente.
P/1 – Como foi o pedido de casamento? Conta pra gente.
R – Pediu. Aí a gente ficou noivo. Pediu-me em casamento, tal, não sei o quê. Olha as coisas que acontecem na nossa vida. Aí: “Ah, vamos casar”. Por mim não precisava casar. “Ah, a gente já mora junto, todo mundo é adulto, tal.” “Não, quero casar. Quero casar na igreja” – o Marcelo falava. Eu falei: “Tá bom”. Ele reservou a igreja, óbvio, eu sabia que igreja, como era. Reservou a igreja, aí a gente começou a ver bufê pra fazer a festa. Fechamos o bufê. Na época, a gente fechou o Bufê Serra. Assim, a gente noivou e casou num período de um ano e meio, então era muito rápido, as coisas aconteceram de uma forma muito rápida. E quando a gente fechou o Bufê Serra, começaram a falar um monte de coisa: “Camille, fui a um casamento e não tinha garçom. Camille, fui a um casamento, a uma festa, e a bebida que o noivo comprou não tava lá”. Eu falei: “Mas o que tá acontecendo?”. E a gente tem um amigo que trabalha com... Ai, como chama? Ele faz pesquisa com crédito. Então pra ele dar o crédito, ele tem que fazer um levantamento da sua vida. E o Marcelo falou pra ele: “Olha, faz isso pra mim nesse CNPJ”. Ele falou assim: “Se eu tivesse que dar um crédito, eu não daria”. Deu um dossiê. O Bufê Serra tava falido. Imagina? E a gente pagando. Eu falei: “Não, então quero meu dinheiro de volta”. Fui lá, briguei, saí no jornal, olha só. Saí no jornal, na matéria assim, metade da página. Putz! E aí eles devolveram o que a gente tinha combinado de acordo com o contrato. E, por fim, a gente acabou fazendo a festa em outro lugar, tal. E no dia do meu casamento, na semana do meu casamento, foi muito engraçado, na semana do meu casamento saiu na televisão um monte de noiva desesperada porque o Bufê Serra tinha fechado. E falei: “Gente do céu, eu ia ter um troço”. Porque querendo ou não, eu não fazia questão de casar na igreja. Casei na igreja, fiz a festa, aquela coisa tradicional. Foi perfeito, eu faria tudo de novo, aconselho, eu acho que tem que passar por essa experiência, que é sensacional. Mas imagina você naquela expectativa e chegar na hora não ter nada. Por sorte nossa festa foi... Não, nosso casamento foi demais. E a gente tá junto já faz 11 anos.
P/1 – Como o casamento, assim, cerimônia na igreja, festa? Conta um pouco.
R – Ah, foi, puta, foi um espetáculo. No dia, foi numa sexta-feira, casei no dia sete de março. Casei no dia seis no civil e no dia sete na igreja. Eu cheguei com muita antecedência, porque eu lembro que quando a gente reservou a igreja, é uma igreja que é muito concorrida, a São José, lá no Jardim Europa. E a mulher do cerimonial da igreja falava assim: “Se você atrasar, o padre vai fazer sua cerimônia ficar mais curta”. Eu falava pra ela: “Eu não vou me atrasar, eu vou estar aqui no horário. Eu não vou me atrasar, eu vou estar aqui no horário”. Bom, enfim, no dia seis, que foi quando eu casei no cartório, eu fiquei mais nervosa. Fiquei muito nervosa no dia seis. Não sei por que. Porque acho que foi uma coisa mais intimista, de fato você tá assumindo uma responsabilidade que você quer que seja para o resto da vida, o seu estado civil muda, agora você não é mais solteira, você é casada, tem a responsabilidade já com outra pessoa. Porque quando você namora é assim, você tá namorando, você tem uns desentendimentos, cada um vai pra sua casa, a vida continua, no dia seguinte você com a cabeça mais... Quando você casa, tudo muda. Por mais que você conheça a pessoa, o morar junto é uma novidade também. E aí, enfim, no dia seis eu fiquei muito nervosa. No dia sete eu me diverti. A ideia era essa, eu me divertir. Então eu cheguei à igreja com uns 40 minutos de antecedência. Então eu via, eu pedi para o motorista para o carro onde eu pudesse visualizar as pessoas. Então eu via todo mundo chegando, o Marcelo nervoso na porta. Foi muito divertido. E quando as pessoas me viram, porque aí, por exemplo, minha cunhada sabia que carro eu estava, ela me viu, aí foram lá no carro, tiraram foto, foi muito divertido. E quando eu entrei na igreja, e tava chovendo, uma chuva, mas foi perfeito. Quando eu entrei na igreja, o processo do casamento é muito desgastante, a preparação. É a orquestra, são as flores, é a decoração, é tudo muito caro. Porque eu lembro que na época tudo era mais de mil. Quando alguém falava 900, eu falava: “Nossa, mas tá muito barato”. Você até desconfiava. Eu falava: “Gente, não é possível. A gente tá gastando uma fortuna, então eu tenho que prestar atenção em tudo”. Então eu fui entrando na igreja ouvindo a música, vendo a decoração. Eu tava me divertindo. Eu me diverti no meu casamento. E parava para as pessoas tirarem foto, sabe? Tava com foto, parava pra tirar uma foto. O meu pai tava nervoso, eu tava tranquila. Eu entrei, tal, casamos, foi perfeito. Foi perfeito. Até na hora de falar no microfone eu não gaguejei, sabe aquelas coisas? E depois fomos pra festa. E a festa, o que a gente fez? A gente fez num hotel. Normalmente, os convidados chegam à festa e já vão para as mesas, já pegam as mesas, tal. A gente fez diferente. A gente fez um espaço onde tava sendo servido o coquetel e não abriu a porta para as mesas, pra onde seria servido o jantar, porque senão todo mundo ia ficar sentado. E o que eu não queria, nem eu, nem o Marcelo, era ficar passando de mesa em mesa e cumprimentando todo mundo. A gente queria entrar e todo mundo estar junto. Então quando abriu a porta pra todo mundo entrar, os convidados já tinham tomado coquetel e a gente também já tinha tomado coquetel dentro. Aí a gente recepcionou os nossos convidados, então as pessoas tinham que ser rápidas, não podiam ficar lá falando, falando, tinha que ser uma coisa rápida. Então foi muito rápido, todo mundo sentou, e aí todo mundo aproveitou a festa do começou até o final ao mesmo tempo. Então foi perfeito. Nossa festa foi... Olha, se eu tivesse que fazer, eu faria tudo de novo igual. Porque até o estresse que a gente passou do Bufê Serra, tal, mas foi tudo muito legal. Porque mesmo os fatos negativos que acontecem na nossa vida fazem com que a gente pense que alguma coisa de bom também tá por trás. Eu sempre penso nisso. E realmente tava, porque foi um espetáculo a festa. O casamento foi perfeito, a festa foi perfeita. Depois a gente foi viajar e aí foi sensacional.
P/1 – Pra onde vocês foram na lua de mel?
R – A gente foi pra um resort aqui em Maragogi. Que foi ótimo. Ah, foi muito legal. E depois a vida volta tudo ao normal. Aí você volta pra realidade, as coisas continuam iguais. Mas é legal. O meu casamento é um casamento muito feliz. Apesar de tudo, porque tem os desentendimentos, as pessoas são diferentes, eu sou uma pessoa que sou muito difícil, eu sei, mas a gente é muito feliz na nossa vida, isso é muito legal. Existe muito respeito, muita cumplicidade, a gente se entende, isso é muito legal. Eu vejo que todo esse tempo que a gente tá junto, o nosso relacionamento foi uma soma mesmo, sabe? O Marcelo cresceu muito, não só na profissão, mas como pessoa. Eu também mudei muito, porque é um aprendizado que você tem constante. Quando alguém casa, eu falo: “Putz”. É engraçado isso, porque quando você é criança, você tem as regras dentro de casa e você vai conquistando os seus limites, até você conquistar a chave da sua casa e ter o direito de entrar e sair a hora que você bem entender. Quando você casa, você passa a voltar a dar satisfação pra uma pessoa. Porque eu, toda a minha vida, depois que eu atingi a minha maioridade, a satisfação que eu dava pra minha mãe ou para o meu pai era: “olha, não se preocupem, tá tudo bem, tal”. É óbvio que a gente dividia várias coisas, mas eu tinha muita liberdade, como os meus irmãos também tinham. Existe uma relação de confiança. Bom, enfim, aí quando você casa, você volta a ter que resgatar essa confiança, essa liberdade. Porque querendo ou não, por mais que você casou, você continua tendo a sua vida particular. Então essa necessidade de sair só com as meninas, eu continuo tendo, do mesmo jeito que o Marcelo também tem a necessidade de sair só com os meninos. Mas num primeiro momento você fala: “Opa!”. E aí, ele tem que ir? Não tem que ir? Eu tenho hora pra voltar? Então é engraçado isso. E aí você regride um pouco e aprende novamente quais são os limites. Então o casamento também te traz muita sabedoria. E o meu casamento, putz, não tenho o que reclamar, eu sou abençoada. Além disso, o meu marido, cara, ele me ama incondicionalmente, sabe? Do mesmo jeito que eu também o amo. Então é legal, existe um respeito, vários projetos e perspectivas de vida junto.
P/1 – Vocês têm filhos?
R – Não. Não temos filhos e eu também não quero ter filho. Talvez... É, não quero.
P/1 – É uma escolha de vocês.
R – Na verdade, é minha.
P/1 – Sua. É uma escolha sua.
R – É uma escolha minha. Que o Marcelo entende, mas às vezes ele não entende. Eu acho assim também, quando... Eu já tenho 40 anos, então apesar de a minha médica falar que é possível, eu não sei se eu consigo. Eu sou uma tia maravilhosa, não preciso ser uma mãe também. Eu sou bacana sendo tia e tá tudo bem. Isso daí também é muito louco. Eu tenho várias amigas que ficaram grávidas, engravidaram, e quiseram ter os filhos. Se elas tivessem uma opção de “puta, tenho que parar de me prevenir pra ter o filho”, talvez não teriam como eu também, entendeu? Esse passo de parar de se preservar pra dar a vida pra outra pessoa, eu não tenho coragem. Porque o medo também do novo me assusta. E o mundo de hoje é totalmente diferente do mundo que eu vivi. Então é...
P/1 – É uma escolha. É possível.
R – É uma escolha. É uma escolha e assim, eu tenho muitos sobrinhos, entendeu? Eu tenho uma sobrinha que é minha sobrinha mesmo, que é filha do meu irmão, mas eu tenho milhões de sobrinhos que são os filhos das minhas amigas. E a minha vida é rodeada por pessoas, que também, talvez, pelo fato de eu não saber o que é ser mãe acaba suprindo essa lacuna que eu não sei como vai ser.
P/1 – Tá certo. Então agora eu queria entrar na questão da Nestlé, que é o último... A gente vai indo para o encerramento.
R – Meio-dia e 20.
P/1 – Uau!
R – Eu falo, né?
P/1 – Tudo bem?
R – Tudo bem.
P/1 – A gente pode fechar então? Eu vou falar sobre a Nestlé, daí tem algumas perguntas finais e a gente encerra.
R – Pode falar. Que eu to meio sem voz, não estou? A minha voz não tá diferente?
P/1 – Você deve estar sentindo que você tá cansada.
R – É.
P/1 – Vai cansando. Eu queria saber como é a relação da Nestlé com a Reciclázaro. Como começou essa relação e qual é essa relação?
R – Então, a Nestlé veio pra Reciclázaro através do Cempre. O Cempre é o Compromisso Empresarial para Reciclagem, e ele trabalha também na fomentação do trabalho das cooperativas. Então o Cempre é um parceiro da Reciclázaro e ele conheceu o nosso projeto, projeto aqui na Vitória do Belém. E a Nestlé, através dos trabalhos que ela desenvolve, ela queria investir em cooperativa. E o Cempre trouxe a Nestlé pra gente. O Storolli, que foi a pessoa que representou a Nestlé, veio, conheceu o projeto, conheceu o espaço, viu quais eram as nossas intenções, entendeu o diferencial que essa cooperativa tem de todas as outras cooperativas, e investiu. O investimento que eles fizeram aqui foi em equipamentos. Então as prensas que tem aqui na Vitória do Belém, que são duas prensas verticais, uma prensa horizontal, um fragmentador de papel. O que mais? Um triturador de vidro. Então esses quatro equipamentos que servem à produção foram investimento da Nestlé no projeto. E, além disso, eles investiram também em toda a parte de cozinha. Então a cozinha da Vitória do Belém é uma cozinha totalmente industrial, adequada às normas da vigilância sanitária. Isso é fundamental para o trabalho que a gente desenvolve pensando no ser humano. Não é um espacinho, é um espaço adequado pra que as pessoas tenham condições dignas pra fazer suas alimentações, suas refeições. A Nestlé investiu nisso. Porque quando a Nestlé chegou também aqui no nosso projeto, ela investiu nas nossas necessidades, entendeu? Então não foi uma opção, ou investe nisso ou nisso. A nossa necessidade era essa, a necessidade do projeto. Porque o projeto já tava construído, ou já tinha os parceiros pra que efetivassem a construção, a Reciclázaro já tinha conseguido alguns equipamentos pra fazer com que a produção fosse uma produção eficiente, faltavam outros equipamentos. E todo o trabalho de formação já tava sendo efetivado pelo Cempre. Então a Nestlé veio suprir uma necessidade da cooperativa naquele momento. E que realmente fez toda a diferença pra que a cooperativa começasse a funcionar de uma forma eficaz desde o primeiro dia dela, entendeu? Por mais que a gente não tenha ainda aqui na Vitória do Belém a capacidade máxima de produção, toda produção que chega, a gente tem condição de trabalho e é uma condição que foi proporcionada pela Nestlé.
P/1 – E como você vê, Camille... Que importância você acha que tem essa aproximação entre uma empresa como a Nestlé e uma cooperativa de reciclagem?
R – Pô, é fundamental. Hoje a gente tem uma lei que fala da responsabilidade compartilhada. Eu enquanto munícipe, enquanto cidadã, eu tenho responsabilidade na hora que eu vou consumir qualquer coisa no mercado. A empresa, ela tem responsabilidade na hora que ela vai colocar o seu produto no mercado. Então ela tem que entender... E a cooperativa, ela entra nesse meio, nesse ciclo aí de vida, porque é ela que vai absorver o que a empresa tá colocando no mercado. Pra ela absorver, ela precisa ter condição. Infelizmente, as cooperativas de hoje nascem através de projetos sociais. Elas nascem através de organizações de grupos que vão buscar ajuda. Se as empresas não tiverem essa consciência em realmente aportar um dinheiro pra potencializar esse trabalho, esse ciclo vai ser interrompido em algum aspecto, entendeu? Então é fundamental que a empresa converse com as cooperativas e que ela entenda quais são as necessidades imediatas dessa cooperativa e que elas façam, se possível, a necessidade ser atendida. Assim, e tudo com limite. As cooperativas têm que entender que elas têm que ser sustentáveis. Num primeiro momento, é óbvio que precisa de ajuda. Ajudou? Como eu vou me sustentar? Aí que tá o pulo do gato. E mesmo pra empresa continuar ajudando, nem que seja na doação do seu material e na recompra do seu material, não to falando nem equipamento, ela tem que entender que a cooperativa sabe trabalhar de uma forma organizada. Então tudo se conversa, entendeu, Tereza? Tudo se conversa.
P/1 – Vocês reciclam o material da Nestlé?
R – Sim. Sim.
P/1 – Que tipo de material?
R – Embalagens. Embalagens. Chega muita embalagem. A coleta seletiva, ela traz todo tipo de material, de todas as empresas. E a Nestlé é uma grande fabricante de produtos que a gente consome no nosso dia a dia, e esse material é reciclável, sendo reciclável, ele vem pra cooperativa. Quem faz a educação ambiental, a coleta seletiva, esse material vai chegar a alguma cooperativa, e aí essa cooperativa vai trabalhar o material e vai devolver pra indústria, entendeu? O trabalho da cooperativa é só fazer a separação. Depois, o reaproveitamento dessa matéria-prima que a gente tá devolvendo pra indústria é a indústria que faz.
P/1 – Tá certo. Eu vou encaminhar então agora para as três questões finais, Camille. Bom, são duas, na verdade, questões finais, mas antes de fazer esse fechamento, eu queria saber se tem alguma coisa que a gente não perguntou e que você gostaria de falar, qualquer coisa.
R – Não. Acho que não.
P/1 – Não?
R – Chega de falar.
P/1 – Não?
R – Olha a minha garganta. Não tenho mais voz.
P/1 – Então agora, a penúltima pergunta é: quais são seus sonhos?
R – Putz, meus sonhos? Gente do céu. Eu sou uma pessoa que não fico sonhando muito, eu vivo muito o meu dia a dia, a minha realidade. O que me deixa feliz, por exemplo, quando eu não estou trabalhando e estou curtindo um momento de lazer, então eu sou uma pessoa que gosto muito de viajar, muito de viajar, então eu tenho o sonho de conhecer ainda muitos lugares.
P/1 – Tem algum lugar assim específico, o que você tem mais vontade hoje?
R – Não. Não tenho. Eu gosto de ir. Eu sempre to pronta pra ir.
P/1 – Não tem um país assim: “Ah, meu sonho é conhecer tal país”?
R – Não. Não. Mas eu sonho, por exemplo, que o nosso país seja um país mais digno, que as pessoas tenham realmente uma condição de vida melhor, que o Bolsa Família, gente, isso daí não é dignidade, pra mim, meu ponto de vista. Ou mesmo, assim, que tenha educação para as pessoas entenderem o que é certo, o que é errado, se é que tem certo e errado também. Agora, na minha vida pessoal mesmo, o mue sonho é estar indo, entendeu? Eu vou. Eu deixo a vida me levar. E não fico programando ou planejando nada. Se eu tenho algum planejamento, o meu planejamento é assim, três meses, antes eu fiz um planejamento. Não é assim: “Ah, daqui dois anos eu quero estar em tal lugar, fazer tal coisa”. Eu não tenho esse sonho tão distante. O meu sonho é mais imediato mesmo.
P/1 – E, por fim, como foi contar a sua história?
R – Ah, tão simples, né? Poxa, pensei que fosse doer mais.
P/1 – (risos).
R – Não, eu tenho certeza que eu tenho muito mais coisa pra contar, mas a minha memória não me permite. Só com 40 anos, imagina quando eu tiver mais. Mas foi fácil. Qualquer um deveria passar por essa experiência. É muito legal.
P/1 – Tá certo. Então a gente encerra por aqui. Obrigada, Camille.
R – Obrigada. Acabamos?
P/1 – Acabamos.
FINAL DA ENTREVISTA
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