P/1 – Senhor Hilário, o senhor pode falar o seu nome completo?
R – Hilário Burri.
P/1 – Qual o seu local e data e nascimento?
R – 23 de março de 1924. Dois Córregos.
P/1 – Dois Córregos que fica?
R – Fica no Estado de São Paulo perto de Jaú, que é mais conhecido.
P/1 – E os seus pais, são de Dois Córregos?
R – Meu pai era de Itapira, Santo Antônio do Pinhal, é Pinhal.
P/1 – E a sua mãe?
R – Idem.
P/1 – E seus avós paternos, vieram de onde?
R – Eram italianos.
P/1 – Vieram da Itália?
R – É.
P/1 – E você sabe porque eles vieram?
R – Porque estavam cansados de sofrer na Itália, então vieram procurar algo novo.
P/1 – E eles foram pra qual cidade?
R – Para Pinhal mesmo.
P/1 – Você sabe como eles vieram, de navio?
R – Navio.
P/1 – Eles contavam para o senhor como vieram?
R – Contavam alguma coisa.
P/1 – O que eles contavam?
R – Meu pai já nasceu aqui, né? Eu sou neto de italiano.
P/1 – O que seus avós contavam pra você da vinda deles?
R – Contavam que eles vieram aqui porque era o eldorado naquela época, vieram aqui e não era nada daquilo. Então mandaram tudo pro cafezal, ser escravo dos donos de fazendas, eram escravos brancos (risos).
P/1 – E os pais da sua mãe são de onde?
R – Vieram na mesma leva.
P/1 – São italianos também?
R – Sim.
P/1 – E o que o seu avô fazia aqui?
R – Ele veio velhinho, coitado, não fazia mais nada.
P/1 – O pai da sua mãe ou do seu pai velhos?
R – Os dois.
P/1 – Mas o que eles faziam aqui, qual era a profissão deles?
R – Fazenda. Colono, não tinha outra coisa. Não tinham profissão.
P/1 – Você sabe o que eles faziam lá na Itália?
R – Braçal, como é que chama? Fazendas, plantações.
P/1 – Lá na Itália também?
R – Também.
P/1 – E você sabe como seu pai e sua mãe se conheceram?
R – Bailinho de fazenda. São João, Santo Antonio, São Pedro. As festas juninas que faziam naquele tempo e se reunia a juventude da época.
P/1 – Como é o nome do seu pai?
R – Ricardo Burri.
P/1 – E da sua mãe?
R – Angelina Riggi.
P/1 – E eles se conheceram lá em Pinhal?
R – Em Pinhal.
P/1 – E o que seu pai fazia?
R – Meu pai era carroceiro.
P1 – Mas o que ele carregava?
R – Quer dizer, na verdade ele era colono, entendeu? Mas trabalhava também para o patrão como carroceiro, essas coisas de puxar material, cereais, por aí.
P/1 – E sua mãe?
R – Minha mãe, dona de casa pra criar filho. Dez.
P/1 – Eles casaram e foram morar lá em Pinhal?
R – Foram morar em Pinhal.
P/1 – Em que lugar eles moravam? Era uma casa, era uma fazenda?
R – Era uma casinha.
P/1 – Foi na casinha onde o senhor nasceu?
R – Foi.
P/1 – Quantos filhos eles tiveram?
R – Dez.
P/1 – Você é o mais velho, o mais novo?
R – Quarto. Você sabe que o italiano, eles têm o primogênito, esse primogênito, ele manda em tudo. E eu sofri na mão do primogênito (risos). Quando ele nasceu o meu pai ficou muito contente, mas ele me judiou, viu? (risos) Ele mandava até lavar os pés dele, era terrível. Hoje em dia não tem mais disso, né? Primogênito, nossa senhora. E iam todos pro cafezal, era tudo colono. Carpir café, plantar, essas coisas.
P/1 – Como é que era essa casa?
R – Essa casa era duas águas feita de barro e quintal. Tinha horta muito boa. Era sossegado. Mas trabalhando das seis às seis.
P/1 – E quantos quartos tinha na casa?
R – Tinha três quartos.
P/1 – Como é que dormiam os filhos?
R – (risos) Você já viu, ter quarto pra dez. Minha mãe era muito boa, era uma santa mulher. Meu pai era duro, muito duro. Mas minha mãe contava história, reunia todo mundo de noite no quarto dela, sempre o quarto dela. E contava história, a gente ia até uma meia-noite e no outro dia tinha que dar um duro danado. Mas a gente gostava dela contar aquelas historinhas, muito bom.
P/1 – Que histórias ela contava?
R – Do Chapeuzinho Vermelho, Joãozinho e Maria, essas coisinhas.
P/1 – E vocês tinham contatos com seus avós?
R – Não, depois os avós morreram, morreram cedo. Eu só conheci meu avô paterno, o outro eu nem cheguei a conhecer, da minha mãe.
P/1 – E as avós?
R – Mesma coisa, não conheci.
P/1 – Quais eram suas brincadeiras de infância?
R – Brincadeira? (risos) Bailinho, todo sábado tinha baile. Tinha uma igrejinha, quem quisesse se batizar era lá também. E outras brincadeiras, homem com mulher é claro, porque sem mulher não adianta, né? (risos) Tem que ter. E é isso aí. Namorava.
P/1 – Mas e brincadeira quando era menor?
R – Tinha pouca brincadeira. Brincadeira é aquelas coisinhas de passar anel, uma coisinha e outra. No sábado, quando não tinha baile se reunia sempre, né?
P/1 – Vocês trabalhavam desde pequenos para ajudar seu pai?
R – Oito anos.
P/1 – O que você fazia?
R – Eu tirava leite da vaca. Minha mãe e meu pai e os outros iam tudo pro cafezal. Eu tirava o leite da vaca, dava pros meus irmãos e depois pegava um caldeirão de leite e pão pra levar pros irmãos lá na roça. Depois quando eu cresci um pouco aí passou, minha mãe fazia esse serviço, ela que levantava, tirava o leite, fervia e depois mandava pra roça também, com pão. Chegava lá, todo mundo comia. Oito horas. Onze horas tinha almoço. Três horas tinha o café. Seis horas tinha a janta. Era assim.
P/1 – E seu pai, como é que era?
R – Meu pai? Meu pai era um homem duro, muito direito. Ele não queria saber de nada de errado. E ele era duro. Quando chegava a noite, minha mãe contando história, não podia fazer barulho, não. Quando ele achava alguma coisa que tava perturbando ele fazia (faz grunhido): “Chega!” Acabou, ninguém falava mais nada. Era assim.
P/1 – E como é que era a sua relação com seus irmãos? Tinha o primogênito que você falou e os outros, como é que era?
R – Os outros eram bonzinhos, os outros todos eram muito bonzinhos. Só...
P/1 – Com qual irmão você se dava melhor e brincava mais?
R – Tinha quatro mulheres. Naquela época tinha duas só. A gente se dava bem, só o primogênito que fazia pirraça pra mim (risos). Mandava sempre eu fazer a coisa mais difícil porque eu acho que eu também era ruinzinho (risos), eu não era boa bisca não.
P/1 – Não era?
R – Acho que não porque (risos)...
P/1 – O que você aprontava?
R – Eu nunca queria, porque ele mandava e eu nunca aceitava muito as ordens dele, entendeu? Porque ele facilitava os outros e pegava sempre no meu pé. Ele falava: “Vai buscar lá, vai pegar um cavalo pra mim”. Tinha que ir. Ele não mandava nunca os outros, mandava sempre eu (risos). É isso aí. E mesmo tratar dos animais era eu. Porque ele mandava, naquele tempo primogênito era o dono. Ia falar pro meu pai: “Não, ele manda, ele manda. Ele sabe o que faz”. Então (risos).
P/1 – O senhor foi pra escola?
R – Escola? Nunca sentei numa cadeira num banco de escola.
P/1 – Nem seus irmãos?
R – Os outros foram um pouco, mas eu não.
P/1 – Por quê?
R – Primeiro porque não tinha escola onde a gente morava. E segundo porque precisava trabalhar, então não tinha que ter escola. Os outros depois, mais tarde um pouquinho, aí já foram um pouco na escola.
P/1 – Mas você queria ir pra escola?
R – Eu nem sabia o que era. Eu fui um dia.
P/1 – Você foi um dia?
R – Fui um dia na escola de fazenda, um dia e aí saiu uma briga com a molecada e eu fui pra casa, nunca mais voltei. Nunca mais.
P/1 – Por que saiu briga?
R – Não sei, coisa de moleque. Aí eu assustei e nunca mais. E mesmo assim eu fui comerciante, importador, dono de laticínios, fábrica, importação. Fui pra Itália, França, tudo a negócio e a passeio também, aproveitava. Porque naquela época, aqui no Brasil, não tinha queijo.
P/1 – Nós já vamos chegar lá, vamos voltar antes pra sua infância. E festas, que festas se comemoravam lá na sua casa, lá em Pinhal?
R – Eram as três festas, os três dias: Santo Antonio, São João e São Pedro.
P/1 – Como é que era?
R – Festa junina. Passava em cima do braseiro, sanfona à vontade, aquela festa de caipira. E era muito bom, era realmente bom.
P/1 – Tem alguma que o senhor lembra em especial que aconteceu alguma vez?
R – (risos) Eu lembro as moças. As moças furavam bananeira, punham o Santo Antonio de cabeça pra baixo pra arrumar namorado (risos). E era procurando namorada também, tudo moço.
P/1 – E o senhor aprendeu a ler e a escrever, alguém te ensinou?
R – Eu aprendi lendo jornal, livro, qualquer coisa. Mas dizer que me ensinaram não. Tive que aprender na marra, olhando, vendo os outros. E também acho que foi um pouco de preguiça, de má vontade porque poderia ter ido mais tarde, né? Eu não me interessava, ninguém falou nada também, e aí passou.
P/1 – Vocês tiveram educação religiosa?
R – Tivemos. Meu pai não era, mas minha mãe era, ela ia à igreja, acreditava, mandava os filhos para o Catecismo, isso eu aprendi lá. Mas escrever. Depois eu faço uns rabiscos aí, mas foi difícil. Para eu fazer negócio no exterior não foi fácil, mas dava um jeito.
P/1 – E rádio, vocês escutavam rádio?
R – Escutava.
P/1 – O que vocês escutavam?
R – A gente não tinha rádio, mas tinha uma família que tinha, aí ia todo mundo lá. Aquela música caipira, não lembro. E a gente ia lá e ficava até meia-noite, ouvia uma dupla caipira que só vinha meia-noite. Nossa senhora, esqueci agora o nome. Mas era a diversão, né? Um joguinho de futebol aos domingos.
P/1 – Tinha algum time que o senhor torcia?
R – Tinha, tinha. Primeiro e segundo.
P/1 – Quem que era o primeiro?
R – Primeiro sempre os melhores, né? (risos) O meu pai era contra. O meu irmão, o primogênito, queria jogar, de todo jeito ele queria jogar, mas era ruim de bola, né? Sempre do segundo time. Aí meu pai tinha medo que se machucasse, entendeu? Meu pai falou pra ele: “Olha Alexandre, se você deixar de jogar o futebol eu te dou uma mula arriada, você vai no seleiro”, que lá tinha seleiro naquela época, “e você escolhe o que você quiser”. Foi no seleiro, mandou fazer tudo, couro de anta, um couro branco. E aí ele deixou de jogar o futebol, entendeu? Mas foi difícil (risos). E lá, praticamente tinha um médico. A cidade é grande, depois nós fomos pra Jaú, uma cidade boa, né? E lá tinha só um médico. E quem tratava do pessoal lá era um veterinário. Ele curava as feridas, tudo, era o veterinário. Depois o médico deu em cima, ele não podia fazer aquilo, entendeu? Aí tiraram o veterinário, não podia, só animais. Mas ele era ótimo, ótimo. Quando tinha a feridinha, sabe, o interior está cheio de ferida, ele punha um pozinho lá, matava, matava na hora. E a gente andava 25 quilômetros até Jaú, para comprar sabe o quê? Um pastel (risos). Um chinês que tinha pastelaria lá, era esse o nosso divertimento no domingo.
P/1 – E a primeira vez que o senhor se apaixonou? Quantos anos o senhor tinha? Você lembra da primeira paixão?
R – Ahhhh, lembro!
P/1 – Quem que era?
R – Quer o nome? Mas eu sofri muito porque eu me apaixonei de verdade. Duas vezes.
P/1 – Mas quantos anos o senhor tinha, o senhor era menino ainda?
R – Como?
P/1 – Qual foi a sua primeira paixão quando o senhor era menino?
R – (risos) Menino não deu muito, depois dos 17 é que começou. Naquela época não era como hoje. Mas eu não era um menino bonito, era feinho, entendeu? (risos) A mulherada não queria não, dançava todo mundo, mas depois foi melhorando (risos) e aí deu, mas foi difícil, viu? Foi difícil.
P/1 – Mas como foi a primeira vez que o senhor se apaixonou?
R – Primeira vez. É minha filha, a gente vê a moça, gostou e aí fica em cima, mas nem sempre dá certo.
P/1 – Como era o nome dela?
R – Quinha, Mariquinha.
P/1 – Como ela era?
R – Era uma loirinha. Agora, apaixonar mesmo foi já aqui em São Paulo com uma menina que quando saí de lá (risos), ela tinha quatro anos mais ou menos. E eu já tinha 22.
P/1 – E a menina tinha quatro anos?
R – Quando saiu de lá tinha quatro anos, ela.
P/1 – Mas o senhor tinha 22 e se apaixonou por uma de quatro?!
R – Depois. Eu já tinha 22 quando vim aqui, entendeu? Aí ela já tava uma mocinha bonita (risos).
P/1 – Ah bom! (risos).
R – Quando eu saí de lá que ela tinha quatro.
P/1 – Ah, entendi!
R – E depois o tempo passou e chegou aqui. Eu vi, me apaixonei. Abraço, beijamos e foi uma maravilha. Essa me deu trabalho, viu? Essa deu. Sabe como são as coisas, quando você vai atrás a turma escapa, né? Sabe que está seguro, o cara está louco atrás. E não casei com ela, casei com outra.
P/1 – Até quantos anos o senhor ficou no Pinhal?
R – Até 25 anos.
P/1 – Por que o senhor saiu de lá pra vir pra cá?
R – É a família, que era meu pai que mandava, ele vai pra cá, vai pra lá, entendeu? Ficamos todo esse tempo em Pinhal, Jaú.
P/1 – Por que saiu de Pinhal e foi pra Jaú?
R – Pra melhorar de vida, né? Meu pai sempre achava que ia melhorar.
P/1 – Como é que foi lá em Jaú? Quantos anos o senhor tinha?
R – Quando foi pra Jaú, vixi, molequinho, dez, 12 anos, por aí.
P/1 – Como é que foi a mudança pra Jaú?
R – Acho que no livro está, de trem, na época era de trem. De Dois Córregos a Jaú é pertinho, meia hora de trem. Naquele tempo era só o trem, a Paulista. Depois tiraram tudo.
P/1 – E o seu pai foi fazer o quê lá em Jaú? Trabalhava do quê?
R – Colono.
P/1 – E vocês foram morar onde?
R – Nessa casa que eu falei.
P/1 – Em Jaú.
R – Numa fazenda de Jaú.
P/1 – Como era a fazenda?
R – A fazenda era boa pro patrão, como sempre (risos). Era uma vida muito dura, mas era divertido porque a gente tinha muitos colegas, eram tudo amigo. Então qualquer joguinho, qualquer coisa, a gente se reunia sempre. Não era no trabalho, mas assim mesmo nós tínhamos tempo e vontade de contar história até meia-noite, pra de manhã, seis horas ir pro trabalho.
P/1 – O que o senhor fazia nessa fazenda?
R – Colonos, trabalhava. Plantar milho, carpir café, essas coisas. De manhã o administrador tocava a buzina e saía todo mundo, seis horas. E voltava às seis horas também. Minha mãe levava o almoço pra nós, às onze horas, meio-dia. E depois ela trazia o feixe de lenha na cabeça, na cabeça. Ia fazer o jantar mais tarde. Precisava de uma estátua pra ela, em qualquer lugar. Ou pra outras mulheres também daquela época que faziam o mesmo. Mas urge que a gente lembra, o tempo era tudo de bom. Como hoje, os filhos não querem nem saber.
P/1 – Tem alguma história marcante que o senhor lembra que tenha acontecido nessa fazenda? Algum causo?
R – Você quer que eu conto como meu pai bateu em mim a primeira e última vez? A gente vinha almoçar em casa, entendeu? Podia estar longe, onde quiser, o almoço era em casa. E daí, meu irmão mais novo entrou no caixão, desses de tomate, sabe? E eu entrei junto. Aí brigou, deu uma briga. Meu pai tava dormindo, ele gostava de tirar um soninho meio-dia, depois do almoço. Minha filha, ele veio com a cinta (risos). Foi a primeira vez que eu apanhei, e a única também. Foi difícil, viu, foi difícil. Essas coisas assim que aconteciam. Agora briga era sempre, briga, nossa senhora. Ou por causa de uma coisinha, ou por causa da outra, né?
P/1 – Quanto tempo vocês ficaram em Jaú?
R – Em Jáu eu fiquei praticamente 25 anos.
P/1 – Depois de Pinhal foi pra Jaú?
R – Nasci em Dois Córregos, fomos pra Pinhal, depois Jaú. E depois ainda fomos, um ano em Cafelândia, lá no noroeste, pra lá de Bauru.
P/1 – Algum irmão já tinha vindo pra São Paulo ou não?
R – Sim, veio meu irmão acima de mim. Pra ver como podia colocar a família, ver, ele veio. Aí ele arrumou tudo, casa, alugou tudo.
P/1 – Onde que ele alugou a casa?
R – Vila Nair.
P/1 – Fica em que bairro?
R – Sacomã.
P1 – O senhor já tinha vindo pra São Paulo?
R – Nunca.
P/1 – Como foi a primeira vez que o senhor chegou aqui?
R – Nossa senhora, você imagine, descer na estação da Luz (risos). Vem lá do mato, a estação da Luz foi fora de série, né? Daí pegamos um bonde, que eu nem sei mais como é que era, fomos na casa de uns amigos que eram de lá também. Aí ele nos acolheu, nos deu almoço e tudo e depois fomos pra nossa casinha que já estava alugada pelo meu irmão.
P/1 – Onde?
R – Em Vila Nair, no Ipiranga. Sacomã.
P/1 – Como é que era o Ipiranga naquela época?
R – Ah (risos). Eu morava no Alto do Ipiranga, depois. Saímos dessa casa, meu pai comprou uma casinha lá no Alto do Ipiranga por sete mil, não sei se era réis, eu não sei, eu sei que era sete. E para eu ir até o Sacomã pra tomar o bonde, eu trabalhei no Cambuci, na Rua Alexandre Levi. Elevadores Atlas.
P/1 – Como é que era o Ipiranga?
R – Nossa senhora, era terra, não tinha nada calçado. Gente de mula, não tinha nada, era tudo barro. A gente saía de lá, de lá de cima, e vinha até o Sacomã. Às vezes precisava levar um sapato porque quando chegava lá estava tudo cheio de barro. Nossa senhora, que coisa. E o Alto do Ipiranga, só tinha um ônibus. Um. Um ônibus só. Eu penso hoje, se alguém falasse que um dia ia passar um trem por baixo da terra ali a turma mandava internar. É, porque tinha um ônibus só. Hoje o metrô passa por baixo. É isso daí.
P/1 – Aí chegou no Ipiranga, o senhor foi trabalhar na Atlas?
R – Fui trabalhar na Atlas.
P/1 – Foi trabalhar do quê?
R – Servente de pedreiro. Passei a ser profissional e daí até fiz casinha pra mim. E depois entrei no comércio.
P/1 – Quanto tempo o senhor ficou na Atlas?
R – Cinco anos.
P/1 – O senhor aprendeu aqui a ser servente de pedreiro?
R – Bom, servente é o ajudante, o que precisa aprender é pedreiro, porque aí você ganha mais. Eu via os pedreiros fazerem, eu falei: “Puxa, mas isso eu também faço”. Aí peguei a fazer, fazia tão bem como eles, tinha vontade porque precisava ganhar mais. E assim foi.
P/1 – Aí você morava com seus pais?
R – Ainda morava com meu pai. E nesse caso eu vou contar. Meu pai falava: “O filho que falar um dia que quer pagar pensão, a porta da rua é a serventia da casa. Aqui ninguém paga pensão”. E a gente pegava o nosso envelope e entregava na mão dele. E depois é que nem a Dilma, ela pega todo dinheiro, mas não solta. Então, o que aconteceu? Eu queria um sapato bom, outro queria um terno e ele não dava. Eu acho que ele queria guardar também algum dinheirinho e não dava. Aí eu falei: “Meu Deus, se eu for falar pra ele, ele vai me mandar embora, era o que ele falava mesmo, ninguém paga pensão”. Aí um dia eu fui entregar o envelope pra ele, um holerite, e aí eu dei uma cantada nele, falei: “Pai, te dou esse envelope, o senhor não precisa comprar mais nada pra mim, só tem uma coisa: o que eu ganhar extra daqui pra frente é meu”. Falei: “Agora vem”. Eu sabia porque eu tinha vontade de trabalhar, pegava uns biscatinhos daqui, outro lá, né? E fui ajeitando. Aí dentro de um ano eu já tinha o sapato que eu queria, que eu via na vitrine, terno, terno do melhor, camisa, tudo. Aí meus irmãos viram que eu tava progredindo: “Ah, eu também vou falar pro pai pagar a pensão” (risos). E pro meu pai foi ótimo porque ele recebia o mesmo dinheiro e não precisava comprar mais nada. Quando eu falei, ele falou: “Você é mesmo louco, né? Eu comprando tudo não dá, agora você vai me entregar o envelope e não te compro mais nada?” “Não, você não compra mais nada”. Eu sabia que eu ia ganhar mais. E assim foi. E aí meus irmãos todos fizeram (risos) e foi um bom negócio.
P/1 – Por que o senhor saiu da Atlas?
R – Saí porque veio um italiano, ele era vendedor, um bom vendedor, entendeu? E aí tinha um italiano ali na Rua da Cantareira, perto do mercado, ele tinha feito um estoque de manteiga de 50 toneladas, hoje 50 toneladas é nada. Daí esse italiano era muito amigo do outro, falou: “Hilário, você vai vender manteiga que o Maquenga está encalhado” “Mas como? Eu não sei vender manteiga, não sei nada. O que é isso? Nunca vendi nada”. Ele falou: “Não, você vai”. E foi. E deu certo. Eu vendi toda a manteiga do homem (risos), toda. E aí fiquei por lá. E gostei. Manteiga, era abrir o latão e eu já sabia, só de abrir, aquele aroma que vinha da manteiga. Quando era boa, né? Aí a turma me chamava para experimentar manteiga. “Hilário, vem aqui. Vê essa manteiga aqui”. Porque eu fazia com amor.
P/1 – Onde que ficava a manteiga? Onde era o empório?
R – A manteiga? Fica no frigorífico.
P/1 – Onde que era?
R – Era na Mooca. Hoje já fechou até.
P/1 – E o senhor ia até a Mooca todo dia.
R – Não, a manteiga ficava lá, vendia, quando vendia tirava.
P/1 – Mandava entregar.
R – É.
P/1 – Pra quem o senhor vendia, como o senhor começou vendendo?
R – Feirante. Peguei uma turma de feirante.
P/1 – O senhor ia pra feira?
R – Vender. Também foi penando também.
P/1 – Senhor Hilário, conta como é que foi a primeira venda do senhor de manteiga. Como é que o senhor começou, como foi o primeiro contato?
R – Isso eu ainda estava na fazenda. E aí, tinha algum pedaço de terra lá abandonada e eu olhei aquilo, falei: “Vou plantar vassoura aqui”. Não tinha dono. Aí eu plantei, não sei de onde saiu essa ideia, plantar vassoura.
P/1 – O que é vassoura?
R – Vassoura das de varrer casa, caipira, aquelas vassouronas grandes assim, mas costuradas, tudo bonito. Hoje acho que nem tem mais, tem alguma ainda por aí. E eu plantei, colhi sozinho. Ela já fazia parte do meu ganho, entendeu, que não precisava dar pro meu pai. Deu vassoura, eu cortei, levei pra casa e precisava ter um negócio pra tirar semente. Aí achei a raspadeira de raspar, lavar o cavalo e aquilo deu certo, tirava toda semente. Eu mesmo aprendi a fazer a vassoura e vendia (risos), foi a primeira. Daí já comprei um cavalinho pequeno, novo ainda. Daí um tempinho, um ano, eu já vendi. E aí começou. Depois entrei na manteiga, não, primeiro fiz uma casinha pra vender.
P/1 – Fez uma casa?!
R – Pequena, né?
P/1 – Sozinho?
R – Sozinho. Sozinho.
P/1 – Depois do trabalho o senhor ainda fazia a casa?
R – Não. Isso daí aconteceu que eu sofri um pequeno acidente lá no Atlas e me mandaram pra Caixa, eu fiquei. Fiquei na Caixa, mas não tinha nada, tava bom. E aí comecei a fazer esses biscatinhos pra lá, pra cá, e depois eu comecei, como já sabia de pedreiro, já tinha aprendido lá no Atlas mesmo, aí comecei a fazer biscatinho e coisa. E foi indo. Foi indo, até esse negócio da manteiga, aí que eu entrei mais ou menos firme no comércio, aí foi. E depois esse italiano falou: “Então você vem e trabalha comigo”. Vamos trabalhar. Eu já tinha tirado a carta, porque eu sabia que um dia eu teria que guiar, era o sonho de todo mundo, guiar, entendeu? Tendo um carro ou não tendo. E esse italiano tinha um furgão e ele não sabia guiar. Aí deu certinho. Falou: “Você quer vir trabalhar?” “Vamos”. Sócio. Aí nós fazíamos toda a cidade, todo dia de manhã.
P/1 – Que lugares da cidade?
R – Fazia o centro. Eu fazia o centro com ele de manhã. Depois eu deixava ele em casa, almoçava com ele na casa dele e daí ele ficava em casa e eu ia fazer o bairro.
P/1 – Que bairros?
R – Todos. Mais era o Ipiranga porque eu morava lá, então mais era o Ipiranga que eu fazia. Mas de manhã eu fazia tudo aqui o centro, Rua São Bento, Rua da Quitanda, Rua Direita, tudo, de manhã.
P/1 – Como eram a Rua da Quitanda e a Rua Direita?
R – A Rua Direita? Era boa (risos), muito boa. Muita gente, né? Era uma coisa de louco. E tinha o Bar Viaduto que era um espetáculo, lá da Rua Direita; no centro era o melhor bar que tinha, com música e tudo.
P/1 – E o senhor frequentava?
R – Entregar queijo, frequentava (risos).
P/1 – De manteiga passou pra queijo?
R – Não, queijo e manteiga, porque faz parte, o queijo e a manteiga é a mesma coisa. Provolone. Esse meu sócio, o italiano, ele veio, aí importava, nós importávamos provolone da Itália, eles importavam.
P/1 – Quando que ele deu sociedade pro senhor na manteiga?
R – Já de cara, né? Porque eu era um bom vendedor. Tudo o que vendia era meio a meio. O carro era dele, o furgão, mas eu é que guiava, né, eu que cuidava, tudo. Mas tudo o que se vendia era meio a meio.
P/1 – E o senhor começou a ganhar dinheiro?
R – Ganhei. Comecei a ganhar dinheiro. No começo, eu vendia pelo menos dez latões de manteiga por semana. Dez de 50 quilos. E vendi toda a manteiga do homem. E depois, então, ele tinha um furgãozinho 29 e me deu: “Vai vender queijo”. Aí fui vender queijo. Queijinho fresco, era o que mais saía, e sai até hoje, aquele queijinho mineiro. Vendia dez por dia, só. Ia vender lá na Mooca. E depois comecei a entrar firme, vender provolone, vendia tudo, aí já vendia tudo. Vendia queijo prato, provolone, parmesão, vendia tudo. Até eu abrir uma loja de queijo lá no Mercado do Ipiranga, lá em cima.
P/1 – Junto com o sócio?
R – Não. Aí fiz a loja, uma barraca de mercado, né? Aí ele foi, um dia, está pronta. Aí eu falei: “Você quer entrar? Pode vir, vamos trabalhar junto”, essa aqui também entrava na sociedade. Uma palavra dele acabou a sociedade (risos).
P/1 – Por quê? O que ele falou?
R – Ele foi lá, viu o ladrilho e falou: “Mas isso daqui você pôs?” “É. Por quê?” “Isso aqui não presta”. É ladrilho, estava o piso tudo feito, prontinho pra abrir. Aquilo lá me deixou muito magoado porque eu trabalhei que nem um louco pra fazer aquilo, entendeu? Ele foi justo implicar com o ladrilho, que não tinha nada de ver. Você vê, uma palavra muda. Aí, ele foi pra um lado e eu fui pro outro.
P/1 – Mas aí o senhor importava direto os queijos? O senhor começou a importar os queijos e as manteigas direto?
R – Eu comprava. Eu já tinha os fornecedores, era só pegar e vender lá no mercado.
P/1 – E aí, teve sucesso? Como foi a loja?
R – A loja? Está até hoje lá. Vendi pros meus irmãos, o primogênito, olha como o mundo dá voltas.
P/1 – Mas o senhor fez sucesso lá? Foi pra frente?
R – Muito, muito. Foi a melhor loja. Eu montei dez.
P/1 – De lá o senhor criou dez?
R – Dez lojas eu montei.
P/1 – Mas tudo com o dinheiro daquela, começou com aquela?
R – Tudo. Eu fazia assim, eu não gostava de empregado, então eu dava sociedade. Meu irmão, por exemplo, quanto dinheiro você tem? Ninguém tinha dinheiro, né? Meus irmãos eram motorista de praça, taxista, o outro era pintor. Aí eu fui trazendo tudo comigo.
P/1 – Onde o senhor abriu a segunda loja?
R – Em Santo André. Foi a melhor também depois dessa, porque lá tinha atacado. Eu chamei meu irmão: “Você quer entrar nessa? Quanto dinheiro você tem”. Vamos dizer que tinha mil cruzeiros, o que tivesse, porque aí eu já tinha crédito. Eles não tinham porque eles não eram comerciantes, mas eu tinha. Aí comecei a comprar e entregar pra eles, entregar pra loja, eles que tomavam conta, eu só fornecia e montava, quem montava era eu. E aí foi indo. Eles eram donos da metade, e a metade era eu e mais um sócio. E trabalha, você trabalha o seu ordenado aí, tira e vamos embora. E assim eu fiz com todos. Cinco. Não queria empregado.
P/1 – E onde eram as lojas? Santo André, Mercado do Ipiranga.
R – Santo André, Ipiranga, na Avenida São João, na Rua Pedroso, essa foi a pior. Na Rua Pedroso, o bairro parecia bom, na Rua Martiniano de Carvalho com a Pedroso. Aquilo foi um fracasso, um ano perdendo dinheiro. E depois vendemos e não recebemos, então, foi um fracasso. Mas aquela do Ipiranga, as outras, cobria tudo, foi muito bom.
P/1 – Aí o senhor já sabia ler e escrever.
R – Tinha que escrever, né? Muito mal, mas tinha que tirar nota (risos), fui aprendendo, fazer o quê. Muito mal, mas deu.
P/1 – E o senhor casou quando?
R – Eu casei em 57 com 33 anos.
P/1 – O senhor já tinha a loja de queijo?
R – Já.
P/1 – Como é o nome da sua esposa? É a mesma até hoje?
R – Hoje eu sou viúvo, ela faleceu faz seis anos.
P/1 – Como é o nome dela?
R – Vera.
P/1 – Onde o senhor a conheceu?
R – Na casa dela.
P/1 – Como foi?
R – Eu trabalhava lá, aí ia lá fazer biscatinho, arrumar casa, isso daí. Deu certo, né? Deu certo, aí casamos.
P/1 – Quantos filhos vocês tiveram?
R – Três.
P/1 – Qual o nome deles?
R – O mais velho chama Flávio, a do meio chama Luciana e o mais novo chama Hélio.
P/1 – Como era a Vera?
R – Era filha de italiano. Italiano, sabe como é, né? Eu sou de Áries e ela era de agosto, não lembro mais. Mas foi bem, 52 anos de casados. Sem pular cerca, sem nada, fiel. Depois ela faleceu e eu tinha comprado um apartamento lá no Paraíso, eu queria morar lá.
P/1 – E o senhor morava onde antes, continuou no Ipiranga esse tempo todo?
R – Não. Depois morei no Jardim da Glória, morei na Aclimação, fiquei 30 anos ali, e depois... Mas eu morei antes na casa da Vera porque não tinha dinheiro. E lá tinha um telefone, o telefone naquela época custava cinco mil, pra mim foi bom, né, eu tinha um telefone, tinha casa e tinha a sogra também, né? (risos) Daí, onde é que eu tava mesmo?
P/1 – Que no começo o senhor foi morar na casa da Vera.
R – É.
P/1 – Aí você foi lá pra dizer que chegou até no Paraíso.
R – Isso. E fiquei 15 anos lá. Fui pra ficar um ano, fiquei 15. A casa era grande, deu certo porque eu não brigava, às vezes brigava com a sogra, sogra é terrível, né? Italiana. Mas no final era boa, deu tudo certo. Aí, ela veio a falecer, aí eu mudei pro Jardim da Glória, comprei uma casa lá, reformei e fui pra lá. Agora a reforma que eu fiz da casa da Vera dava pra comprar uma casa, sabe? Era uma casa muito grande, ainda está lá, na Martiniano de Carvalho. A senhora conhece a Itororó, onde estão sempre pra renovar aquilo e nunca renovam nada, tá lá. E aí fiquei, fiquei. E depois do Jardim da Glória vim pra Aclimação. Da Aclimação não tava contente ainda, eu queria ir pro Paraíso e consegui. Quando abriram a venda na Avenida Aclimação, aí eu fui lá, fui o segundo a comprar o apartamento. Lá também fiquei 20 anos, mais ou menos, até sair ao Paraíso. Daí fui pra lá. Mas a minha mulher não quis ir. Não quis. Sabe por quê? Não. Porque ela tinha uns móveis da mãe dela, sabe aquela coisa antiga, e lá no apartamento não podia entrar aquilo, não cabia. Ela não foi. Você vê que eu não era muito ruim porque eu fiz o gosto dela, ela não foi. No Paraíso, um lugar maravilhoso, um apartamentinho de dois dormitórios que é uma joia. Não, não quis. Morreu, mas não foi. E eu: “Tá bom, não vai, tudo bem, fica por aí”. E daí hoje eu estou lá.
P/1 – O senhor mora sozinho ou mora com alguém?
R – Deixa eu contar essa historinha é meio boa, essa é. Sabe como é o homem, ele acha sempre que quer morar sozinho, né? Quer ter um apartamento e tal. Uma boa, né, agora eu fiquei sozinho. Mas nem todos são iguais, esse é o problema. E daí? Daí eu fui morar sozinho nesse apartamento que eu estou hoje, mas é uma joia, modéstia à parte, é uma joia. Eu fiz, decorei, fiz tudo, tudo novo. Aquele que a Vera não quis, eu dei tudo. Ela não quis vender, aí eu sou obrigado a dar, ninguém compra coisa velha. Uma parte dei, outra parte vendi, o apartamento com geladeira e tudo, foi de graça. Mas ela não foi, ela não foi, bateu o pé e eu achei, ela não quer, não vai, né? Bom, 52 anos de matrimônio. Eu casei em 57, esqueci de falar. Então, fiquei lá sozinho. Fui lá no apartamentinho, tava bonito, fui. Mas o tempo foi passando e aí começou a dar problema pra mim, entendeu? Porque não tinha ninguém pra conversar, era eu e eu. E aí, eu comprava comida congelada, punha no microondas, em quatro minutos tava pronta. Aí você vai na mesa comer. Mas sozinho? Que coisa chata, né? Aí, eu achava, parecia que a Vera passava assim perto da mesa e falava: “Ah, está comendo congelado?!” (risos) Entendeu? Mas eu via mesmo, parece que eu via. Ia dormir sozinho, aí ela passava assim: “Ahhh, dormindo sozinho?”. E aquilo foi entrando na mente, aí não deu. Aí eu fui morar com a minha filha, eu fechei o apartamento e fui morar com a minha filha que também mora lá perto. E não deu certo. Não deu porque eles, o casal, minha filha e o marido, saíam sete horas da manhã e só voltava às sete da noite, eu ficava sozinho a mesma coisa. Aí me veio a depressão, me veio a solidão e aí minha filha falou: “Vamos arrumar alguém pra você, não vai mais ficar sozinho” “Tá bom”. Aí elas arrumaram uma moça e está até hoje comigo.
P/1 – Essa que está aqui?
R – Essa que está aí.
P/1 – Como é o nome dela?
R – Cecília.
P/1 – Quanto tempo ela já está com o senhor?
R – Quatro anos. Aí, falei bem, muito boa a pessoa, muito boa. Ela dorme lá, só vai embora no sábado e volta segunda-feira. Mas aí, meus filhos...
P/1 – E o senhor tem os laticínios ainda, as casas de queijo?
R – Não, depois vendi tudo.
P/1 – Como chamava? Era uma rede, tinha o mesmo nome?
R – Não era bem uma rede, o nome era Queijo Mineiro.
P/1 – Chamava Casa Queijo Mineiro?
R – Todas elas chamavam Queijo Mineiro. Naquele tempo mineiro mandava, mas hoje não manda.
P/1 – O senhor que escolheu o nome Queijo Mineiro.
R – Foi.
P/1 – Mesmo trazendo da Itália? O senhor trazia da Itália e chamava Queijo Mineiro?
R – Da Itália?
P/1 – É, o senhor não disse que importava?
R – Sim, mas o nome da casa, mas importar era outro.
P/1 – E o senhor chegou a ir pra Itália a trabalho?
R – Fui, duas vezes. Fui na França duas vezes, fui por tudo lá.
P/1 – Mas foi a passeio ou a trabalho?
R – Os dois. Trabalhava e passeava.
P/1 – O que o senhor foi fazer lá?
R – Comprar.
P/1 – Como é que o senhor fazia com o idioma?
R – Ah, se dá um jeito, sempre dá um jeito. Aqui na Argentina, Uruguai era a mesma coisa que falar português. Naquela época o argentinos, hummm, arrogante, entendeu? Tinha tudo também, eles tinham tudo. Naquela época, Argentina, é a mesma coisa que você entrar na Itália, todos de paletó, gravata. E hoje não, hoje eles estão lá embaixo, né? Você pensa que entrava, tinha algum nessas calças? Mas nem pensar. Hoje está tudo igual, entendeu?
P/1 – O senhor juntou dinheiro?
R – Juntei. Juntei. Juntei bastante. Porque eu investia, entendeu? Eu investia sempre o dinheiro, comprava uma casa, um terreno, construí dois armazéns muito grandes. Uma na Vila Guilherme. Construí uma câmara frigorífica, cabia 450 toneladas de queijo! É muito, né? Fui tocando, mas tinha sócio. O sócio era até bom, trabalhamos 30 anos juntos. E depois o filho dele veio trabalhar, aí não deu certo, aí acabou com tudo. Pôs um genro também lá que começou a roubar. Aí fechou. Fechou não, eu dei pra eles e falei: “Vocês tocam, né?”, foi à falência (risos). Uma casa que dominava São Paulo, São Vito, dominava, era o primeiro da praça.
P/1 – Ah, era São Vito?
R – Era São Vito.
P/1 – Ficava lá no...
R – Primeiro nós começamos aqui perto do mercado, na Praça São Vito. Depois, aí começou, foi o Queijo Mineiro. Na Praça São Vito porque ali tava perto de tudo, Rua Santa Rosa, Rua da Cantareira. Aí eu comprava ali e já mandava pras casas. Mas depois a coisa começou melhorar e aí já não compensava mais a gente ficar como depósito num lugar e distribuir, aí você comprava na própria loja, quase o mesmo preço. Bom, agora faz dois anos, nem dois anos faz, aí viúvo, com um monte de coisa pra resolver, inventário, o que eu fiz? Vendi tudo. Vendi armazém, vendi apartamento, vendi tudo. E dividi o que era dos meus filhos, que era a metade, e fiquei com a metade. Mas depois também, se não tem negócio, o que vai fazer com o dinheiro? Não tem nada a fazer. Dinheiro é bom pra negociar, senão não vejo porque ficar com dinheiro. Aí passei tudo pros meus filhos, o meu também. Só fiquei com aquele apartamento agora, e já passei no nome dele também. Hoje não tenho nada no meu nome, só tem uma coisa, eu posso gastar à vontade, eles pagam. Quer dizer, o dinheiro é meu porque eu já deixei lá, deixei lá pra eles, mas é meu também, quando eu quero gastar eu gasto. Não precisa nem pedir nada.
P/1 – E o senhor faz viagens hoje?
R – Já viajei muito, hoje não quero viajar. Até há pouco tempo, já fui duas vezes nos Estados Unidos, tenho duas netas lá, já fui duas vezes lá. Mas eu viajei tanto naquela época, hoje nem pensar. Se me der as passagens de graça eu não vou.
P/1 – Seu Hilário, o senhor tem uma vida muito grande, rica de acontecimentos e, provavelmente, tem muitos que a gente não falou aqui. O senhor quer deixar registrado alguma coisa que eu não tenha perguntado?
R – Ah, tem muitas, né?
P/1 – Então fala.
R – Tem muito, né? Eu não sei se entra porque as coisas precisam, né?
P/1 – Pode falar.
R – Deixa eu ver se eu lembro alguma coisa.
P/1 – E esse livro que o senhor escreveu?
R – Esse livro foi uma vocação, uma vontade que eu tinha de contar a vida dos meus pais, da família. Peguei e escrevi, mas estava com uma dificuldade tremenda porque eu escrevia do meu jeito, depois precisava mandar pra alguém passar a limpo na máquina, mas deu pra fazer. Sacrifiquei, trabalhava que nem um doido, ainda precisava levar pra menina que datilografava lá no Bela Vista e eu morava na Liberdade, mas deu. Não sei se ficou bom ou não, mas assim que eu fiz. E eu pretendia fazer mais, mas hoje não tenho mais vontade, não tenho inspiração. Às vezes dá, mas outrora, eu falo, deixa pra lá. Mas tem muita coisa que posso escrever, sabe? Muito, muito. Problemas de sócio, tem um monte de coisa. Agora, assim, e cara eu não lembro.
P/1 – Qual o seu maior sonho, seu Hilário?
R – Maior sonho? Vencer na vida e ter dinheiro para a velhice. E graças a Deus eu consegui. Hoje eu não dependo de ninguém e vivo, graças a Deus, muito bem, com duas mulheres na casa, secretárias.
P/1 – Quem é a outra?
R – Tem essa e outra que entrou agora porque eu ficava no sábado até segunda sozinho, quando ela voltava. Um dia eu caí um tombo lá na casa, aí meus filhos assustaram e falaram: “Não, vamos arrumar uma pessoa pra ficar no sábado e domingo”. Aí arrumaram outra. E está dando certo. Essa sai na sexta-feira à noite, vai pra casa dela, e a outra entra quando essa sai. Depois essa entra segunda-feira ao meio-dia e a outra sai ao meio-dia também. Essa foi uma boa que eles fizeram pra mim, viu? Eu sempre falo (risos): “Pelo menos vocês fizeram uma ótima coisa porque sozinho...”.
P/1 – Seu Hilário, o que o senhor achou de contar sua história aqui no Museu da Pessoa?
R – Ah, foi a minha cunhada, a Heloísa, ela falou: “Hilário, vai lá, é assim, assim”. Eu falei: “Tá bom, vamos lá”, e eu vim. Porque eu tenho uma coisa comigo, eu acredito muito nas coisas que andam por cima. Quando fala vai, eu vou, é interessante isso. Tem uma voz que vem e fala: “Vai”. Quando tinha, por exemplo, uma partida de queijo muito grande, que valia a pena, eu sabia hoje, amanhã tava no avião e ia embora (risos). Porque eu acredito nas coisas. E ai daquele que não acreditar. “Lá tem um negócio”, preciso ir ver. E eu ia mesmo. Ia e fazia negócio, não tinha medo, de jeito nenhum. Se eu tivesse dinheiro, não tivesse, pra mim era a mesma coisa. Por quê? Porque eu tinha crédito. Se eu devia, por exemplo, cem mil pra senhora e não dava pra pagar eu emprestava de outro banco, pagava lá, estava sempre em dia, nunca deixei de pagar, isso é muito importante. Muito. Então, tem que acreditar, não tem jeito. E essas coisas me ajudaram muito, sabe? Era caso da Vera, né? “Ah, tá comendo congelado?” (risos). É a mesma coisa. Hoje meus filhos são casados, os três, graças a Deus casaram bem, então vou vivendo. No domingo a gente joga umas cartas e vai tocando a vida. Mas eu não tenho mais condições de trabalhar. Quando eu deixei de trabalhar quase morri! E tem muita gente que quando se aposenta morre, você já viu isso? Morre. Porque não tem o que fazer, é terrível. Nunca deixe de trabalhar, viu? Nunca. É a pior coisa que tem. Primeiro o que é? Você perde os amigos, esses que são tristes de perder, os amigos. E depois, quando você está na ativa o telefone toca toda hora: “Esse telefone não para”. E depois, quando você perdeu os amigos o telefone não toca. Aí você fica olhando: “Esse telefone não toca”, entendeu? Porque você quer conversar, os amigos fogem tudo, vão embora, acabou. Enquanto está trabalhando é uma beleza, nossa senhora, os amigos são metade da vida da gente, viu? Não parece, mas é.
P/1 – Seu Hilário, eu queria agradecer a entrevista do senhor. Muito obrigado por ter vindo.
R – Imagine, eu é que agradeço, filha, que é isso. Eu agradeço.
FINAL DA ENTREVISTA
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