P/1 – Então vamos começar. Cida, bom dia!
R – Bom dia!
P/1 – Eu queria que você começasse a entrevista dizendo para nós seu nome completo, o local e a data do seu nascimento.
R – Maria Aparecida de Medeiros, costumo usar Cida Medeiros (riso). Eu nasci em São Paulo em 30 de janeiro de 1957.
P/1 – E o que você faz hoje, Cida?
R – Eu sou coordenadora de comunicação corporativa na Avon.
P/1 – E como chamam os seus pais?
R – Meu pai se chamava Arlindo Félix de Medeiros e a minha mãe se chama Alzerina da Silva Medeiros.
P/1 – Sua mãe é viva?
R – Viva, tem setenta e três anos.
P/1 – E o que faziam os seus pais, Cida?
R – Meu pai era policial militar e, a minha mãe, ela foi dona de casa até por volta dos anos oitenta, quando meus pais se separaram. E aí então ela começou a trabalhar em várias atividades ligadas a escritório. E até hoje ela trabalha como auxiliar de escritório em uma loja de molduras para artistas plásticos.
P/1 – Aos setenta e três anos trabalhando?
R – É. Ela é muito ativa, caminha há mais de dez anos uma hora por dia, religiosamente de domingo a domingo. Uma pessoa fantástica (riso)!
P/1 – Que bom, daí vem a sua força, né? (risos)
R – Ela é um grande espelho para mim.
P/1 – Que bom! Você tem irmãos, Cida?
R – Sim, eu tenho um irmão e duas irmãs. Perdi uma irmã nos anos oitenta, mais ou menos, éramos cinco.
P/1 – E a origem da sua família?
R – Meu pai nasceu em São Miguel dos Campos em Alagoas e a minha mãe nasceu em Anadia em Alagoas. Eles se encontraram em São Paulo, se casaram e os filhos nasceram aqui.
P/1 – Olha, que interessante. Você sabe essa história do encontro deles?
R – Do encontro especificamente não, mas eu... A família da minha mãe e do meu pai, ela tem uma mistura muito grande de índios, principalmente de índios, caboclos e todas...
Continuar leituraP/1 – Então vamos começar. Cida, bom dia!
R – Bom dia!
P/1 – Eu queria que você começasse a entrevista dizendo para nós seu nome completo, o local e a data do seu nascimento.
R – Maria Aparecida de Medeiros, costumo usar Cida Medeiros (riso). Eu nasci em São Paulo em 30 de janeiro de 1957.
P/1 – E o que você faz hoje, Cida?
R – Eu sou coordenadora de comunicação corporativa na Avon.
P/1 – E como chamam os seus pais?
R – Meu pai se chamava Arlindo Félix de Medeiros e a minha mãe se chama Alzerina da Silva Medeiros.
P/1 – Sua mãe é viva?
R – Viva, tem setenta e três anos.
P/1 – E o que faziam os seus pais, Cida?
R – Meu pai era policial militar e, a minha mãe, ela foi dona de casa até por volta dos anos oitenta, quando meus pais se separaram. E aí então ela começou a trabalhar em várias atividades ligadas a escritório. E até hoje ela trabalha como auxiliar de escritório em uma loja de molduras para artistas plásticos.
P/1 – Aos setenta e três anos trabalhando?
R – É. Ela é muito ativa, caminha há mais de dez anos uma hora por dia, religiosamente de domingo a domingo. Uma pessoa fantástica (riso)!
P/1 – Que bom, daí vem a sua força, né? (risos)
R – Ela é um grande espelho para mim.
P/1 – Que bom! Você tem irmãos, Cida?
R – Sim, eu tenho um irmão e duas irmãs. Perdi uma irmã nos anos oitenta, mais ou menos, éramos cinco.
P/1 – E a origem da sua família?
R – Meu pai nasceu em São Miguel dos Campos em Alagoas e a minha mãe nasceu em Anadia em Alagoas. Eles se encontraram em São Paulo, se casaram e os filhos nasceram aqui.
P/1 – Olha, que interessante. Você sabe essa história do encontro deles?
R – Do encontro especificamente não, mas eu... A família da minha mãe e do meu pai, ela tem uma mistura muito grande de índios, principalmente de índios, caboclos e todas essas misturas brasileiras, né, e um ou outro português. E tem muita história que eu ouço desde a minha infância que a gente nunca sabe se é lenda, né, que aquelas histórias contadas na chuva, com todos os netos na cama da avó com medo do trovão. Então o que eu sei é que meu pai, a minha avó era índia e ela se casou com meu avô que era descendente de português, né? A minha avó não queria muito estar na civilização, ela teve mais de oito filhos. Então, pelo que eu sei, pelo que eu me lembro, era um conflito entre eles porque a minha avó sempre quis voltar para tribo. Então em um determinado dia, quando ela teve o último, que é o meu tio Zezito (riso), o caçula, ela desapareceu. Então, o pessoal acredita que ela tenha voltado para a aldeia, voltado para a sua vida, da sua cultura. E aí a família se desestruturou e o meu pai resolveu, então, aos dezesseis anos vir para São Paulo. Aí, aqui ele não tinha nenhuma referência, então ele foi ajudar a descascar batatas no quartel lá na Tiradentes. Aí ele passou dois anos fazendo esses serviços e tal, até que ele criou a condição de ser policial militar efetivamente. A família da minha mãe, que era muito mais, minha avó teve vinte e três filhos, dezoito vivos (riso). Então, eles vieram também para São Paulo, nesse processo migratório e estavam ali na região da Tiradentes. Foi nessas condições, minha mãe trabalhando, fazendo alguma coisa que eu não lembro exatamente o quê, que eles se conheceram. E aí eles foram morar na Vila Maria. Aí toda família foi para lá, porque aquela ideia da turma se protegendo, né? E eu nasci nos Campos Elíseos, no Hospital da Cruz Azul, que é um hospital que até hoje existe, da polícia militar.
P/1 – E você passou sua infância toda ali nos Campos Elíseos?
R – Eu lembro da minha infância em Guarulhos, em um lugar que para mim era místico, mítico, sei lá, que é o Jardim da Tranquilidade em Guarulhos, não sei nem se existe ainda. Mas a minha infância, eu lembro desse lugar que eu fantasiava quando criança. Depois nós moramos na Vila Maria e passamos uma boa parte da minha infância na Vila Maria. E eu até achava que a casa que eu morava era uma fazenda, mas anos depois eu voltei lá e era um quintal pequeno (riso). Mas a minha infância foi muito cheia de ideias, lendas, viagens, sonhos, conversas com árvores. Eu tinha muita fantasia na minha infância.
P/1 – Mas vinha de você isso ou era uma coisa cultuada na sua família? Porque você montou uma imagem tão linda, os netos na cama da avó nos trovões. Isso era uma coisa da sua família ou era uma coisa sua?
R – Eu acho que era um pouco das duas coisas, né? A minha avó foi uma pessoa muito sofrida e ela compensou nos netos aquilo que ela não fez com os filhos. Porque a história dos meus tios é de muita severidade. Os dois caçulas, porque eles nasceram muito próximos, então ninguém considerava a minha tia como a caçula, mas minha tia e o meu tio. Então, principalmente o meu tio, ele foi educado com muita severidade e tal, então... E a maioria deles, porque ela, imagina, uma mulher que teve vinte e três filhos, eu não sei se ela queria ter os vinte e três, né? Eu imagino assim. E ela gostava muito da minha mãe. Tinha alguns filhos que ela tinha uma afeição maior e a minha mãe sempre foi uma pessoa muito especial. Aí, então, ela tinha um apreço muito grande pelos netos, eu e os meus irmãos. Então ela presenteou a gente com muitas histórias dos irmãos, histórias, assim, vai na feira... Porque nas feiras no Nordeste é muito comum ir todo mundo junto para vender seus artigos, a farinha que é feita nas casas de farinha e tal. Então, ela contava muito essas histórias, a gente cresceu com esses estímulos, né? E eu também já sou uma pessoa que gosto muito disso, de ver o que está por trás das coisas, de tentar entender. E nasci já com, sei lá, um dom, uma facilidade, de intuição aguçada, então eu via muitas coisas além. Algumas coisas eram fruto de um exercício de imaginação, mas muitas eram observação das pessoas e tudo. No começo saía como um diamante bruto, então às vezes eu constrangia as pessoas com o que eu via, porque eu falava o que eu realmente estava vendo. Então, foi um trabalho de elaboração ao longo do tempo também.
P/1 – E você falou com muito carinho e alegria do tio Zezito. Por quê? O que ele tem de especial?
R – Tem algumas pessoas na minha família que foram muito importantes para a minha formação, né? O tio Zezito, ele era uma pessoa extremamente arrumada, assim, todo arrumadinho, todo, assim, na moda, sabe? E ele era um taxista, que era na época uma coisa estranha porque o meu pai era policial militar, as referências que eu tinha de profissão. E ele era um taxista, tipo, nossa, um cara tão arrumado, por que ele não quis estudar, ele não quis, sabe? Não encaixava muito bem. Ele estava para mim associado ao buscar outras coisas, ao sair da caixa, né? Então eu viajava naquilo, o que é que era aquilo, por quê? E eu tentava conversar com ele e ele brincava comigo e não dizia porque ele era taxista, sabe? Então ele aguçava mais ainda a minha imaginação: por que as pessoas fazem outras coisas e que outras coisas são essas? Então ele abriu em mim a possibilidade de pesquisar outras coisas porque era uma época nos anos sessenta, assim, que tinha os festivais de música popular na Record e tudo... Então, assim, isso era uma coisa muito distante, ter cantor e tal. Então o que é que tinha? Tinha a minha tia mais velha que trabalhava na, acho que era a Gessy Lever, que era secretária e na época ser secretária era uma coisa muito importante e tudo, né? E ela se orgulhava de ser ativa, de estar no mundo da indústria e tudo. Mas aquilo também era minha tia, era pioneira, uma coisa fora, uma heroína para mim (riso). E o meu tio era uma coisa mais próxima, ele fazia parte do campo das perspectivas, da exploração do trabalho. Então aquilo para mim era um ícone interessante. A minha tia, ela foi muito importante porque ela era a minha madrinha. Foi quando ela me deu meu primeiro presente de aniversário que eu lembro como oficial, como consciente, né? Foi um dicionário. E aquilo mudou a minha vida também, foi muito importante. Até hoje eu tenho esse dicionário. Me inspirou, o dicionário fez com que eu... Parecia, assim, não é que eu me tornei jornalista por causa do dicionário, mas o dicionário disse que eu era jornalista, é uma outra relação, sabe? Tipo ela adivinhou o que eu queria, o que eu era, a minha essência, sabe? Então, essas pessoas são importantes, fico emocionada (chora).
P/1 – É bom. Eles estão ainda vivos, Cida?
R – Sim.
P/1 – Que bom.
R – Não, meu tio Zezito não.
P/1 – O tio Zezito não?
R – Eu sou assim, essa pessoa...
P/1 – Não se preocupe, não se preocupe.
R – Sensível. (chora)
P/1 – Você quer parar um pouquinho?
R – Não, tudo bem. Eu só não tenho lenço (risos).
P/1 – Vamos parar um pouquinho? Pra gente também lembrar, tudo bem? Então, mas vamos falar de brincadeiras. O que você gostava de brincar, além de fazer esse seu passeio espiritual, o que você gostava de brincar? Corda, bola?
R – As minhas brincadeiras eram interessantes (risos). Porque eu gostava de conversar com a natureza. A lembrança mais marcante que eu tenho da minha infância, era nesse quintal que eu achava que era uma fazenda enorme. Meu pai construiu uma espécie de uma casinha sem teto, um quadradinho alto, uma palafita sem teto, um quadrado, que ele disse que ia colocar um porco ali, criar um porco. Só que nunca houve isso e eu e meus irmãos ocupamos aquele lugar para as brincadeiras, né? E era engraçado que não era um lugar muito grande, mas a gente conseguiu ocupar os cantos, assim, tipo, tinha um lugar ali que era o meu universo. E aí, depois que eu fui ler Guimarães Rosa e um monte de outras pessoas, eu falei: “Gente, que bom que eu sou normal!". Porque o Guimarães ficava debaixo da pia com uma lanterna e eu conseguia em um espaço, em um cantinho daquilo que a gente chamava de chiqueirinho (riso), conversar com um universo de personas, de coisas, de identities. E eu tinha esse lugar e tinha um tronco no quintal que eu conversava com ele e a gente trocava e ele me ensinava muitas coisas e a gente trocava bastante. Eu despendia muito tempo ali. Até que um dia minha mãe não aguentou me vendo ali e riu; aí enquanto ela estava rindo com a vizinha da situação, eu cochichei com ele, falei: "Olha, então já que nos descobriram, então não vamos nunca mais conversar, tudo bem com você?". “Tudo bem." E aí fiquei com vergonha da situação ali e tal, mas eu já tinha combinado com ele que a gente (ri muito)...
P/1 – Você nunca mais o reencontrou?
R – Nunca mais porque aí ele deixou de ser o tronco e ele se incorporou em um lugar no meu cérebro. E eu sempre, quer dizer, durante muito tempo, eu recorria a esse grilo falante, essa entidade.
P/1 – De certa forma é um reencontro, né?
R – É. Assim, tinha muito de imaginário na minha formação até a adolescência.
P/1 – E você foi para a escola normal com seis anos?
R – É, o meu primeiro ano foi em março de 1964. Eu passei um ano muito bom, só que eu já lia porque eu sempre fui muito curiosa, fuçava demais. Então eu já aproveitei bastante o meu primeiro não no Grupo escolar da Via Dutra, lá na Vila Maria. Até hoje ele ainda existe, só que agora como Escola Estadual alguma coisa. E aí no ano seguinte, a gente mudou da Vila Maria para Ponte Rasa, a gente saiu da Zona Norte e foi para Zona Leste. E aí a escola já estava piorando, né, depois do estabelecimento da ditadura. Então eu vivi até o ginásio basicamente com o que eu estudei no primeiro e no segundo ano. Eu já era uma pessoa curiosa, então eu fui só acelerando esse processo de aprendizado, de autodidatismo e tudo mais. Então eu pude colaborar muito e ali também nasceu um sentimento muito de que, aquilo que eu fazia em um plano menor na família, eu podia fazer de uma forma mais amplificada. Então eu ajudei muitos colegas com receio de que eles tivessem uma educação pior do que a que eu tive, porque eu tive contato com algo melhor. E era uma escola pública!
P/1 – Isso na época do ginásio?
R – É, até o ginásio.
P/1 – Na sua adolescência. Isso permaneceu na sua juventude depois...
R – Permaneceu, permaneceu. Tanto que depois, na faculdade, eu fiz, primeiro eu fiz Pedagogia na PUC um pouco depois do episódio da invasão, foi lá nos anos oitenta. E eu também tive um primeiro ano muito bom, assim, tem algumas coisas que se repetem, né, na minha história. Assim, tudo que eu faço, eu tenho uma característica que eu gosto de fazer o que é novo, eu não gosto de fazer, assim, a repetição, ficar muito tempo fazendo a mesma coisa. Eu sou muito inquieta pelo novo, né? E eu gosto do desbravar. Então tudo que era pela primeira vez em tudo, era sempre mais gostoso de fazer. E lá na PUC o meu primeiro ano foi maravilhoso por tudo, pelo ambiente, pelo momento político de efervescência, estar na PUC. E na realidade eu queria ter feito Jornalismo, mas curiosamente...
P/1 – Pois é, eu ia te perguntar. Como é que foi essa...
R – Então, eu trabalhava na Abril, na Abril S.A em uma área de livros. Então dava para trabalhar lá com formação de Jornalismo, de Pedagogia ou Letras, né? E aí eu prestei para Jornalismo na PUC com opção em Pedagogia. E, curiosamente, o ano que o Paulo Freire foi para PUC, eu peguei o nono lugar na Pedagogia e não peguei Jornalismo (risos). Porque todo mundo foi para a PUC querendo estar com Paulo Freire, né? Então foi concorridíssimo e eu que nem tinha intenção de fazer a Pedagogia necessariamente... E aí eu cursei dois anos e meio, mas quando eu entrei mesmo na Pedagogia, a Pedagogia estava para trás do ambiente todo que estava de efervescência intelectual. E aí eu não me adaptei e parei o curso.
P/1 – Na verdade você já tinha decidido ser jornalista em algum momento. Você lembra que momento você decidiu ser jornalista?
R – Desde o ginásio, quando eu comecei a... Porque eu convivi com um pai policial militar no momento que a ditadura aconteceu. Então meu pai começou a sumir, ia guardar a caixa d'água de Vila Prudente porque os comunistas iam envenenar a água da cidade, coisas do gênero. E eu ficava o tempo todo desconfiando: "Nossa, eu tô vendo todo mundo tão legal na rua, tá tudo tão... Porque o meu pai fala que é perigoso?". Eu não via nenhum perigo, então, nessa desconfiança, eu comecei a ir atrás da minha maneira, né, sem internet, sem nada. Então eu comecei a achar que tinha uma outra realidade ali, que aquela era uma forma de ver que ele tinha lá e tal e tentar entender porque é que ele via... Também tinha isso, eu olhava as coisas também pelo lado que era o meu pai, que eu sempre gostei muito do meu pai, sempre amei muito ele. Então eu também não via “ah, o milico” e tal. Eu via o meu pai com uma ideia, até com intimidade de saber que era uma pessoa que tinha as limitações culturais dele, de ter vindo do Nordeste, de não ter estudado e tal. Então ele também aprendia a realidade de uma forma limitada, dentro das condições dele, né? Então esse exercício de olhar os dois lados foi me levando a tentar esse exercício que depois eu percebi que era o Jornalismo, que se encaixava nessa curiosidade.
P/1 – Tá. Então você fez dois anos e meio de Pedagogia e aí já foi para o Jornalismo ou deu um tempo?
R – Não. Eu parei o Jornalismo, continuei na Abril um tempo, na Abril S.A. E aí eu não me lembro exatamente como, mas aí depois eu fui trabalhar na Editora Abril. Meu primeiro emprego foi na área de compras da Editora Abril.
P/1 – Então deixa eu te perguntar: o primeiro emprego da sua vida foi...
R – Em 1975. Assim, com carteira assinada. Mas antes eu trabalhei em uma oficina de costura lá na Ponte Rasa, trabalhei em uma loja fazendo pacotes bazar, umas coisinhas assim. E aí oficialmente com carteira assinada foi na Abril.
P/1 – Como é que foi? Você viu um anúncio no jornal? Como é que você ficou sabendo desse emprego?
R – Na Abril? Essa minha tia, minha madrinha, né, ela leu no jornal que tinha um anúncio precisando de alguém na área de compras da Editora Abril. E aí ela falou: "Olha, pelo que você fala, pelo que você quer, que você quer mexer com comunicação, começa por aí". E a área de compras da Abril na época era comprar brindes para Revista Recreio, era ligada à Redação, às compras. Então eu já comecei dentro da redação, praticamente, né? Um olhar de comunicação de uma área de compras de uma editora, né?
P/1 – Devia ser bem divertido, né, esse trabalho?
R – Foi, foi incrível! E é incrível, eu lembro de um episódio, assim, as coisas que marcam, né, eu estão ligadas aos nossos objetivos. Eu trabalhava lá na Marginal Tietê e um dia eu estava conversando com meu colega do departamento e a gente estava falando de sonhos. E eu falei: "Eu sonho um dia ter uma matéria no jornal, mas não que eu tenha escrito, mas que eu falei alguma coisa, que eu dei uma declaração". E aí ele ficou, ele fez uma cara de horror, assim, falou: "Mas por que você sonhou, assim? Isto é impossível de acontecer". E eu olhei pra ele, assim, tipo: "Não, mas isso não é impossível. Isso para mim é fato, vai acontecer". E anos depois, quando eu lancei o livro de poesias, que eu dei uma entrevista para o Diário do Nordeste, que foi uma experiência incrível porque ele não escreveu uma linha e foi superfiel ao que eu falei. Foi uma entrevista de uma hora, eu falei: "É esse tipo de jornalista que eu quero ser". Aí depois eu evolui para entender que o Jornalismo é mais que trabalhar em um jornal. E também essa coisa de escrever poesia e tudo mais, quer dizer, a expressão. Aí eu evolui para a expressão e depois que eu fui fazer pós-graduação em Teoria da Comunicação e fui me aprofundando nessa questão da expressão: o que é se comunicar na sua profundidade e tal, o que era na realidade o que eu sempre busquei, desde a infância.
P/1 – Aí você foi para a Editora Abril...
R – Fui para a Editora Abril na área, era sempre a área administrativa. Só que quando eu fui para o Panambi na editora Abril, ali no Brooklin, eu fui trabalhar em uma área que era de anúncios para terceiros, eram os anunciantes que não tinham agência e recorriam a essa área da Editora Abril.
P/1 – E como é que você foi parar na Avon?
R – Na Avon?
P/1 – É.
R – Até então eu só trabalhei na Abril, na Editora Globo, na Editora Azul, sabe? Sempre veículos ou empresas de comunicação. Em 1991, um pouco antes, eu saí da Editora Globo e fui para a Editora Azul, fiquei quatro meses lá. E a Azul na época, ela inchava e desinchava, aí eu fui dispensada. Eu fiquei um ano, um ano e pouco fazendo freela. Curiosamente eu fiz um livro para a Natura, um livro sobre bem estar, estar bem. E aí eu fui incumbida da parte de pesquisa gráfica desse livro e tal. Eu fiz algumas outras coisas, era um período em que eu trabalhava com vídeo, trabalhei como assistente em um vídeo sobre o Tomás Ianelli e tal, fiz várias coisas. Na Globo eu trabalhava produzindo comerciais e tal. E nesse período de freelancer, fazendo essas coisas, minha amiga me disse que tinha uma posição de assessor de imprensa na Avon. Aí eu fui participar do processo. Quando eu entrei na empresa, eu falei: "Nossa, isso aqui é uma empresa!", como se antes eu não tivesse trabalhado em uma empresa (risos). Mas eram veículos de comunicação, era diferente, eu estava em um outro lugar, né? E aí eu acabei sendo aprovada e eu me lembro que... Aliás, essa coisa de entrevista de trabalho foi interessante porque teve uma época que eu trabalhei na Playboy e em uma entrevista para secretária da redação, eu... Era o Carlos Costa que era o redator na época e ele fez entrevista com quinze candidatas para ser secretária. Aí quando ele veio falar comigo, ele falou assim: "Olha, eu gostei muito de você, apesar de que tem muitas aqui que falam três línguas, que tem tudo para ser secretária, mas eu gostei muito do seu pique". Aí ele falou: "Eu tenho uma outra que está concorrendo também, mas eu só ficaria com ela se ela falasse sânscrito" e eu ri. Ele falou: "Nossa, você entendeu a piada?". Eu falei: "Ué, sânscrito é uma língua morta, tipo, não serve para nada". Aí ele falou: "Então é você mesma, porque eu preciso de gente que tenha informação para trabalhar na redação". (risos) Então, isso fez com que ele se decidisse por mim. E na Avon, eu fui entrevistada pela Rosa Alegria, que foi Diretora de Comunicação e ela é uma pessoa de Letras da USP e tal, é uma pessoa de conhecimento, né? Na entrevista ela falou: "Olha, se eu tivesse uma situação x, y, z e tal, como você faria?". Aí eu falei: "Eu não tenho a menor ideia". Aí ela fez assim, né, ela falou: "Nossa, você é a primeira pessoa que não vai tentar resolver um problema hipotético com uma teoria". Aí eu falei: "Eu precisaria olhar, saber, entender todas as nuances, aí eu poderia dar uma opinião, eu poderia dizer do que eu já resolvi de problema, mas essa situação hipotética eu não tenho a menor ideia. Eu poderia falar um monte de coisas, mas é só uma situação hipotética, não serve muito". Aí ela gostou também porque eu não fui... Isso poderia ser um risco em uma outra entrevista, mas eu fui sincera, fui espontânea, aí ela também se decidiu por mim por conta disso (riso).
P/1 – Agora, Cida, é evidente que quando você entrou na Avon nos anos noventa, você já tinha ouvido falar da Avon, né?
R – Para falar a verdade não, muito pouco (risos).
P/1 – É mesmo?
R – Muito pouco. Assim, era um universo que eu não transitava, eu estava em um outro universo de informação, de conhecimento, eu estava no mundo da publicidade. Nos últimos anos da Editora Abril, eu coordenava a produção de anúncios. Só que tudo na minha vida sempre esteve ligado ao campo do conhecimento. Essa coisa do mundo corporativo é de uns dez anos pra cá, em termos profissionais. Eu sou de uma época que o jornalista era escritor, né? Embora eu não tenha atuado no Jornalismo de fato, na redação, mas era uma intelectualidade. Eu trabalhei na Playboy com muita gente que tinha esse perfil, né? O próprio Mário de Andrade, o diretor da redação, era um cara que prezava muito a intelectualidade, ele tinha saído da Revista Realidade. Então era esse universo que eu vivia na Abril e que estava se transformando, então eu peguei essa transição. Então mesmo quando eu trabalhava como coordenadora do setor de anúncios – eu fui trabalhar com isso porque antes eu fiz um curso com um pintor uruguaio que morava no Brasil que era especializado no céu de Rafael e eu fui fazer um curso de Artes Plásticas com ele –, então, quando eu fui trabalhar coordenando produção de anúncios, o meu olhar era da fotografia, da arte da fotografia, né? E eu me orgulho de quatro, cinco anos desse trabalho. Eu trabalhei com muitos fotógrafos que eram assistentes na Editora Abril e que hoje são grandes fotógrafos, o Maurício Nahas, vários deles, o Eduardo Pozella, todos, e que até hoje eles têm nos portifólios deles os anúncios com as fotos deles que nós fizemos naquela época. Porque era algo além do que simplesmente uma foto de um produto; era uma visão, um olhar sobre uma coisa, era um tema. Eu estudei muito, o meu foco de atenção era esse, só para ilustrar porque que eu não conhecia a Avon (risos). Porque o meu foco de atenção era esse.
P/1 – Não é pecado não conhecer!
R – Não, hoje ela é muito conhecida e tudo mais e tal... Agora, na época, não é que ela não fosse conhecida, mas é que eu transitava em um outro ambiente e eu tinha um outro foco de interesse.
P/1 – Era um âmbito também diferente, onde a Avon era conhecida, era completamente diferente. Você tem razão, hoje há um outro olhar até da própria publicidade com relação à Avon.
R – Exatamente!
P/1 – Mas aí você teve uma impressão assim: "Nossa, estou em uma corporação". Isso lhe assustou? O que você lembra da sensação que você teve?
R – Sabe o que é interessante? Assim, tipo: o que será que vai acontecer? O que é que é isso que estou entrando? Que mundo é esse? Porque faltava o afã, né, do mundo da comunicação na Editora Abril, que tinha, né? "Ah, o artista que ia lá da Elle, do não sei o quê, a Ana Maria Braga que era a diretora de redação da Elle. O mundo, o universo das revistas e tudo mais. Por isso que a gente não sentia que era uma empresa, né? Era o mundo da comunicação, das possibilidades da comunicação. Ainda peguei um final do Victor Civita, ou pelo menos da ideia que ele tinha de editoração, de publicação e tudo, então tinha uma coisa ingênua, no bom sentido, da poesia da comunicação. E era um mundo que era assim no geral. E na Avon, eu estava entrando em uma empresa, parecia que não tinha o afã e eu fui descobrir onde que estava. E aí em pouco tempo, em uma semana eu falei assim: “Gente, o ouro aqui são as revendedoras". E eu comentei isso com a Rosa, eu falei assim; "Nossa...". Aí eu descobri esse tronco, o chiqueirinho, onde que estava o lado da poesia da minha infância que sempre norteou tudo que eu fiz na minha vida, senão não tem sentido.
P/1 – Você lembra do seu primeiro dia de trabalho?
R – Primeiro dia de trabalho? Eu fiquei ali tentando ver o que eu tinha para fazer, mas não tinha nada para fazer porque era o dia que era curiosamente, misticamente, o dia de housekeeping na empresa (risos). Então eu não tinha nada para limpar e eu fiquei vendo as pessoas encaixotando, jogando as coisas fora, fazendo limpeza então. E eu fiquei observando o movimento de "isso serve, isso não serve" (riso).
P/1 – E você já foi direto para a Avon que fica em Interlagos?
R – Interlagos.
P/1 – Você sempre trabalhou ali naquela localidade fixa? Como é que é a estrutura? Ali fica a parte...
R – Administrativa e a fábrica, são dois prédios.
P/1 – Quer dizer então que você entrou como assessora de imprensa. E depois, Cida? Porque você tem uma trajetória superbacana na Avon, né?
R – É, então, quando eu entrei eu era assessora de imprensa com a difícil tarefa de superar a (Odina?) que foi um ícone da assessoria de imprensa na época que a Avon estava retomando uma maior visibilidade na imprensa, que era o período que eu entrei lá, a Avon voltando para a mídia. Tendo sido já contratada, depois ver com o presidente da época, que era o Ademar Serodio... Na linha de frente dessa divulgação de ir na redação dizer: "Boa tarde, eu sou o presidente da Avon, a Avon é isso". Então eu cheguei nesse momento desse retorno à mídia, que é um jargão utilizado. Então eu tinha que conhecer o que era uma empresa de bens, de produtos e tal, que era outra realidade e ao mesmo tempo a difícil tarefa de superar a (Odina?). Contava com duas profissionais que eram Relações Públicas e o foco de contato com a imprensa era relacionamento para tornar a empresa mais conhecida. E aí eu levei essa ideia de olhar, um olhar mais jornalístico no sentido de desenvolvimento de pautas, de explorar os assuntos além da relação, que era minha característica, né? Então menos Relações Públicas ou também, mas mais Jornalismo, trazer o Jornalismo.
P/1 – Mas isso por conta da tua experiência.
R – É, exatamente. Então isso que eu fui construindo no período que eu fui assessora de imprensa.
P/1 – E depois?
R – Então, de 1996 a 1999 eu desenvolvi esse trabalho. A minha característica é uma característica de processo e agora, contando tudo isso, eu vou olhando e vendo que eu fui só ampliando o campo de relações, né? De quem eu queria tocar. Eu olhando a infância, do mundinho lá do quintal para a complexidade das relações.
P/1 – Para a fazenda, de repente.
R – É exatamente. Ou então a refazenda como diz o Gil, não é? Então em 1999, aí eu já estava fascinada pela internet e tudo e aí eu resolvi estudar em São Francisco, inglês, para eu me aprofundar. Aí coincidiu que eu conheci um rapaz pela internet e lá na Carolina do Norte (riso) e aí eu resolvi estudar lá e tal. Aí surgiu a oportunidade de eu ir lá conhecê-lo e falar "não, vou viver o que é morar nos Estados Unidos". Porque para as pessoas dos Estados Unidos era: primeiro eu vou para todos os lugares, depois eu vou para lá. Então eu falei: "Tá na hora de eu conhecer, desmistificar o que é esse mundo". Antes eu tinha já, em 1998, ido para Portugal e Itália, que foi também uma experiência muito interessante. Eu fui convidada por uma amiga que foi para a Expo 98 divulgar o grupo de teatro que representava o Brasil no dia do Brasil na Expo 98. Foi uma experiência interessante, divulgar, trabalhar com a imprensa portuguesa, internacional. Então eu falei: "Bom, já que eu conheço algumas coisas da Europa, agora está na época de eu conhecer algumas coisas nos Estados Unidos". E aí eu interrompi esse trabalho na Avon e fui...
P/1 – Você chegou a sair?
R – Saí, festas, despedidas e tudo mais. E fui tentar virar uma americana, aí eu me vi lá de luvinha plantando tulipas no quintal na Carolina do Norte (riso). Foi interessante, mas...
P/1 – Você ficou quanto tempo lá, Cida?
R – Fiquei quase seis meses.
P/1 – Então você ficou seis meses nos Estados Unidos plantando suas tulipas, o seu coentro, conta aí a sua história.
R – Ah, eu fui explorar. Eu morava em um lugar lindo, tem várias músicas sobre o céu de Carolina, né? E realmente é lindo demais lá, o countryside dos Estados Unidos. E pouca gente e muita natureza e para alguém que mora em São Paulo, que nasceu em São Paulo, sente falta de tudo isso, né? Então era um sentimento muito grande de solidão, de ausência do contato humano. Como budista isso ajudou um pouco porque todos os lugares que eu vou, eu me conecto com as pessoas. Mas eu ficava pensando: "Nossa, falta lugar para explorar aqui, talvez se eu estivesse em São Francisco fosse diferente, ou um outro lugar movimentado, Nova York". Mas aí eu resolvi voltar e, quando eu voltei, o pessoal da Avon me convidou para voltar, mas como coordenadora de comunicação corporativa. Eu achei interessante e até participei de alguns processos em outras empresas e tal, estava começando a ver o que eu ia fazer porque eu tinha saído para nunca mais voltar, né? Mas foi também um momento muito interessante de olhar o Brasil e falar: "Nossa, tem tanta coisa para fazer lá, mas tanta coisa". Enxerguei o país com uma abertura muito grande e com uma visão muito grande de possibilidades do que é que era. Foi também importante isso, olhar de fora. E como coordenadora de comunicação corporativa começou uma nova fase, em um outro momento. Eu com uma outra visão, com um entendimento do que eram as raízes culturais da matriz, né? O impedimento, os porquês das coisas, das relações porque também era um momento de transição na globalização da empresa. Então foi importante, as coisas acabaram coincidindo.
P/1 – E nessa época já se falava bastante dos investimentos sociais da Avon? Porque você teve um envolvimento nesse processo, não é, Cida?
R – A Avon sempre teve essa preocupação e sempre implementou várias atividades. A questão do berçário que tinha há muito tempo já, foi um pioneirismo na empresa. Ela fez corridas no Brasil, antes da corrida contra o câncer de mama. Ela tinha essas atividades, sempre teve.
P/1 – Mas há um momento que isso se acentua, né?
R – Em 2003, o instituto foi criado e eu sugeri na época a criação de um grupo que eram os porta-vozes de "Um beijo pela vida", né? Sugeri também uma carteirinha, vamos dizer assim, inspiradas nas carteirinhas de vacinação das crianças que as mães vão acompanhando, aí eu sugeri que tivesse alguma coisa que as mulheres, com base naquilo, que as mulheres pudessem levar na bolsa para lembrar que estava na hora de fazer os exames, para encorajá-las. Então, isso foi mudando, mas essa base continua até hoje. Eu sempre tive essa preocupação de colaborar, sugerir, dar ideias. Essa ideia dos porta-vozes foi uma coisa muito legal porque representantes de áreas voluntários que buscavam receber em primeira mão informações sobre o instituto. Inclusive, no dia do lançamento do instituto, a gente fez uma ação com eles, pusemos eles em uma van, levamos como convidados do lançamento do instituto. Então eles puderam testemunhar e depois voltar para a empresa e falar para os colegas: "Estive lá, vi". Então foi até uma ministra que tinha sido revendedora que foi lá honrar com o lançamento. Mas ficava sempre assim: e a revendedora, e a revendedora, e a revendedora? Desde o dia que eu entrei lá que eu comentei com a Rosa que a fortaleza dessa empresa é a revendedora. Então eu ficava querendo algo mais e em 2005 o diretor da época, o Carlos Parente, falou assim: "Nós precisamos ter uma política de investimento em cultura". Porque o que era feito era feito como a maioria das empresas fazem, que é investir em cultura com fins promocionais. E eu pensei: "Poxa, tá aqui a oportunidade de fazer algo envolvendo a revendedora, respeitando e entendendo que ela tem um papel social incrível". Eu fui pesquisar o que tinha no mercado, tentar entender, aí de novo aquela coisa do investigativo. Aí eu tive o entendimento de como é que era, o que as empresas faziam, o que fazia sentido nisso tudo. Aí um dia eu vi lá um seminário sobre investimento sociocultural e responsabilidade social corporativa. Eu achei interessante o nome. Estava lá o ministro Gil, aí eu falei: "Nossa, o ministro vai nesse evento? Vou lá ver o que é". Aí eu fui lá e fiquei impressionada que ele ficou uma manhã inteira. Eu falei: "Nossa, então realmente tem algo aqui porque o ministro não foi lá, deu uma fala, e saiu". E aí foi entre uma apresentação da Arquitetura Cultural pelo André Martinez e eu falei: "Nossa, isso tem tudo a ver com a Avon, a Avon é uma rede! É isso!". E aí imediatamente quando eu voltei, eu comentei com o diretor: "Eu acho que eu achei um caminho". Ele apresentou, convidei-os para apresentar e esse diretor, o Carlos Parente, falou "nossa, isso é avançado demais, não sei se a gente vai ter condição de implementar". Mas eu tinha certeza absoluta que era isso. Eu comecei a estudar mais aprofundadamente e comecei a fazer as conexões entre rede, entre as funções de cultura de paz, entre coexistência, tudo estava ligado. À medida que eu fui estudando e eles foram fazendo uma pesquisa profunda para diagnosticar qual era a cultura que a Avon já produzia e ao produzir essa cultura, quais eram as informações, quais eram as mensagens culturais, as trocas de saberes que a Avon já estabelecia com a sociedade, então quais eram os investimentos em cultura que faziam sentido e que estavam nessa direção. Então se chegou a: coexistência, a cooperação e conspiração, que eram a própria definição de venda direta. Então era um outro olhar que não se estava tendo sobre a venda direta. Aí mais uma vez, algo que era extremamente revolucionário para o entendimento que se tinha até então da empresa e tudo mais, mas que por outro era um campo de conhecimento explorado em outras áreas, como eu fui vendo em outras áreas. Eu fui fazer depois um estudo, fui estudar sobre o pensamento complexo de Espinosa, de Edgar Morin, Deleuze e tava tudo ali. A própria forma da Unesco, por exemplo, tratar a cultura de paz está nessa direção. Então existiam vários movimentos no mundo nessa direção, então fazia totalmente sentido, apesar de ser uma coisa quase acadêmica, teórica, mas na prática a revendedora é isso. Aí eu fechei o ciclo e aí fez todo sentido. A política foi toda formalizada e tal e em 2006 a gente lançou alguns pilotos para testar os modelos. Então foi feita uma parceria lá com a USP. A forma de conversar também com eles fez todo sentido. A gente viu que não estava falando uma língua desconhecida. O pessoal da USP entendeu perfeitamente o que a gente estava falando. Então um mero patrocínio virou um trabalho de envolvimento com as revendedoras no projeto da Estação USP. Depois veio o “Viva o Amanhã”, que também foi um trabalho muito mais elaborado, que a gente participou nos últimos dois anos. E foi um entendimento também que não dá para ficar eternamente fazendo alguma coisa, mas começar e motivar, inspirar, tocar no rizoma e ele começar a se desenvolver como uma raiz e aí ir modificando, ir transformando. Aí, curiosamente nesse ano, no encontro em Los Angeles, me surpreendo com a nossa CEO falando coisas nessa linha. Isso está no mundo, é inevitável caminhar nessa direção. Então eu fico muito contente de já em 2005 ter visualizado isso, ter iniciado esse trabalho. Assim como fico contente também que no ano passado, quando a empresa lançou um novo posicionamento mundial, que é o “Viva o Amanhã”, o amanhã depende do que você vai fazer hoje, aí dentro dessa iniciativa foi lançado o “Viva o amanhã” em dezesseis países. Só que foi um desafio porque eu tinha quinze dias para lançar o fundo e aí, como estava todo esse trabalho já montado, foi muito fácil fazer. Ele saiu com um grau de elaboração tamanha, muito simples, que é convidar as revendedoras a indicarem projetos que na visão delas são importantes na comunidade. O projeto que é escolhido em três categorias, que são protagonismo cultural, empreendedorismo cooperativo e educação para o desenvolvimento humano, sendo que educação para o desenvolvimento humano é uma das metas da Unesco, né? Então, ao escolher um projeto nessas categorias, o projeto recebe o dinheiro e a revendedora recebe um troféu, um diploma como agente de vida daquela localidade. Os números são inacreditáveis! Foram duas etapas no ano passado e já encerramos a primeira etapa agora desse ano, que são também duas etapas. São crescentes esses anos de visitação no site, a gente só colocou uma mensagem na nota fiscal. Porque estimular um milhão e novecentas mil revendedoras a indicar projetos é uma coisa perigosíssima. Então a gente não divulgou. Então foram projetos do Brasil inteiro, a alta qualidade foi incrível. Na primeira etapa foram seiscentas indicações e cento e poucos que finalizaram. Porque ela indica e o projeto que faz a inscrição, preenchendo os detalhes do projeto e tudo mais. Quando a gente publicou os resultados, a segunda fase teve um salto qualitativo, então o aproveitamento foi quase cem por cento: cerca de quatrocentos projetos indicados e cerca de quatrocentos finalizados, sabe? E o nível dos projetos que essas mulheres indicaram, quer seja porque elas conheciam, quer seja porque elas trabalhavam nas entidades e conheciam a seriedade, a idoneidade delas, ou quer porque as ONGs se mobilizaram para falar "você não quer indicar o meu projeto?" e convencê-las. Então, assim, tem algo poderoso. Mesmo que acabe tudo agora, o que se fez não tem volta para essas pessoas, para essas localidades. Porque promoveu-se um grau de conversação que é a base do diálogo, que é base da coexistência que é preciosíssimo. Eu estive na Baixada Fluminense em um projeto que é o “Cultura e Movimento”. Estava ali, o prefeito mandou o secretário, o vereador, o presidente da Câmara representando o prefeito. Uma coisa desse tamanhinho, um projeto de vinte e seis mil reais. O prefeito mandou representante, que era dia de vacinação na cidade. Estavam ali revendedoras, estava ali Secretária de Educação, sabe, uma parceria público-privada em uma coisa singela que é detectar que ali naquela comunidade tem gente do Brasil inteiro. Então, eles resgataram saberes culturais e as crianças, os filhos dessas crianças estavam lá apresentando Maracatu, o resgate da cultura de origem dos pais, né? E eu sei a importância disso porque os meus pais foram perdendo o histórico de Alagoas, de Maceió, de Anadia, das cidades. E Alagoas para mim, eu tenho uma teoria, não sei se é verdade, mas eu acho que ele é um Estado que assim como a Bahia é mais negro, Alagoas é o Estado mais índio que tem no país (riso). Porque a maioria dos alagoanos tem características indígenas, do litoral. Assim como Belém é um índio mais boliviano, mais latino, né? Essa cultura indígena presente ali foi se perdendo, né? Então eu achei interessantíssimo ver a importância do resgate de valores. Assim como eu estive em Delfim Moreira e é outro projeto belíssimo e estava lá a Secretária de Educação, sabe, um projeto de quinze mil reais. Porque o poder disso, não é exatamente a destinação do dinheiro. E aliás, também, é assim: com quinze mil reais eles vão implementar hortas orgânicas, porque é uma escola de ensino técnico de agroindústria, de turismo rural. Quer dizer, eles vão usar o saber dos alunos da escola para implementar hortas orgânicas em onze escolas e dali vai enriquecer a merenda escolar e ainda vão promover coletas seletivas nessas onze escolas. Esse dinheiro vai ser vendido e vai se reverter em melhorias nas escolas, ou seja, altamente elaborada a coisa, sabe? Então são projetos dessa envergadura que estão chegando. Então, assim, é uma realização. A gente sabe das dificuldades, do momento histórico que a gente está vivendo de recessão dos Estados Unidos e tudo isso de recrudescimento da economia. Mas eu estou realizada, eu estou em um momento de realização porque eu aprendi que é possível fazer muitas coisas que as pessoas nem têm ideia que é possível fazer e que a empresa deu essa oportunidade de desenvolver. Como o foco é sempre as pessoas, o que se conquistou, se conquistou de fato! Existe e é real. A gente fez uma contabilidade desde 2005 até agora com as pessoas impactadas: cerca de quinhentos mil revendedoras foram impactadas com essas ações. São mais de cinquenta projetos ao todo com o prêmio (A ______ de Vida?) que é também uma iniciativa dentro dessa lógica. É o primeiro prêmio de fomento no país, são onze projetos. E todos eles saem de um DNA, de uma matriz cultural da empresa, que ela sempre teve. Então o instituto está trabalhando nessa lógica. Então, juntando esses projetos, são mais de cem atividades nessa linha, entendeu? É um impacto social poderoso, né? E aos poucos a matriz também vai indo nessa direção porque o mundo está indo nessa direção. E essa matriz está tendo cada vez mais lógica para a própria corporação, e isso é muito interessante.
P/1 – Cida, eu queria te perguntar isso, se há algum intercâmbio. Porque quando a gente pensa em projetos sociais e responsabilidade, a necessidade do Brasil é completamente diferente da necessidade americana, mas já há essa preocupação no Hemisfério Norte. Há algum intercâmbio, vem alguém de lá para tomar conhecimento dos projetos?
R – Sim, sim. No ano passado a gente teve a visita da Carol Kurzig, que é a vice-presidente da Avon Foundation. A Avon Foundation foi criada em 1955, né? Ela saiu encantada com tudo que está sendo feito no Brasil. E ela é uma pessoa muito sensível porque ela lida com as Avons de mais de cem países. Ela é uma mulher inteligente e ela entende a peculiaridade do Fundo do Brasil, por exemplo, que está em dezesseis países. Ela entende a necessidade local de algumas ações específicas e ela saiu encantada e até com um entendimento mais amplo de que tem certas coisas que são atendimento de necessidades locais, devido à realidade. Inclusive esse processo todo agora de reestruturação da empresa está fazendo com que as pessoas circulem muito mais. Então, há um mês mais ou menos eu tive oportunidade de falar também com uma mulher interessantíssima – aliás as mulheres da Avon são muito interessantes, muitas delas (risos) –, porque essa mulher é americana, mas ela está baseada no México e ela trabalha com o desenvolvimento de atividades de projetos em venda. Ela falou: "Eu fico impressionada porque a gente cria uma teoria na matriz, mas vocês é que viabilizam e colocam isso na realidade de uma forma que a gente nem imaginou quando a gente pensou", isso palavras dela. Ela é uma pessoa interessante porque a intenção dela é desenvolver coisas com ONGs, particularmente no México, então é uma pessoa, assim, antenada nas possibilidades. Então são mulheres assim que estão nas lideranças dessas coisas e estão intercambiando, estão trocando. Então, conhecimento do que é a América Latina, eu acho que isso obviamente está acontecendo com outros países. A própria Avon Foundation está preparando um relatório de como as mulheres, as revendedoras ao terem conquistado o dinheiro, transformaram vidas. E elas estão percebendo nessas histórias que o mundo inteiro está mandando, que a maioria dessas mulheres escolheram educar os filhos com o dinheiro que ganham, que estão ganhando. Então isso tudo vai ampliando o conhecimento, vai promovendo um entendimento melhor. Porque, assim, se fosse só proporcionar independência financeira, a Avon já seria o maior projeto social do planeta, cinco milhões de revendedoras. Só que aos poucos vai se entendendo isso, né, que essa noção de corporação que eu tinha quando eu entrei na Avon, “ah, é uma empresa, não tem a ver com o mundo do conhecimento, do lúdico”, vai aos poucos se tendo o entendimento de que não existe o dentro e o fora, que é tudo uma coisa só.
P/1 – E tem uma coisa, Cida, se você me permitir a observação, tem uma coisa muito interessante com essa sua narrativa, que a gente percebe que esses investimentos, eles estão inclusive dissociados do negócio. Não há uma coisa, assim: vamos investir aqui porque é bom para o negócio do ponto de vista da matriz capitalista. Na verdade é mesmo para melhorar essas funções das pessoas, quer dizer, não se espera indicadores do negócio como um retorno.
R – É, então, porque tem uma função de relacionamento, né? E a revendedora... Porque, assim, quem vem antes no negócio é a revendedora, a lógica é diferente do varejo. Então é a revendedora quem fala: "Eu quero vender esse produto”. Aí ela cria um problema ao contrário para a empresa, quer dizer, é a logística reversa no sentido do relacionamento. Porque, assim, aí a empresa fala: "Poxa vida, tenho que entregar para essa mulher nesse lugar; esse lugar não tem uma rota". As ramificações partem do indivíduo e não da empresa. É claro que ela tem propaganda, tem os produtos, tem toda uma lógica do comércio, mas a revendedora que fala: "Ah, legal, eu vou vender esse renew". Então é interessante porque tem essa dinâmica, tem essas duas falas, a fala da empresa e fala da revendedora. E a revendedora nada mais é do que uma cidadã. Por mais que isso não esteja totalmente claro na empresa, está implícito. A própria vice-presidente de vendas, a Dagmar, ela sabe muito bem, inclusive a fala dela é esta: "Puxa vida, vamos dosar aí esse trabalho porque a gente sabe que essas mulheres só vão fazer isso vinte e quatro horas se deixar" (risos).
P/1 – Exatamente, totalmente dissociado, até cria um problema. Muito interessante.
R – E aí pelo Brasil afora eu já entrevistei, por exemplo, uma gerente de setor no Crato há alguns anos que falou: "Olha, eu criei um momento da mulher na renew de vendas" na época, que agora chama encontro de negócios. Porque as mulheres chegavam – isso anos antes de se falar em violência doméstica –, as mulheres chegavam com problemas com o marido, apanhavam e tal, então eu criei um espaço para elas falarem de seus problemas. Isso já é natural do negócio, ouvir. E no diagnóstico foi isso, uma frase que até hoje não sai da minha cabeça desse diagnóstico que foi feito de qual era a cultura que a Avon já produzia no dia a dia, uma gerente do setor falar: "Um dia eu fui cobrar uma fatura na casa de uma revendedora e o filho dela estava com febre, então eu deixei tudo de lado e fui acudir, ajudar, ver como eu podia ajudar". Aí ela termina com uma frase que me emociona muito, assim: "Tem lágrimas nessa relação". Isso é o campo do invisível, aconteceu entre essa gerente de setor e a revendedora, ninguém mais ficou sabendo, mas fez toda a diferença para essa revendedora. Isso é o que pode se chamar de fidelização, mas na realidade é um ser humano conversando com outro, é mais do que isso, é muito poderoso.
P/1 – Cida, qual o maior desafio que você enfrentou no seu trabalho?
R – O maior desafio? O maior desafio para mim foi a saída da Eneida. Porque ela é uma pessoa que além de ter sido a primeira mulher a ser presidente de uma empresa de cosméticos, que teoricamente é o ícone, se é empresa de cosméticos tem que ter uma mulher, né (riso)? Uma pessoa admirável, uma pessoa que todo mundo se encantava, todos os jornalistas, todos que entravam em contato com ela, do grau humano elevado que ela tem. Assim, ela é uma mulher muito bonita e muito inteligente e surpreendentemente humana, sensível ao humano, então uma pessoa altamente qualificada para morar no planeta Terra. E ao mesmo tempo um desafio muito grande porque dirigir uma empresa, isso eu ouvi da (Andred?) agora em março, tem os standards, né? Então o negócio tem de ser gerido dessa forma, não é uma questão de gênero, sabe? Foi um aprendizado muito grande, muito grande porque a gente serve para fazer coisas que nos realizam e que a gente tem total competência para fazer, dentro das condições. E ela pegou um desafio muito grande e aí se esperava tudo dela e ela é um ser humano, entendeu? Eu convivi com a questão, assim, eu conheci muito profundamente as dicotomias do universo, do que é que é a mulher no mercado de trabalho e tudo mais. E aí ela assumiu um cargo no global, de vice-presidente de marca, se não me engano ou alguma coisa assim. Aí eu percebi que, assim, não é qualquer pessoa que tenha um grau de competências para fazer uma determinada coisa que vai fazer aquilo, que é algo que transcende o gênero, que transcende... Porque a sociedade cria os ícones, cria as marcas. Então foi um desafio interessante.
P/1 – Que lições você tirou desse trabalho na Avon para a sua vida pessoal?
R – Ah, tirei inúmeras (riso). Tirei inúmeras, mas eu acho que talvez a maior delas é que é possível ser quem a gente é, ainda mais eu que tenho um lado que ainda pela minha história, a Lia diz que pela minha fala nós somos seres históricos, a gente carrega a história viva, né, vai construindo ela ao viver. Com toda as minhas peculiaridades humanas e culturais e tudo mais, que é possível sim se realizar com os nossos projetos, com as nossas ideias e tudo mais dentro de uma multinacional, é possível fazer, realizar sonhos.
P/1 – Se a multinacional permite, né? Que é o caso da Avon.
R – É.
P/1 – Na tua visão, muito embora você esteja ligada à instituição, mas a Avon é realmente um ponto fundamental para a venda direta no Brasil? Você acha que ela tem essa...
R – Eu acho que sim. Bom, ela trouxe a venda direta para o Brasil e dez anos depois veio a primeira empresa de venda direta. Então tem um conhecimento instalado nesses cento e vinte e dois anos de mundo e que é isso que é incrível porque como tudo é rizomático, tem uma inteligência instalada nessa rede. E é curioso que por mais que se tente, agora que tem muitos processos sendo formalizados, porque essa inteligência, ela está nas pessoas. É curioso isso de estar no século vinte e um com uma empresa orgânica, mesmo não tendo total consciência desse organismo vivo funcionando. Mas esse organismo funciona e, as razões pelas quais a Avon é bem sucedida, elas podem ser reproduzidas em parte. Mas tem algo vivo ali desse organismo que não dá para fazer um coração artificial. Até dá uma perna artificial e tudo, mas esse sopro de vida, essa energia vital, eu acho que não dá para copiar (riso).
P/1 – Sabe o que faltou você contar? Do seu livro de poesia. Conta desse livro, como foi isso?
R – Então, durante todo o... Eu vivi sempre um universo paralelo (riso), que eu tive um cineclube ao longo da minha trajetória profissional, chamava-se Zoom Cósmico em homenagem a Norman Mclaren, que hoje poucas pessoas conhecem, mas ele foi muito importante em um período histórico, um dos maiores cineastas de animação do mundo talvez. E ele era aqui na Vila Madalena na Rua Mourato Coelho, esquina com a Inácio Pereira da Rocha e ele foi construído na época que eu trabalhava na Abril. Então eu saía correndo porque à noite tinha sessão de cinema e eu ia lá para os bastidores e tal. Então foi uma experiência de seis amigos que se reuniam e tal. A gente inaugurou com “Noites de Cabíria” de Fellini, sabe, em dezesseis milímetros, foi uma experiência incrível. E um episódio inédito, inédito para época, o Flesh Gordon (risos) fez os primeiros episódios em preto e branco do Flesh Gordon. Então são coisas incríveis que isso tudo eu ia me lamentando desse tronco. Tudo isso que era esse universo paralelo foi se transformando em outra coisa que eram essas experiências lúdicas. Eu sempre escrevi e fui guardando em uma pasta e tal. Quando eu fui trabalhar na Playboy, tinha o Ricardo Setti que era advogado e jornalista e eu ficava enchendo o saco dele assim: "Você não quer dar uma olhada, você não quer dar uma olhada?". E ele achava que ia encontrar uma bomba e aí ele fugia: "Não, amanhã eu vejo, amanhã". Um dia eu encostei ele na parede e falei: "Olha, é o seguinte, eu vou publicar e eu queria que você desse uma olhada e se você não gostar, você não precisa fazer nada. Se você gostar, eu posso colocar no prefácio do livro o que você achou. Pode ser assim?". Aí ele: "Tá bom, vai". Ele voltou no dia seguinte e falou: "Nossa, eu estou surpreso porque você conseguiu estender em poesia aquilo que é o seu alter ego, aquilo que eu vejo de você e que não está claro". Para mim aquilo foi inacreditável porque até então eu era como mulher uma pessoa que só era cérebro, que não existia como materialidade e o livro me ajudou a me materializar, trazer do plano do imaginário desse universo paralelo para realidade e dizer: "você é todas essas coisas, você não é uma profissional e quando você vai para algum lugar você entra no plano do inconsciente, você é isso". Aí começou uma jornada de juntar todas essas partes que são essa Cida. Então, mais do que um livro para a Academia Brasileira de Letras, ele representou o início da junção dessas diversas Cidas, né? Foi um momento muito importante, porque o pessoal da Abril ficava achando que eu era mais do que eu declarava. O próprio Ricardo Setti falava: "Conte-me tudo, conte-me tudo". E eu não contava nada porque eu não achava que eu tinha alguma coisa para contar. Aí no lançamento do livro eu chamei pessoas da minha infância, de várias fases da minha vida. Eu tinha muito medo do que ia acontecer, então eu lancei junto com uma amiga que também estava lançando um livro e tal. Então no mínimo ia juntar os nossos amigos e ia encher a sala, né? Eu fiquei surpresa porque eu levantei umas duzentas pessoas e foi incrível porque as pessoas falavam: "Nossa, essa pessoa tem toda essa poesia dentro de si!". E eram coisas, haicais, coisas pequenas e tal, mas tinham essa importância e era uma discussão sobre o amor. Nessa época, eu já estudava Jornalismo, estudava na Fiam. Eu tinha um professor lá, que era o professor de Filosofia que era um alemão que casou com uma brasileira e veio morar no Brasil. E um alemão dando aula de Filosofia era tudo de bom, era um oásis no meio de uma educação já bem diferente da educação que eu tive na PUC. A qualidade era outra, já era outro movimento do ensino. E esse professor era "ah, agora eu vou filosofar, vou estudar, vou ampliar o campo do conhecimento" e eu precisei de um ponto, dois pontos e eu fazer o exame. Então ele falou: "Eu vou desafiar você. Você vai fazer essa prova como uma tese já que você diz que sabe tudo sobre o amor no seu livro de poesia. Eu quero que você escreva sobre o que é o amor". Aí eu fui estudar “O Banquete” de Platão, fui estudar um monte de coisas e escrevi quatro páginas. Foi para mim um momento de entendimento do que eu tinha escrito, do que significava aquele livro. Porque para mim tudo é transversal na minha vida. As coisas não são isso ou aquilo ou agora estou na Avon, agora... Para mim tudo tem a ver com tudo. Quando eu terminei tudo, ele leu e ficou muito impressionado. Infelizmente eu nunca resgatei isso, eu espero que ele ainda esteja na Fiam. Ele falou: "Olha, eu só não te dou mais que dez porque é impossível", então foi inacreditável. Depois ele me chamou porque ele se convenceu de que eu sabia o que era o amor no amplo sentido da generosidade, do contato, de tudo isso. Aí ele me chamou para dar palestras na faculdade. E aí aquela pessoa que não contava nada, que não sabia de si, começou a falar para as outras pessoas sobre o que era aquilo que estava dentro dela, do que ficou armazenado, como a Emília, que foi quando o Monteiro Lobato começou a falar sobre si e sobre tudo o que viu e que estava há muitos anos armazenado. Depois veio um outro título sem título também.
P/1 – Também publicou?
R – Publiquei. Esse livro, ele representou uma virada da minha vida profissional. Porque até então eu imitava modelos como profissional. Eu tinha alguns cargos de liderança em épocas diferenciadas e era um sargento, era o perfil da época de poder, como era na época a referência, né? A partir desse livro eu fui me encaminhando para o que eu sou, para tirar os excessos daquilo que eu fui pegando para mim como sendo meu. Aí começou um processo nessa época. O segundo livro foi sem título, as capas fui eu quem fiz. Eu já estava estudando, eu fazia acrílico sobre tela, era uma pesquisa de comunicação, o que era esse lado do Jornalismo mais aprofundado. O segundo livro foi sem título, ele é um olho estilizado, que é a acrílica sobre tela, e ele não tem título mesmo, é somente o olho e o meu nome, que era a pesquisa da obra aberta, Umberto Eco e tudo isso que eu andei estudando. Também foi muito legal os retornos que eu tive de pessoas que falavam: "Nossa, se um dia eu tivesse de dizer algo sobre mim, eu diria isso que você escreveu". Então para mim foi o máximo porque eu entendo de comunicação é isso, é algo que não é de ninguém, que você toca o que é comum a todos, que é o senso de humanidade. Isso também tem obviamente a ver com a minha postura filosófica, a minha postura budista. É isso que eu busco em tudo que eu faço, é algo que não é da empresa, que não é da pessoa, que não é a revendedora. Por isso que acaba tendo um grau de qualidade porque é uma qualidade do humano que está em tudo, que está em todos. É isso que é para mim um trabalho bem realizado. Depois disso, mais recentemente, até com esse trabalho da política sociocultural, eu comecei a estudar as questões da cultura de paz e não-violência. Aí eu entrei em um outro campo de conhecimento, que é o do aperfeiçoamento dessa visão de quão conectados nós estamos e em que níveis de conexão e quais os bons e os não tão bons, quais os mais adequados ou não. E como fazer para ele ficar mais adequado porque nessa trajetória mais recente, nos últimos três anos eu participei de vários workshops com pessoas muito importantes desses conhecimentos. Um deles foi o Johan Galtung, que é um norueguês que criou um método Transcend, é um especialista em medir a ação de conflitos por meios pacíficos. Ele escreveu um livro com o Daisaku Ikeda, que é o presidente da SGI, a organização budista a que eu pertenço, que é Escolha a paz. Ele é maravilhoso, ele esteve em São Paulo e falou uma coisa maravilhosa: "Não existe conflito sem solução", que eu sempre acreditei nisso. O conflito é uma coisa humana e as conexões estão aí, então está tudo interligado: trabalhar com comunicação, ainda mais em uma multinacional como a Avon que preza o diálogo, o relacionamento. Então vem o consumidor que está com uma dúvida e vai no jornal, mas o que ele quer é ser ouvido, então como é que faz isso? Primeiro cria toda uma metodologia para conversar com essa pessoa primeiro para depois criar uma resposta para o jornal. Depois o jornalista vai checar com o consumidor e ele fala: "Não, conversei...". Então uma coisa que poderia ser uma crise, uma coisa desagradável passa a ser um conjunto de conversações (riso) entre os vários agentes. Então tudo é assim, tudo eu aplico dessa maneira.
P/1 – Muito legal. Cida, para encerrar, a gente tem perguntado para todo mundo a respeito da ideia do projeto, que não faz sentido pergunta para você que não é madrinha do projeto. Então eu queria te perguntar o que você achou de passar por essa experiência de uma entrevista de história de vida.
R – Olha, eu estou vivendo na pele o que provavelmente muitas ou todas essas pessoas estão vivendo, né? Eu acho que da mesma maneira como tem esses pequenos fractais de conversações, rizomáticos, tudo o que está sendo feito no plano do Instituto Avon, no próprio fazer da empresa, tudo isso faz parte e só confirma que eu estou no caminho certo. Eu estou muito contente de saber que, embora, talvez não seja compreendido, e não é totalmente, mas um dia vai ser, isso tudo faz todo sentido. E o mais importante: está fazendo sentido na minha vida. Eu não tenho dúvida que está fazendo sentido na vida de todo mundo que está sentando nessa poltrona aqui. Depois, quando esse material ficar pronto, e que os outros verem o que é, eu acho que vai ajudar a melhorar o próprio planeta, sem megalomania. Porque vai fazer sentido para mais pessoas, o que já é vai vir à tona, só.
P/1 – Cida, muito obrigada. Em nome da Avon e do Museu da Pessoa, a gente agradece a sua entrevista. Foi um privilégio te entrevistar, obrigada!
R – Obrigada.
Recolher