Arte Cidade
Depoimento de Suzette Ilda Mendes
Entrevistada por Marina D’Andrea
São Paulo, 18/05/2000
Realização: Museu da Pessoa
Entrevista nº ARTCID_HV020
Transcrito por Rejane Goularth Sciascia
Revisado por Genivaldo Cavalcanti Filho
P/1 - Olá Suzette, você poderia nos falar seu nome, local e data de nascimento?
R - Meu nome é Suzette Ilda Vilarinho. Depois de casada recebi o nome de Suzette Ilda Mendes. Nasci no dia dezenove de dezembro de 1963. Sou filha de portugueses e nasci em Luanda, Angola, [na] África.
Meu pai se chama Virgílio Antônio Vilarinho e minha mãe, Ilda do Nascimento Vilarinho. Eles nasceram em Portugal, Trás-os-Montes, [em] Macedo de Cavalheiros. Meu pai era caminhoneiro e dono de armazéns e minha mãe era dona de casa.
P/1 - Você se lembra dos seus avós?
Meus avós moravam na aldeia de Grandíssimo em Portugal e tinham um… Aqui se chama sítio, lá era fazenda. [Era] grande. Eles tinham criação de vacas leiteiras, criação de porcos, galinhas, hortas, de hortifrutigrangeiros, pomares, vinhas e olivais. Eles sempre foram bem de vida.
P/1 - Você tinha irmãos?
R - Tenho um irmão.
P/1 - Qual o nome dele?
R – Vasco Virgílio Vilarinho.
P/1 – O que ele faz?
R - Ele é comerciante.
P/1 – E mora onde?
R - Na Vila Mariana, o bairro é Paraíso.
P/1 – Você se lembra da sua infância? Conta um pouco pra gente.
R - Lembro. Eu brincava muito, com seis anos eu fui estudar. Entrei para um colégio de freira, só que esse colégio de freiras não era fechado. A pessoa ia estudar e voltava para casa no fim do dia.
P/1 – Isso onde?
R - Em Luanda, Angola.
P/1 – Como era sua vida lá, sua casa em Luanda?
R - Era uma casa grande, um terreno muito grande. Minha mãe, como em Portugal, sempre trabalhou nas hortas com os meus avós. Ela, lá em Angola, Luanda, montou um quintal grande. Meu pai comprou um terreno grande, construiu a casa de um lado e ficou a horta e pomar de várias árvores frutíferas, com...
Continuar leituraArte Cidade
Depoimento de Suzette Ilda Mendes
Entrevistada por Marina D’Andrea
São Paulo, 18/05/2000
Realização: Museu da Pessoa
Entrevista nº ARTCID_HV020
Transcrito por Rejane Goularth Sciascia
Revisado por Genivaldo Cavalcanti Filho
P/1 - Olá Suzette, você poderia nos falar seu nome, local e data de nascimento?
R - Meu nome é Suzette Ilda Vilarinho. Depois de casada recebi o nome de Suzette Ilda Mendes. Nasci no dia dezenove de dezembro de 1963. Sou filha de portugueses e nasci em Luanda, Angola, [na] África.
Meu pai se chama Virgílio Antônio Vilarinho e minha mãe, Ilda do Nascimento Vilarinho. Eles nasceram em Portugal, Trás-os-Montes, [em] Macedo de Cavalheiros. Meu pai era caminhoneiro e dono de armazéns e minha mãe era dona de casa.
P/1 - Você se lembra dos seus avós?
Meus avós moravam na aldeia de Grandíssimo em Portugal e tinham um… Aqui se chama sítio, lá era fazenda. [Era] grande. Eles tinham criação de vacas leiteiras, criação de porcos, galinhas, hortas, de hortifrutigrangeiros, pomares, vinhas e olivais. Eles sempre foram bem de vida.
P/1 - Você tinha irmãos?
R - Tenho um irmão.
P/1 - Qual o nome dele?
R – Vasco Virgílio Vilarinho.
P/1 – O que ele faz?
R - Ele é comerciante.
P/1 – E mora onde?
R - Na Vila Mariana, o bairro é Paraíso.
P/1 – Você se lembra da sua infância? Conta um pouco pra gente.
R - Lembro. Eu brincava muito, com seis anos eu fui estudar. Entrei para um colégio de freira, só que esse colégio de freiras não era fechado. A pessoa ia estudar e voltava para casa no fim do dia.
P/1 – Isso onde?
R - Em Luanda, Angola.
P/1 – Como era sua vida lá, sua casa em Luanda?
R - Era uma casa grande, um terreno muito grande. Minha mãe, como em Portugal, sempre trabalhou nas hortas com os meus avós. Ela, lá em Angola, Luanda, montou um quintal grande. Meu pai comprou um terreno grande, construiu a casa de um lado e ficou a horta e pomar de várias árvores frutíferas, com galinheiro, patos, galinhas, coelhos, porcos e cabritos; tinha um grande pombal.
Foi uma infância muito boa. no sentido que a gente não sabia o que era pobreza e brincava à vontade. A gente não sabia o que era pobreza, não sabia o que era guerra na época. Era livre.
P/1 – Quais as brincadeiras que faziam?
R - Com os amigos, brincava de rodinha, de roda, de esconde-esconde e estudava. A gente tinha o nosso horário de brincar, tinha o nosso horário de estudar, horário de ajudar a mãe a fazer as coisas em casa.
P/1 – Quem era mais bravo, seu pai ou sua mãe?
R- Meu pai. Aquele português rígido. Eu tive, graças a Deus, uma educação ótima. Era: “Senhor”, “Por favor” e “Muito obrigado.” Se vinha uma visita em casa eu tinha que respeitar. Se eles estavam conversando na sala de estar eu não podia passar para não interromper o assunto. Eu rodeava pela casa e entrava lá nos fundos, na cozinha. Quando ia à festa, a gente reunia bastantes pessoas, fazia aquela festa, abria a casa. Foi uma infância muito boa, graças a Deus.
P/1 - Como eram as festas?
R - Festa de aniversário, festa de Natal, festa de Páscoa...
P/1 – Tinha festas de tradição local?
R - Tinha. As festas dos africanos. Das danças africanas, das músicas africanas.
P/1 - Tinha na sua casa também?
R - Não. Tinha no bairro. A gente ia, assistia e participava, eu participava também.
P/1 – Você se lembra que festas eram estas?
R - Festas regionais, tipo catinguelê. O grupo Katinguelê no Brasil pegou esse nome por causa das danças de lá. Danças de capoeira, porque a capoeira veio de lá, bem dizer. Danças folclóricas, as pessoas se vestiam com aqueles panos enrolados, os panos amarrados na cabeça. Coisa muito bonita.
Eu nasci lá, passei dois anos em Portugal. Depois é que eu vim para o Brasil.
P/1- Como seus pais foram para Luanda?
R - Meu pai, em 61… Como Angola era uma colônia portuguesa, tinha épocas que eles convidavam as pessoas para trabalhar, abriam campos de trabalho. Não eram tipo campo de escravidão, não. Davam chance para as pessoas trabalhar. Eles emprestavam dinheiro, as pessoas trabalhavam e pagavam para um dia terem o seu próprio negócio. Meu pai começou a trabalhar como dono de ônibus. Ele montou uma carreia de ônibus. ‘Carreia de ônibus’ lá significa empresa de ônibus. Ele comprou três ônibus e começou a trabalhar.
Trabalhou dois anos sozinho, sem a minha mãe. Aí minha mãe foi pra lá, ela ficou grávida e eu nasci em dezembro de 63. Continuou trabalhando e em 69 meu pai vendeu os ônibus, comprou um caminhão. Foi comprando outro, depois foi comprando armazéns. Um armazém em uma cidade, um armazém na outra e foi montando a rede de armazéns e uma empresa de caminhões - ele tinha oito caminhões e seis armazéns, então a gente tinha uma boa renda. Tinha também um posto de gasolina. Então ele foi trabalhando, foi vivendo.
Quando foi em fim de 73, começo de 74, estourou a guerra, a guerra dos cubanos e da União Soviética. Começaram a se infiltrar lá, começaram a colocar os negros contra os brancos e se tornou uma guerra racista. Começou as brigas entre... Formaram-se partidos políticos, que eu prefiro não citar os nomes, um querendo mais o poder do que o outro. Aí começou o conflito entre eles e quem sofria mais eram os civis. As nossas propriedades, os caminhões do meu pai foram tomados para poder transportar os soldados de um lugar para o outro. Os armazéns foram feitos quartéis, a casa onde a gente morava em Luanda.
Teve uma briga muito feia entre um partido e o outro; o quartel de um era perto da nossa casa e o quartel do outro era a 3.000 metros do outro. Começou aquela guerra. A nossa casa ficou furada feito peneira e meu pai foi obrigado a abandonar a casa. Tirou a gente de dentro, a mim, a minha mãe e meu irmão. A gente morava em um bairro, aí a gente foi morar na cidade e eles tomaram aquela casa e outras dos vizinhos, que eram grandes pra eles. Quando foi em janeiro de 75 o meu pai conseguiu algumas passagens, quatro passagens para ir embora para Portugal. Só que quando foi na hora do embarque, como o meu irmão e o meu pai eram homens, do sexo masculino, não deixaram embarcar. Só estavam embarcando mulheres e crianças. Aí embarcamos eu e a minha mãe e fomos embora para Portugal. Quando foi no fim de agosto, meu pai conseguiu a liberação e ele e meu irmão foram embora. A gente foi para Portugal e ficamos lá até cinco de março de 77, foi quando a gente veio para o Brasil.
P/1 – Você se lembra porque os homens não podiam embarcar?
R – Porque eles diziam que os homens iriam ser usados para a guerra, mesmo não sendo nascidos lá.
P/1 – Se quiser, você pode citar os partidos.
R – Não, porque eu tenho medo de complicação pro meu lado.
P/1 – Você tem medo de que?
R - Porque eu sou de Angola e eles estavam chamando as pessoas para voltar pra lá. Só as de Angola.
P/1 - Quando estavam chamando?
R - Há uns anos atrás.
P/1 – Na saída de Angola qual era a sua idade?
R – Dez anos, por aí. Dez, onze anos.
P/1 – Então você lembra bem da confusão.
R - A confusão começou quando eu ia completar dez anos, mais ou menos. Eu sei tudo o que se passou porque eu vivi aquele momento. A gente tinha que ir pra fila do pão, pra fila do leite, pra fila da carne... A gente dependia da doação deles para comer, para viver. Porque se tornou... Luanda, bem dizer, quase se tornou um campo de concentração. A gente depende deles pra viver, pra comer, pra beber. O que eu passei em Angola, eu não desejo que o Brasil venha a passar, porque é triste uma guerra. E quando [se] fala de guerras, por exemplo, as que estão acontecendo no momento no mundo, eu fico muito triste, me volta tudo aquilo no meu pensamento. Eu fico muito triste, sofrendo igual as pessoas que estão sofrendo lá na guerra. Porque, infelizmente, eu sei aquilo... Eu sei o que é uma guerra porque eu passei por ela.
P/1 – E os bens do seu pai? Como ficaram?
R - Perdeu tudo.
P/1 – Perdeu como?
R - Foram tomados. Todas as pessoas perderam. Talvez se conte nos dedos quantas pessoas conseguiram recuperar. Poucas pessoas conseguiram. Mas isso a gente esquece, porque o mais importante é a vida. Porque estando com vida e com saúde a gente consegue tudo novamente. Podemos não conseguir igual, mas o importante de tudo é a vida.
P/1 – O que você e sua mãe fizeram em Portugal antes de seu pai chegar?
R - A gente ficou morando nos bens, nas terras, na casa da família da minha mãe. O pai e a mãe da minha mãe tinham falecido, mas a casa continuou porque o irmão da minha mãe, que mora lá ainda, manteve a casa e as pessoas de lá, elas mantêm. Mesmo os parentes não visitando ou não morando, eles mantém a casa, eles deixam do mesmo jeito que era, se precisar de uma reforma eles fazem. A casa continua no mesmo lugar. Eles não se desfazem, só em último caso.
Então a minha mãe começou a trabalhar na horta, cultivando a horta dela. Como quando meus avós, pais da minha mãe faleceram e os pais do meu pai também faleceram, não houve a partilha de bens. Existiam os bens que poderiam ser usados, então a gente ficou vivendo dos bens.
P/1 - E você, nesse tempo, o que fazia?
R - Eu fui pra escola, brincava, ajudava minha mãe, subia no pé das árvores pra colher as frutas. No pé da cerejeira, no pé da figueira. A gente ia pra plantação de uvas, a gente ia colher as uvas, ia colher as cerejas também, tinha aquela época de colher. Tinha plantação de batatas, é uma festa linda quando é a colheita das batatas. A colheita da azeitona nos olivais. São épocas também muito bonitas, eu aprendi muito também com as festas folclóricas lá na aldeia da minha mãe em Gradíssimo. São lembranças muito bonitas. Essas lembranças, elas conseguem apagar a tristeza um pouco, apagar um pouco a tristeza de Angola.
P/1 – E quando seu pai chegou, mudou alguma coisa na vida de vocês duas?
R – Mudou, porque ele e meu irmão chegaram com vida. A família se reuniu e continuamos trabalhando. Meu pai começou a viajar. Depois meu tio chamou meu pai para vir para o Brasil pra ver se ele gostava, pra vir trabalhar no Brasil. Trouxe o meu irmão e ele acabou ficando. Veio um ano antes da gente e ficou.
Meu pai foi para Portugal, contou mil maravilhas do Brasil. A minha mãe ficou maravilhada com as coisas que meu pai contou, aí eles começaram a vender as propriedades. Quando meu pai foi pra Portugal começou uma partilha de bens, porque o irmão da minha mãe dizia: “Já que vocês estão aqui, então a gente vai fazer a partilha de bens. Vamos ver, chamar um tabelião, ver quem tem direito a o quê. Cada um fica com a sua parte.” Meu pai pegou aquela parte da minha mãe e com a autorização dela começou a vender os bens e a guardar o dinheiro. Meu pai também fez a partilha de bens com os irmãos dele. Mas os irmãos dele estavam aqui no Brasil.
Quando ele veio aqui ele recebeu uma procuração da minha tia Ana Maria e do meu tio Leovegildo. Ele foi pra lá com o tabelião - porque lá não se pode fazer nada sem o tabelião. Foram feitos os documentos, foram feitas as partilhas direitinho. Meu pai, com a procuração, conseguiu vender tudo. O que era dinheiro do meu tio e da minha tia, cada um ficou numa conta. E o dele ficou na conta dele, o da minha mãe ficou na conta dela. Juntaram o dinheiro dos dois e viemos pro Brasil. Isso foi em cinco de março de 77.
P/1 - Vocês chegarem em que cidade?
R - Na época, o avião tinha que descer primeiro no Rio de Janeiro pra depois vir para São Paulo. Nós só descemos de um avião e entramos em outro e viemos pra São Paulo.
P/1 – Quais foram as impressões que você teve ao chegar em São Paulo, enfim, no Brasil?
R - Quando cheguei aqui no Brasil… Nessa época, eu sei que não é mês de frio, março, mas estava um dia muito frio e eu não sabia o que era frio. Não sabia assim: em Angola eu não sabia o que era frio. Em Portugal eu passei a saber o que era frio, a neve. É tão gostoso brincar com neve. Mas é um frio que você suporta. Aqui no Brasil, é um frio que você não sabe se agora está frio ou se está calor, então eu senti muito frio nos ossos. A minha primeira impressão foi: “Meu Deus, que país diferente.” Aquele mundo de carro, aquelas buzinas, um povo muito apressado no aeroporto. Para uma jovem recém-chegada em um país estranho foi diferente.
Depois eu fiquei uma semana morando na casa do meu tio, no Tatuapé, até meu pai comprar uma casa na Vila Ré. Era muito diferente. Os costumes deles eram diferentes lá de Angola, de Portugal, então eu estranhei. Pra eu me acostumar ao Brasil, eu demorei mais de um ano. Eu vinha de um lugar que os costumes eram diferentes.
P/1 – Que costumes você achou estranhos?
R – É... Você não podia ficar na rua até uma certa hora porque era muito perigoso. Ter que carregar blusa em dia de calor, ou um guarda-chuva. Não poder falar certas palavras, porque na minha terra, e em Portugal, “bicha” é uma fila. “Rapariga” é uma moça direita, honesta e trabalhadora. Direitinha, respeitadora dos país. Aqui já é uma moça à toa. Muitas outras palavras que com o tempo eu fui me acostumando. De vez em quando eu dava os meus deslizes. As colegas na escola: “Não, não pode falar assim!”
Eu cheguei em março, quando foi em maio eu comecei a estudar. A minha tia, a esposa do meu tio, conseguiu uma vaga pra mim na escola na Vila Ré, na escola Adalgisa Moreira Pires. Eu fiz até o terceiro colegial. Até a oitava série na Adalgiza Moreira Pires e o segundo grau e o magistério em outra escola. Fiz [formação para] ]professora de Matemática da primeira à quarta série, só que eu não exerço a profissão, só exerci dois anos. Parei para fazer faculdade e também para cuidar da minha mãe, que estava muito doente. Eu prestei pra Engenharia Eletrônica, entrei, só que tive que trancar a matrícula. Estudei um pouco, mas tive que trancar a matrícula em consequência da doença da minha mãe; eu tinha que ficar ali com ela 24 horas. Depois eu perdi a motivação e entreguei a vaga.
P/1 – Em que momento você sai da casa dos seus pais?
R - Eu fugi de casa pra casar, porque os meus pais não aceitavam o meu marido.
P/1 – E como você conheceu seu marido?
R - Eu trabalhava na padaria do meu irmão na Vila Mariana, no bairro Paraíso. Ele trabalhava em frente, numa casa lotérica. Ele ia tomar café lá na padaria e a gente ficava conversando. Até que um dia o chefe dele, a pessoa que é responsável pelas pessoas que trabalham, jogou, falou pra mim: “Olha aquele rapaz. Gosta de você, só que ele não tem coragem de falar pra você.” E eu falei: “Eu lá vou querer pensar nisso? Eu trabalho, estudo, tenho mais em que pensar.” Aí foi rolando, rolando.
Um dia ele chegou pra mim e falou: “Oi morena, quer troco?” Aí eu falei: “Não sou morena, sou loira. Você é cego, não enxerga não?” Aí ele chegou no patrão dele e falou: “Nossa, aquela moça ali, ela é tão brava. Respondeu ruim pra mim. Tenho até medo de entrar lá pra tomar café.”
Ele foi lá reclamar comigo: “Poxa vida, você foi tão rude com o Nilton Sérgio.” Falei: “Por quê?” “Ele veio lhe oferecer troco, você respondeu com quatro pedras na mão.” Falei: “Claro! Ele me chamou de morena e eu sou loira.” Aí passou.
Quinze dias depois, estava chovendo muito e a loja fechou. Ele foi tomar café pra ir embora. Na hora que ele foi pagar no caixa - eu ficava atendendo no caixa -, ele falou bem assim pra mim: “Nossa, é tão triste. [Em] dia de chuva eu vou para casa ficar sozinho.” Porque ele trabalhava em dois serviços e naquele dia não tinha o outro. Ele era operador de máquinas de cinema, filmador de máquina que põe o filme e projeta o filme. Naquele dia estava fechado o Cine Saci. Ele trabalhou muitos anos também lá. Aí ele ficou reclamando, se lamentando.
Percebi que ele estava jogando indiretas pra mim. Eu não lembro as outras coisas que eu respondi, só lembro que respondi: “A felicidade da gente às vezes está bem debaixo do nariz da gente e a gente não enxerga.” No dia seguinte ele me mandou uma carta me pedindo em namoro, aí eu o mandei esperar um pouco. Eu falei pra ele: “[Em] que dia você faz aniversário?” Aí ele falou: “Dia 27 de fevereiro.” Falei: “Tá bom, tudo bem. Até lá eu lhe dou uma resposta”. No dia 27 eu aceitei namorá-lo. Estamos juntos até hoje, aos trancos e barrancos.
P/1 - E quem foi que não aceitou?
R - Meu pai, porque eu já tinha marido escolhido. A gente usa a palavra “marido escolhido” porque os portugueses escolhem os maridos pros filhos. E na época eles já tinham me oferecido para os pais de um primo meu, primo por parte de minha mãe. Eu vim a conhecê-lo e não gostei. Aí com o tempo foi rolando, foi rolando e eu não aceitei. Eu fui dando respostas para o meu pai até que o meu pai abriu mão daquilo que ele vinha me dizendo sempre. Parou, porque eu dei um basta. No dia em que eu apresentei o meu atual marido, ele falou que não, que não aceitava. Até hoje não aceita.
P/1 - Você ainda era menor de idade?
R - Eu já tinha 21 anos.
P/1 - Então você não precisava da permissão.
R - Mas a educação da gente era diferente, era ali [rígida].
P/1 - Como foi essa fuga?
R - No dia [em] que eu casei eu fugi de manhã. Eu casei [ao] meio-dia no cartório da Penha, [no] dia 28 de agosto de 86.
Fugi umas 8:30 da manhã dizendo que ia trabalhar. Os meus padrinhos de casamento já estavam me esperando na Avenida Itinguçu pra me levar pro cartório, porque ele já estava no cartório. Casamos, só no cartório. Meu sonho é um dia casar na igreja. Não sou casada na igreja, infelizmente, mas meu sonho é um dia casar na igreja. Agora, [no] dia 28 de agosto, faço treze anos de casada.
P/1 - Depois do casamento, onde vocês foram morar?
R - Na Freguesia do Ó, de aluguel. Eu trabalhava, ele trabalhava, ele depois saiu dos serviços [em] que ele trabalhava antes. Depois arrumou serviço em uma loja de fliperamas, na Júlio Mesquita, e eu numa lanchonete ao lado. A gente trabalhava de noite. Como o aluguel era muito caro, mesmo [com] os dois trabalhando, a gente tinha sonhos, tinha planos de ajuntar nosso dinheiro pra ter uma vida melhor. Só que o aluguel é muito caro.
Ele conhecia um senhor que o ajudou quando ele era criança. Ele falou: “Olha, em tal lugar o pessoal está invadindo terreno. A prefeitura não está perturbando, ninguém até hoje falou nada, já tem várias famílias lá. Vocês querem tentar?” Meu marido veio e conversou. Eu falei: “Não vai dar certo.” Era na Rua Nelson Cruz, no Belém, em frente à FEBEM. Tirei essa ideia da cabeça dele; a gente veio morar numa pensão pra ver como era o movimento, as pessoas que estavam morando ali. Se não tinha perigo de alguém chegar de madrugada, machucá-las ou botá-las pra fora. Nessa ficamos seis meses morando, até que um dia ele criou coragem e invadiu. O pessoal o ajudou a construir um barraco de madeira.
Não tinha água, não tinha luz. A gente dependia de uns e de outros pra ter a água. Dependia do bombeiro, dependia da DPM, da casa transitória, da usina [que] tem do lado. Às vezes a gente pegava na padaria que tem na Celso Garcia, naquele galpão grande da Paulista. Eles davam água pras pessoas com dó. A luz era à vela. A gente ficou muitos anos sem luz.
Isso foi em 88, 89 - ah, perdão, quem nasceu em 88 foi minha filha. Eu casei em agosto de 86, em 87 a gente veio pra cá. Quando foi em 89 a gente ficou meio triste com o que estava acontecendo. Era muita fuga da FEBEM, a gente via muita violência. Pessoas iam à minha sala, na época eram poucas pessoas, eram só 42 famílias, aí a gente vendeu aquele pedacinho que a gente estava - vendeu assim, a gente vendeu as madeiras que gastamos. Era só o dinheiro da passagem da gente. “Já que vai ficar aí dá só o dinheiro da passagem.” Fui morar em São Vicente.
P/1 - Por que vocês foram a São Vicente?
R - Pra ver como é que era. Porque, na época, o meu marido soube que o cais de Santos estava contratando motoristas. Só que ele chegou lá e ficou vários dias tentando entrar, mas o pessoal falava pra ele que só através do sindicato. Aí ele tentou entrar pro sindicato, mas não conseguia.
Nesse meio-tempo eu fui trabalhar numa lanchonete em frente à rodoviária. Eu trabalhava como balconista e ajudante de cozinha. Como ele também não conseguiu emprego eu consegui convencer o dono da lanchonete... Eram umas pessoas de Pernambuco, eles tiveram consciência do que estava se passando e deram emprego também para o meu marido. Eu ficava durante o dia e ele ficava à noite trabalhando.
Até que chegou uma época que eles gostaram do meu serviço e me passaram pra gerente, aí eu passei a trabalhar o dia todo. Entrava às seis da manhã e saía às oito da noite. E pedi para mudarem meu marido de horário pra ficar junto comigo porque era muito ruim. Quando eu ia trabalhar ele ficava dormindo, aí de noite a gente se desencontrava. Como eu não conhecia direito São Vicente, eu tinha medo de ficar sozinha. Apesar de morar em uma vilinha de casa onde todo mundo era unido, eu tinha medo.
Depois a gente juntou algum dinheiro e voltamos pra São Paulo. Nessa época, a minha mãe já era falecida. E nesse meio tempo, quando eu estava morando na Freguesia do Ó, meu pai procurou a gente. Antes de a gente vir morar aqui no Belém pra eu cuidar da minha mãe, que a minha mãe estava com câncer. Eu fiquei cuidando da minha mãe, dando na boca comida, dando banho nela. Era tudo na cama. Meu pai precisava trabalhar pra comprar os remédios. Minha mãe ia para o hospital e voltava para casa, até que chegou uma hora que meu falou: “A gente não vai empatar a vida de vocês. Se vocês quiserem sair daqui, ir morar em outro lugar. Porque a gente vê que vocês estão constrangidos. Vocês querem a vida particular de vocês, então cada um... O pensamento é de vocês. Conversa, se vocês querem sair daqui ou se querem continuar, porque agora a sua mãe vai ficar um bom tempo internada.”
O câncer já tinha se espalhado pelo corpo. Eles estavam tentando curá-la com uma nova quimioterapia e novos remédios que estavam sendo testados na época. Aí a gente voltou pra favela, foi antes da gente ir para São Vicente.
Voltando de São Vicente, a gente voltou pra cá. Arrumamos um espaço maior e montamos um ferro-velho. A gente começou a trabalhar com... Na época, ainda não trabalhávamos com a reciclagem de papel, separar o papel branco numa peneira. A gente trabalhava com papelão, ferro, garrafa, material fino, que é alumínio, cobre, metal, bloco, bateria, e outras coisas que vêm a ser material fino, que seja bom de reciclar.
P/1 - Você fazia essa reciclagem onde?
R - Na rua. Meu marido puxava carroça e outras pessoas que também já trabalhavam com carroça, pessoas do bairro. A gente não sabia onde essas pessoas moravam porque é falta de educação especular a vida dos outros. Esses homens iam vender e a gente comprava e vendia, pra poder ter o dinheiro pra poder pagar pra eles, os grandes.
O meu marido também saía com a carroça. A carroça é uma armação de madeira em cima de um eixo com rodas de pneu de carro. Quem não tem condições de comprar um eixo faz com roda de bicicleta, rodas maciças pequenas, de carrinho simples, de carregar mala. Ele também ia buscar.
P/1 – Como vocês faziam essa reciclagem?
R - Lá no terreno grande que a gente tinha na Nelson Cruz, na favela. Porque na época ainda eram poucas casas, então tinha bastante espaço. Era 90, 91, 92. Nós fomos dos primeiros que chegaram, tanto é que quando a gente passava na rua eles falavam: “Lá vai o rei da sucata.” Foi naquela época da novela “A Rainha da Sucata”. Muitas vezes, pra tirar sarro de mim, algumas pessoas [diziam]: “Olha a rainha da sucata!”
P/1 - Você tem preparo, seu marido também. Você achou que essa vida era mais rentável do que os empregos que vocês poderiam ter?
R - Na época era, porque era na época do cruzeiro. Depois começaram a vir as mudanças. Inflação. Quando veio o plano do Sr. Collor de Mello a gente quase quebrou. Ele segurou o dinheiro da gente que estava no banco.
P/1 - Sobrava dinheiro no final do mês?
R - Sobrava pra gente poder comer, comprar uma roupa. Não fazer extravagância, nem dizer que vou chegar numa loja de eletrodoméstico e comprar uma geladeira nova, um fogão novo. Não, era um dinheiro que a gente podia guardar. Se precisasse comprar um remédio, tinha. Pra fazer um exame pago, tinha.
P/1- Quer dizer, trabalhando nos empregos e pagando aluguel não tinha isso?
R - Não.
P/1 - Com os dois trabalhando não tinha isso?
R - Não.
P/1 - Então a vida lá pra você era mais vantajosa?
R - Porque a gente queria tentar se levantar e não ter que depender de parente. A coisa mais triste é depender dos parentes pra viver depois que casa. Porque o ditado diz: “Quem casa quer casa.” E é verdade.
P/1 - Seu pai não deu uma mãozinha pra vocês nessas dificuldades?
R - Não.
P/1 – Me fale um pouco mais do seu pai, por favor.
R - Meu pai é uma pessoa certa, direita, trabalhadora. Não gosta de depender de ninguém, então eu também peguei isso dele. Eu não quero depender da família. Até o momento que a gente tiver com saúde e tiver condições de trabalhar, a gente tem que fazer por onde e não depender de ninguém.
P/1 - Mas não tem algo a ver com você ter se casado contra a vontade dele?
R - Eu acho que também por isso ele não quis ajudar. É o meu pensamento, eu não sei o dele. Ele nunca expressou o pensamento dele pra nós. Só que ele falou: “Siga seu caminho. Você escolheu assim, Deus ajude”.
P/1 - Mas o seu marido era um homem trabalhador, não é?
R - Era e é.
P/1 – Na hora em que vocês casaram, seu pai não gostou dele porque? Você sabe?
R - Porque ele é brasileiro. Só que ele também é filho de português e neto de moçambicano.
P/1 – Seu pai está bem de vida ainda?
R - Graças a Deus.
P/1 – E você ficou com sua mãe até que ela foi para o hospital?
R - Até que ela para o hospital, aí a gente foi viver a vida da gente. Ela foi totalmente desenganada, ficava mais no hospital do que em casa, até que veio a falecer no dia onze de dezembro de 97.
P/1 - A sua vida na favela - você é uma pessoa atuante lá dentro. Como isso começou a partir do dia em que você foi morar lá? Como é que você foi se envolvendo nos problemas da comunidade?
R - A gente ajudava as pessoas, mas eu não gostava de me envolver, participar da comissão. Eu participo da comissão de moradores de quatro anos pra cá. Eu estava por fora ajudando, dando opinião, eu contestava quando o pessoal das antigas comissões... Porque aí foi aumentando as pessoas, foi aumentando a quantia de casas, a luta ficou mais difícil porque não tínhamos água, não tínhamos luz.
A gente brigou por água porque as famílias estavam aumentando e quem dava água pra nós começou a negar, porque eles também pagam a água. A água não é de graça, infelizmente. Quem dava água era a DPM, os bombeiros, a casa transitória, pessoas da Celso Garcia, padaria, o galpão da Paulista, onde é o depósito dos caminhões da Paulista. A conta de água deles começava a aumentar, então eles pararam. A gente começou a ir direto na Regional da Mooca ver se tinha condições deles fornecer água pra nós, aí começaram a levar caminhões-pipa de água. A gente arrumava aqueles tambores de duzentos litros. Quem podia arrumar mais, arrumava e enchia de água. E a gente ficava uma semana inteira com aquela água. Na semana seguinte, o caminhão. Começou a aumentar a quantia de pessoas, aí eles começaram a vir mais vezes por semana, até que um dia a gente se cansou e eles também quiseram parar de entregar água pra nós. Eles se cansaram, ameaçaram de não entregar mais se a gente se acomodasse, porque sabiam que a prefeitura tinha que nos ajudar com a SABESP a instalar a água.
A gente começou a procurar lugares que pudessem nos ajudar: igreja, políticos, até que um dia a gente conseguiu que fosse assinado um contrato da prefeitura com a SABESP para instalar a água pra nós. Teve uma época que eu e mais dois senhores andávamos quase todos os dias na SABESP. Tinha dias que eu ligava e quando a pessoa falava: “É a Dona Suzette”, eu escutava: “Fala que eu não estou.” Até que chegou um dia que eu fiquei no orelhão e uma das pessoas que estava junto na luta pra conseguir a água subiu. Essa pessoa com quem a gente tinha que conversar estava na sala. Eu no telefone, aí ele falou: “Eu não estou.” Quando ele falou: “Eu não estou”, o senhor que tinha subido falou: “O senhor está aqui, como o senhor não está?” Aí eu subi.
Foi um dia decisivo. Ele falou: “Eu vou mandar instalar essa água porque eu não aguento mais escutar a voz da senhora e ver a cara da senhora aqui todo o dia na SABESP pedindo essa bendita dessa água.” Foi na época do primeiro mandato da dona Erundina. Depois veio a briga da luz, mas a da luz foi mais fácil.
P/1- Quantas pessoas estão instaladas lá hoje?
R – Mais ou menos quatro mil pessoas.
P/1 - Quando você foi pra lá tinha poucas e você acompanhou toda a vida?
R - Quando eu fui a primeira vez, meu barraco era o número dezesseis e quando eu voltei, meu barraco era número 42. Da segunda [vez] eu fiquei assim... Fiquei bastante tempo e eu falei pro meu marido assim: “Vamos tentar a vida em outro lugar?” Aí a gente foi de novo pra Santos. Lá já conhecia os locais, conhecia São Vicente como a palma da minha mão. Conhecia Santos, eu conversava com o pessoal na época.
Cheguei lá e a primeira coisa que a gente fez foi montar um carrinho de pipoca. Fui trabalhar na praia com barraca de artesanato. Comecei a aprender, a ver como eram os modelos e comecei a fazer. Participei de um teste na Casa da Cultura pra fazer artesanato, cordão, couro, madeira, várias coisas; passei e tenho autorização de trabalhar lá quando eu quiser.
Nessa época eu morava em São Vicente, era um quarto e cozinha alugado.
Só que meu marido... A gente sempre almeja mais. Ele falou: “Eu tô cansado dessa vida. Vamos de novo pra São Paulo.” Viemos e moramos de aluguel. Ele trabalhando como motorista de táxi, eu lavando roupa pras pessoas. Estava difícil, aí a gente voltou de novo pra favela.
P/1 - E aqui você não conseguiu emprego mesmo?
R - Não, nem ele. Na época, já era por causa de idade. No momento ele está com quarenta anos e eu com 35 e meio. Infelizmente a gente sente isso na pele. Idade e pelo local em que a gente mora. Só que lá onde a gente mora, mora muita gente de bem, muito pai de família trabalhador.
Morar em favela não é aquilo que as pessoas imaginam. Quando a gente vai morar numa favela não é porque a gente quer. É porque, infelizmente, a situação financeira não ajuda a gente a morar em outro local. A gente vai morar numa favela porque o dia a dia, o país em si, empurra uma pessoa pra dentro de uma favela. O custo de vida.
A gente vê uma coisa e na realidade é outra. Quem sente isso é a pessoa pobre. As pessoas da classe social mais ou menos ainda têm condições de pagar um aluguel ou então tem uma casa própria, tem um bom emprego. Estão numa posição social melhor. As pessoas que moram numa favela, infelizmente, é [por causa da] situação do país, é a situação financeira. Ali e em todas as favelas tem muita gente boa, trabalhadora. Gente que levanta [às] cinco horas da manhã pra sair para o serviço. Aquele que consegue de ajudante de pedreiro, de doméstica, faxineira. Tem muita gente boa, trabalhadora e honesta.
P/1- Vocês já conseguiram água e luz. Isso a troco de quê? De uma organização de vocês.
R - É.
P/1 – Essa comissão tem quanto tempo funcionando lá dentro?
R - A atual, [em] que eu fui reeleita, tem quatro anos.
P/1 - E o que você faz lá?
R - Sou primeira secretária.
P/1 - E o que essa comissão faz?
R - A gente corre atrás de documentos. Legaliza a ação da favela, porque a favela não era legalizada. Nós éramos conhecidos porque as pessoas passavam e sabiam que era uma favela, mas registrada na prefeitura não era, por isso a gente nunca teve benefício nenhum.
P/1 - Mas o terreno é de quem?
R - É um terreno particular. A dona é uma senhora, ela já brigou várias vezes na justiça. A gente ganhou a primeira instância e ela recorreu. A gente ganhou a segunda instância e ela recorreu. Agora a gente ganhou a terceira instância.
P/1 - Com base em que vocês entram com ação?
R - Porque ela queria o terreno, só que ela alegava umas coisas e não era nada daquilo, então o juiz dava posse pra nós. Ela dizia que aquele terreno era cercado e murado. Nunca foi. E as pessoas que foram testemunhas a favor de nós foram pessoas conscientes e falaram a verdade. Ali nunca foi murado, por isso as pessoas entravam. Se fosse murado, não tinha como entrar.
P/1 - Mas vocês já estão com usucapião?
R - Não, estamos correndo atrás disso. O advogado provavelmente vai entrar com usucapião ou a gente tentar negociar o documento com a dona. Mas isso ainda vai demorar, porque isso aí vai verba e a gente não tem verba.
P/1 - Não tem perigo de haver expulsão das pessoas?
R - Não, porque a gente ganhou a terceira instância. Significa que a gente ganhou o direito de morar. Não somos donos da terra, mas temos o direito de morar e ninguém poder mexer.
P/1- Como funciona essa comissão internamente? Como são distribuídas as tarefas?
R - A comissão é pra isso, é pra correr atrás de advogado quando tem algum processo correndo. Ou então... A gente está com algum problema na SABESP. Designa algumas pessoas pra irem conversar na SABESP ou conversar na Eletropaulo ou procurar entrar em contato com as pastorais. Pastoral da moradia, participar de reuniões, palestras.
Temos as nossas próprias reuniões. Por exemplo, tem uma viela que está com problema de encanamento. Eu não digo que isso esteja acontecendo no momento, mas se tiver que acontecer… Um vizinho querer arrumar, mas um outro não querer colaborar. A gente vai lá e conversa: “Olha, você tem que entender que a água não é só pra você. É pra todo mundo. Você tem que colaborar como os outros estão colaborando. Você não pode pensar só em você, tem que pensar que outras pessoas também dependem disso.” Então é pra isso.
A comissão não se mete na vida particular dos moradores. Ela quer ajudar as pessoas a ser unidas e a ninguém brigar. Por exemplo, se um vizinho está com o som mais alto que o outro, isso a gente não pode [intervir], já é um problema particular da sua porta pra dentro. A gente conversa o que está acontecendo da porta pra fora.
P/1 – Que área é aquela do terreno, Suzette?
R - Abrangendo a usina ela está... Parece que é mais de 15.000 metros quadrados.
P/1 - Mas a usina não está ocupada pela favela.
R - A usina chegou ali primeiro do que a favela. Ela entrou na justiça, ganhou. Ela já paga imposto, já paga IPTU.
P/1 - Ela invadiu também?
R - Isso eu não sei lhe dizer, porque o dono já é falecido. Agora quem está é o filho e a esposa deste senhor que faleceu, só que eles não conversam e nós não podemos nos intrometer e nem especular. Porque pode vir até a acontecer alguma coisa no sentido de dizerem: “Olha, vocês estão se intrometendo onde não são chamados, fiquem quietos.” Não haver agressão física, nem moral, haver uma desunião. Eles já falaram que no dia que precisar realmente ir para justiça entrar com um projeto de moradia eles nos ajudam, então a gente respeita o lado deles. Eles não mexem com a gente e a gente não mexe com eles.
P/1 - Como é a relação da favela com a FEBEM, que é em frente?
R - A gente não se mete. Eles não mexem com a gente e a gente não mexe com eles. Vivemos em harmonia.
P/1 – Isso não foi nem combinado, isso acontece.
R - Acontece. Cada um lá... A gente tem que respeitar o limite. Se existe uma cerca, a gente tem que respeitar aquela cerca. A gente não pode opinar sobre o que está acontecendo lá dentro. A gente fica do lado de fora, só observando.
P/1 - Com relação a fugas, eles se enfiam lá dentro da favela?
R - Eles entram, mas saem. Não ficam. Tem as entradas, mas saem normal.
P/1 - Não fazem nenhuma violência?
R - Não. Eles entram e saem, se tiver como passar eles passam.
A maioria nem procura entrar. Eles já seguem o caminho: ou Celso Garcia ou lá pro fundo, lá pra baixo pra Good Year e vão embora. Eles nem entram na favela pra não prejudicar os moradores.
P/1 - Eles se preocupam?
R - Talvez. Não sei o pensamento deles. Eu sei que eles querem é o caminho deles. Eles vão em frente.
P/1 – E a polícia?
R - Fica só olhando, pra lá e pra cá.
P/1 – Também não mexe com vocês?
R - Não. Se não tiver motivo, é claro. Eles fazem a ronda deles normal.
P/1 – Não entra lá pra dar batida de drogas?
R - Ah, isso é comum, mas não é sempre. Acho que talvez quando existe alguma denúncia.
P/1 – Mas se não tem testemunhas de violência, os policiais não entram?
R- Não. Eles sabem que se fizerem alguma coisa os moradores vão se revoltar ou vão denunciar, então eles olham, pedem documento. Isso é coisa... Em todo o lugar fazem a mesma coisa. Fazem a vistoria, mas dizer que entram lá pra agredir os moradores… Que eu veja, não.
P/1 – E sobre a questão da recuperação do pessoal que mora na rua que o irmão Admilson faz, você acompanha de perto isso? Os moradores da favela participam dessa recuperação de moradores de rua?
R - Os moradores dali não mexem com o trabalho dele porque ele respeita todo mundo. Eles apoiam porque é um trabalho muito bonito que o Sr. Edmilson está fazendo. Ele recupera pessoas que ele vê que têm chances de se levantar na vida novamente, porque se a pessoa foi pra rua é porque [por] alguma coisa ela passou. Ela não está ali na rua à toa. Alguma coisa teve no passado pra jogá-la ali naquele lugar, ou debaixo de uma ponte, ou debaixo de uma marquise. Ou passou a beber, está envolvido com bebida... Droga.
Eu não sei quantos ele teve, mas ali é mais bebida, droga foram poucos. Se pessoas de fora o procuram, ele encaminha as pessoas para lugares de recuperação. Ele ajuda, dá abrigo, que significa um teto e uma dormida; dá comida, ele encaminha para um trabalho. Tem gente ali que só trabalha com reciclagem de papel. Tem outros empregos também, que ele ajuda. Ajuda a tirar documentos dessas pessoas que ele retira da rua.
É um trabalho muito bonito. Eu sei porque, às vezes, ele procura informações, se os moradores não vão achar ruim. A partir do momento que a gente falou pra ele: “Não, faça seu trabalho”, ele segue o caminho dele.
P/1 – Uma pessoa que teve tudo o que você teve na sua infância e juventude em Portugal. Não é muito difícil criar os filhos com tanta dificuldade?
R - É difícil, mas o sonho, o ideal da gente é trabalhar por um futuro melhor. A gente sonha.
P/1 - E que sonho é esse que você tem?
R - Continuar trabalhando. Um dia sair o projeto de moradia dali, a gente ter uma casa, um apartamento. Porque se a gente se acomoda a gente não consegue nada, então a gente vai batalhando, buscando de um lado, buscando de outro, de forma honesta. Não por caminhos tortos, mas sim por caminhos direitos.
P/1 - Muito obrigado pela entrevista.
R - Não tem de quê. Estou às ordens.
Recolher