Ponto de Cultura – Museu Aberto
Depoimento de Fernanda Santos de Paula
Entrevistado por Sonia London e Renata Scavone
São Paulo, 11/08/2007
Realização Instituto Museu da Pessoa.net
Entrevista nº PC_MA_HV044
Transcrito por Paula Leal
Revisado por Raffaella Rosset
P/1 – Bom Fernanda, bom di...Continuar leitura
Ponto de Cultura – Museu Aberto
Depoimento de Fernanda Santos de Paula
Entrevistado por Sonia London e Renata Scavone
São Paulo, 11/08/2007
Realização Instituto Museu da Pessoa.net
Entrevista nº PC_MA_HV044
Transcrito por Paula Leal
Revisado por Raffaella Rosset
P/1 – Bom Fernanda, bom dia.
R – Bom dia.
P/1 –Diz pra gente seu nome completo, a data de nascimento e o lugar onde você nasceu?
R – Meu nome é Fernanda Santos de Paula, nascida em São Paulo, Capital, no dia 12 de Junho de 1972.
P/1 – E o nome dos seus pais?
R – Hélio Romão de Paula e Maria Helena dos Santos
P/1 – E dos seus avôs?
R – Albertina Soares dos Santos, Orlando dos Santos e Senhor Martins e Senhora Silvia de Paula.
P/1 – Vocês são brasileiros, ou tem outros sangues?
R – Somos brasileiros, não há misturas até segunda ordem, né, (risos) até onde nós sabemos não há misturas.
P/1 – E eles moravam aqui, sempre moraram em São Paulo também, seus avós, seus pais?
R – Sempre. O meu avô paterno é carioca, agora os meus avós maternos e a minha avó paterna são de São Paulo. O meu pai também sempre morou em São Paulo, mas existe uma ramificação da família dele que mora no litoral de São Paulo, em São Vicente.
P/1 – E qual era a atividade dos seus avôs?
R – O meu avô materno se aposentou como diretor do Hospital das Clínicas, a minha avó materna faleceu muito jovem e era enfermeira do Hospital das Clínicas, e os meus avós paternos eu não tive muito contato porque quando eu nasci eles já haviam falecido há algum tempo, então não tenho muita informação a respeito deles, nunca foi muito comentado.
P/1 – E a atividade dos seus pais?
R – Meu pai era músico e a minha mãe sempre trabalhou na área da saúde; ela é aposentada do Hospital das Clínicas como auxiliar de enfermagem, sempre trabalhou nesse ramo, porém sempre desenvolveu algumas atividades na área cultural também, paralelo ao serviço que ela já desenvolvia. Era bem interessante porque ela auxiliava o meu pai; antes de eu nascer, quando ele era músico, ele tinha um grupo aqui em São Paulo que se chamava Chique Samba Show. Ele foi precursor nessa área e isso foi bacana. As primeiras apresentações foram no Garitão Danças, que era uma casa de gafieira antiqüíssima aqui em São Paulo. Não tinha na época grupos de samba, né, então minha mãe se tornou backing vocal (risos), fazia show junto com o grupo, ela sempre gostou de cantar e ela também atualmente se envolve, ela atua na área cultural em produção de evento, coordenação também, tanto quanto eu.
P/1 – Vamos voltar mais um pouquinho e depois a gente vai por aí. Você morava em que bairro, você nasceu onde?
R – Eu sou nascida na Barra Funda. Morei com os meus pais muito tempo na Barra Funda enquanto eles eram casados, depois disso o meu pai sempre morou na Barra Funda. Não, minto, depois de adulto já só, porque ele morava na Bela Vista. Ele é nascido na Zona Leste e logo criançinha mudou pra Bela Vista. Depois de moçinho ele foi morar na Barra Funda e de lá ele não saiu mais, a ponto de ser considerado... Diziam que ele era o dono da Barra Funda, porque era conhecidíssimo, tudo tinha que passar por ele, era uma coisa extraordinária, vocês não tem idéia. E a minha mãe é nascida aqui na Vila Madalena. Depois que ela casou com meu pai, nascida e criada onde nós moramos hoje, foi morar na Barra Funda. Morou um tempo enquanto casada com ele e depois de separada voltou pra Vila Madalena, e eu sempre estive com ela.
P/1 – Como é que era sua vida ali naquele bairro da Barra Funda?
R – Eu adorava, porque essa parte da minha infância foi sensacional. Os meus pais se separaram quando eu tinha cinco anos de idade; então até aí ele era super engajado nessa questão da música, da cultura, era viajadíssimo e tal, então pra mim era fantástico porque quando eu era criança, quando ele tinha o grupo, acontecia assim: meu pai sempre teve um coração de açúcar, então todo mundo falava: “Ah, tio Hélio, minha mãe me mandou embora de casa porque, sei lá, fui viajar com o namorado”, por exemplo, “Aconteceu algum problema, tive que sair de casa.”, e ele dizia: “Ah, fica aqui, fica aqui.”. Nós morávamos em uma casa enorme, tanto que todo o grupo morava dentro da casa e todo mundo que tinha problema, que precisava, também ia pra dentro de casa; era tudo muito movimento, eu adorava, adorava. Quando na primeira casa, nós tivemos dois pastores alemães, que se chamavam Ceci e Peri, que eram uma graça. Eu tive uma infância de princesa; tudo de melhor que os meus pais puderam me proporcionar eu tive. Logo que minha mãe engravidou, meu pai foi viajar pros Estados Unidos e trouxe todo o meu enxoval de lá; eu tinha babá e meu aniversário de um ano foi numa empresa que se chamava Telefunken, que ficava na rua da minha casa, e até hoje, que estou com 35 anos, as pessoas comentam: “Não, não acredito, era você”, era eu. Foi uma festa de quase uma semana, festa com fartura. Meus pais sempre tiveram essa questão de excessos em tudo, mas tudo de bom, né, claro. Então foi uma festa enorme, que veio toda a sociedade negra, toda a comunidade negra, todos os amigos dele, e ele sempre conhecido, extremamente popular. Imagina, uma semana de festa! O bolo não deu pra entrar pela porta, foi uma coisa, entrou pela janela que nem um piano, assim que tem que subir. Foi assim; mesas de frutas, o povo levava (risos), foi muito bacana isso. Lógico que eu não tenho muita lembrança da festa em si, mas as histórias que eu ouço... Aconteceram coisas maravilhosas, fantásticas, interessantes. Então a minha vida na Barra Funda enquanto criança foi sempre assim, dentro desse movimento de cultura, sempre cercada de adultos porque eram as pessoas que estavam envolvidas com os meus pais, que eram muito presentes. Não havia
muitas crianças. Depois que nós mudamos pra Vila Madalena que eu fui me ambientando, vendo pessoas... Estudei no Brasílio Machado, fiz meu primário lá até a quarta série, e depois fui pro Max, para onde eu não queria ir, mas eu fui. Lá conheci pessoas maravilhosas; tenho amigas até hoje com quem estudei da quarta série até o ginásio, e somos íntimas, nós nos falamos todos os dias, a gente vive as alegrias e as tristezas juntas, mas a minha, quando eu já fiquei mais moçinha, desculpa, quando eu estava com uns cinco anos, minha mãe se separou. Aí eu fui morar numa pensão ali na Barra Funda, só com o meu pai, e aí é tudo diferente,
porque, poxa, estranho sem a mãe. Meu pai arrumou outra pessoa pra ele se relacionar, mas eu visitava a minha mãe com freqüência. Nós íamos ao parquinho ali no Marechal. Era interessante, porém pai é pai, não tem tanto tato com filha mulher, pequena ainda, e a moça que estava com ele nem me conhecia. Era gostoso porque eu sempre fui muito grudada com o meu pai, sempre fui muito colada com ele, mas eu sentia muita falta da minha mãe sempre. Depois que ela se formou no SENAC, ela veio morar aqui na Vila Madalena; nós moramos na Fradique Coutinho no primeiro momento, depois fomos morar na Alves Guimarães lá no Sumaré e tal, e aí que eu fui conhecendo as pessoas que eu fui me ambientando.
P/1 – Como é que era aquela época na Vila Madalena, você andava sozinha, você brincava, como é que era?
R – Não, eu sempre fui muito curiosa, tenho uma facilidade enorme em fazer amizades, e converso com todo mundo.
P/1 – Quantos anos você tinha?
R – Quando eu vim pra cá? Acho que eu tinha uns seis, sete. Minha mãe saiu de casa pra casar, novinha, muito novinha, então experiência de vida no sentido profissional, de se virar sozinha, essa iniciativa não existia até então, aí depois que ela se separou que ela se viu numa outra situação, e graças a Deus a minha família em sua maioria é composta por mulheres, e nós somos muito pró-ativas, a gente tem muita iniciativa, já vai, já faz e tal, não fica esperando acontecer. Então foi aí que ela teve a idéia de fazer o curso de enfermagem, começou a trabalhar no Instituto do Coração, então enquanto ela estava se organizando eu fui morar com a minha tia algum tempo, irmã do meu pai, e morei com outra tia na zona leste, mas não foi muito tempo. Morei com uma amiga da minha mãe – eu a chamo de tia Dinha –, aqui perto, na Pinhaca. Era uma casa que ela tinha dois filhos, um casal, e moravam os filhos dos irmãos também, e nós tínhamos a mesma faixa etária, então era interessante, era bacana, era legal. Nós temos pouco contato hoje em dia, mas foi interessante. Agora quando a minha mãe veio morar aqui, desculpe-me, quando eu fui morar com a minha tia, irmã do meu pai, acho que eu já tinha – ela morava no primeiro momento na Ponte Pequena e depois ela foi morar no Paraíso –, já tinha uns 12 anos, acho que nem isso. Poxa, foi muito legal porque a minha prima – a única filha dela que é mais velha do que eu – era na época manequim do Mappin e a profissão era um glamour, né, na época era super legal, e aí eu fui ver outro mundo que eu não conhecia. E foi um momento bem legal porque eu tive um banho de cultura, outra cultura que eu não conhecia, então eu fui ler, eu sempre gostei muito de ler, de estudar, fui ouvir, comecei a ouvir música, que, nossa, que gostoso, que legal, era MPB, era música clássica, eu falei:
“Gente, que delícia, né?”, nossa, foi muito bacana, eu aprendia a ouvir e a gostar e absorver tudo de bom que aquele, que cada momento da minha vida me proporcionava. Isso em cada setor. Essa fase foi bem bacana, elas contribuíram muito para o meu crescimento como pessoa, elas tinham outra iniciativa, outra linha de raciocínio, de vida, embora pessoas humildes, simples, mas muito intelectualizadas, assim, sabe, muito gostoso, muito legal. Aí aqui na Vila Madalena eu...
P/1 – Isso foi antes de você vir pra cá?
R – Antes da Vila Madalena, de eu vir morar com minha mãe... Aqui eu conheci pessoas boas, pessoas não tão boas, mas as pessoas que não eram tão legais... Eu não tinha essa maldade de saber que fulano faz isso, fulano faz aquilo, então eu fui vendo, fui conhecendo e aprendendo sozinha, mas foi legal porque depois a minha mãe começou a trabalhar no Hospital das Clínicas e aí ela dava pra mim e pro meu irmão um tratamento de choque, sabe?
P/1 – O que é isso?
R – No sentido de causa e efeito; se você fizer tal coisa, ela vai causar... Por exemplo, se você usar droga vai acontecer isso, se você fizer sexo sem camisinha acontece isso, mas era um tratamento de choque mesmo, sabe, porque ela trazia os livros, “Olha, aprende a conseqüência do que as coisas proporcionam”, “Tal Fulano é assim, assim, assim, olha, você tem livre-arbítrio, eu te dou toda liberdade e eu não quero que você quebre a minha confiança”, então nós tivemos essa parceria, foi bem legal e até hoje eu não bebo, não fumo, não tenho nenhum vício, então era legal porque eu falava “Meu Deus do céu, se eu tomar um gole de cerveja minha mãe vai saber e ela vai me matar” (risos), deus me livre, beijar na boca, ai meu Deus do céu, vou engravidar. Então eu tinha muito medo, eu era bobona, mas eu vivia no meio de gente esperta então o que aconteceu, foi legal pra eu aprender, eles eram espertos demais, mas eles só quebravam a cara, então ficava eu de cara limpa, e pensava: “Ah, então é verdade, minha mãe tem razão, se eu fizer isso olha, nossa, olha o povo se jogando na parede”, coisas assim que não tinham sentido, “Ah, isso não quero pra mim, não quero.”, então não absorvi, essa questão da liberdade controlada valeu muito, valeu muito, e eu quero aplicar nos filhos que eu tiver.
P/2 – Você disse que tem uma irmã?
R – Não, o meu irmão ele é falecido, meu irmão por parte de mãe, e eu tenho alguns irmãos por parte de pai. Os que eu tenho contato... Eu sou a única irmã que tem contato e amizade com a maioria, porque eu converso com todo mundo, me dou super bem com as mães, mas entre eles... Eles não se dão muito bem, porque músico, homem da noite... Então um filho com cada mulher, são muitos irmãos, muitos, muitos, muitos, mas eu adoro, amo todos eles, cada um com suas diferenças, enfim, tem que respeitar também, né?
P/1 – Então seus pais casaram de novo, os dois casaram de novo, tiveram outros filhos?
R – Sim, aí eles adotaram as suas vidas independentes. Minha mãe muito nova, linda, ela sempre foi muito bonita, muito vaidosa, e ela ia pra, vocês se lembram da (Siluete?)? Ela ia pra (Siluete?) fazer ginástica, sempre foi muito bonita, então ela obviamente era assediada, e meu pai na qualidade de homem e músico, nossa senhora, eu tenho irmãos na Argentina, no Chile (risos), namorador à beça, sabe, nossa, então minha mãe se relacionou, namorou, tinha uma vida normal porque, poxa, também não podia ficar estagnada, né?
P/1 – Você quando adolescente acompanhava os dois na noite, porque eles, a sua mãe também sempre, né, era produtora cultural também?
R – Não, ela se tornou a uns 20 anos, de 20 anos pra cá.
P/1 – Sei, mas você acompanhava seu pai? Como é que era isso, adolescente, como é que era pra você, o que te encantava?
R – Quando eu era pequena meu pai me levava lá pro Garitão, me levou em vários ensaios, ele me fazia cantar, eu morria de vergonha, ai meu Deus do céu.
P/1 – Você lembra o que você cantava?
R – Eu falava: “Ah, não quero, tenho vergonha.” e ele: “Ah, então sai daí, vai, deixa eu cantar uma pra você tomar coragem.”, mas eu não cantava, tinha vergonha, hoje se qualquer um mandasse “Sobe no palco e canta.”, “Opa” (risos), mas até então eu era muito tímida, assim, mas...
P/1 – Mas você lembra o que você cantava? Ou não cantava?
R – Não, não cantava. Houve músicas que eu gostava muito, tem fases na minha vida que tem música, cada fase tem uma música que me marcou. Quando eu era muito pequena e morava com o meu pai e com a minha mãe, tinha uma música do Billy Paul que eu amava que era Ms Jones, e tinha uma música do Originais do Samba que eu também achava muito engraçada porque falava da música, do cascão, eu achava bonitinho, eu adorava cantar, ficava cantando pela casa, mas de fato nunca subi pra cantar. Agora nos ensaios lá no Garitão eu ia sim, eu ia. Agora quando morava com a minha mãe já não freqüentava tanto, ficava mais em casa a noite.
P/1 – Então você foi estudando, foi vivendo aqui na Vila Madalena e aí você fez, como é que foi, escola?
R – Então, desculpa, só voltando um pouquinho, acho que tudo na minha vida foi muito precoce, ainda que eu não cantasse eu comecei a sair com nove anos de idade, gente, vocês não acreditam, nove anos de idade eu já ia no baile, minha mãe ia trabalhar no Hospital das Clínicas e ela tinha plantão nos finais de semana, aí eu tinha que deixar tudo impecável e ficar em casa, lógico, esperando ela, mas os meus vizinhos já eram adolescentes, assim, de 17 anos, 16 e 17 anos, e eles iam pra um baile que tinha aqui em Pinheiros, no Asa Branca, era um baile da Chique Show que tinha, né, um baile de música negra, aí eu: “Ah, eu quero ir com vocês.” E eles: “Ah, tudo bem.” Gente, todo domingo eu ia a tarde, era matinê, aí o dono do baile que era muito amigo do meu pai, o Luisão, me colocava no colo e: “Oh filha.”, e eu achava que eu era moçinha, assim, sabe, queria dançar, o povo com dois metros de altura e eu com meio, né, eu queria dançar igual, fazer tudo, vê se pode gente, que loucura, e eu adorava. Quando minha mãe descobriu, ai meu Deus, apanhei tanto (risos), ela: “Não adianta, você é muito terrível. Agora você vai ficar trancada.”, “Ah mãe, deixa eu ir.”, porque eles cuidavam de mim direitinho, me traziam de volta, nós morávamos parede com parede, éramos vizinhos, mas minha mãe brigava. Eu fui terrível, fui terrível, eu lembro que houve um momento em que a irmã mais nova da minha mãe do segundo casamento do meu avô – a nossa diferença de idade é de três anos apenas –, então às vezes ela vinha pra cá nas férias, no feriado, e minha mãe falava: “Olha, eu vou trabalhar e você toma conta dela.”, “Ah, ta bom.” Saía as duas (risos), saíamos as duas. Às vezes a porta tava trancada, pulávamos a janela, íamos namorar, voltávamos e ficávamos com cara de santa em casa esperando (risos). Um dia minha mãe voltou de repente fora do horário e pegou as duas no pulo, olha, foi uma coisa terrível, foi uma correria dentro daquela casa pra correr dela e não apanhar muito (risos).
P/1 – Então você foi terrível?
R – Fui, fui, nossa senhora, muito legal. Eu cabulei muita aula, cabulava aula pra ir ao baile à noite quando já adolescente, sabe, porque eu comecei a trabalhar com 14 anos escondido da minha mãe, ela não queria, lógico, ela fazia de tudo pra me dar o melhor, então ela falava: “Não, vai estudar, estuda.”, e queria realmente que eu investisse no estudo pra depois pensar na minha vida profissional, aí eu falei assim: “Ah, férias, to aqui fazendo nada, vou trabalhar”, olha que, um glutão, né: “Vou trabalhar pra eu ter mais dinheiro pra comprar lanche na escola.” (risos).
P/1 – E no que você foi trabalhar?
R – Aí eu fui trabalhar, arrumei um emprego de secretária com uma marchand, maravilhosa, sensacional, só que eu não sabia, eu trabalhava assim pra ela, fazia o que ela mandava, mas eu de fato não sabia o que eu estava fazendo lá, não tinha a mínima experiência. Um dia ela falou assim: “Fernanda, anota aí pra mim qual a sua experiência, o que você gosta de fazer, o que você faz.” Aí eu, hum, e agora, né? Porque ela não sabia que eu estava ali escondido, aí eu falei: “E agora, o que eu faço?”, e anotei no papel: “Eu sei lavar, passar, cozinhar.”, e na hora ela chamou minha mãe e falou: “Olha...”, eu não era empregada doméstica dela, eu era secretária dela, mas eu não sabia como descrever isso. Aí ela chamou minha mãe, e quando minha mãe chegou, e ai meu Deus, minha perna começou a tremer, e eu falei: “Ai, agora ela vai me matar.” (risos), porque eu trabalhava só no período que era o plantão da minha mãe no Hospital então ela não desconfiava, e aí ai meu Deus, minha mãe chegou em casa e perguntou:
“O que é que você estava fazendo?” (risos), aí eu: “Ai mãe, é que eu queria ter mais dinheiro pra comprar lanche na escola, não queria pedir pra você.”. Nossa, ela brigou comigo, “Tá faltando alguma coisa pra você?”, mas por outro lado foi legal porque ela me deixou continuar,
concluir as minhas férias, e a empregadora que era uma gracinha de pessoa me ensinou mil coisas de arte, sabe, óleo sobre tela, artes plásticas, o que significa, o porque, como funciona, nossa, foi muito bacana viu. Gente, eu fui terrível.
P/1 – E era aqui na Vila Madalena também?
R – Em Pinheiros, na Miguel Izaza, acho que nem tem mais essa rua, hoje é a Faria Lima nova, é aqui em Pinheiros.
Nossa, eu descia escondidinho (risos) e ficava lá trabalhando.
P/1 – E aí você já estava no colegial, como é que era?
R – Não, eu estava no ginásio, aos 14 anos, e eu gostava de ficar lá, gostava de aprender as coisas, aí ela atendia artistas plásticos de vários outros países, era bem interessante.
P/1 – Fernanda, e nessa época os namorados, como era?
R – Ah, eu era muito boba, gente, não era como agora. Agora é tudo tão, aos 14 anos as meninas já são mães; aos 14 anos eu queria trabalhar pra ter dinheiro pra comprar lanche e brincar de boneca, boba, minha mãe fazia roupinha de boneca e eu ficava em casa brincando sozinha, fazia comidinha, bobona, não tinha essa malícia, não era tão perspicaz, tão irreverente como as meninas de agora, eu era bem dentro da faixa etária que eu tinha, eu desenvolvi minhas atividades bem dentro da faixa etária.
P/1 – Mas quando você teve seu primeiro namorado?
R – Ih, demorou viu, acho que aos 16 anos. Demorou, mas aí foi, era um rapaz que era vizinho nosso de frente. Eu achava que eu namorava quando eu era criança, que eu pegava nas mãos dos meninos, já era danadinha, falava que estava namorando, mas nada de intimidade, sem beijo na boca, só pegar na mão, e aí esse rapaz, o Antônio Sérgio, tinha um sonho de servir a Marinha, ele era um ano mais velho do que eu, tinha 17, e ele falava: “Ah, eu vou pra Marinha, quando eu voltar nós vamos casar”, e não sei o que, e eu: “Ah, ta bom.”, né, inocente, imagina, imagina, nada disso se concretizou, ele foi pra Marinha, foi pro Rio de Janeiro, aí ficou enlouquecido com aquela mulherada maravilhosa, nem voltou pra casa dele, foi uma coisa, eu vivi minha vida aqui. Mas sempre namorava, sempre namorei em casa e sempre meus relacionamentos foram longos. Hoje eu me relaciono com a pessoa faz nove anos, fui noiva seis anos, sempre relacionamentos longos. Namorei em casa, direitinho, sob o olho da minha mãe, pra não ter problema.
P/1 – Nesse período depois você fez colegial, como é que foi isso, como é que era sua vida escolar e depois como é que caiu na profissional?
R – Na escola minha mãe era chamada toda semana porque eu não parava de conversar; eu era terrível, porém eu trazia nota, o objetivo não era esse? Eu trazia nota, sempre fui muito estudiosa, muito aplicada nos meus estudos, mas era da turma do fundão, e eu sempre ficava com os meninos. Eu nunca gostei de ficar com as meninas, nunca gostei de muita amizade. Muita coisa com as meninas eu achava que tinha muita fofoquinha, era uma competição desnecessária, então eu queria ficar com o pessoal da bagunça, nossa, era terrível, a gente fazia música e ficava cantando na aula, batucando, aí eu dançava... Eu fui muito, muito terrível, mas aí quando moçinha já com uns 16 anos, 15, 16 anos, fui estudar no Alves Cruz pra fazer o colégio lá, aí já era outro povo, outra coisa, as pessoas eram, embora jovens, mais maduras, mais centradas, e eu sou geminiana, pareço uma camaleoa, e naquela época eu achava que eu tinha que ser hippie, mas (risos), mas era uma hippie só na maneira de vestir; eu era muito magrinha, usava umas tranças longas, nossa senhora, era muito legal. Fui cara pintada, fui pra rua, sempre fui muito politizada, sempre engajada com movimento estudantil, eu participava das reuniões da UNE, fui ser cara pintada com o pessoal da Fatec, com o Centro Acadêmico do pessoal da Fatec.
P/1 – Você fez Fatec?
R – Não, fiz Unip, mas como as coisas sempre aconteceram muito rápido na minha vida aos 17 para 18 anos eu já assumia o Departamento de Juventude do Conselho Estadual da Comunidade Negra, que é um Conselho diretamente ligado à Secretaria do Governo, e nossa, era muito legal, foi bem interessante. Foram duas gestões, oito anos; a gestão Quércia e a gestão Fiorin, que eram os governadores na época. Eu conheci pessoas interessantíssimas, eu falei: “Caramba”, então quer dizer que existem pessoas do bem também engajadas com o movimento político. Trabalhei em campanha política, trabalhei pro Fiorin, trabalhei no plebiscito, trabalhava para o parlamentarismo. Eu já era filiada ao PMDB, que era, na ocasião, e até para a visão de hoje, um partido meio engessado, meio duro, mas quando rachou que teve o PSDB, todo mundo ficou no meio do caminho. Eu fui pro PSDB porque o pessoal do plebiscito, a equipe com a qual a gente trabalhava, tinha ido pra essa facção.
P/1 – Os seus pais também eram engajados politicamente?
R – Não.
P/1 – Como é que veio isso em você?
R – Eu fui convidada porque achavam que eu era uma líder nata, que fazia parte do meu perfil.
P/1 – Quem achava? Onde isso?
R – As pessoas sempre acharam, porque o que ocorre, eu sempre vivi no meio de adultos, desde criança, então eu amadureci muito rápido, eu sempre fui muito precoce. Comecei a trabalhar aos 14, e depois desse empreguinho de férias aos 15 eu já estava trabalhando mesmo. Comecei a trabalhar numa agência de promoções como recepcionista, depois fui pra um escritório de arquitetura, sempre lugares muito legais. Fui trabalhar em agência de publicidade, e foi aí que eu comecei a ter idéia de qual seria a minha formação profissional, que eu achava que tinha tudo a ver comigo porque, embora em funções distintas, eu sempre acabava desenvolvendo as mesmas atividades; sempre na área de comunicação, sempre ligado a isso. Os meus empregos eram nessa área. Fui então trabalhar na TV Bandeirantes e fiquei lá um tempo. Então as pessoas achavam que por eu ter sido muito precoce eu era uma líder nata. “Ah, ta bom.” Aí um amigo do meu pai, Eduardo de Oliveira, que era o presidente do Conselho, já fazia uma gestão.
P/1 – Conselho?
R – Da comunidade negra. Ele me convidou para, a princípio ser secretária dele. Mas iam muitos jovens procurar o conselho e eu atendia, dava ideias, sempre muito agitada, então ele falou: “Não, você precisa de um espaço pra você.”. Aí que ele me proporcionou e me deu essa oportunidade de ser coordenadora do Departamento da Juventude. Foi muito legal porque hoje eu vejo que muita coisa que nós colocamos e aplicamos na época estão refletindo nos dias de hoje, desde a questão dos atores negros, o negro na mídia, do jovem, até o prefeito negro foi uma coisa que a gente almejou muito, e foi uma proposta nossa, sabe, vaga em universidade... Espaço mesmo, porque até então a impressão que se tinha era que nós não existíamos de fato para o mercado consumidor. Então eu organizava palestras, eventos, sempre me mobilizei, e não só aqui em São Paulo, mas no interior também.
P/1 – Até hoje?
R – Não, me afastei um pouco porque dentre tudo isso eu tinha liberdade pra fazer o que eu quisesse, porém não podia fazer muito, sabe?
P/1 – Como assim?
R – É, sabe, faz as suas coisinhas aqui, mas não se expõe muito, não faz muito também. Aí eu falava: “Mas como não, gente? A gente tem a máquina do governo na mão, como não vai fazer? Tem tudo na mão, tem espaço, tem tudo que a gente precisa, como que não vai fazer em prol da minha comunidade? Então não interessa, poxa.”, aí eu acabei observando que havia algumas pessoas que trabalhavam pelo interesse próprio, e eu era a única que estava ali pela causa, batendo de frente com a ideologia deles.
[TROCA DE FITA]
P/1 - Você lembra o que você estava falando?
R – Lembro, então, eu acabei batendo de frente com o Presidente do Conselho porque eu achava que tinha tudo na mão e falei: “Não posso permitir que sejam desenvolvidos alguns trabalhos só pelo interesse pessoal, poxa.”, nós tínhamos convênio com o Consulado Americano, era uma coisa muito grandiosa, muito bacana, tinha que se expandir e mostrar pra todo mundo que isso podia dar certo, que nós teríamos muito a acrescentar... E eu não podia fazer? Aí eu falei: “Ah!”.
P/1 – Mas alguém fazia?
R – Fazia... Faziam para eles mesmos, então eu falei: “Não, não é esse o objetivo, não é por aí.”, mas o Conselho além de ter me ensinado muito na vida me abriu muitas portas, conheci as pessoas do meio da política que me acrescentaram muito, muito.
P/1 – E hoje nessa linha você está envolvida?
R – Não, hoje eu não milito.
P/1 – Não?
R – Não milito mais diretamente, ajudo em algumas coisas, tem muita coisa feia no meio, existe muito preconceito de nós pra nós mesmos, mas foi legal porque eu saí do Conselho e já fui convidada pra ser assessora da Presidência do Aristocrata Clube, que é um clube só de negros que foi fundado há mais de 30 anos só pra negros, porque há 30 anos os negros não podiam entrar no Clube Pinheiros, no Hebraica, nos bons clubes no Tietê. Então foi fundado o Aristocrata Clube e lá... Que oportunidade, sabe?
P/1 – Você está lá agora ou você faz parte?
R – Não. Eu trabalhei naquela gestão e desenvolvi minhas atividades, sou sócia e participo das atividades, porém não quero cargo. Hoje em dia não quero mais cargo, a responsabilidade é muito grande, requer tempo, exige muito da pessoa e eu prefiro colaborar de uma outra forma, de outra maneira.
P/2 – Fernanda, o que te motivou a escolher o curso superior?
R – Os empregos que eu havia arrumado até então. O meu primeiro emprego foi em uma agência de promoções onde nós trabalhávamos diretamente com a Nestlé, mas era merchandising puro, então eu entrei como recepcionista, depois passei a ajudar a selecionar as meninas e quando eu me vi eu já era supervisora de merchandising. Então tinha que ir ao ponto de venda, ver como estava o display e coordenar uma equipe. Saí de lá e fui trabalhar numa agência de publicidade, conforme eu havia dito, e em outras empresas que eu trabalhei eu acabava sempre sendo levada para esse caminho, tanto que o meu segundo grau é Técnico em Publicidade. Eu acabei sendo direcionada não para a área da criação que não me interessava até então, eu achava que era mais a questão de colocar a cara da empresa na rua. Eu sabia fazer a comunicação de fato, já fazendo marketing sem saber, então hoje que já sou formada eu sei que valeu
muito a pena, me acrescentou. Era isso mesmo, não me arrependo, amo minha profissão.
P/1 – E hoje o que você faz?
R – Eu sou profissional de marketing, porém desenvolvo atividades na área de eventos. É bem focado.
P/1 – Você é autônoma ou você está ligada...
R – Faço muito free-lance, trabalho há mais de dez anos com a Anhembi como produtora, então para todos os grandes eventos que fazem, eles me chamam como contratada. Desde carnaval, virada cultural... Ah, ajudei a implantar a virada cultural. Feiras grandiosas e eventos de rua são o meu forte. Já trabalhei na organização da Feira da Vila, aqui no Centro Cultural Vila Madalena, com o Pena que é uma pessoa maravilhosa, sensacional. Meu forte realmente é evento; eu entrei nessa área meio sem querer, saí da área da divulgação e fui pra área de eventos sem querer e falei: “Gente, que delícia.” (risos). É sobre lidar com pessoas, odeio rotinas, não gosto de estar sempre sentadinha ali atrás da mesa do escritório, embora se eu precisar fazer isso, eu faço tranquilamente, mas prefiro cada momento viver uma situação, com pessoas diferentes, lugares diferentes, eu acho isso muito gostoso.
P/1 – A gente sabe que você é super envolvida com o carnaval, então conta um pouquinho desse seu percurso, desse seu envolvimento.
R – O meu pai ele sempre foi da Camisa Verde, ele ajudou a fundá-la pela segunda vez. Eu digo segunda vez porque o Camisa Verde foi fundado pelo seu Dionísio, na época era no cordão Barra Funda. Só que era muito marginalizada essa questão de carnaval.
P/1 – Quando foi isso?
R – Entre 1920 e 30 e poucos, muito tempo atrás. Então eles pararam com as atividades. O Senhor Inocêncio resolveu, em 1940 e alguma coisa, recriar o bloco carnavalesco, então ele chamou as pessoas para desenvolver a fundação do bloco e as atividades com ele, e o meu pai foi uma dessas pessoas. Ele é então um dos fundadores da Camisa Verde e Branco, onde ele desenvolveu atividades até os últimos dias de vida, era a paixão da vida dele. Mesmo quando não tinha nada ele estava na Camisa Verde, só que no meio do caminho, quando minha mãe engravidou de mim, ele pegou e resolveu fundar uma escola de samba pra ela, em homenagem à ela, e nasceu a Tom Maior, que é a escola aqui da zona oeste, do Sumaré. A Tom Maior foi idealizada e criada dentro da minha casa lá na Barra Funda, na Albuquerque Lins, e nessa reunião estava a minha mãe, o meu padrinho, uma tia de leite que eu tenho, a Tia Cleusa, Aníbal, Elisa, universitários, um grupo da USP... Era um grupo bem bacana, composto eu acredito por entre oito a dez pessoas. Então eles fundaram a Tom Maior, e a primeira sede foi na Capote Valente, na casa do meu padrinho, com meu pai como primeiro presidente. Quando eu tinha uns três meses aproximadamente, o cordão passava na porta da minha casa lá na Barra Funda, e meu pai saiu comigo assim, segurando na mão, assim, ó, no meio da bateria da escola de samba. A criança não chorou então é isso mesmo (risos). Diz a minha mãe que a primeira vez que eu desfilei mesmo pela ala das crianças foi no Águia de Ouro, levada por um tio meu que gostava de lá, e conhecia pessoas da escola. Mas a minha história estava ali na Barra Funda... Nós nos conhecíamos desde sempre, cresci junto com os filhos e netos dos fundadores, era uma família, me sentia em casa. Então teve um momento que eu disse: “Ai, eu acho tão lindo. Quero ser porta-bandeira, quero porque quero.”. Fui falar com a então presidente e disse: “Ah, eu quero ser porta-bandeira, me dá uma oportunidade.”. Uma vez eu havia sido convidada, quando mais nova, para desfilar como porta estandarte num bloco que se chama Flor de Lis que é na zona sul, extremo sul, lá no Jabaquara, e eu já estava desfilando há algum tempo, então eu pensei: “Ah não, agora eu quero ser porta-bandeira.”. A diferença do porta-estandarte é que ela desfila sem um acompanhante, sem o mestre sala, ela é sozinha; eu queria dançar como porta-bandeira, com meu mestre sala. A presidente respondeu: “Mas você não tem mais jeito, você dança na frente da bateria, você ta aqui, ta ali, e tal, tem que ser muito centrada.”, e pedi: “Ah não, mas me dá uma chance.”. Ela continuou: “Isso não é pra você, melhor deixar pra lá.”. E eu falei “Se eu não tenho a oportunidade dentro de casa, vou embora.”. Rebelde (risos). Saí e no mesmo dia, mesmo sem experiência nenhuma fui convidada por uma amiga, a Edna Zuleika, pra desfilar na X-9 paulistana. Gente, eu não sabia nem como começava, mas falei: “Ah, eu vou, não quero nem saber.” (risos) e fui. Gente, foi uma verdadeira revolução dentro daquela Barra Funda, não acredito.
P/2 – Isso quando mais ou menos?
R – Eu acredito que por volta de 94. Aí fui para a X-9 paulistana, só que no samba todo mundo se conhece, é meio fechado, então eles falaram: “Não, pera aí. Vamos lá falar com a presidente de lá, da Barra Funda, do Camisa Verde porque você é bem vinda.”, me trataram super bem, mas a gente precisava conversar com eles; foram lá pedir: “Olha, a Fernanda pode desfilar com a gente?”, então a minha amiga Simone, filha da presidente, que é uma graça de pessoa e é minha amicíssima até hoje falou assim: “Eu não queria, mas se você quer ir, vai.”, e eu falei: “Eu vou, porque aqui eles acabaram dando a oportunidade.”. Existia uma vaga de porta-bandeira e eles deram a oportunidade para uma moça que era irmã do Presidente da Liga das Escolas de Samba na ocasião. Essa Liga é a sede à qual todas as escolas são afiliadas, então eles deram a oportunidade para ela que estava vindo de fora, que não tinha nada a ver. Eu estava dentro desde sempre, meu pensamento era: “Se der certo ótimo, se não der também vou continuar aqui.”, sabe, mudo de área, vou para o departamento social, vou fazer outra coisa. Mas se não me dão valor aqui eu vou para outra escola. Nossa, mas fizeram um inferno na minha vida, porque a X-9 paulistana era uma escola nova, formada por brancos, portugueses, então havia muito preconceito sim. Hoje não, mas na época havia. Eles falavam: “Não acredito que você vai pra aquela escola de branquinho.”, “Vou, eu vou, eles me tratam muito bem e eu estou muito bem lá.”, e de fato eles me tratavam feito um doce de côco. No primeiro ensaio que eu tive que me apresentar, eu não tinha nenhuma roupa adequada, e uma amiga, a Cleusa, emprestou um vestido de crochê maravilhoso, lindo. Pensava: “Ai que legal.”, só que ele era bem vazado, tinha que colocar alguma coisa por baixo. No dia, vi que tinha esquecido a bermuda e não tinha nada pra pôr por baixo, então fui só de meia calça, calcei uma meia de lycra que eu tinha, e o vestido. O povo ficou assim, de boca aberta, “não acredito, que louca, ela é passista”, mas na hora que eu comecei a rodar o vestido assim, abrir, ah, fui aclamada (risos), foi maravilhoso.
P/1 – Isso na X-9?
R – Na X-9.
P/1 – Primeiro desfile?
R – Primeiro desfile como porta-bandeira. Eu já vinha de porta-estandarte da Flor de Lis há oito anos. Daí pra frente fui aprendendo as coisas e fui crescendo dentro da escola; eu era o bibelô do povo da X-9. O carnavalesco já disse que faria uma roupa especialmente para mim, porque eu tinha uma característica própria, então a roupa tinha que ser a minha cara. Então vieram fantasias personalizadas, e eu sempre gostei de estar ali; eu ajudava a confeccionar, ia para o barracão e levava minha mãe, levava meus amigos: “Ah gente, vamos lá ajudar a escola.” (risos). Íamos lá dar uma força e ficava... Nossa, adorava. Só que o presidente da escola faleceu, e quem assumiu depois faleceu também de repente, de uma doença pré-existente. Então assumiu o vice, com outra cabeça, para fazer outra coisa e aí eu achei melhor sair da escola. Mas adoro-o também, ele é uma pessoa boníssima; tenho um relacionamento não tão próximo, mas é uma pessoa legal. Uma vez na festa de aniversário da Cleusa, que é a moça que emprestou o vestido pra eu ir pra X-9, estava o Presidente da Águia de Ouro. Comentamos da minha trajetória de quatro anos de X-9 paulistana e como tinha e não tinha sido. Demos bastante risada e ele me convidou pra ir para a Águia de Ouro, e eu fui, aqui na Pompéia. Gente do céu, foi outra revolução.
P/1 – Por quê?
R – Porque hoje está mais tranqüilo, mas até então existia uma rivalidade entre as escolas aqui da zona oeste; a Pérola Negra e a Tom Maior não se davam muito bem e ambas não se davam muito bem com a Águia de Ouro, mas é como time de futebol, era coisa do torcedor, não do dirigente. Aí eu peguei e falei “Poxa, no Águia de Ouro? Não acredito. Fernanda, você não tem nem a cara do Águia de Ouro, saia dessa escola.” “Eu vou ficar, eu vou ficar.”, e lá no Águia de Ouro também o Presidente era maravilhoso. Sidnei, sempre me tratou super bem e com muito respeito. Sempre investiu nos casais de mestre-sala e porta-bandeira, e era aquilo que eu gostava e queria. Fiquei lá por três anos e só saí porque havia outras pessoas que estavam envolvidas e ligadas diretamente aos casais de mestre-sala e porta-bandeiras que não eram tão bacanas quanto o Sidnei. Só que tem um parêntese dentro dessa história toda; no meu primeiro ano de X-9, minto, no meu segundo ano de X-9, o mestre-sala que dançava comigo, sem me consultar ou avisar, fechou um contrato com o Pérola Negra contando comigo, afirmando que eu iria, só que ele não sabia da história da minha família, fundadora e ativa dentro da Tom Maior, e que existia a rivalidade entre essa escola e a Pérola Negra; uma rivalidade horrível, um choque, um confronto terrível. Gente do céu, eu saí até no Notícias Populares porque o povo da Tom Maior começou a ameaçar o pessoal da Pérola Negra, porque eu não tinha que estar ali – embora eu tenha ido pedir; fui lá em sinal de respeito, não porque eu devesse satisfação para o Presidente da Tom Maior quem eu conhecia há muito tempo, mas eu acho que era mais uma questão de respeito, tinha que no mínimo comunicá-lo, para ele não ser pego de surpresa. Foi uma confusão, viu, deu uma briga lá no Anhembi por causa disso... No final, a Pérola Negra não subiu por meio ponto, e a Tom Maior ficou um pouco abaixo. Falaram que a culpa era minha, “quem mandou eu sair da Tom Maior pra ir pro Pérola Negra”.
P/2 – E seu pai nesse contexto inteiro estava na Tom Maior?
R – Não. Ele fundou e presidiu a Tom Maior, ficou por um tempo e depois voltou para a Camisa Verde, e continuou desenvolvendo as atividades dele lá. Meu padrinho assumiu a presidência da Tom Maior, e minha mãe era um pouco mais envolvida, assumia a diretoria social, e eu participava porque ia com a minha mãe e meu padrinho. Mesmo depois que ele deixou de ser presidente eu continuei indo, mas menos, então voltei para a Camisa, e ficava só lá. Hoje eu desfilo na Camisa Verde. Não danço como porta-bandeira porque o quadro de casais está completo, existem três casais de mestre-sala e porta-bandeira adultos, que é o suficiente para a necessidade deles, mas eu sou a apresentadora de um dos casais; ou seja, na avenida, durante o desfile, eu que vou à frente mostrando para o público e apresentando para o jurado o casal que eu acompanho.
P/1 – E por que você gostava tanto de ser porta-bandeira?
R – Gente, é lindo, glamoroso, uma delícia. O Presidente da Camisa Verde já me chamou para ser rainha da bateria, porque eu estava muito espevitada, mas eu dizia “Não, não, não, quero ser porta-bandeira. Desde pequenininha já pegava o rodo com pano de chão e saía dizendo: “É carnaval.”. É gostoso, a roupa é bonita, todas as atenções, todo o foco é para o casal de mestre-sala e porta-bandeira. Eu sou muito exibida (risos), e queria todo aquele glamour, é muito gostoso. E é uma responsabilidade terrível porque você está carregando o pavilhão da escola, que é a coisa mais importante que tem dentro de uma escola de samba; não tem
Presidente e nem mais ninguém se não tiver o pavilhão. Tanto que dentro do samba, se existe uma festa e vai toda a diretoria, mas não vai o pavilhão, é como se a escola não tivesse ido. É dessa forma que é visto, o pavilhão é essencial.
P/1 – Mas o que é o pavilhão?
R – O pavilhão é a bandeira que tem o símbolo da escola.
P/2 – E teve algum carnaval que te marcou bastante, que foi inesquecível? Acho que todos são diferentes, né?
R – Todos são, cada momento é um flash. Eu sou muito emotiva, muito chorona, em todo carnaval eu choro, parece que é a primeira vez que estou entrando na avenida. Mas nenhum assim que fosse... Acho que eu fiquei muito nervosa na primeira vez que eu fui desfilar como porta-bandeira pela X-9. Era até uma reação natural, não poderia ser diferente. Mas nenhum que eu ficasse enlouquecida, a ponto de ser “o” inesquecível, todos foram muito importantes.
P/1 – E como é essa sensação para você de entrar na avenida, e tem o público?
R – Nossa gente, é maravilhoso, eu não enxergo ninguém, não enxergo ninguém. Antes de ser porta-bandeira eu desfilava na comissão de frente; desfilei na comissão de frente da Nenê de Vila Matilde, onde meu pai foi coordenador da comissão e ele que coreografou, e, nossa, tudo era muito difícil, no sentido de sair da sua escola, da sua agremiação, para desfilar na agremiação de outra escola. Não é que não podia, mas quem era sambista e filha de sambista não fazia isso, ficava lá na sua escola e ponto, não ficava pulando aqui e ali, mas tudo foi em virtude do Conselho da Comunidade Negra, para você ver quantas ramificações ele me proporcionou.
P/1 – Por que, como foi?
R – O carnavalesco da Nenê da Vila Matilde na ocasião, o Tito Arantes, foi até o Conselho pra conversar com o Presidente, me conheceu lá e falou: “Ai, você é linda, maravilhosa, vamos lá, vem desfilar comigo.”, eu falei: “Imagina, não posso, vão me matar.”. “Você pode porque é o seu pai que vai coreografar a comissão.”, então disse que iria, que estava segura. Uma vez minha mãe já havia sido sequestrada da Vai-vai, meu pai sequestrou minha mãe da Vai-Vai, entendeu... Quase aconteceu uma tragédia na época.
P/1 – Como é isso, como assim seqüestrou?
R – Minha mãe desfilou pela primeira vez em escola de Samba na Vai-Vai, na ala da Dona Olímpia. Era uma época que eles davam o tecido e a pessoa confeccionava a sua própria roupa. Nessa época ela conheceu meu pai, e, como ele morava na Barra Funda e era engajado, a pessoa mais acertada pra resolver quaisquer problemas relacionados à Barra Funda e a Camisa Verde na ocasião, levou minha mãe para a Camisa Verde, depois de já estarem namorando. Ela foi, e com o tecido do Vai-Vai. Antigamente tinha esse problema, como eu falei; não podia sair de uma escola e ir pra outra, e a Vai-Vai e a Camisa Verde eram arquiinimigas como Palmeiras e Corinthians: não podiam se ver. As lideranças não podiam sequer ir uma no bairro da outra que dava confusão feia. Minha mãe foi então para a Camisa Verde, e fizeram uma roupa maravilhosa pra ela de destaque, toda de flores, impecável, linda, mas com o tecido da Vai-Vai. No dia do desfile, o povo da Vai-Vai sacudia o ônibus. Meu pai mobilizou o pessoal dele, foi uma confusão, uma briga terrível. A gente pensou que fosse acontecer uma tragédia, e eles pensaram que fosse acontecer uma tragédia. Até algum tempo atrás havia essa questão, mas hoje eu posso afirmar que já não existe tanto. As pessoas estão mais tranqüilas, mas ainda ficam meio receosas; não é muito interessante quem é sambista ou filho de sambista se aventurar a fazer esse tipo de coisa porque não é nem ético.
P/2 – O seu pai cantava?
R – Cantava, tinha um grupo de samba. Foi o primeiro grupo de samba de São Paulo, que se chamava Chique Samba Show; se apresentava no Garitão, se apresentava fora... Ele desfilou pro Dener, que fez uma coleção afro onde o grupo dele foi tocar. Ele viajou pelo mundo todo, e ele cantava, compunha. Só que eles não tinham naquela época essa visão de registrar esses momentos, de fotografar, de filmar, então ele faleceu faz dois meses, e muita coisa se perdeu. Muita coisa que eu digo, coisas que só ele podia informar e contar para a gente. Embora existam muitas pessoas que conviveram com ele, mas as pessoas se perderam também, cada uma está num lugar, não temos mais contato. Mas ele foi músico durante toda a sua vida, desde a escola ele já tocava, era da bandinha.
P/2 – E você falou que fugiu do microfone no começo?
R – Eu fugi, tinha vergonha.
P/2 – E hoje, você foge ainda?
R – Não, imagina, canto no chuveiro, canto no karaokê, canto (risos).
P/1 – Aqui você também pode cantar, quer cantar um pouquinho?
R – As músicas que me marcaram na infância, conforme eu disse, foram a do Billy Paul e a do Originais do Samba que... Como era a música... Deixe eu me lembrar, falava assim: “A Mônica, com aquele jeitinho que só ela tem, bateu no Cascão e no anjinho também, e fez o Cebolinha cantar parabéns.”. E era legal, (risos) eu gostava por causa dessa parte, aí o Cebolinha tinha que cantar parabéns com a língua toda enrolada, era legal. “Quando eu entrei na mata, bebi água na cascata, era uma linda manhã, que manhã, de manhã, os macacos pulavam em festa, era o aniversário do Tarzan” (risos), engraçadinha, né? Tinha um amigo do meu pai que também cantava, falecido já, ele cantava para mim, pequena, ele tinha uma música de autoria própria, que fala: “O macaco morreu intoxicado de banana, ele era um macaco, um macaco tão legal que sambava na quaresma e também no carnaval.” (risos), ai meu Deus do céu. Em cada fase da vida, tem uma música que acaba marcando, né?
P/1 – Tem alguma do seu pai que você lembra?
R – Não, não, ele cantava muitas músicas, do Ataulfo Alves e tal, ia para uns sambas mais antigos, gostava muito de cantar. Até pouco tempo atrás ele fazia show cantando, e todo mundo falava assim: “Ah, lá vem o Tio Hélio, já vem cantar.”, e “A biografia do samba é linda.”; todo lugar que ele ia, ele cantava, e todo mundo gostava, era bem legal, que é o hino da Embaixada do Samba de São Paulo, ele era embaixador, um dos embaixadores, né, e hoje depois de falecido, assim, nesse momento mais triste, a música que me emociona, que eu fico muito, porque eu lembro muito dele, todo o tempo, todo dia, toda hora eu estou pensando nele. Ele era uma pessoa super ativa no mundo do samba, super conhecido, muito popular... Uma música, o refrão de uma música, que chama a atenção, e eu acho que tem muito a ver com essa situação, é assim: “Se foi e ao mundo inteiro disse adeus, é triste, mas foi mais um bamba que o mundo do samba perdeu.”. Acho que tem muito a ver com esse momento, né? Coisas da vida, né? As peças que a vida prega na gente. Isso tudo me emociona muito porque a pena do meu pai foi que as coisas sempre foram muito intensas. Eu perdi... O meu irmão morreu com 28 anos e deram a notícia pra mim no dia das mães. As coisas acontecem na minha vida sempre muito intensas, muito, muito, muito intensas, tanto as coisas boas quanto as coisas ruins. Nesse momento eu fiquei enlouquecida, me deram a notícia por telefone; ele foi para praia para ir numa festa com meu primo, foram para Camburi e teve nessa festa uma briga por causa de namorada. A menina nem era namorada dele, era ficante, como se fala agora. Ele foi defender a moça e deram um tiro no peito dele no dia das mães, me falaram. E meu pai super forte, ele sempre foi uma referência para mim, sempre. Tanto ele quanto minha mãe, que já sofreu para caramba na vida. Uma mulher muito forte, muito guerreira, uma pessoa maravilhosa, determinada, super ativa... E meu pai também, com a personalidade ímpar, altivo, super inteligente, extremamente inteligente, engajado. Eu sempre busquei nos meus relacionamentos, namorados, alguma pessoa que tivesse esse formato; lógico que ninguém é igual a ninguém, mas eu achava que, como minha família é formada por mulheres, tinha que ter um homem forte, uma pessoa que decide. Nós mulheres, como tivemos que nos virar, resolver e decidir, tínhamos e temos personalidade forte, sempre. Então eu achava que tinha que ter um homem que me dominasse, que fosse tanto quanto o meu pai, que era muito fala mansa, fala baixo, porém enérgico, nervoso, incisivo. Sempre busquei uma pessoa que fosse nesse formato. Mesmo ele separado da minha mãe eles foram muito amigos, sempre foram amigos, o que é uma coisa super legal, bacana; ele sempre foi muito presente, e nós estávamos juntos mesmo devido às questões de carnaval também. Nós estávamos sempre muito próximos. Ele falava: “Sujerinha embaixo da unha, ela está, a tampinha caiu aqui do meu lado e ela está.”, dentre todos os filhos que meu pai teve, eu e meu irmão Ricardo sempre fomos os mais apegados a ele. Não sei se é porque ele foi casado com a minha mãe e eu cresci, e convivi com ele... Porque os outros filhos ele teve, mas estava sempre viajando, sempre aqui e ali e acho que ele não conviveu muito assim. Falava, procurava, tinha notícia, ajudava, mas não era tão próximo. Eu sempre fui muito próxima, e o Ricardo sempre foi em busca do meu pai, sempre atrás dele, sempre auxiliando, procurando saber o que ele estava fazendo. Fisicamente eu tenho muito dele; o olho, o nariz, que nem a Renata falou, o olho, eu durmo, algumas manias, em algumas coisas sou muito parecida com ele... Quando ele ficou doente nós fomos pegos de surpresa, porque ele sempre fora muito viril, muito altivo, jamais admitiu que sentia qualquer coisa. Então quando adoeceu foi tudo muito rápido; em 30 dias foi diagnosticado doente, foi internado e morreu, em exatos 30 dias. Durante esses 30 dias, o Ricardo e meus outros irmãos – minha irmã Nancy, Flávia... – foram visitar meu pai, o acompanharam. Mas eu que estava ali do lado dele em tempo integral; eu ia para o hospital de manhã cedinho, saía a noite, fiquei lá o tempo todo. A gente nunca quer acreditar. Eu saí do hospital ontem e deixei ele vivo, quero encontrar ele vivo. Graças a Deus eu tenho a minha mãe que é uma pessoa maravilhosa, super companheira, super amiga. Ela é incrível, nós estamos juntas sempre em todos os lugares, gostamos das mesmas coisas e pessoas, temos amigos em comum. Se vou em alguma festa e ela não está é como se eu não tivesse ido. Com ela também, mesma coisa. Diz: “Não, não acredito, cadê a Fernanda, não veio?”, “Não.”, “Então você não está aqui.” (risos). Agora estou mais do que nunca – sempre estive, mas agora mais do que nunca – apostando todas as minhas fichas nela. Na sua qualidade de vida, saúde...
Envelhecer com dignidade é um direito que todas as pessoas tem mas poucos tem oportunidade de acessá-lo, então eu prefiro...
P/1 – E pro seu futuro, o que você quer?
R – São muitas coisas que eu almejo. Acho que é melhor esperar, deixar acontecer. Vamos ver o que dá. Agora estou com o planejamento de ter um filho para dar continuidade à minha família que agora se resume a mim e a minha mãe; dentro de casa somos só nós duas e o Oswald, que é meu filhote de quatro patas: lindo, Cocker, terrível , terrível, super mimado, mas é o xodó da casa. A gente não faz nada sem pensar no Oswald de Andrade.
P/1 – (risos) Oswald de Andrade?
R – É, tem nome e sobrenome: Oswald de Andrade de Paula Souza. Tem RG e tudo. Ele é um fofo... Eu falo: “Oswald, você precisa arrumar um emprego porque ta muito caro, pô.”. Ele toma Danoninho porque tem cálcio, só come frutinhas por causa da pelagem... Mimado, vocês não tem ideia; ele tem ciúmes das crianças que vão em casa e mexem na bolinha dele. Ele rosna, é terrível, tem que se moldar para receber gente.
P/2 – E você ta pensando em fazer um neném?
R – Estou pensando em ter um filho. Antes eu achava que para eu ser mãe seria ideal eu estar casada, estabilizada, morando sozinha ou com o meu esposo, mas o tempo foi passando e eu fui estabelecendo outras prioridades e colocando tanta coisa na frente que acabei deixando isso um pouco para lá, e agora eu acho que é o momento. Aos 35 anos eu acho que estou madura suficiente para saber o que eu quero de fato. Gostaria que tivesse um pai, que não precisa estar do meu lado o tempo todo, só precisa dar atenção para a criança; não precisa casar ou morar comigo, não é nada disso. Eu quero investir agora em um filho, acho que esse é um momento adequado. Agora vamos ver se dá certo (risos).
P/2 – Fernanda, quais são as principais lições que você tira da sua trajetória de vida, aqui contando pra gente, nisso tudo que você contou, quais foram as principais lições que você tirou?
R – Infelizmente na vida da gente nem tudo são flores. Eu sempre fui muito família, sempre gostei muito de família reunida, numerosa, data, as pessoas se amando, se respeitando. Aconteceram algumas coisas que não foram muito legais conosco, eu e minha mãe. Nossa família até hoje – desde quatro ou cinco anos se eu não me engano – está rachada por ações de algumas pessoas que não foram tão corretas assim conosco, e isso deu uma quebrada nesse meu modo de ver. Como eu sempre fui muito crente de que as pessoas eram boas, eu achava que se eu não tenho coragem de fazer isso com alguém, quem vai fazer comigo? Não, cada pessoa tem a sua essência, tem que aprender a lidar com isso, mesmo na área profissional. Eu acabei confiando em pessoas que não eram tão sérias. Para mim amizade independente de qualquer coisa; é como casamento: na alegria e na tristeza, na saúde e na doença, ou você é, ou você não é. Acho que esse é um dos pontos que eu tenho que trabalhar mais, melhorar. Deixar de ser tão aberta, porque nem sempre as pessoas estão tão abertas a nós... Embora eu ache que quando você se solidariza e se entrega a fazer alguma coisa para alguém, você tem que fazer por você, não esperando o retorno, porque isso é de cada um, é muito pessoal. Aconteceu um fato com uma pessoa muito próxima que eu achava que era minha amiga, faz muito pouco tempo, uns dois anos. Eu me entreguei para ela, que estava passando por um momento muitíssimo difícil, e eu abri mão da minha vida para apoiar,
ajudar, e sempre arrastando a minha mãe junto comigo para dar um suporte, um alicerce.
Enquanto ela precisou foi interessante, depois não se tornou tão interessante assim. A gente acaba ficando um pouco machucada e meio calejada já com coisas assim, então eu já sei... Nos meus relacionamentos também; eu fui noiva durante seis anos, e o meu noivo, depois desse tempo todo vivendo super bem (ele não era brasileiro)... Eu tinha uma loja de perfumes e cosméticos importados no centro da cidade, em frente ao Edifício Itália, loja que ele me deu.
Acabei perdendo algumas oportunidades de ir viajar para fora porque eu tinha muito medo de voar, então ele me pagou um curso para ser comissária de bordo. Por isso eu sou comissária de profissão. Hoje já não dá mais, não tem como, sou consciente disso (risos), mas eu sou comissária de bordo. Eu vivi seis anos com ele, e no último ano ele se tornou mais presente aqui, não estava viajando tanto. Foi muita briga, muita confusão, e ele rompeu comigo no Natal. Essas coisa são sempre nessas datas; quando eu falo que as coisas que acontecem comigo são muito intensas é disso que estou falando. Meu irmão que morre no dia das mães, meu pai que morre a uma semana do meu aniversário, meu noivo que rompeu comigo no Natal... Ele virou pra mim e falou assim: “Fernanda, eu não fui feliz com você.”, e eu comecei a dar risada porque, poxa, “Você esperou seis anos pra dizer que não era interessante manter a relação comigo?”, e vou fazer o que? De cada situação a gente tira alguma coisa. Dessa situação do relacionamento eu aprendi que não vivia a minha vida; ele não era daqui então eu me anulei para viver a vida dele, era uma coisa horrível, porque tudo que eu fazia era em função dele. Chegou um nível do relacionamento em que me senti como naquela famosa frase “Quem ama menos manda no relacionamento.”. Nós não estávamos mais na mesma sintonia, e passei por cada situação que eu falei: “Aqui eu tenho que agir de tal forma.”; a gente vai aprendendo com as rasteiras que a vida nos dá, se moldando, né?
P/2 – O que você acha que foi até hoje o que sua mãe deixou de mais forte pra você de lição até agora?
R – Olha, é difícil dizer... O que eu sou hoje de bom em termos de personalidade e caráter – que nem todo mundo é cem por cento bom nem cem por cento ruim – eu devo 98 por cento à ela. Só não falo cem por cento porque a gente vive na rua, tem a mídia, tem o dia-a-dia que ensina, mas a determinação que ela tem, ela é muito guerreira, muito pró ativa, forte. É bacana que ela tenha mais tato pra lidar com situações difíceis; eu já sou chorona, emotiva. Se eu estou mole e tal, ela não critica, muito pelo contrário, respeita o momento. Ela tem outra postura, é muito contida, tranquila, aparentemente serena; lógico que o íntimo dela nem sempre está dessa maneira, mas isso dá uma segurada nos meus devaneios, nas minhas loucuras (risos), nas minhas emoções. Acho que isso é essencial na questão do caráter, na formação do caráter; quando eu era pequena uma irmã dela tentou dar uma desviada, uma baixada na minha autoestima – e quando você é criança sua personalidade está em formação e você vai absorvendo algumas coisas –, ela tem dois filhos e achava que os dois filhos dela que tinham bom caráter, ninguém podia fazer nada. Mas ela sempre foi assim, é uma característica dela que nem me compete questionar. Ela sempre pichou, falava isso, falava aquilo, e eu com uma personalidade em formação achei que mexeu um pouco com a minha autoestima. Mas graças a Deus eu sou muito mais forte do que isso, e tinha os meus dois pais vivos, nada disso ia me derrubar. Tenho características pessoais minhas de personalidade e conduta que são muito particulares, que ninguém tira de ninguém; hoje eu entendo que isso só me fez fortalecer.
P/2 – Eu achei bem interessante a sua história com a juventude. Como é que se deu a continuidade desse trabalho com a juventude, como você vê a juventude hoje?
R – Hoje penso assim: “Meu Deus, acho que eles que estão certos e eu estou errada, porque não é possível, está tudo de cabeça pra baixo.”. Eu fico muito assustada por causa da minha formação; minha mãe estudou em colégio de freira, mas ela não é engessada, não é dura, muito pelo contrário, é bem flexível, bastante antenada. Mas eu aprendi tudo diferente, hoje não existe mais esse conceito, a criança de hoje é mocinha. Eu comecei a usar sapato de salto com 15 anos, que eu ganhei. Era um sapatinho que a gente fala que era menina moça, era um luxo andar com um saltinho desse tamanho.
Hoje a criança com sete anos dança o funk, canta músicas que nós adultos ficamos de cabelo em pé de ouvir; embora eu acredite que eles não entendam muito, os pais permitem. As crianças de hoje tem resposta pra tudo, falam tudo na ponta da língua, te desconcerta. Eu sofri muito na minha vida porque aprendi que não podia responder para os mais velhos, você tinha que respeitar, tem a hierarquia no trabalho e na vida. Eu levei muita chapoletada na vida por causa disso. Vinha na ponta e era automático, eu não conseguia faltar com o respeito com as pessoas. Hoje em dia eu vejo as coisas do jeito que estão e fico assustada: uma menina aos 14 anos conversando de sexualidade tranquilamente; lógico que acho que é válida toda informação, tem que saber mesmo. Mas já é mãe, é uma criança brincando de boneca. Acho um absurdo, sou franca em dizer, acho que as coisas acabaram fugindo um pouco do controle. Muitos pais eu acho que acabam querendo – não é uma crítica, é o meu ponto de vista só –justificar suas ausências por causa de trabalho, estudo, viagem, seja como for, dando total liberdade pros filhos, então eles perdem o controle sobre os filhos e a juventude está desvairada. Desde sempre todos os planos que eu fiz de vida meus pais acompanharam. Sobre casar, querer trabalhar, ganhar bem, estudar para isso e dar alguma coisa para o meu pai; sempre pensando no meu pai e na minha mãe. Hoje o filho mata o pai, a menina manda o namorado matar o pai porque ele não deixa ela namorar, não deixa ela sair, o que é isso? Que loucura. Eu realmente fico muito assustada, não sei nem como nem por onde as coisas começaram a se perder, não sei dizer. Isso é muito ruim, a criança já não vive mais aquela coisa de criança, não tem brincadeira que seja na praça, porque hoje em dia quase não tem quintal porque é tudo apartamento. Não vai ao playground, nem isso; a criança de oito ou nove anos fica na internet, é aliciada na escola para as drogas, sexo, está tudo muito livre e ninguém faz nada por isso. Eu não saberia tentar ajudar, por onde eu iria começar? Eu ia ser uma... Eu ia ficar um pouco perdida.
P/2 – Quando você estava no Conselho de Juventude você acha que você conseguiu atingir coisas, fazer alguma mudança?
R – Consegui sim porque o foco, o perfil, o público alvo eram jovens carentes. Digo isso porque eram a maioria dos jovens que nos procuravam, com o objetivo de crescer, de conhecer, então essa sede de conhecimento e crescimento que eles tinham embriagava, era uma delícia, e eu tinha a oportunidade de proporcionar coisas muito boas pra eles. Desde o jovem carente que vinha de uma família muito humilde, mas que era visionário, até um garoto que jogava basquete, foi convidado para jogar no Hebraica e o barraram porque ele era negro. Era assim bem diversificado, com estudantes diversos, de diversas classes sociais. Eu acho que eu acrescentei muito, dando oportunidade que as pessoas não conheciam. Tem muita coisa interessante aí na rua, muita coisa legal na praça que não é aproveitada... Eu digo isso porque até pouco tempo atrás estavam sendo oferecidos cursos para a comunidade negra no Senac: qualquer curso com bolsas de 80 a cem por cento, e sobraram vagas, você está entendendo? Então tem que dar para as pessoas o direito de fazer, é que nem a questão da cota nas universidades, eu sou super a favor. Falam: “Ah, mas a pessoa vai entrar na faculdade e não tem dinheiro para comprar o material e não sei o que.”, eu falo: “Gente, ela já está se predispondo. Ela quer, não quer?”. Cota é pra quem quer, se o cara não quer, ele já nem tenta porque é puxado, é difícil, tem gente que não gosta, vai de cada um, mas investe em quem quer, poxa. Tem laboratório, tem biblioteca, tem pessoas que doam livros, tem sebo que vende livros por preços pela metade ou até menos que o valor de mercado... Enfim, tem muitas oportunidades, então é difícil ver que hoje em dia ainda existem jovens que são analfabetos, acho que hoje em dia a gente tem que buscar a nossa própria oportunidade. É difícil porque falam que precisam trabalhar, mas todo mundo precisa trabalhar. Se você tem oportunidade de estudar à noite, e tem escola do estado que dá, se tem curso a noite supletivo pra adultos e jovens, existe a chance, e é uma questão de querer. Se empenha, poxa. Mas não acontece porque o foco agora é outro; agora a droga parece que está até mais liberada, tem até pai que dá a droga para o filho, pai que coloca a chupeta do neném na cerveja... É o meu ponto de vista, eu não acho que é legal. Acho que contribui muito dando oportunidade para essas pessoas que querem investir nelas mesmas.
P/1 – Pra outra vida.
R – É lógico, uma chance de crescimento. Todo mundo merece uma chance, eu acho.
P/1 – Fernanda, já está acabando a entrevista, só uma última perguntinha. O que foi para você dar essa entrevista aqui, você estava ansiosa? E como é que você sai?
R – Estava, nossa, eu me preparei muito (risos).
P/2 – E como foi dar esse depoimento, como você está se sentindo?
R – Acho que foi fundamental, as pessoas precisam registrar suas histórias, suas memórias, sempre preguei isso. Sempre achei que precisava acontecer de alguma forma, não sabia como, mas precisava acontecer. Então eu achei isso aqui no Museu da Pessoa, e não podia deixar essa oportunidade passar em branco, porque a gente não sabe o dia de amanhã, né? Hoje eu estou aqui, amanhã eu não sei se vou estar, então alguém tem que ver o que eu já vivi, o que já aconteceu, as coisas boas, as coisas que não foram tão legais. Antes de vir eu até questionei: “Ué, mas eu tenho que falar só das coisas boas? Eu tenho que falar da minha vida independente dela ser feita só coisas boas ou não.”. A gente vive “n” experiências que são enriquecedoras, tem que registrar isso, é fundamental. Achei muito interessante, adorei a iniciativa do idealizador do espaço, da proposta de criar este museu e de estabelecer esse projeto. O estou recomendando, mesmo, porque tem pessoa que eu conheço... Eu conheço muita gente, e tem pessoas que tem histórias sensacionais, que não adianta. Aí vai acontecer como meu pai; ele teria história pra falar aqui três dias, mas já foi, já era, e agora acabou. Não tem ninguém para falar por ele. Assim como tem outras pessoas que têm histórias maravilhosas e, se elas não registrarem, vão se perder mesmo, porque não tem outras pessoas que possam falar por elas. Então estou recomendando mesmo, principalmente pra essas pessoas que tem esse grande potencial, essas histórias maravilhosas, essas experiências de vida enriquecedoras, que podem acrescentar de alguma forma, tem que deixar registrado.
P/1 – Muito obrigada.
R – De nada.
FIM DA ENTREVISTARecolher