Depoimento de José Leite da Silva
Entrevistado por Cláudia Leonor e Ana Paula Soares
Estúdio da Oficina Cultural Oswald de Andrade
São Paulo, 27 de outubro de 1994
Transcrita por Teresa Furtado
P - Bom, eu queria que o senhor falasse o nome completo do senhor.
R - José Leite da Silva.
P - O local de nascimento e a data de nascimento.
R - Eu nasci num sítio chamado Umburana, Correntes, estado de Pernambuco.
P - Certo e o nome dos pais do senhor, local de nascimento deles.
R - Antônio Leite da Silva, nascido no mesmo local que eu, e Ambrosina Maria da Conceição, nascida em Paraíba, eu não sei onde, na Paraíba.
P - Certo. E o nome dos avós do senhor, o senhor lembra?
R - Eu sei que o pai do meu pai chamava-se Jesuíno... Antônio Leite da Silva, e da minha mãe, Jesuíno Gomes. Só sei disso, das, das minhas avós, eu não sei.
P - E o senhor tem irmãos, seu José?
R - Tenho, tive sete irmãos, né? Tenho cinco vivos, né?
P - E como é que foi a infância do senhor, nessa fazenda, com os irmãos?
R - Eh ... foi a peor possível vai, porque eu vim calçar o meu primeiro sapato eu tinha dez anos. De chinelinho no pé, aquela pobreza como tem em Pernambuco, todo mundo sabe disso, né? E fiquei, até uns dez, 11 anos, depois que eu fui aprender essa profissão.
P - Certo, mas o senhor brincava com os seus irmãos na fazenda?
R - Brincava, brinquedo de criança de roça: um estilingue, um negócio, essas coisinhas assim, rios, tomar banho em rios, né?, em lagos.
P - Como era a casa do senhor?
R - Casa de barro, né? De pau-a-pique com barro, que usa muito lá, né? Em vez de madeira eles fazem, formam uma casa de pau-a-pique, depois tapa com barro. Eu nasci e me criei até esses dez, 12 anos, aí.
P - Quem construiu essa casa?
R - Foi meu pai, para casar, né? Que o sítio tinha herdado da mãe dele, né, e do pai.
P - Certo. E o senhor ajudava o seu pai na fazenda?
R - Ajudava, trabalhei na roça.
P - O que o senhor...
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Entrevistado por Cláudia Leonor e Ana Paula Soares
Estúdio da Oficina Cultural Oswald de Andrade
São Paulo, 27 de outubro de 1994
Transcrita por Teresa Furtado
P - Bom, eu queria que o senhor falasse o nome completo do senhor.
R - José Leite da Silva.
P - O local de nascimento e a data de nascimento.
R - Eu nasci num sítio chamado Umburana, Correntes, estado de Pernambuco.
P - Certo e o nome dos pais do senhor, local de nascimento deles.
R - Antônio Leite da Silva, nascido no mesmo local que eu, e Ambrosina Maria da Conceição, nascida em Paraíba, eu não sei onde, na Paraíba.
P - Certo. E o nome dos avós do senhor, o senhor lembra?
R - Eu sei que o pai do meu pai chamava-se Jesuíno... Antônio Leite da Silva, e da minha mãe, Jesuíno Gomes. Só sei disso, das, das minhas avós, eu não sei.
P - E o senhor tem irmãos, seu José?
R - Tenho, tive sete irmãos, né? Tenho cinco vivos, né?
P - E como é que foi a infância do senhor, nessa fazenda, com os irmãos?
R - Eh ... foi a peor possível vai, porque eu vim calçar o meu primeiro sapato eu tinha dez anos. De chinelinho no pé, aquela pobreza como tem em Pernambuco, todo mundo sabe disso, né? E fiquei, até uns dez, 11 anos, depois que eu fui aprender essa profissão.
P - Certo, mas o senhor brincava com os seus irmãos na fazenda?
R - Brincava, brinquedo de criança de roça: um estilingue, um negócio, essas coisinhas assim, rios, tomar banho em rios, né?, em lagos.
P - Como era a casa do senhor?
R - Casa de barro, né? De pau-a-pique com barro, que usa muito lá, né? Em vez de madeira eles fazem, formam uma casa de pau-a-pique, depois tapa com barro. Eu nasci e me criei até esses dez, 12 anos, aí.
P - Quem construiu essa casa?
R - Foi meu pai, para casar, né? Que o sítio tinha herdado da mãe dele, né, e do pai.
P - Certo. E o senhor ajudava o seu pai na fazenda?
R - Ajudava, trabalhei na roça.
P - O que o senhor fazia?
R - Carpia, né? A gente plantava feijão, milho, algodão, essas coisas de roça, mesmo, né?
P - E como o senhor descreveria seu pai, sua mãe, como eles eram? O que eles faziam?
R - Era um casal normal, de sítio. Uma gente simples. Meu pai era mais, tinha curso primário já, a minha mãe já era analfabeta, coitada! Mas o meu pai tinha o curso primário, gostava de negociar, tinha às vezes uma banca na feira, quando ele podia, saía da roça e ia na feira, um pouco, na cidade, né, que era sempre próxima a cidadezinhas, né? E foi assim, a minha vida.
P - E nessa época o senhor estudou?
R - Eu fiquei no curso primário lá na roça mesmo, lá na escola rural que chama, né, escola rural, lá, eu fiquei uns cinco anos lá, era cinco anos. Eu aprendi tudo o que aquela escola podia ensinar, eu aprendi.
P - E como era a escola, no geral?
R - Simples, professor simples, uns banquinhos de madeira, uma casa de barro também assim, professor simples tudo, muito simples.
P - Era uma única turma, como era?
R - Era uma turma só. Agora, primeiro ano, era uma turma, o outro, outra. Porque era um professor só, até de meio dia de manhã até meio-dia era uma turma, de meio-dia até tarde era outra, mais adiantada, e assim ficava.
P - Certo, e o senhor morou nessa fazenda até os dez anos?
R - Nessa fazenda eu morei até uns 12 anos, por aí. Depois que eu saí para a cidade para aprender a profissão.
P - E o que é que levou o senhor a sair da fazenda?
R - Porque eu tinha outro ideal, né? Eu gostaria de crescer, de arrumar, de ir pra cidade. Eu ia na cidade, ia na igreja, na cidade, quando fiz primeira comunhão, fiz tudo isso, né? Quando era garoto, minha mãe levava a gente, andava a pé umas duas léguas, como chamava lá, e ia na cidadezinha que não era muito longe, não. Então fiz primeira comunhão nessas alturas, comecei a conhecer a cidade, alguém lá me levou, um primo meu me levou, me botou numa alfaiataria como eu falei, em Jacobina, lá, né? E aí estou aqui.
P - E foi o primo do senhor que, que levou o senhor até a alfaiataria?
R - É, é, que ele já tinha ido antes, né? Acabou me encaminhando.
P - E o que o senhor fazia na alfaiataria, em Jacobina?
R - Era aprendiz de alfaiate, mas já ganhava um dinheirinho, naquela época eles pagavam um dinheirinho para a gente.
P - E o que fazia o aprendiz de alfaiate?
R - Aprendiz de alfaiate chuleava calça, fazia barra de calça e às vezes acolchoava paletó, que acolchoava na máquina, né? Fazia uma porção dessas coisas aí.
P - E como era a alfaiataria, assim?
R - Era um salão grande com várias máquinas, umas oito máquinas, cheia de oficiais de alfaiate trabalhando, né, inclusive eu.
P - Tinha algum lugar da alfaiataria que o senhor gostava mais de ficar?
R - Eu até dormia na alfaiataria!
P - É mesmo! Por quê?
R - Eu dormia nessa alfaiataria, numa rede que lá, aquela época usava muito, agora não sei, né? Esses pessoais da roça, a maioria dormia em rede, né? Vê que tem muitas pessoas vendendo rede por aí, nordestinos, todos nordestinos, vendendo rede, não sei porque, né?
P - Certo. E o senhor trabalhou na alfaiataria até quando?
R - Até mil novecentos e ... quando eu fui pegar, eu falei para você
P - Quarenta e pouco, né?
R - É.
P - 43, por aí.
R - Não, 43 eu fiquei em Garanhuns, até 43 eu fiquei em Garanhuns, até 41 eu fiquei nessa alfaiataria. Depois, de 41 a 43 eu fui para Garanhuns, né.
P - Que é outra cidade?
R - É a cidade melhor!
P - Por que o senhor mudou de cidade?
R - Pra melhorar, né? Eu sempre gostei de melhorar, né, de estar melhorando, né?
P - Mas mudava a família toda ou o senhor veio sozinho?
R - Não, eu sozinho. Isso morava em pensão, morei muito em pensão, né? E cuidando de mim e ainda ajudando a família, mandando um dinheirinho, de vez em quando eu ia visitá-los aquela vida de... vocês sabem muito bem como era!
P - Como era a cidade de Garanhuns nessa época?
R - Era a capital da região. Tinha tudo que tinha aqui quando eu cheguei. Eu já conhecia tudo o que tinha aqui, cafezinho, esses cafezinhos de bar que lá na minha terra, né, em Correntes não tinha, muita gente, ônibus indo para Recife a toda hora, chegando e saindo. Então isso já era uma capital da zona, e ainda acho que até hoje é. Eu não fui mais lá, não sei, mas eu acho que é um lugar bom, lá. Deve ter melhorado, até, né? Que todos os lugares do mundo melhorou, lá deve ter melhorado, né?
P - E aí o senhor foi fazer o que em Garanhuns? O que o senhor fazia?
R - Trabalhava de oficial de alfaiate. Aí já era um meio-oficial de alfaiate.
P - O que mudou de aprendiz pra oficial, meio-ofical?
R - Ganhava mais. Já podia me vestir melhor, né, então melhorou, já ganhava um pouco mais de dinheiro, já aprendi mais com o alfaiate, era melhor. Mudando de uma cidade para outra, as coisas sempre são mais adiantadas, né?
P - O que o senhor aprendeu, assim?
R - Aprendi a fazer paletó direito, que eu não sabia, né? Aprendi cortar, aprendi cortar ainda moço! Aprendi cortar tudo! Tinha um colega meu, lá, que sabia cortar tudo e me ensinou a cortar todas as coisas de alfaiataria: calça, camisa, cueca, que naquela época todo o mundo vestia isso tudo! Paletó, blazer, colete, que muitos alfaiates ainda hoje nem sabe cortar um colete.
P - O que é, tem alguma coisa que é mais difícil cortar?
R - O mais difícil é uma casaca, né? E um fraque.
P - Por quê?
R - Porque é cheio de recortes, cheio de detalhes, né. É muito difícil. Ultimamente é uma peça rara, porque poucos alfaiates faz e muita gente nem faz mais. Tem muitos aluguéis de roupa que as pessoas vão casar, por exemplo, aluga tudo, até as madrinhas aluga os vestidos para ficarem todas no altar! Iguais, né? Meio-fraque, fraque.
P - E tem algum tipo de roupa que fazia mais nessa época?
R - Era sempre paletó, calça e colete. Naquela época os homens se vestiam muito bem, né? Não existia roupa jeans. Dificilmente uma pessoa vestia como o moço está vestido aí, era sempre, você via ele mesmo nessa atividade que ele está aí, ele estaria de paletó e gravata. Ele poderia tirar o paletó, porque estava calor, pra trabalhar, mas punha de lado, né?
P - E o senhor trabalhou lá quanto tempo mais ou menos, o senhor lembra?
R - Isso foi uns dois anos, né? Eu mais ou menos falei isso na entrevista antes. Até 43. Aí em 43 eu vim para Pirajuí, já era pouco melhor. Mas lá eu já fazia muita roupa de brim, de linho, em Pirajuí já era de casemira, já tive que ter outro aprendizado
P - Ah, tá. E por que o senhor saiu lá de Pernambuco e veio para o Estado de São Paulo?
R - Justamente pra melhorar de vida! Eu saí da roça porque não queria ser roceiro. Eu sempre admirava as pessoas andar bem vestidas na cidade, que eu ia na cidadezinha lá, via aquelas pessoas de gravata, bem arrumadas, unhas polidas, cabelo bem cortadinho. E eu ficava com vontade! Eu sempre fui uma pessoa, não tenho nada, hoje, não tenho recursos quase nenhum, mas sempre fui ambicioso, sempre andei bem arrumadinho! Quando eu fui para Garanhuns, já tinha meus dois, três terninhos, sapato engraxado, gravata, andava trabalhando sempre bonitinho, assim até hoje. Estou mais velho, claro! (risos)
P - E aí em Pirajuí o senhor teve que aprender outras coisas diferentes?
R - Aprendi mais a fazer roupa de casimira, que já é mais diferente o aprendizado, melhor, mais aprimorado, né? Então aprendi a fazer paletó de casimira, fiquei lá um ano e tanto com José Lazarini, como falei com ela, e de lá eu vim para o Abraão. Aí eu já sabia um pouco mais, já ganhava um pouco mais, fui registrado a primeira vez como comerciário, tirei uma carteira de trabalho, carteira profissional, chamava naquela época.
P - O senhor já era oficial?
R - Já era oficial, e ajudava a ele às vezes a atender algumas, às vezes, a loja, o Abraão, lá, que tinha loja de roupa feita, né?
P - É, e isso era aqui em São Paulo, já?
R - Aqui em São Paulo!
P - E como era a clientela naquela época?
R - Era clientela assim como acabei de falar! Tudo comprava terno, comprava gravata, e comprava camisa. Todo o mocinho tinha que ter um terno e uma gravata pra sair no fim de semana para ir dançar, entendeu? Não podia estar sem isso! Para entrar no cinema tinha que ter gravata, muitas vezes o cara ia sem a gravata o colega jogava a gravata por cima da portaria pra ele, pra poder entrar, chegar lá. Quantas vezes eu fiz isso!
P - É mesmo?
R - Assim, emprestar a minha, porque eu sempre andava assim, né? Então era uma coisa diferente. São Paulo, por exemplo, se vestia muito melhor! Tem um exemplo agora, a novela Éramos Seis. Era igualzinho aquilo lá! Aquilo lá é a cópia de 32. Tudo o que passa naquela novela eu vi aquilo ali. Todo o mundo andando, as mulheres bem vestidas, porque hoje andam... Aquela novela é um exemplo de ... Dá nas outras novelas assim em estética dos homens dos meninos, as mulheres, todas bem vestidas, todas falando direitinho, às vezes a gente vê uma mulher na cozinha, lá. Dali um pouco ela sai que parece uma princesa, né? (risos)
P - Diferente, né?
R - Era uma época boa! Vivia-se com pouco dinheiro, né?
P - Certo! E deixa eu perguntar uma coisa pro senhor: como as pessoas levavam, escolhiam os tecidos?
R - Tinha muitas casas de tecidos, várias. E tinha também, por exemplo, no interior tinha os vendedor, né, chamava os caixeiro viajante. Eles iam com as amostras, depois mandava. Toda a alfaiataria tinha um estoque, né?
P - Era a alfaiataria que tinha o estoque?
R - Tinha o estoque. E tinha umas lojas, também. Agora, tecidos de roupa, mulher, tecido de algodão, de chita, de essas coisas, voil, tudo estampado, tinha lojas e mais lojas, muito mais que na Vinte e Cinco de Março. Toda a cidade tinha cinco, seis lojas, vendendo tecido por metro, para todo o mundo da roça, de tudo. Toda a casa quase tinha uma máquina de costura. Naquela época a Singer veio para o Brasil e a Pffaf vendeu máquina para todo o mundo, no Brasil inteiro! Todo mundo tinha uma máquina, máquina velha que eu tenho lá, eu já comprei ela velha e já faz 30 anos que eu tenho!
P - A da Pffaf, né?
R - A Singer.
P - Ah, tá!
P - E quando a pessoa levava o terno, o colete, como o senhor embrulhava, tinha algum tipo de embalagem especial?
R - Era sempre em papel. Naquela época não, os alfaiates, por exemplo, depois, quando eu trabalhava de alfaiate, tinha um boy, né? Punha num cabide, punha uma capa e levava. Chegava lá e entregava para a pessoa. Hoje isso não mudou muito, hoje continua assim. Mudou as capas melhores, as pessoas exigem mais, né?
P - Mas antes era no papel, a capa era de papel?
R - Embrulhava no papel, né? Embrulhava no papel, punha no cabide grande assim, com durex.
P - E vocês faziam algum tipo de propaganda tinha algum tipo de ...
R - Não, não tinha. Infelizmente nem tinha. Naquela época não, não existia roupa feita, a pessoa era obrigada a ir procurar quem fizesse.
P - E aí o senhor trabalhou nessa alfaiataria até quando mais ou menos?
R - Qual alfaiataria? A do Burani?
P - A do Abraão.
R - A do Abraão eu fiquei, a do Abrão eu fiquei um ano e meio, lá, como eu falei pra ela. Depois eu vim para o Burani. Aí eu fiquei 14 anos nesse Burani. Aí no Burani nós fazia roupa para todo o mundo, a maioria das pessoas de São Paulo por aqui a gente fazia: fraque, casaca, smoking - fizemos muito - , beca, para as pessoas se formarem. Essa família Chofi a gente vestia eles todos, o pai do Maluf, fizemos roupa para o pai do Maluf. Muita gente boa aí que já morreram e outros estão vivos por aí. Hageb Chofi, a família dele inteirinha a gente vestia eles, né? O velhinho, lá, sempre batia um papo comigo. Ele morava na Paulista, vinha de bonde, descia na Praça João Almeida e ia a pé. Diz que era para andar, né? (riso)
R - Um cara milionário, Vinte e Cinco de Março é quase toda deles.
P - Deixa eu perguntar para o senhor, era ali no centro, não era?
R - Isso, era na Rua Boavista, depois na Arthur de Godói e depois na Santa Ifigênia.
P - E como era São Paulo nessa época?
R - Era prédios pequenos eu vi, eu vi fazerem a Avenida Rio Branco né? Rio Branco? Aquela que sai dali do centro, né, que vai lá pra cima, é a Rio Branco, não é? É Avenida Rio Branco. Eu vi derrubarem todas aquelas casas velhas e fazerem. Aquilo chamava Avenida Campos Elísios, por causa do Palácio do Governo que era lá em cima, era estreitinha, derrubaram tudo, eu vi derrubarem tudo. Vi derrubar aquilo. Vi fazer o prédio da Polícia Federal, vi fazer o prédio Caracú, que ali era um estacionamento. O meu patrão, aquela época que estava na Rua Arthur Godói número 20, ele guardava o carro lá. Eu vi tudo esses negócios por aí. Então esses prédios, a maioria desses prédios do centro eu vi fazer! Quando eu estava na ... quando eu mudei em 61 pra, pra Dom José de Barros, já estava por minha conta, eu vim tinha um cinema ali chamado Ópera, parece que era Ópera, alguém aí deve de saber, né? Onde tem a galeria do centro, na Arthur de Godói, na Dom José de Barros, que sai para a Vinte e Quatro de Maio, aquela galeria grande, aquilo era um cinema, né, um prédio pequeno. Derrubaram tudo aquilo, fizeram aquele enorme prédio, eu vi, eu estava, já estava ali. Isso foi em 62, que eles fizeram aquilo. E vários outros, né?
P - Certo, senhor abriu a galeria, já o senhor abriu a alfaiataria na galeria?
R - Não. Na Dom José de Barros, 278, no primeiro andar - ela já tomou nota.
P - E o senhor ficou quanto tempo lá, como era a alfaiataria lá?
R - Lá eu aluguei um conjunto. Era um apartamento que as pessoas passaram pra comércio, né? Tinha duas salas e tinha a cozinha que eu fiz a oficina e um banheiro. E era no primeiro andar virado para a rua. Os homens passavam na porta, passava taxi, um barulho danado ali.
P - E o senhor ficou quanto tempo lá, nesse lugar?
R - Eu fiquei na Dom José de Barros uns sete anos.
P - E depois o senhor mudou ...
R - Aí tinha uns prédios velhos onde tem a galeria, onde estou hoje, derrubaram, fizeram aquela galeria e eu estava lá, né? Aí, depois de um ano que a galeria estava inaugurada, eu mudei para a galeria, loja 20-21, como eu falei para ela, né. No térreo.
P - E por que o senhor resolveu ir para uma galeria e não continuar na rua?
R - Porque o prédio lá era de herdeiros, e começaram a me prensar, né? Eu pagava aluguel e sempre eu vi isso, né? Me prensava, não sei o que, ia aumentar muito o aluguel, e a galeria era nova, bonitinha, era loja embaixo, não era, porque o prédio tinha que fechava tal hora, e a galeria ficava aberta até às dez, aquela época, né? Então mudei para lá.
P - E como era a galeria naquela época, que tipo de lojas que tinha?
R - Tinha lojnhas de tudo, inclusive um monte de inferninhos, né? Era na época dos inferninhos, tinha tantos inferninhos!
P - O que são inferninhos, seu José Leite?
R - Fala para ela. (risos) Inferninho era esses barzinho hoje que tem. Não tem barzinho? Os cara toca, bebe, os casalzinho namorando agarradinho por aí. E é isso aí! Inferninho era isso! Começou com inferninho, naquela década de 60, chamava isso de inferninho.
P - As galerias começaram mais ou menos quando?
R - Na década de 60. Aquela galeria foi inaugurada acho que em 63, por aí, 64.
P - E antes, como era, antes de ser galeria?
R - Tinha um prédio velho lá que tinha comércio, também, né. Tinha uma casa de chapéus chamada Elite, que ainda existe não sei onde, era a primeira de São Paulo, aquela época. Um judeuzão, e esse judeu tinha uma oficina nesse prédio que eu fui trabalhar, na Dom José, 278, que dava entrada pela Dom José e dava pela Vinte e Quatro de Maio. Por isso que fizeram assim, ó: entra pela Vinte e Quatro e sai pela Dom José, né?
P - E, tirando esses inferninhos, que tipo de loja mais tinha?
R - Tinha um monte de coisa! Bijuteria, barzinho, comestível, como tem até hoje, tinha ourives, alfaiate, inclusive eu, né? Costureira. Aí depois começou a vir camiseiro, oficina de costura de camisa, mulheres alugando para fazer camiseiras, né? Quem faz camisa a maioria é camiseiras, hoje, trabalha para camiseiros, né; então, tem esse detalhe, você vê um camiseiro famoso, tem um monte de mulher lá pra trás, costurando as camisas para ele.
P - E como era a clientela da galeria, assim, que tipo de pessoas iam?
R - Era melhor do que hoje! Era bem melhor! Aquela galeria foi feita essa galeria pra ser uma coisa boa, lojas bonitinhas, requintadas, e depois começou a, não sei porque, começou a deteriorar, hoje tem ponto de ouro, tem torcida do São Paulo, um monte de coisas que não devia ter. A clientela uma época baixou, baixou de nível. Por isso mais que eu deixei de fazer roupa sob medida, faço mais é conserto, porque consertar uma roupa, todo o mundo precisa consertar.(risos) Um zíper que estoura, um rasgo, qualquer coisa, né?
P - Senhor José Leite, e existia alguma preocupação da galeria, do pessoal da galeria, de fazer algum tipo de publicidade, de promoção?
R - Alguns fazia mas eu mesmo não sei como, eu mesmo nunca fiz. Eu dei até idéias pra muita gentes, pra gente fazer, propaganda, publicidade, é as lojas muito pequenas e o tipo de comércio era sempre um tipo de comércio pequeno, sem prosperidade, assim, não tinha crescimento. Hoje tem, tem alguns lá que cresceram, o Augusto camiseiro, hoje, é uma potência, é um dos camiseiros maior de São Paulo e a sede deles é lá, acima do meu andar, no quarto andar. O Augusto camiseiro é famosíssimo!
P - Descreve pra gente como era a alfaiataria que o senhor montou na galeria. Se tinha balcão ...
R - Tinha! Tinha um balcão, tinha espelho, tinha um, um mezanino em cima, né? Que eu botei as máquinas, balcão pra passar roupa, os oficiais trabalhavam lá em cima. E eu ficava embaixo, cortando, atendendo as pessoas e provando. Tinha duas portas, né? Eu fechei no meio, fiz um provador, um reservado, que tinha um estoquezinho para atender o cliente, e num lado eu recebia as pessoas que iam entrar, que era loja embaixo. Recebia, provava, provava no reservado, né? Era uma loja com duas portas e um banheirinho. Sempre um conjunto! Trabalhar em galeria é bom por isso, é um conjunto, né? É como se fosse uma quitinete: tem um banheiro, você aluga uma loja num prédio, aí, é um banheiro coletivo, né, uma sala.
P - Agora, na alfaiataria do senhor, tinha alguma coisa, algum lugar, que o senhor gostava mais de ficar, tinha algum canto preferido?
R - Não tinha porque era muito pequeno, todo o lugar eu estava, né? Eu ficava muito na parte de cima, que às vezes eu também trabalhava, ia pregar manga, tudo, então era na parte de cima. Isso na galeria, né?
P - E nessa época, década de 60 para 70, tinha algum... qual era o tipo de roupa que a pessoa procurava mais?
R - Isso, aquela época de 61, quando eu me estabeleci, estava na moda o "jaquetão caravela", alguém aí deve saber. Os menino não sabe.
P - Jaquetão caravela? Como é que é isso?
R - Num sei quem que inventou um modelo desse, que era uma roupa aberta, assim, né, transpassada e bem aberta, né? Foi quando apareceu o avião caravela, parece, que puseram esse nome, saiu com esse estilo. Era uma roupa bonita, muito trabalhosa para fazer. Então, o charme dos homens chiques daquela época era o jaquetão caravela.
P - Tinha alguma cor que era preferida?
R - Sempre todas as cores! As pessoas que sabem se vestir, têm terno até vermelho! Hoje é que a pessoa tem só um terno, tem que procurar um que possa ir em qualquer lugar, né? Naquela época as pessoas tinha no mínimo uma meia dúzia de roupas. Era um marrom, um azul, um branco, um cinza, um mais escuro, outro mais claro sempre assim! Sapato sempre preto e marrom era o predileto e branco também usava muito, né, sapato de duas cores, marrom e branco, isso também cansei de usar. E camisa e gravata era todo o mundo, punha o terno, punha a camisa e a gravata! Isso, nem tenha dúvida!
P - O que o senhor mais viu, assim, que mudou na moda, de quando o senhor começou a trabalhar?
R - Até agora?
P - Até agora.
R - Até agora mudou pra pior, né? Hoje, as pessoas, você pode ver, você vai ver um casamento, tá tudo o mundo vai igual, aluga tudo, né? A roupa que já foi usada por uma dúzia de gente ou mais até, né?
R - Então, as pessoas aparecem numa fotografia naquele instante, filma, o noivo fica com um cassete, o caso do meu filho e de muitos outros aí que eu conheço, ele fica com aquela lembrança, mas sai dali já põe uma calça jeans, vai embora põe um tênis. Então a coisa mudou! Agora, tem ainda essa gente que usa tudo isso de chique! Tem cara que tem 60 ternos, 100! Eu conheço gente aí, que amigo meu faz roupa, que tem tudo isso. Esses políticos fazem roupa muito sob medida, né? O meu colega, estava comigo até há dois meses atrás, ele fazia roupa para Fleury, pra irmão de Fleury para esses deputados. Agora aí, nessas campanhas, fez pra todo o mundo. Então, essa gente, político, faz muita roupa sob medida. E dificilmente você vê um político que não está bem vestido, né? Pode olhar! Então é isso que sustenta ainda! Eles compram muito blazer, importado e vem mandar reformar, é o meu caso, né? Vem mandar arrumar, apertar, encurtar a manga.
P - É o que o senhor está mais fazendo agora?
R - Fazendo mais é isso, é reforma de roupa.
P - Por quê?
R - Porque uma que eu tô no fim da carreira, né.(risos) Eu já fiz tudo o que tinha que fazer. Isso daí era o mais fácil de fazer e eu não preciso de dispor de capital meu. Hoje a pessoa para fazer uma roupa sob medida, o alfaiate ele, mais ou menos, ele tira do bolso dele uns 100 reais! Pra ele começar a ele pedir o dinheiro para o cliente! Ele já desembolsou 100 reais! É pro calceiro, é pro oficial de paletó, é o aviamento, paga telefone, paga isso, paga aquilo, isso todo o mês vence! E às vezes você vai fazer uma roupa, o cara fica um mês para poder vim buscar! Esse o problema, então uma das coisas foi essa que eu acabei deixando de fazer roupa sob medida; eu faço ainda algumas, né? Colegas, assim, gente que acho que só eu acertei com ele. Tem essas coisas!
P - Seu José Leite, o senhor falou em calceiro, em oficial de paletó, eram coisas específicas que as pessoas faziam? Como é que funciona?
R - Ainda hoje é assim: calceiro é calceiro, oficial de paletó é oficial de paletó! O oficial de paletó alguns trabalha dentro da oficina, e outros trabalha na casa dele e em outros lugar, né? Então o alfaiate corta roupa, tira medida, arruma o cliente, que é o mais difícil. Arruma o cliente, tira medida, corta, linhava, muitos têm um... muitos têm um ajudante lá que linhava, prova, acerta, porque acertar é depois que prova, alfineta tudo direitinho e acerta tudo direitinho pra você saber tudo detalhado, depois disso você aí tem o oficial. Põe o aviamento, tudo direitinho, direitinho e escreve um botão, dois botões, três, manga caseada, isso, aquilo, escreve e dá para o oficial. Então o oficial de paletó traz o paletó montado, pronto! Só que as mangas, sem as mangas. Aí, você tem que ter um mangueiro. Um mangueiro, especialista só em pregar manga. Chama-se mangueiro. Então essa é a função do oficial de paletó. Hoje, qualquer alfaiate está pagando 50 reais para um oficial fazer isso em casa! Entendeu? Tudo, só a mão-de-obra. Leva tudo certinho, até a linha! Isso é uns, tem alfaiates aí que paga até 100 reais. Então é por isso que eu disse para você que precisa muito dinheiro. O alfaiate emprega um quem tem quatro, cinco roupas por semana, tem que dispor de uma boa quantidade de reais, né?
P - Certo, e além do oficial de paletó?
R - Aí tem o calceiro. Faz-se o mesmo processo: corta a calça, põe aviamento, põe linha, põe tudo aí vem o calceiro ou uma calceira, que dá também muitas calceiras, né, aí leva traz a calça pronta, aí a calceira traz a calça pronta. (fim da fita 013/01-A) Aí a calceira traz a calça pronta. Passadinha. Às vezes a gente retoca. Aí a pessoa, quando vem, vem buscar a roupa, experimenta, às vez dá um probleminha, está mais folgado, às vezes a pessoa emagreceu ou engordou. Aí tem que ter um, aí é o buteiro, como eu falei que trabalha de buteiro. Aí o buteiro ajusta aquilo na medida da pessoa.
P - Depois da roupa pronta?
R - Depois de pronta às vezes dá isso! Além do mangueiro, que o mangueiro ganha por mês ou por quantidade. Hoje tão pagando 15 reais pra pessoa pregar uma manga, né, isso pra alfaiates mais modestos, né? Os mais chiques têm mangueiro ganhando um salário.
P - E dentro da alfaiataria, quais são as outras funções, assim?
R - Outras funções é isso mesmo, tem um boy pra entregar, é só isso! Um buteiro, um mangueiro. O mangueiro hoje, como as coisas estão difíceis, o mangueiro hoje serve de buteiro, o mangueiro também faz but, o mangueiro que trabalha na alfaiataria, né?
P - E tem o aprendiz, que é a pessoa que está começando?
R - Hoje nem tem mais isso! Já teve, mas não tem mais! A profissão está acabando! A pessoa que os rapazes hoje que trabalham por exemplo numa loja de roupas feitas, né, muitos se entusiasmam pela roupa, que tem muita procura de roupas, né? Então eles vão no Sesc, acho que é Senai, que tem aqui no Bom Retiro, tem uma que ensina tudo isso, mas a pessoa sai de lá com a teoria, né? Às vezes não sabe nem pregar um botão! Mas ele sabe desenhar, vê você assim, desenha um vestido, desenha uma roupa, ta, ta, ta, beleza! Aí aprende a cortar, vai, risca no paletó corta, ta, ta, e tem que arrumar uma pessoa profissional que saiba fazer e que saiba orientar ele! Tem esses problemas, e a profissão nossa está no fim, assim de profissional por causa disso, né, o profissional vai trabalhar em indústria, então essas indústria contrata essa gente, né? O cara vai como aprendiz de cortador, vai como infestador de roupa, que é a pessoa que põe a roupa no balcão lá infesta ela tudo direitinho, depois tem o cortador, ele vai de infestador, aí passa a cortador. Tem todos esses probleminhas aí. Ele vai trabalhar numa indústria! Às vezes aprende também, eu ouvi falar que agora estão aprendendo também a montar a peça, mas eles vão trabalhar tudo na indústria; ele aprende a colocar um bolso, desse, coloca o bolso bonitinho. Só coloca bolso, o outro só coloca a gola, só a gola! Isso dá muita mulher que faz isso; uma faz a manga, ___________ ; a indústria é assim.
P - Quando o senhor era aprendiz, como eram as relações entre o aprendiz, o alfaiate, o oficial?
R - O aprendiz de alfaiate, aquela época, por exemplo, lá em Pernambuco, usava muita roupa acolchoada à máquina. Aqui é tudo à mão. Agora tem máquina que faz isso, né, mas antigamente era à máquina, para lá, para cá, então acolchoava a roupa. Na máquina de pedal, assim, vram, vram, fazia. Troço gozado, né? E chuleava as calças era tudo à mão, né? Costurando, assim. Amarrava um dedo porque o alfaiate usa o dedal assim, ó, a costureira usa o dedal na ponta do dedo, assim. O alfaiate usa assim, porque a agulhinha do alfaiate é pequenininha, né? A gente usa ele então, amarra-se o dedo, o aprendiz de alfaiate amarra o dedo, põe o dedal, para ele acostumar o dedo aqui, ó.
P - Ah, tá!
R - O fundo da agulha é fica mais ou menos em cima da unha, assim. É uma profissão difícil de aprender! Pra montar uma peça direitinho, fazer um fraque, uma casaca, não é qualquer um! Tem poucos que faz isso.
P - Seria a coisa mais difícil que tem pra fazer?
R - É, a obra de cinta é a mais difícil. Colocar uma seda numa lapela de um smoking muito difícil! Não é qualquer um! O pessoal às vezes tem uma alfaiataria a vida inteira, nunca fez um smoking! Outros nem sabe o que é! Tem muitos alfaiates aí em locais que ele não sabe o que é uma casaca. Não sabe, não sabe diferenciar um fraque de uma casaca, por exemplo, vocês aí, sabem?
P - Eu, não!
R - Qual a diferença de um fraque e de uma casaca? Ele lá deve saber que ele é mais tarimbado.
P - Explica para nós, então, seu José Leite.
R - Vocês quer saber mesmo?
P - Eu quero! (risos)
R - A casaca tem a lapela de seda igual um smoking, só que ela abotoa só até aqui e até aqui é como um colete. Ela não abotoa. E tem aqui e tem o rabo, né, e o fraque é um pingüim, tudo assim, tan, tan, tan, tan, e abotoa aqui. Isso aqui é emendado com o rabo.
P - Certo. E a gente usa, o pessoal usa a casaca pra que ocasiões e o fraque pra que ocasiões?
R - O fraque é mais usado sempre ocasiões de noite, à noite. Tem gente, os políticos, eu vejo muitos políticos aí com fraque duas, três horas da tarde por aí, mas não sei, não sei se eles já é que filmaram à noite, a festa foi à noite mas isso é trajes para a noite, reuniões de noite, à noite, depende da ocasião, né? Os sírios casavam muito com fraque. Por isso que existe esses fraque e esses meios-fraque alugando, justamente é isso! Os Maluf da vida, todos casam com fraque! Você pode ver o casamento de sírio, a igreja está cheia de cara tudo de rabo, assim. Tudo parecendo pingüim. Ele, que trabalha nessa profissão, deve ter visto muito isso.
P - Seu José Leite, e, dependendo da época do ano, tinha algum tipo de roupa que era mais feita que aumentava a clientela?
R - Tinha a época do, do verão, era sempre roupa de linho, tropical e linho, né, que era a roupa que todo o mundo usava, terno e gravata, e no inverno era roupa de lã. Casimira, tinha muita casimira. Casimiras grossas, blazers, esses blazers, peças bem grossas, sobretudo, chapéu, usava muito chapéu, boné, tudo, porque tinha muita garoa. São Paulo, aquela época tinha uma garoa danada, por isso que chamava-se São Paulo da garoa! (riso) Até hoje, falam isso.
P - E deixa eu perguntar uma coisa para o senhor: como que os - isso eu já perguntei - clientes pagavam mais, dinheiro, cheque?
R - Isso sempre houve cheque, né? E houve cheque também de volta também, tipo borracha, né? Pá! Sempre. Alguns com dinheiro, mas os ricos, sempre com cheque, né? Sempre cheque.
P - E cartão de crédito?
R - Cartão de crédito, isso veio depois, né? Cartão de crédito tem alguns, eu já fiz roupa com cartão de crédito, às vez na década de 70, 80, por aí.
P - E deixa eu perguntar uma coisa pro senhor: havia muita diferença entre o preço das lojas e dos alfaiates?
R - Havia! E ainda há até hoje! O alfaiate modesto cobra em média 250 reais, 200, 150 até 250. O alfaiate de elite, ele cobra 500 reais, 800. Entendeu, que era dólar, né?
P - Pra fazer o terno completo?
R - Pra fazer! Só o feitio! Terno dá muito é casimira importada, hoje, né? Essa gente mais chique, tem mania de importar tudo hoje. Então o terno, hoje, é de 1500, 2000 reais. De 1200 pra cima, as pessoas mais, chiques né? O alfaiate mais que quer ter uma clientela média, né, de bancário, de lojista, essas coisas aí, então o alfaiate cobra 300 reais, 250 pelo feitio. Então, o terno sai 800, 700, nessa base.
P - Certo. Deixa eu perguntar uma coisa para o senhor: o senhor continua com estoque de tecido?
R - Não, não, não, não tenho nada disso!
P - Como é que as pessoas já ...
R - Já me procuram mais para fazer conserto de roupa, reforma de roupa.
P - Certo, então. Que tipo de coisa que eles mais levam pra reformar?
R - Trocar zíper.
P - Ah, é?
R - Trocar zíper e calça jeans pra apertar ou encurtar, porque o brasileiro, a maioria é baixinho, né? E eles fazem uma calça pra uma pessoa de um metro e oitenta pra cima, porque senão vai ficar na vitrine! Então sempre corta uns dez centímetros e aperta a boca. Então eu tenho máquina com linha própria para isso, tudo certinho.
P - Hoje é mais a coisa do jeans, mesmo?
R - Jeans, dá muito jeans; jeans e calça de linho social. Os rapazes muitos que trabalham no comércio, por aí, usam muita calça de linho, esses linhos que, não são caras, né? A Vila Romana, por exemplo - estou até fazendo propaganda da Vila, mas (risos) A Vila Romana vende muito isso, no lojão deles, né. E eles mandam fazer a barra. A barra italiana que é essa aqui, chamada italiana porque acho que foi um italiano que inventou, sei lá.
P - Como é a barra italiana?
R - É essa aqui dobrada, não é lisa como a sua. E os rapazes, hoje, manda muito fazer essas bainhas aqui. essas calças grandonas, bag, com pregas, apertar um pouco É isso que eu faço mais.
P - Certo. E o senhor continua com a alfaiataria lá na Galeria? Como é o dia-a-dia do senhor hoje? O senhor vai toda hora lá, como é?
R - Eu tenho mania de levantar cedo, né? Quando é sete horas eu tô chegando na galeria.
P - O senhor já abre?
R - Já abro, vou tomar um café com os meus amigos, que tenho um monte de amigos lá, vão me buscar e tomar cafezinho lá embaixo, a gente vai, bate um papo, aí venho, começo a trabalhar. Quando é uns vinte pra o meio-dia vou almoçar em casa, almoço com minha esposa, no endereço que eu dei para vocês aí, Vila Mariana, é perto, pego o metrô num instantinho, não pago mais nem condução, né, tenho ainda me dão às vezes tem umas moças, diz assim: "O senhor, sente aqui!" (risos) Temos uns privilégios que os moços não têm! Vocês faz força pra chegar lá porque não é fácil! Tem cada tropeço, rapaz! Não é brincadeira! Mas a gente vence, né? Eu digo pros moços que só trouxa morre moço, ninguém acho nasceu para morrer moço, né? Aqueles caras que às vezes está motorista de ônibus é louco para dar uma desdenhada no coroa, na pessoa de idade. E eu digo: "Faz força, que você chega lá! Se continuar assim tu não chega". "Ô, tio, que é isso!" (risos)
P - Seu José Leite, eu queria que o senhor falasse um pouco da galeria hoje, como é que ela está? O senhor disse que tá com uma sala de torcida organizada...
R - É, muita bagunça.
P - O senhor falou para a gente que tem muitas lojas de discos ...
R - Tem.
P - Como é que está isso?
R - A Rua Alta só tem loja de disco. Tem umas pessoas ganhando bem, que loja de disco, hoje, tem uma clientela muito boa, lá. Estão vendendo ponto, o cara que tem, eu mesmo, o rapaz me comprou o meu ponto, lá, que eu estava na Vinte e Oito. Hoje é o gueto. Ali tem um movimento tremendo, camisas e eles são filhos de cearenses com português, são uma gente, tem uma visão tremenda. Os rapazes tão bem. Tem três irmãos lá, eles bota para quebrar. Já tem cinco lojas naquele e apareceu um cara balançando o beiço lá, eles compram.
P - São de discos?
R - Só discos! Disco e tudo o cartucho lá, como chama? Que eu esqueço?
P - O CD?
R - CD! CD muito! Os caras, não sei como que é aquilo lá, sei que tem CD lá que, disco de tudo quanto é espécie.
P - E o senhor vê as pessoas que vão lá comprar? Como que são as pessoas que vão lá comprar?
R - A maioria é mista, né? Crioulada, gueto já é crioulo, né, o nome? Negócio de gente de cor, né, o nome gueto, parece que é isso.
P - Como que eles se vestem?
R - Gueto Record! Então é reunião de crioulo, já me falaram isso né? Então lá vive cheio de gente, agora, dá branco, também, muita gente, muita rapazes. Sábado então vai muito casais namorado, um monte!
P - Mas como eles se vestem?
R - Tudo de jeans e tênis. Camiseta, que eles vendem muita camiseta, eles mandam fazer o nome da mesma música do disco, lá, dos negócios, não sei como é, e sai todo o mundo fantasiado!
P - (risos) Fantasiado!
R - Mas bem vestidos! Bem limpos! Tem porque hoje um disco desses, um CD desses, não está tão barato, não é qualquer um que pode comprar, né?
P - E tem mais alguma outra loja que chama a atenção, que é diferente?
R - Tem a loja que tem mais movimento lá na Rua Alta, lá é, eu falei pra Ana Paula aí, é o amolador de alicate.
P - Ah! É?
R - Esse senhor tá lá há uns 15 anos, numa lojinha lá. Ele amola alicate quase para São Paulo inteiro, né? É afiador de ferramentas, então ele é sobrinho, é descendente do Rei da Tesoura, do Irmãos De Meo que tem as lojas. Os italianos vieram aquela época, os velhões, como imigrantes, montaram umas ferramentarias dessas rude desse jeito e hoje tem Irmãos De Meo que são primos desses que está lá e por aí. Uma, é dessa. Tem muito camiseiro. Tem camisaria, tem o Augusto Camiseiro no quarto andar, tem outros no segundo andar, uns amigos meu lá, também, que nem tem nome, assim, tem o Candinho, lá, que tem uma oficina de camisetas sob medidas. Tem vários outros. E tem um instituto de gravação, não sei se o menino aí conhece, tem uma dupla, o De Carlos & Ademir, tem um dupla, o De Carlos & Ademir e o De Carlos tem um instituto de gravação, grava muita música evangélica, muito, esses baianinhos que querem fazer esses cassetes aí, nem o português direito eles sabem pronunciar, e gravam aquilo lá, e ficam vendendo por aí aqueles radinhos, assim, tem um monte disso. O De Carlos deve estar ganhando um dinheirinho bom!
P - Tem muita coisa evangélica lá, não?
R - Então, evangélico tem. É quase um terço das lojas da galeria é evangélica.
P - Um terço?
R - Quase um terço! Só que aquele pegado a mim tem quatro, né? A biblioteca; tem mais um defronte, mais outros de lado, não sei quantos lá pra baixo, tem livraria internacional, tem livros com setenta e tantas línguas. E tudo isso lá, na minha galeria!
P - E essas coisas evangélicas, que tipo de lojas que eles têm?
R - É lojinha cheia de livros! Cheia de livros evangélicos!
P - E como é que são as pessoas que vão a essas lojas?
R - São todos mais ou menos bem vestidinhos, essa gente já tem um padrão! Essa, essa gente é como antigamente, que o camarada punha um terno pra ir na missa, essa gente quando você vê uma pessoa hoje com terno e gravata na rua, ou ele é advogado, ou crente, ou é alfaiate! (risos) Alfaiate assim, antigo, né? Porque os moços nem usa. São essas três pessoas que usa. Ou então você vai na Rua Boavista, você vê! Um padrão de gente ali da Rua Líbero Badaró pra Rua Boavista, os homens lá são é outro mundo! É a mesma coisa que ir na Paulista! Tem uma confeitaria na Líbero Badaró, não sei se conhecem, antiga, tem mais de cem anos, você quer ver a nata aquela ali, todo o dia às seis horas estão lá tomando chope com as secretárias num ambiente finíssimo! Na Líbero Badaró. Nem sei como é que chama, eu esqueço. Eu sei o nome, mas esqueço. Então, o crente é assim, as mulheres bem vestidas, sempre de saias no meio da perna, de vestidos, né. Os homens também, né, bem vestidinhos. O crente, se veste direitinho.
P - O que o senhor faz atualmente nas suas horas de lazer, o que o senhor gosta de fazer?
R - Como eu disse para ela, eu vou no Clube lá do Ibirapuera, vou andar. Só. Gosto de andar. No domingo eu passeio. Vou em bairros, vou pra lá, vou visitar um irmão meu que tem uma alfaiataria na Vila Maria, vou, às vezes vou visitar outro que tem em Campo Limpo, uma cidadezinha pertinho de Jundiaí, vou na casa de uma irmã minha que mora em Guarulhos. Visito, ando. Gosto de andar! Diz que gente de idade tem que andar, e eu faço isso. Ando muito. Vou visitar feiras de automóveis, lugar que estão vendendo automóveis aos domingos, gosto de ver os automóveis novos, pra ter uma história para contar, né? Está dizendo: "O carro, tal, tal, tal. Eu digo: "Eu já vi". Porque tem gente que não sabe nem o que é, né?
P - Tem alguma coisa que o senhor mais gosta de comprar? O que que o senhor mais gosta de comprar?
R - Você sabe que eu quase não gosto de comprar nada porque quem compra tudo é minha esposa. Minha esposa compra tudo! Agora, roupa, um corte de roupa pra fazer pra mim eu compro, essas coisas, né? Então eu gosto muito de comprar chocolate para minhas netas, né. Passo na Lojas Americanas, compro duas, três caixas de chocolate, elas ficam contentes para chuchu. Lá em casa tem sempre chocolate.
P - Deixa eu perguntar uma coisa para o senhor: o senhor compra roupa feita?
R - Roupa feita eu acho que minha mulher compra, mas eu não compro. Eu compro camisas feita. Eu não compro, mas ela compra. Mas raramente eu compro eu tenho poucas camisas sob medida. Eles me dão muita camisa. Meu filho, é aniversário meu, é dia do pai, é dia de compra, as netas me leva lá tem o guarda-roupa cheio de camisa que eu vou morrer, não vou usá-las, nunca, não vão acabar. Tem época que eu dou, pego duas, três, dou.
P - E assim, o senhor mora com quem atualmente?
R - Minha esposa.
P - Com a esposa? E o senhor tem filhos?
R - Nós somos seis, nós não éramos seis.
P - Nós somos ...
R - Nós somos. Minha família se resume no meu filho, eu, minha mulher. O meu filho César, a minha nora Maria Geni e duas netas, Renata e Marília. Renata de 11 e a Marília de sete. Essa é a minha família. Minhas netas vão muito lá em casa, a minha mulher olha elas quando vem da escola, de meio dia até às cinco da tarde, né; agora deve ser daqui a um pouco a minha mulher vai pegar elas lá no Benjamim Constant e leva lá em casa. Minha nora trabalha, meu filho trabalha e é uma moda que a minha mulher tem de ajudar o filho, né?
P - E o filho do senhor faz o que?
R - Economista. Meu filho é funcionário da Secretaria de Economia Agrícola. E dá aula em faculdade, em duas faculdades, né?
P - O senhor gostaria que ele seguisse, tivesse seguido a profissão do senhor?
R - Não!
P - Não?
R - Não.
P - Por quê?
R - Minha profissão é muito sacrificada! Eu, o alfaiate sofre muito! O alfaiate médio, ele lida com gente mais pobre, como eu sempre lidei. Então leva calote, não paga no dia; e a gente pagando aluguel de loja, aluguel disso, aluguel daquilo outro, então é difícil! Quando a gente vai melhorar a gente está morrendo, né?
P - Como o senhor fazia pra cobrar essas pessoas?
R - Isso por telefone, né?, sempre essas pessoas deixa sempre um telefone, a gente: "_______ ___________. Então, sempre assim, né?
P - Mas aí não tinha muito problema?
R - Levei muitos caninhos, né? Então, para estudar o meu filho, vocês não perguntaram isso. É uma luta! Uma pessoa de classe média baixa como eu, né, e gostando de viver razoavelmente bem, né, fazer um filho doutor, não é fácil! Sem ele trabalhar, ele veio trabalhar, ele já estava na USP, quando ele veio trabalhar, o primeiro emprego dele. Então ele entrou na Secretaria da Cultura, pra ele ganhar algum, né? Estudava até meio dia, até 11 horas, e comia por lá e ficava à tarde trabalhando! Então foi assim que estudou. Graças a Deus ele entrou na USP, até hoje tem gente que acha que ele entrou na USP porque eu arrumei um padrinho, que na USP não tem padrinho!
P - Não tem mesmo.
R - Você deve saber, né? A pessoa que disser para mim que na USP tem padrinho eu digo que é mentira na hora! Isso não existe! Meu filho é cobra criada na USP, porque ele trabalhava lá e ele fez quatro anos de Economia lá, depois fez pós-graduado lá, depois fez mestrado lá, fez doutorado lá, e acabou acho que o ano passado, o doutorado. Então é cobra criada! E nós temos vizinhas nossas que são secretárias da reitoria; o irmão dela mesmo tentou entrar, tentou, tentou e não entrou! Eu falei: "Lá, só se matar um aluno, sobra vaga; depois que está, que passou todo o mundo, só se o aluno morrer, sobra vaga, senão, ninguém solta!" Você deve saber! Dizem que é uma das escolas melhor da América, né, do Sul .
P - Tem alguma pergunta que você quer fazer, Ana Paula? Então a gente está terminando, seu José Leite, eu queria que o senhor me falasse assim: o que é que o senhor gostaria de realizar ainda, que sonho que o senhor tem?
R - Eu tenho, único sonho que eu tenho, por incrível que pareça, né, vocês podem até dar risada de mim, mas é sonho meu, minha mulher não sabe, nem meu filho. Eu quero comprar um jazigo - ou jázigo, não sei como é que chama, acho que é jazigo mesmo - no Cemitério Morumbi. Só isso! É meu sonho. Eu fazendo isso. Eu vou comprar, até o fim do ano eu compro.
P - Certo, e se o senhor fosse mudar ...
R - Sabe por quê?
P - Por quê?
R - Pra deixar meu filho sossegado, porque não é fácil depois que morre um familiar, a pessoa arrumar um lugar para enterrar. E tendo esse negócio, está tudo certinho! Ele vai lá, já tem velório, tem tudo, as gavetas prontinhas e eu gostaria de deixar o meu filho numa boa, se Deus quiser, eu vou deixar! Ele já está, né? Mas vou deixar mais ainda.
P - Certo. E se o senhor fosse mudar alguma coisa na vida do senhor, o que o senhor mudaria?
R - Nada! Nada, eu acho que está muito bom. Até hoje eu nunca penei. Nunca passei necessidade assim de fome. Depois que eu saí da roça, assim, lá você sabe que sítio, sempre tem comida, assim, nativa, né? Arroz, feijão, uma cabra para dar leite, uma vaca, uma coisa, e as crianças não se cuidam bem porque não sabe, né? Os pais da gente não sabe como higienicamente ensinar a pessoa a se cuidar direitinho. Então, de fome ninguém morre na roça, né? E eu depois que vim para a cidade sempre ganhei o suficiente para viver bem, razoavelmente, eu nunca tive ambição de ficar milionário, mas nunca passei necessidade. Sempre tive minha casinha pra morar, com dois anos que eu me casei, já comprei um terreninho, fiz uma casinha modesta, fui melhorando, melhorando, melhorando, hoje estou morando num apartamento razoavelmente bom. Não tenho ninguém em cima de mim já está bom, não tem cobertura porque não tem o solarium, mas não tem ninguém em cima de mim, estou lá em cima! Vendo São Paulo inteirinho, não tá bom? O que é que eu quero mais? Sou eu e minha esposa! Pouco dinheiro a gente vive! Tem um rendimentozinho que dá pra a gente viver, o meu filho não precisa financeiramente de mim e nem eu dele! Isso é muito bom para uma relação pai com filho, vocês sabem muito bem disso!
P - Certo. Então, agora a última pergunta mesmo: o que o senhor achou da gente ter conversado essa hora aqui, ter registrado a sua experiência de vida, de alfaiate?
R - Achei muito bom! Fiquei contentíssimo! Fiquei muito contente! De ter sido lembrado e vocês são umas maravilhas de pessoa, tanto os moços como vocês, me trataram excelentemente bem, estou contente! Valeu, como diz na juventude, né?
P - Tem mais alguma coisa que o senhor quer falar?
R - Não, não, tudo bem, tudo bem, já falei até demais! (risos)
P - Tá o.k., senhor José Leite, a gente agradece muito a ajuda do senhor.
R - Disponha de mim, vocês precisando dos meus serviços lá, já sabe onde é, tem o endereço, eles também, né?
P - Com certeza!
R -É só ir lá que é bem atendido!
P - Muito obrigado! (fim da fita 013/02-A)
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