P/1 – Eu queria começar perguntando o seu nome completo, o local e a data do seu nascimento.
R – Eu sou Pedro Herz, sem t. Vou brincar um pouco agora, porque se tivesse t eu seria rico e famoso, se tivesse o t seria o da locadora hertz, e seria famoso por ser o descobridor das ondas hertzianas, o kilohertz, megahertz, sabe? Então eu seria famoso por aí. Eu sou nascido em São Paulo, em 28 de maio de 1940, na Promater.
P/1 – E qual o nome dos seus pais?
R – Meu pai é Kurt Herz e a minha mãe é Eva Herz, alemães que fugiram do nazismo em 1938 com destino à América Latina e, no último minuto, já eram casados, mas nem conseguiram fugir juntos.
P/1 – Você não viveu isso, mas dessa história de origem da família, o que eles faziam, em que cidade da Alemanha eles viviam? O que ficou de memória da família pra você?
R – Bom, eu não conheci nenhum dos avós, nenhum avô materno e nem paterno. Todos faleceram antes... A minha avó materna faleceu aqui, mas eu não a conheci, foi antes de eu nascer. Do resto eu não conheci ninguém. Só conheci uma tia, um tio, e da parte de pai também só um irmão do meu pai, que fugiu pro Brasil. Eram nove irmãos, todos os demais foram pros Estados Unidos, um apenas foi pra Suíça, que eu conheci.
P/1 – Nenhum deles foi pra campo de concentração, foi morto?
R – Não, eles conseguiram fugir. O meu tio, irmão da minha mãe, foi. Esse foi morto em campo de concentração, mas os demais fugiram, conseguiram fugir.
P/1 – O que a sua família fazia lá? Que cidade eles moravam e qual era a profissão deles?
R – Meu pai é de Krefeld, cidade perto de Colônia, e a minha mãe é berlinense, de Berlim. A minha mãe tinha uma atividade em que ela trabalhava basicamente como voluntária em uma biblioteca, ela não tinha um emprego propriamente dito; meu pai era representante comercial.
P/1 – Você sabe como eles se encontraram, como eles se casaram?
R – Não. Eu acho que foi uma cerimônia muito simples, já numa época difícil assim, sem grande pompa, sem muita história. Casaram na Alemanha.
P/1 – E como foi a história da vinda deles pro Brasil, por que eles escolheram Brasil?
R – A história deles virem pro Brasil veio dessa ligação da minha mãe com a comunidade judaica e um amigo, que depois veio pro Brasil também, chamado Alfred Hirschberg, que é um dos fundadores até da Congregação Israelita Paulista, a CIP. Ele falou pra minha mãe: “Vá pra casa e traga o passaporte, seu e do Kurt”, o meu pai; aí a minha mãe falou: “Mas e a minha mãe?”; “Traga os três passaportes e volte, assim, com a roupa do corpo”. O meu pai e a minha mãe não conseguiram embarcar juntos, a minha mãe e a minha avó embarcaram em um navio e o meu pai em outro.
P/1 – E quem decidiu que era o Brasil?
R – O comandante do navio. Eles não tinham opção, sabe? Embarcaram no primeiro, mesmo sem saber direito pra onde ia. E o engraçado é que eles não puderam ficar no Brasil porque o navio em que a minha mãe veio fez uma escala no Recife, e eles puderam descer, passar um dia, enquanto o navio fazia uma escala técnica lá. Porém, o Getúlio não permitiu que os emigrantes fugindo do nazismo ficassem, então eles tiveram que continuar com o navio pra Argentina. O Brasil rejeitou num primeiro momento, então, depois da Argentina, aí meu pai foi pra Argentina também, em um outro navio, depois eles conseguiram pedir visto, etc. Conseguiram vir pro Brasil.
P/1 – Essa urgência, você sabe se foi depois da crise Taunar(6´00)?
R – Foi, porque foi em 38, foi literalmente no último minuto. Não tinha opção: ou vai ou não vai! Não tinha escolha, foi assim, direto, com a roupa do corpo.
P/1 – E o que eles contam desse momento, então, que chegaram aqui com a roupa do corpo, pra onde eles foram?
R – Aí tem umas coisas engraçadas que a minha mãe estranhou muito, né? Eles conseguiram descer depois de não sei quantos dias de viagem, eu imagino uns 15. Desceram em Recife e ela quase enlouquece (risos), por quê? Primeiro porque ela diz assim: “Nunca vi um tomate desse tamanho”, na realidade não era um tomate, era um caqui, mas ela nunca havia visto um caqui na vida, não tinha na Europa. Imagina! Uma fruta tropical, como ia ter na Europa? E a segunda coisa que realmente quase deu um tilt na cabeça dela foi que no Recife, onde é o porto hoje, o Recife antigo, havia muitos bares, e ela via em todos esses bares, que na realidade uma porta sim, uma não era um bar, e até hoje é assim, e ela via nesses bares a estrela de Davi, que é o símbolo do judaísmo. E o que era essa estrela? Era o símbolo da Antarctica, que já existia, então cerveja Antarctica, guaraná Antarctica... E ela não tinha a menor noção do que era, mas ela foge com a suástica pintada na porta da casa dela e chega depois de duas semanas vendo só água, né, e encontra uma estrela de Davi em uma porta sim, uma não, uma sim, uma não. Foi uma coisa complicada pra cabeça, né? E aí então seguiram pra Argentina, ela precisava de emprego, foi ser operária numa tecelagem.
P/1 – Lá em Buenos Aires?
R – Em Buenos Aires.
P/1 – Ah, eles ficaram lá?
R – Até conseguir os vistos e tal, ficaram, alugaram um quarto numa pensão e a minha mãe entrava às cinco horas da manhã numa tecelagem pra tocar um tear.
P/1 – Ela e a sua avó?
R – E meu pai. Meu pai se juntou depois.
P/1 – E ele começou a fazer o que lá?
R – Sabe que eu não sei direito. Tentava fazer algum trabalho pra ver se ganhava algum dinheirinho. Foi difícil, foi muito difícil.
P/1 – Eles comentavam porque já em Buenos Aires, trabalhando, eles insistiram em vir pra cá?
R – Eu acho que porque muitos conhecidos daquela comunidade que eu falei do Alfred Hirschberg vieram pra cá, com destino a São Paulo, então era mais ou menos: “É onde eu tenho amigos, é pra lá que eu vou”, então foi esse o grande motivo pelo qual a decisão foi: “Nós vamos para São Paulo”.
P/1 – E aí, aqui eles chegaram e foram morar onde?
R – Foram morar com os meus tios...
P/1 – Eles, né? Você ainda não tinha nascido?
R – Não, eu nasci aqui. Eles foram morar com os meus tios em um sobrado na Barão de Capanema, e foi onde eu nasci. Quer dizer, os meus tios, o casal, ele era alfaiate, arrumou uma máquina de costura e começou a fazer ternos, calças, essas coisas assim. Ele começou a trabalhar em casa e meu pai também arrumou uma representação e saiu vendendo.
P/1 – O que ele vendia?
R – Confecção, indústria de confecção.
P/1 – Tecido?
R – Confecção: blusas, camisas da indústria de confecção, não tecidos só, mas produtos acabados.
P/1 – E ela?
R – Ela cuidava dos filhos, meu irmão nasceu em 39, em 40 eu nasço, meu outro irmão nasce três anos depois e todo mundo habitando a mesma casa.
P/1 – Com os tios?
R – Tios que tinham um filho que veio pequeno, minha tia, que era a irmã da minha mãe, e todo mundo morando, todo mundo junto lá (risos).
P/1 – E que lembranças você tem dessa fase?
R – Eu tenho lembranças desde os três anos de idade, eu lembro direitinho do meu quarto, da casa...
P/1 – Como era a casa então?
R – Era um sobrado, basicamente os meus tios ficavam embaixo e nós ficávamos na parte superior, uma cozinha comum, enfim, era tudo muito simples, mas foi pra lá que nós fomos. Depois, quando o meu irmão nasce, a gente muda pra Alameda Lorena, separados já dos meus tios porque não cabia mais uma criança, realmente não dava. Aí meus conseguiram alugar uma casa na Alameda Lorena e foi pra lá que a gente mudou.
P/1 – Você, nessa época, tinha três anos?
R – Três anos.
P/1 – E que língua vocês falavam em casa?
R – Alemão. Eu falo fluentemente alemão, fiz teatro em alemão, tenho a cidadania alemã, meus pais nunca me naturalizaram e, pela lei alemã, filho de alemães são alemães, não importa onde você nasça.
P/1 – Mas eles não perderam a cidadania deles?
R – Não, e não quiseram se naturalizar também porque não tinham vantagem nenhuma. Aliás, o meu pai tinha muito medo de se naturalizar porque teria que, talvez, servir o exército. Ele não queria.
P/1 – E eles falavam alemão, e qual era a presença da vida judaica nesse momento? Eles participavam de alguma coisa?
R – A Congregação Israelita foi fundada por esses judeus alemães, então todo mundo falava alemão...
P/1 – E eles eram praticantes? Iam à sinagoga?
R – Sim, não ortodoxos, nada assim, a Congregação Israelita é bem liberal e era a linha deles e assim foi.
P/1 – Na sua infância isso era presente?
R – Muito. Eu fui escoteiro, fui lobinho, aos oito anos entrei numa associação de escoteiros, a Avanhandava, saí aos 17, fiquei muito tempo lá, foi uma época muito importante da minha vida.
P/1 – Por quê?
R – Ah, porque era muito gostoso, era bom, meninos e meninas num convívio, sabe, era maravilhoso, muita atividade cultural num nível muito bom, excelente, todos se conheciam, tinha o aspecto judaico, claro. Enfim, foi muito rico, eu tenho gratas recordações.
P/1 – Nessa época, então, enquanto o senhor tava na Avanhandava, onde era a escola de vocês?
R – Nada a ver com a Avanhandava. Eu freqüentei o jardim de infância perto de casa, depois fui pro Dante, mas nada a ver com escola judaica, algo assim. Era bem liberal com relação a esse aspecto, mas tinha alguma coisa judaica sim.
P/1 – E da época da escola, do Dante, você tem alguma lembrança específica, alguma professora marcante, o que era...?
R – Não, tinha...Tenho, tenho lembranças sim, de escola, a parte esportiva, futebol, a professora de matemática, enfim, tudo isso, tenho lembranças sim, bastante claras. Até do jardim de infância ainda tenho, que não existe mais, eu tenho lembranças de fatos de quando eu tinha três anos de idade! Do quarto, de quando eu fui operar das amígdalas, com três anos eu tive que operar as amígdalas, eu me lembro de quando nós fomos pro hospital, meus pais pegaram um táxi, abriram a porta traseira, eu entrei por uma porta e saí pela outra (risos), coisas desse gênero. Eu me lembro perfeitamente como se fosse hoje, com muita clareza.
P/1 – O que você lembra deles? Como eram eles pra você, de quem você era mais próximo?
R – Ah, tem muita lembrança! Eram muito presentes, sempre moramos juntos, na verdade eu saí da casa deles pra ir viajar. A minha primeira viagem ao exterior foi aos 17 anos de idade, 16 pra 17, eu fui embora pra Europa.
P/1– Saiu de casa?
R – Saí, mas sai pra ir viajar, não saí brigado, pelo contrário, com total apoio, etc.
P/1 – Mas saiu pra ir pra onde?
R – Fui pra Europa, pra Suíça.
P/1 – Pra?
R – Pra aprender, estudar, enfim, pra viver a vida, entende? Os meus pais sempre foram dessa teoria, e eu concordo plenamente: “Desmamou? Tá na hora de cair fora!”. E foi assim, eu já ganhava um pouquinho de dinheiro fazendo algumas coisas, ajudava um fotógrafo aqui e consegui juntar um dinheirinho. E quando eu viajei eu tinha condições de comprar um veleiro pequenininho na represa, que eu tinha vontade de velejar. Eu falei: “Puxa vida, eu vou comprar o veleiro ou compro uma passagem de navio de terceira classe e vou pra Europa?” (risos). E decidi ir. Era o dinheiro que eu tinha pra comprar a passagem. Aí lá fui eu.
P/1 – E aí você chegou lá, o que aconteceu? Sem dinheiro, sem nada, né?
R – Sem lenço e sem documento, tinha um pouquinho de dinheiro pra pegar o trem e ir pra Basiléia encontrar o meu tio. Lá eu fiquei na casa deles, mas não tinha condição de morar, eles moravam num apartamento muito pequeno. Eu fiquei numa pensão, aí meus pais me ajudaram; eu arrumei um emprego em uma livraria em Basiléia que me admitiu como voluntário, porque legalmente eu não podia trabalhar e ele poderia ou não me dar um dinheiro qualquer. E ele me dava um dinheirinho e com esse dinheirinho eu conseguia pagar a minha pensão.
P/1 – Era muito diferente de tudo que você tinha vivido aqui?
R – Totalmente, completamente diferente. Tudo era diferente.
P/1 – Mas o que te impactou naquele momento?
R – Tudo, essas novidades todas. Imagina se não impacta, né? E a liberdade, morar sozinho aos 17, foi muito importante, sabe? Ser dono do meu nariz, ter que cuidar da minha roupa, contar centavos literalmente, com o que eu ganhava eu tinha que comer... Claro que a minha tia me convidava, ela era médica que não exercia, nascida na Síria. Então frequentemente eu ia almoçar, jantar, mas tudo muito contadinho, sabe? Uma vez por mês, talvez, eu tinha um cinema ou tomar um chope, qualquer coisa parecida. Tudo muito controlado. Às vezes vinha alguém do Brasil e meus pais mandavam cem dólares, assim. Era uma festa danada (risos).
P/1 – E o que fazia no dia-a-dia?
R – Eu trabalhei e passei por todos os setores de uma livraria lá, de carregar caixas à contabilidade. Depois eu tive a oportunidade de estudar lá, tem uma escola de livreiros em Basiléia e eles me propiciaram isso. E como eu falava, falo fluentemente alemão foi muito fácil assistir às aulas, isso foi muito proveitoso pra mim, profissionalmente, e foi muito divertido.
P/1 – Eu queria voltar um pouco, já que você tem essa memória, quando a guerra terminou, com todas as histórias do fim da guerra, isso fez acontecer alguma coisa na sua casa? Vocês falaram disso?
R – Sim, falaram e eu me lembro direitinho dessa condição de estrangeiro, de judeus, alemães, sabe? Porque o Getúlio foi, entre aspas, amigo do Hitler, né? Então havia um certo receio, terminada a guerra em 45, em 47 a minha mãe precisava fazer alguma coisa pra ajudar um pouco o meu pai, porque com o que ele conseguia trazer, era realmente muito apertado, muito apertado pra sustentar a minha mãe, meu irmão e eu. E ele (risos). Ele tinha que comer também. Enfim, aí a minha mãe queria fazer alguma coisa, e ao mesmo tempo tinha a escola, ela falou: “Puxa...”, e aí ela resolve, em 1947, alugar livros para os amigos, quer dizer, os amigos alemães sentiam falta de ler...
P/1 – Aqui não tinha livraria...?
R – Em alemão muito menos! Quer dizer, ninguém lia direito português, entende? A minha mãe conta um episódio que quando ela foi fazer a documentação dela aqui, tudo legal, ela foi na polícia tirar a carteira, na época era uma carteira de estrangeiros chamada modelo 19, e a minha mãe não era uma pessoa muito alta, ela era baixinha e o guichê era um pouco mais alto, aí a pessoa que atendeu ela perguntou: “Estado civil?”, ela falou: “Cansada”, aí o atendente desapareceu do guichê, volta dois minutos depois e traz uma cadeira pra ela, ela pensou: “Bom, se eu não sentar vai ser deselegante”, mas ela sentada o guichê ficava aqui (risos), então ficou uma cena muito engraçada, ela sentada porque o cara trouxe uma cadeira, uma coisa impressionante, né? Gentil pra chuchu. E coisas assim aconteceram: “Estado civil?”, “Cansada”, ela queria falar casada, mas saiu cansada, então eles falavam muito mal o português, com aquele sotaque característico...
P/1 – Então ela alugava livros. Na sua lembrança de casa tinham muitos livros?
R – Começou com dez livros, que uma livraria aqui de São Paulo, que na época importava livros, a Livraria Triangulo...
P/1 – Ficava onde?
R – Na Barão de Itapetininga e o dono era da família Hirschman. Ele se tornou amigo, foi muito gentil também, deu crédito pra minha mãe pagar esses dez livros quando ela pudesse, então ela foi pagando e esses livros passaram a ser alugados para a comunidade alemã. Então esse é o inicio do início da história que ele começa a fazer uma pequena receita pra ajudar em casa.
P/1 – Que livros eram?
R – Os livros eram todos em alemão, eram livros que na época já eram mais bem acabados do que os que haviam aqui. Os livros brasileiros eram só colados, você abria o livro, ele descolava e caíam os cadernos no seu colo. Os alemães já eram encadernados e costurados, então isso permitia que dez, 20 pessoas lessem esse livro.
P/1 – Você sabe que tipo de título eram?
R – Todos best-seller. A minha mãe achava que muito livro ali valia a pena ser lido e não comprado, sabe? Assim como você faz com a vídeo locadora: assiste o filme e devolve, hoje em dia, a mesma idéia! Coisa gostosa de assistir, fim, devolve. Não ocupa espaço em casa. Então esta era a idéia, livro que você quer pro resto da vida você vai lá e compra depois, mas ela achava que era gostoso ler, passar o tempo, pronto, devolve.
P/1 – Eram livros best-sellers da Alemanha?
R – Sim.
P/1 – Tipo o quê, tinha algum autor?
R – Todos coisas de momento, literatura de entretenimento mesmo. Romances.
P/1 – E aí ela começou a alugar pra comunidade alemã judaica?
R – Basicamente pra comunidade judaica, que eram amigos, e outros depois também vieram.
P/1 – Você tem a lembrança de quanto era o aluguel desse livro mais ou menos?
R – Não, o valor eu não lembro.
P/1 – Porque ela começou a fazer uma renda com dez livros, não foi?
R – A partir de dez livros. Quer dizer, bastaram dez pessoas. Cada um alugando um ela ficou sem livro pra alugar. Aí começaram a devolver, ela foi comprando mais livros, foi ampliando a biblioteca circulante. Quando ela terminou a biblioteca circulante, que foi quando nós mudamos pro Conjunto Nacional, precisamente nessa unidade aqui onde nós estamos, nesse local mesmo, isso foi em 69, abril de 69, quando ela se desfez da biblioteca circulante tinham muitos livros, 60 mil, algo assim. Porque girava muito, né? Não ficavam todos lá.
P/1 – E esses livros ficavam aonde? Dentro de casa?
R – Dentro de casa, os livros nos expulsaram muitas vezes, né? Isso tudo começa na Alameda Lorena em 1947, pouco tempo depois faltou espaço, os livros foram tomando espaço, ela foi comprando mais, pagando e comprando mais, e aí chegou um momento que éramos nós ou os livros, sabe? Não tinha mais sala, não tinha mais nada e era um sobrado pequeno, então nós mudamos com a biblioteca, porque uma amiga dela propôs alugar uma loja na Rua Augusta. Era uma loja em formato retangular, que foi imaginariamente dividida em dois retângulos, então ela falou: “Você ocupa o lado de cá, eu ocupo o lado de lá e pronto”. Uma vendia artigos pra presente e a minha mãe com a biblioteca dela. Claro que acabou em briga, né? Uma queria trabalhar, a outra não, e não dava, tinha uma porta só, ou abria tudo ou não abria nada! (risos) E não deu certo essa história, durou pouco tempo, acho que em menos de um ano as duas quase se arrancaram os cabelos. Aí a biblioteca circulante teve que voltar pra dentro de casa, só que não cabia mais na casa onde nós morávamos, na Lorena, aí tivemos que alugar um sobrado na Rua Augusta, um pouco pra cima da Lorena, que nós ocupávamos a parte superior desse sobrado, mas ele era muito comprido, então tinham duas boas salas na frente, dois dormitórios, uma sala no fundo, cozinha e banheiro. E aí fomos pra lá com os livros. E de novo os livros tomando conta...
P/1 – E os livros ficavam embaixo?
R – Não, ficavam nas salas da frente desse sobrado. Tinha uma no fundo que era a sala aonde a gente ficava, a sala de jantar, tudo junto. Então tinham dois dormitórios, uma sala no fundo que virou residência e cozinha e banheiro. Então começou de novo, mais livro, mais livro e mais livro, daqui a pouco tinha livro embaixo da cama da gente (risos)...
P/1 – Me explica uma coisa, ela comprava esses livros, aí nesse momento, em que lugar?
R – Ia nos importadores, eram livros sempre em alemão. Chegou um momento que brasileiros também começaram a freqüentar, e aí ela começou a ter também um pouco de livros brasileiros para alugar, com a mesma idéia.
P/1 – E havia uma regra? Quer dizer, a pessoa alugava o livro, tinha que devolver, não dava tempo...
R – Ela cobrava mais ou menos uma semana, mais ou menos, porque um dia a mais, um dia a menos não tinha a menor importância, não tinha nenhuma penalidade. Ela achava que uma semana era o tempo necessário pra se ler um livro, então ela alugava por semana, tinha uma ficha de cada um, trazia o livro lido e pegava um novo, e pagava por aquela locação. Se ficasse duas semanas, pagaria duas semanas, mas nove dias não tinha nada a pagar.
P/1 – E ela fazia a gestão de todo o negócio?
R – Tudo. E o meu pai continuando com as representações dele.
P/1 – Ele não fez uma loja, nada?
R – Não, ele continuou sendo representante comercial, nada a ver com a atividade. Ele voltava pra casa na hora do almoço pra ficar lá olhando um pouco as coisas enquanto a minha mãe preparava o almoço, qualquer coisa. Aí cada um ia almoçar quando desse, assim, iam eles, depois os filhos, um de cada vez, enfim...
P/1 – Olhando os livros?
R – Ajudando a olhar, tomar conta, pra se alguém viesse...
P/1 – A porta ficava sempre aberta?
R – A porta de entrada pra sala sim, aí era um corredor muito grande que levava pro resto da casa.
P/1 – E vocês, que função tinham? Como era a convivência com os livros?
R – Até dormi em cima de livro, tava cheio de livro embaixo da minha cama (risos), mas nesse momento nada, nenhuma, não tinha escola, nada disso. Nenhuma atividade com livros, apenas nascemos no meio de livros.
P/1 – Mas você liam muito?
R – Não, eu não lia naquela época em alemão porque eu não sabia ler, mas líamos na escola, essas coisas assim, nós estávamos muito familiarizados com o livro, né? Muito! Eu me lembro dos donos da Melhoramentos, que era a família Weiszflog, onde depois eu trabalhei, eram clientes, alugavam livros em alemão, da minha mãe, e não eram judeus.
P/1 – Não eram judeus?
R – Não, depois muitos não-judeus vieram, brasileiros, etc. E aí, estimulada por essas pessoas que alugavam os livros: “Ah, eu li esse livro, adorei, amanhã é aniversário da minha avó, ela com certeza adoraria ganhar esse livro. Por que você não vende livro?”, falavam pra ela. E todo mundo falava: “Ah, você podia vender os livros!”, e ela: “Então, tá bom!”. Pegou uma estantezinha lá e botou alguns livros à venda. Aí nasce a livraria, porque até então era uma biblioteca circulante, apenas isso.
P/1 – Isso foi em que época, que ano?
R – Foi em 53 mais ou menos...
P/1 – Praticamente seis anos depois.
R – Cinco, seis anos depois. Então os próprios leitores que gostavam muito de um livro, queriam presentear alguém com esse livro, e aí ela começou a vender alguns livros, mas muito pouco.
P/1 – E aí, como foi evoluindo esse negócio?
P/1 – O caminho natural de quem gosta de livros, né? Vai crescendo a estante, vai esticando a estante, se desse para fazer de borracha faria de borracha, pra esticar (risos). E isso foi indo até que a biblioteca circulante deixou de ser interessante, porque ela tinha um exemplar de um livro pra alugar, aí um livro lá fazia um sucesso danado e a pessoa: “Eu quero ler tal livro”, aí ela olhava na lista: “Você é o octogésimo sétimo da lista, você vai ter que esperar 87 semanas, se tudo der certo, pra ler esse livro”, (risos). Oitenta e sete semanas são quase dois anos! Aí desanimou um pouco as pessoas, porque elas querem ler na hora, que nem quando você vai buscar um filme, você não quer ficar numa fila. E também não valia a pena ela comprar um segundo exemplar daquele livro pra ter mais um pra alugar, porque ele se pagava ao longo do tempo, quando x pessoas tinham lido esse livro, né? A parcela que se pagava pra ler, até pagar o livro e dar algum lucro, sobrar alguma coisa, ia tempo, né? Então não compensou. E por causa dos livros nacionais, que eu já mencionei, os livros não eram muito bem acabados, então se duas pessoa liam o livro ela já tinha que mandar encadernar, porque o livro desmontava, então não dava mais.
P/1 – E tinham encadernadores na época?
R – Tinha, tinha. Isso sim! Era até um trabalho artesanal, não era nada luxuoso, mas tinha que juntar aqueles cadernos. E aí começou a ficar caro, né? Ela teria que cobrar um valor que já não era mais tão interessante para os leitores, aí então ela resolveu extinguir a biblioteca circulante e ficar apenas com a livraria.
P/1 – Isso ainda na Augusta?
R – Isso sempre na Augusta, sempre na Augusta.
P/1 – E quando, então, ela decide vir pra cá, ela que decide?
R – Ela que decide vir pra cá, ela visualizou aqui, a Avenida Paulista, achou que essa seria uma rua que teria um futuro, que ia crescer muito. E vagou aqui, construíram isso aqui no inicio da década de 50, eu acho que nós viemos pra cá em 69, abrimos aqui em abril de 69, então já era um prédio, tinha um bom nome, etc. E vagou essa loja, exatamente esta aqui. Aí teve aquela discussão em casa: “Mas será que a gente agüenta pagar tudo isso? O condomínio e tudo isso que tem que pagar.”, e aí a gente decidiu ir em frente, nos enchemos de coragem e viemos pra cá.
P/1 – Praticamente 20 anos depois?
R – Sim, 18 anos depois.
P/1 – Eu queria voltar só um instante na sua trajetória: você foi pra Suíça, fez o curso de livreiro, então na sua cabeça isso já era uma decisão?
R – Passava pela minha cabeça, mas aí eu volto e... Terminei o curso lá fora.
P/1 – Você já tinha terminado a escola nesse momento?
R – Já, aí eu fui trabalhar na Melhoramentos, depois saí da Melhoramentos, fui trabalhar numa indústria química, não gostei, fui trabalhar na Abril, fui funcionário da Editora Abril.
P/1 – Fazendo que tipo de coisa?
R – Pesquisa pra Quatro Rodas, pro Guia Quatro Rodas. Eu fiquei anos fazendo pesquisa, eu viajava o país inteiro pesquisando, verificando, me hospedando, comendo, experimentado. Eu fazia tudo no Guia Quatro Rodas, pegava o carro, saía daqui e ia até Belém do Pará, já fui até lá de carro em estrada de terra. De alguma forma no mercado editorial, sempre.
P/1 – Na Melhoramentos era o quê?
R – Eles tinham uma loja na Rua Augusta, eu trabalhava meio período como vendedor na loja. Depois fecharam, mas era quase em frente de casa, era muito bom.
P/1 – Quer dizer, mesmo nessa época em que ela já tinha todo esse negócio não havia a idéia de você trabalhar com ela?
R – Só quando viemos pra cá.
P/1 – Antes não?
R – Antes não, nunca, porque...
P/1 – Ela tava sempre sozinha?
R – Não, ela tinha uma funcionária que ajudava ela sempre.
P/1 – E por que não vocês, os filhos?
R – Porque não cabia dentro da disponibilidade de tempo, tinha a escola, tinha tudo mais, então não dava. Aqui foi uma questão mais ou menos de dinheiro mesmo, sabe? Se não tiver dinheiro não tem salário (risos), uma coisa assim, então... Tinha um medo, sabe? Não tinha uma coisa de fazer um plano de negócio, era fazer mais ou menos uma contas, de uma maneira muito simples, e: “Se faltar dinheiro eu tenho onde dormir, pão eu vou encontrar”, e foi realmente saindo do zero.
P/1 – E nesse momento ela veio e quem mais veio trabalhar aqui?
R – Viemos aquela funcionária e eu.
P/1 – Seu irmão?
R – Não, o meu irmão não veio. Naquela época não. Ele veio depois porque ele casou-se e foi morar no interior, aí separou-se e veio pra cá. Ele tentou trabalhar aqui, não deu muito certo, nós brigamos, todo mundo brigou, enfim, não deu muito certo, aí ele foi fazer outra coisa.
P/1 – Ficou, então, você com ela, e como foi essa chegada na Paulista?
R – Foi bacana, porque essa funcionária, na realidade, era uma negra muito bonita, inteligentíssima e que era empregada doméstica em casa, mas como ela era muito inteligente a minha mãe falou: “Venha cá, você não vai ser mais empregada, você vai trabalhar comigo aqui na biblioteca”. E ela começou, mas ela tinha pouca escolaridade, muito pouca escolaridade, ela chamava-se Nair. E começou a ler, ler tudo, era impressionante, as pessoas ficavam encantadas com ela. Ela discutia Camus com você, sabe? Mito de Sísifo. As pessoas ficavam encantadas! Ela realmente lia, e ela natural de Minas, chagásica, deu muito susto na gente, muito susto! Ela chegou a vir pra cá e a gente tinha os comprimidos que tinha que por embaixo da língua porque, não sei se você sabe, mas os chagásicos têm uma dilatação do coração, é uma coisa complicada, não tem cura, acho que não tem cura até hoje, então com ela nós viemos pra cá, ela passou a exercer uma função de compra, como ela era muito interessada, culta e inteligente, ela começou a fazer as compras.
P/1 – Ela decidia o que ia comprar?
R – A Nair decidia, decidia com a orientação da minha mãe.
TROCA DE FITA
P/1 – A Nair, então, fazia as compras?
R – A Nair virou quase que uma compradora da empresa, imagina, empresa (risos), uma firma de uma pessoa ou duas. Mas ela fazia compras, sabe, uma self made woman, uma mulher que se fez sozinha...
P/1 – Morava com vocês?
R – Não! Nunca morou, mas depois começou a ter algumas coisas, por exemplo: se ela não gostava de um representante comercial ela não comprava livros dele, discriminava mesmo (risos), aí a gente conversava: “Mas escuta, você não precisa gostar dele, o importante é que ele tem coisas boas, na editora, etc.”, “Não, mas eu não to comprando nada dele”, e aí começou... Eu acho que não tem que misturar as coisas, e acabou que, por problemas de saúde dela também, dela achar que a jornada estava muito longa, e nós também não estávamos muito felizes com essas coisas que ela discriminava, ela acabou saindo e depois veio a falecer. Já faz muito, muito tempo que ela faleceu.
P/1 – Então vamos voltar um pouco nessa época, entender um pouco duas coisas. Primeiro sobre a região: como era a Paulista nesse momento? A gente ta falando de 69, do inicio dos anos 70.
R – Isso.
P/1 – Como era? Quais eram, por exemplo aqui, os principais negócios?
R – Tinha um colégio, o Paes Leme do outro lado, não existia o banco Safra em frente. Claro, os edifícios eram muito menos, mas já era uma avenida movimentada, sem dúvida que sim. Já tinha, aqui mesmo nesse prédio, um trânsito grande de pessoas, nunca foi diferente, né? O prédio era exatamente isso que ta aí. Chegou a ter, aqui no térreo, uma loja aberta de uma empresa que tinha uma loja na República chamada Cássio Muniz, que vendia geladeira, fogão, essa coisas, mas os fogões ficavam espalhados por aí.
P/1 – Na galeria?
R – Na galeria, então a galeria virou uma loja! Tinha fogão, geladeira, máquina disso, daquilo, eletrodomésticos assim, e não demorou muito, fechou. Aqui tinha o cinema, o Cine Astor, que hoje ocupamos, né? Não tinha um grande comércio aqui, mas tinha um público grande, e aí os escritórios começaram a vir pra região, os bancos começaram a aparecer, o próprio metrô tinha sede aqui na Rua Augusta, muito perto daqui.
P/1 – Metrô?
R – O escritório do metrô era aqui, e isso veio a ajudar, era um público muito interessado, então essa aqui que nós estamos rapidamente se encheu de livros, rapidamente. Inicialmente era só embaixo, não tinha esse desenho que tem hoje, tinha um layout completamente diferente, a porta era diferente e tudo mais. Então em 69 nós viemos pra cá, em 72, 73 já tivemos que ocupar um outro espaço aqui dentro, porque aqui não cabia mais.
P/1 – E nessa época quem era o público de vocês?
R – Olha, é muito difícil responder essa pergunta, era um público interessado em culinária, estudantes, era tudo! Todo e qualquer grupo de pessoas que gostavam de alguma coisa.
P/1 – Mas se vendia livros? Era uma atividade boa?
R – Sim, livros e também livros didáticos. Naquela ocasião nós trabalhávamos com livros escolares, que hoje não fazemos mais. Quer dizer, fazemos, mas só sob encomenda.
P/1 – E isso era uma fonte importante?
R – Era porque trazia... O comércio de livros era diferente, era feito através da livraria, e isso mudou ao longo do tempo, o comércio de livros didáticos hoje é feito através das escolas, nas escolas, então a livraria pouco tem a ver com isso. Mas naquela ocasião ainda era feito através da livraria, então as escolas nos davam as listas dos livros que queriam, a gente comprava e a escola dizia: “Olha, lá tem. Na Cultura tem”, então os pais vinham com a lista de livros: “Primeira série e tal”, e pronto, os pais compravam.
P/1 – Isso representava um momento bom, assim, de entrada de receita?
R – Sim, sim. Era uma época em que o faturamento crescia, a época de início de aula que era só em fevereiro, março, depois viravam os semestres, aí vinha agosto e era forte novamente. Era um movimento interessante, às vezes superior ao natal.
P/1 – Isso que eu ia perguntar, que outros momentos marcantes do ano asseguravam uma boa receita?
R – A sazonalidade sempre se fez presente, certo? Páscoa, dia das mães, essa coisa, sempre motiva a se presentear, se dar um livro, enfim, isso sempre houve e continua havendo.
P/1 – E quais eram os concorrentes nesse momento? Existiam outras livrarias?
R – Existiam várias livrarias, existiam livrarias aqui na Augusta, O Mestre Jou que importava livros em espanhol, que não existe mais, a Siciliano...
P/1 – A Siciliano já era uma grande rede?
R – Não era tão grande, mas tinha várias filiais, eles trabalhavam com revistas, nós não, enfim, era um pouco diferente, ela era muito voltada pro best-seller, nós não, nós mantínhamos uma coisa mais focada do que eles. Mas era isso, sempre havia uma livraria ou outra. O próprio José Mindlin, meu querido José Mindlin tinha uma livraria aqui na Paulista.
P/1 – Ah, ele tinha uma livraria?
R – Tinha, ele chegou a ter uma livraria aqui na Paulista. Não durou muito, ele não ficou muito tempo porque ele não gostava muito, mas ele chegou a ter uma livraria sim na Paulista, ali, mais ou menos onde é a Gazeta hoje.
P/1 – Então essa idéia que é muito comum, vamos dizer, dessa dificuldade editorial no Brasil, de venda, de público, não era presente?
R – Não, era diferente, tudo era muito diferente. Hoje o que acontece é que o minuto de todos nós é tão disputado, porque se inventa tudo, toda hora tem uma coisa nova e ninguém expandiu o dia, que continua tendo só 24h. Então, essa pizza de 24 horas é feita de fatias menores, a fatia reduz, reduz, e cada um disputa o tempo da gente pra nos vender um computador, um automóvel, seja lá o que for. Isso claro que afeta. Eu to cheio de livros que eu comprei e não li, certamente acontece com você também; CDs que eu comprei e não ouvi. Pior: eu tenho roupa que eu comprei e não usei (risos). Eu acho que com todos nós acontece isso, sabe: “Tenho uma camisa aqui, pendurada no armário, que eu nunca usei” (risos).
P/1 – (risos) Então nesse momento o negócio foi crescendo, e aí dois, três anos depois vocês abriram uma outra?
R – Precisei abrir aqui dentro.
P/1 – E nesse momento quem era, vamos dizer, o diretor da livraria? Quem cuidava da gestão, era a sua mãe?
R – Eu dividia com a minha mãe.
P/1 – Você dois?
R – É. Mais ou menos isso.
P/1 – E vocês se davam bem?
R – Sim. E o meu pai continuando em outra atividade, vinha aqui todo dia, e com o passar do tempo ele foi diminuindo a atividade dele e aí ele ficava no caixa.
P/1 – Ah, virou um negócio familiar mesmo?
R – Virou. O meu pai foi desistindo da atividade dele, então ele ficava no caixa.
P/1 – E daqui vocês já tiravam todo o dinheiro pra...?
R – Sim. Daqui a gente vivia, disso aqui.
P/1 – E nesse momento o senhor falou que era um perfil diferente da Siciliano. Como foi se definindo o perfil da Cultura?
R – A forma de como a gente encarava o produto, sabe? Como a gente lia, como a gente se relacionava. Era comum um cliente chegar aqui e a gente saber o que ele gostava, a gente dizia assim: “Olha, hoje não tem nada pra você, não tenho nada pra te vender. Não chegou nada do que você gosta, pode ir embora” (risos). Então esta relação, inclusive por conhecer, por saber do que você gosta, saber te recomendar, a gente ganhou a confiança das pessoas e a credibilidade de indicar alguma coisa que estava na vontade de cada um, etc. Então isso nos distinguiu dos demais.
P/1 – E ai vocês foram criando um publico cativo?
R – Com certeza. E de pai pra filho.
P/1 – E aí na segunda loja você abriu um outro tipo de...?
R – Aqui dentro mesmo, por falta de espaço. Não é que abrimos uma filial.
P/1 – Era outro tipo de livro?
R – É que não cabia. Por exemplo: os livros didático precisaram ir pra lá, então a gente agrupou um pouco por tipo de livro, livros didáticos em inglês. As pessoas estudavam inglês, então todo o material didático tava lá, dicionários, aprendizados de inglês, as várias fases do aprendizado, primeiro nível, segundo, terceiro, quarto e assim por diante. Vários livros, uma escola usava a, a outra b, a outra c, e assim ia.
P/1 – Como era o modelo de negócios nessa época, quer dizer, vocês compravam, pegavam por consignação?
R – Não, eram muito mais comprados do que consignados, muito mais. As editoras podiam ou não facilitar alguma coisa consignada, mas era pouca coisa. Era muito mais compra.
P/1 – E vocês compravam, vendiam e iam sentindo o mercado industrial, o que vendia.
R – Isso.
P/1 – E a inflação nesse momento?
R – A inflação vem... Viemos sofrendo um pouco, né? Com a inflação. Então na época da inflação brava, foi com o governo Sarney, o que eu determinei pra pessoa que comprava foi: “Vamos diminuir quantidade e aumentar a freqüência de compra”, porque a editora me dava um prazo pra pagar, ela me dava 60 dias, digamos, e a venda era feita por cartão de crédito, naquela época já usava-se bastante...
P/1 – Desde o início?
R – Não, depois. Mas já nessa época o cartão de crédito era usado porque era uma coisa de se obter uma vantagem quem não comprasse pelo cartão de crédito, ou seja, quem ia pagar com cartão pleiteava um desconto por pagar em dinheiro ou cheque, então você tinha uma redução por causa da inflação. Como a gente nunca majorou preço nenhum, de produto nenhum, de livro nenhum, porque eu tinha 60 dias pra pagar e o cartão me pagava em 30 dias, aí eu disse: “Bom, se a editora me dá 60 eu posso dar 30 pro cliente, não tem problema nenhum”, então eu diminui quantidade e aumentei freqüência de compras. Eu comprava livros todos os dias, às vezes o mesmo, mas eu ia vendendo e dando prazo sem cobrar o adicional que as pessoas cobravam no cartão de crédito.
P/1 – Então na realidade a pessoa comprava hoje pra pagar em 30 dias pelo cartão?
R – Pelo cartão, até a fatura vir pra ele, entende?
P/1 – E aí não cobrava nada a mais?
R – Eu não cobrava nada a mais, a vista, em cheque ou cartão era sempre o mesmo preço.
P/1 – E isso dava um...
R – Nossa, todo mundo falava que a gente ia quebrar fazendo isso, porque todo mundo colocava 30% a mais no cartão, 40%, sei lá. Nós nunca fizemos isso, por isso eu diminui quantidade e aumentei freqüência. Se eu vendia um livro por dia, eu comprava um todo dia, eu comprava, vendia, comprava, vendia.
P/1 – Pra manter o numero de...
R – Pra manter o meu fluxo de caixa. Quando vencia a duplicata eu tinha que ir lá pagar.
P/1 – Vocês tiveram algum momento de crise? Se tiveram, quais foram os principais?
R – Os principais momentos de crise eu não sei determinar, mas...
P/1 – Teve algum momento: “Vou deixar a livraria”?
R – Ah, apertos sempre tem, né? Quem tá no comércio sabe que tem isso, existem situações variadas, desde uma pessoa, uma firma que te compra e não paga, o famoso calote (risos). Isso acontecia, uma empresa chegava, a gente dava um prazo pra pagar e não pagava. Aí era um sufoco, sem dúvida que sim. E continua sendo, não mudou nada. A gente continua levando calote aqui, e muito (risos).
P/1 – (risos) E muito?
R – Muito, leva calote até do governo, né? Que nos cobram uma fortuna e não nos dão nada (risos).
P/1 – E existe algum mecanismo de defesa?
R – Não, eu tenho que pagar os impostos, tenho que pagar tudo que nós somos obrigados por lei, entende? Mas por exemplo: todos os funcionários que nós temos hoje são obrigados a pagar o INSS, mas eles não podem usar o serviço médico porque se forem pra lá não voltam, né? Ficam três dias na fila, dez pra conseguir, então a gente dá o plano de saúde, a gente paga um serviço que não tem. Nós todos, né? Não é uma coisa exclusiva nossa, nós todos sofremos esse mal.
P/1 – Me conta agora como foi quando os primeiros vendedores chegaram na loja. Até que momento era só você e a sua mãe atendendo, conversando com os clientes?
R – Ah, a gente teve vários vendedores, eu fui a casamento de vários... (risos).
P/1 – E como vocês decidiram empregar, e que tipo de pessoa?
R – Olha, quem fazia mais a seleção era a minha mãe. Minha mãe que escolhia mais os funcionários, mas eram pessoas que gostavam muito de livros, essa era a grande idéia. E até hoje as pessoas que gostam de ler querem trabalhar aqui. E não é bem isso que eles vão fazer aqui (risos), as pessoas querem trabalhar aqui porque gostam de ler, mas você não vai fazer isso aqui, né? Mas a relação com o livro era uma coisa, digamos assim, mais qualitativa do que hoje, muito mais qualitativa. A pessoa realmente gostava de literatura russa, sabia conversar sobre literatura, ou alemã, ou o que quer que seja, ele demonstrava isso, sabe? ele gostava de arte...
P/1 – Isso, o vendedor?
R – Isso. Ele gostava de arte, conversava sobre arte, etc. Então eles interagiam muito bem, e ainda interagem, sabe? A gente tenta colocar a pessoa, o colaborador, junto de uma área que ele goste. Tem gente que gosta de Administração, então fica junto dos livros de Administração, tem quem gosta de Computação, fica junto dos livros de Computação, etc.
P/1 – Falando nisso, como foram surgindo as segmentações temáticas, dentro da livraria?
R – Naturalmente foram surgindo, quer dizer, quando eu falei em Computação é porque isso foi muito temático e hoje praticamente não existe. Hoje não tem mais livros de Informática, mas os livros eram essenciais pra aqueles que começaram a se interessar por qualquer coisa ligada ao computador. Então vendia-se muito bem, desde os programas do Word ou qualquer coisa assim, até Excel essa coisa toda, que hoje, absolutamente, caiu em desuso total. Mesmo porque os programas e as máquinas são auto explicativos hoje, elas não requerem mais nada. Os manuais eram muito mal feitos, que acompanhavam as máquinas, e tudo isso ajudou muito essa área de Informática. Hoje não se usa mais.
P/1 – Isso, a gente ainda ta falando dos anos 70? Informática?
R – Isso, com certeza.
P/1 – Então tinha a parte de Informática, livros didáticos...
R – E todas as outras: Administração, Economia, tudo, sempre...
P/1– Isso era muito voltado, assim, pra universidade?
R – Bastante, sempre.
P/1– Aí já não era mais a Nair que fazia as compras?
R – Não, aí já tinha uma outra equipe, muito mais gente, já tinham umas dez, 12 pessoas.
P/1 – Explica um pouquinho melhor como funciona essa decisão da compra, como se testa o mercado. Nesse momento.
R – A decisão... Muitas vezes nós não opinamos, por exemplo, sobre um livro de Matemática Financeira. Ele vinha com uma indicação: um professor da USP, da PUC indicava, então a gente comprava. Simplesmente a indicação não era da gente, a gente comprava por indicação. Depois a gente ia ver, por exemplo, o que tem em Física Quântica, e aí procurávamos os assuntos de Física Quântica. Mas era pouca quantidade, poucos exemplares. Os livros didáticos usados nas universidades eram adquiridos em quantidade.
P/1 – E vocês iam montando um catálogo?
R – Não.
P/1 – Iam comprando, dando entrada, dando saída...
R – Comprando. Como tem História, tem Ciência, então você ia pondo os livros por assunto no seu lugar.
P/1 – Quais eram as principais editoras desse momento?
R – Ah, tem muitas novas, muitas antigas, uma viva outras não, enfim, isso muda muito assim como estabelecimentos comerciais que abrem e fecham, há industrias que abrem e fecham. Isso acontece na industria editorial da mesma forma.
P/1 – Aí você abriu aqui em 73, como evoluiu o negócio?
R – Não cabia mais, de novo, tivemos que ir pra outras unidades também. E aí tivemos uma experiência fora. Foi muito interessante isso porque o pessoal do metrô que era cliente, que eu citei há pouco, quando inaugurou a linha norte-sul do metrô, a estação São Bento, tinha um espaço lá embaixo, me falaram: “Você não quer pôr uma livraria lá?”; “Ah, não quero”. Imagina, eu não tinha experiência nenhuma em abrir uma filial; “Ah, não, põe, não sei o que”, conversa de amigo assim, sabe (risos). Aí tinha um lugar lá no metrô São Bento, uma loja que era 40 metros quadrados, aí eu me entusiasmei, fui, e aqui, somando tudo dava duzentos mais ou menos. E claro que deu tudo errado. Deu tudo errado porque tudo o que a gente tinha em 40 metros as pessoas não queriam, elas queriam o que tava aqui, e aqui tem duzentos. Não cabia (risos). Eu falei: “Gente, não é assim”, então fui aprendendo que não é simplesmente um pedaço de chão que você pega e monta uma coisa. Se é pra abrir filial você abre igual, com a mesma carga.
P/1 – Essa foi uma percepção a partir dessa experiência?
R – É, a partir daí. Na PUC foi a mesma coisa, o reitor nos convidou pra abrir uma livraria dentro da PUC. Ele era conhecido nosso: “Ah, tem um espaço aqui”, tinha cem metros quadrados. Olha que bacana. Então lá fui eu de novo, tudo o que tinha em cem metros não servia, queriam tudo o que não tinha lá. E a agilidade, o aluno quer o livro na hora, enfim, isso tudo foi uma experiência que não deu nada certo. Depois abri uma filial na Rua Turiassu também, que acabou ficando com o meu irmão quando nós brigamos, então abrir essas filiais eu falei: “Não, não é assim que se faz”.
P/1 – Isso a gente ta falando de que época?
R – De 74, por aí. Já na ditadura, já estávamos em plena ditadura militar aí.
P/1 – E, aliás, falando nisso, como era a relação da censura com os livros vendidos?
R – Eu tinha uma boa relação com o chefe da censura, que acabou até se tornando meu amigo. A gente discordava muito, mas era um jornalista, um camarada culto, tinha uma posição bem contrária a minha, mas a gente convivia bem. Toda noite de autógrafos tinham dois, três aqui, sabe? Impressionante. Mas a gente convivia, eu sabia o que ia acontecer. A gente, naquela ocasião, começou a importar. Eu tive livros apreendidos, me lembro direitinho: a Arte erótica chinesa do século XIII, alguma coisa assim. Aí três exemplares vieram e foram apreendidos.
P/1 – E por exemplo, O Capital?
R – Do Marx? Ah, eu fui diversas vezes interrogado, nunca fui preso, nunca me levara, mas diversas vezes eu fui interrogado sobre o por quê eu vendia O Capital do Marx, minha resposta era uma só: “Porque é adotado na USP, é adotado na PUC, os cursos adotam. Só por isso”; “Mas precisa?”; “Precisa, eu vivo disso”, então é uma obra fundamental pra quem estuda Economia. Mas eu nunca fui preso. Eu fui interrogado sobre por que eu vendia o livro vermelho do Mao Tse-Tung, por que eu vendi livro do Chico Buarque, e coisas desse gênero, sem pé nem cabeça (risos).
P/1 – Eles vinham aqui, te convidavam, te intimavam?
R – Não, era: “Podemos conversar?”, aí a gente sentava num canto e conversava. Mas só isso, meio me perguntando, me questionando a respeito, eles não podiam fazer nada porque eu não tava fazendo nada de errado, entende? Mas era uma forma de ver se eu não tinha O Capital. Mas eu nunca dei muita bola pra isso. Agora o que realmente funcionava muito bem era o livro proibido, né? Porque o Estadão e o Jornal da Tarde, na época, publicavam receitas nos textos dos jornais censurados, então no meio do texto aparecia uma receita de bolo, no meio do texto. Era um trecho censurado. Ou então a censura de um livro que foi proibido, aí todo mundo vinha aqui: “Escuta, me arranja uma cópia e tal, eu pago o dobro” (risos), Eu falei que a melhor coisa pra se vender um livro é proibi-lo, né? Foi impressionante (risos). Então o interesse em um proibido era fantástico. Claro que quando havia a proibição a gente recolhia, devolvia pra editora, ou havia uma apreensão, apreensão mesmo, deixavam um documento de apreensão, e eu sempre disse que eu não era responsável, quem era o responsável era a editora. Eu não sou o responsável pelo conteúdo, quem tem que avaliar isso é a editora. Eles entregavam o termo de apreensão e eles me creditavam. Eu nunca sofri prejuízo nenhum por causa disso.
P/1 – Autores nacionais vinham aqui, faziam lançamento aqui?
R – Sim, sempre, muitos.
P/1 – E nessa época da ditadura teve?
R – Ah, teve muita coisa. Uma que eu me lembro bem, foi bem interessante isso, foi na eleição de 82, se não me falha a memória. O Maluf era candidato e um vereador escreveu um livro chamado Malufada que Abalou São Paulo, é um inimigo dele. E o Maluf entrou na justiça querendo impedir a coisa e tal e na noite de autógrafos, no dia do lançamento do livro, chega aí a polícia com metralhadora na mão, sabe? Uma coisa, assim, bem delicada (risos), e aí cheio de gente e eu vejo um policial com uma capa de chuva, tava chovendo, ele tava com uma capa de chuva, mas eu vejo que ele tava com uma arma desse tamanho embaixo do braço. Ele se identificou, delegado, e falou: “Eu tenho ordem pra acabar com essa noite te autógrafos”; “E o que o senhor quer que eu faça?”, aí ele ficou meio sem jeito, eu comecei a conversa: “Eu não posso por as pessoas pra fora, pura e simplesmente. Ou o senhor me dá alguma coisa, um papel, ou o senhor vai lá, o senhor é a autoridade, e o senhor tira as pessoas daqui de dentro”, aí ele falou assim: “Tem um telefone que eu posso usar?”; “Ali tem, atrás daquele senhor, ta vendo?”, que era aqui embaixo, tinha um telefone, tinha uma pessoa que tava com um terno cinza, era um juiz que eu conhecia: “Ao lado dele, daquele senhor de terno cinza tem um telefone, pode usar, fica a vontade”, e eu fui pra minha sala que era em cima daquela outra loja, a minha mesa de trabalho ficava em cima da loja, aí eu telefonei pro pessoal do jornal, do Estadão, da Jovem Pam. E a Globo veio, a Silvia Popovic era repórter da Globo, veio, foi impressionante, porque ficou um negócio tão esquisito, tinha muita gente. Esse vereador era um advogado, tinha filhos, etc. Tinham muitos amigos, promotores, juízes, advogados, enfim, aí ficou aquela coisa até que mais ou menos nove da noite eu recebo um oficial de justiça com um mandato de apreensão do livro, mas no papel. Antes o delegado veio porque o chefe mandou. E aí com esse papel na mão, eu falei: “Senhores, agora eu sou obrigado a cumprir a ordem. Vou retirar o livro, vou entregar pra eles, eu tenho aqui x livros, eles vão apreender e a noite de autógrafos vai ser encerrada”. E aí o delegado, eles ficaram conversando assim um pouco, aí de repente o delegado tava no caixa na ocasião, aí cantaram o hino nacional aqui dentro, cantaram o hino nacional e foram embora. Foi interessante isso, foi muito tenso pra mim porque a Jovem Pam interrompeu o futebol, mandou um repórter aqui, o Estadão mandou repórter, a Globo veio, e pra cobrir uma coisa totalmente arbitrária, né? Que faziam na época. No dia seguinte a esse fato, já refeito um pouco (risos), estou aqui de manhã, aí chega o delegado, o mesmo da véspera. Aí tinha uma moça que trabalhava comigo, eu falei “Liga pro doutor Carlos, o nosso advogado. Ele veio me prender!”. Aí ele chega pra mim: “Podemos tomar um café?”, “Podemos, claro”. Tinha um café aqui na frente, bem aqui, aí eu fui tomar um café com ele morrendo de medo, achando que ele ia me prender, né? E aí ele começou a conversar, eu lembro que eu tremia, derramei o café assim no pires (risos), aí ele falou: “Eu vim falar com você o seguinte: o negócio de ontem, eu sabia, mas o meu chefe mandou”. Ele cumpriu ordem do chefe vindo aqui. Eu falei: “Eu sabia, precisava de uma ordem judicial pra... Veio depois, duas horas depois”; “Mas a razão da minha vinda aqui é a seguinte: eu escrevi um livro de poesia, eu queria editar”. Eu quase deitei no chão, você acredita? (risos) Tornou-se super... Ele queria editar um livro de poesia, que ele era um poeta, e não sabia o caminho, como fazer pra editar o livro de poesia que ele havia escrito.
P/1 – Que interessante.
R – Então, emoções dessa natureza foram muitas.
P/1 – Voltando um pouquinho pra história da própria Cultura, em que ano, depois dessa primeira loja, vocês começaram a abrir outras? Quantas lojas foram abertas aqui no Conjunto Nacional?
R – Aqui foram quatro. Hoje são cinco e nós não entregamos nada, não abrimos mão do que tínhamos.
P/1 – Então vocês foram abrindo...
R – Fomos abrindo por falta de espaço.
P/1 – Falta de espaço, esse era o motivo?
R – Sim, o que tinha aqui não tinha lá, sabe? Não era uma competição. É que: “Ah, eu queria o livro de agricultura”, “Ta lá”, então era separado por área porque as áreas foram crescendo.
P/1 – E ai quando vocês abriram de fato a primeira filial?
R – A primeira filial de fato foi a da Rua Turiassu, a filial da Rua Turiassu que acabou ficando com o meu irmão depois.
P/1– Qual era a idéia da filial? Como é o modelo de negócio na filial?
R – Não era um modelo muito definido, como tinha muita escola perto, e na época, como eu já disse, tínhamos os livros didáticos, trabalhávamos bem com livros didáticos, tínhamos o apoio das escolas na região, então era interessante. Era uma loja que ia muito bem, com o custo operacional muito baixo. Não tinha condomínio, era uma loja de rua, enfim, ia muito bem. E depois acabei passando pro meu irmão, que foi uma forma que eu encontrei de acertar as coisas com ele, sabe: “Você fica com esse pedaço, eu fico com esse, acabou, pronto”.
P/1 – E isso, de que ano nós estamos falando?
R – Nós estamos falando já de 76, 77, por aí.
P/1 – Nesse momento qual era o papel da sua mãe?
R – Aqui a minha mãe começa a diminuir a atividade dela. Em 1975 ela começa a reduzir, ela viu que eu tava aqui, então ela ainda vinha todo dia e tal, mas vinha menos. Vinha mais a parte de fazer o acerto, escolher os livros, do que importar, essa coisa toda ela fazia. E o dia-a-dia mesmo, a rotina, eu fiquei com isso.
P/1 – Essa sua parte de administrar, ver a contabilidade, você foi adquirindo como? Porque mas você não fez, por exemplo, faculdade de Administração...
R – Isso eu fui fazendo, entende? Fui fazendo tudo, principalmente a parte de seleção de coisas estrangeiras, porque nós passamos a importar. Em 73 a gente começa a importar.
P/1 – E ela fazia isso?
R – Ela escolhia os títulos, a escolha dos títulos, depois o resto a gente fazia: “Ah, isso é bacana, esse é bacana, esse não”. Em 73 foi a primeira viagem que eu fiz pra Feira de Frankfurt, de lá pra cá eu fui a todas.
P/1 – Depois você foi a todas?
R – Sem exceção, não tive nenhuma interrupção à Feira de Frankfurt.
P/1 – Por quê?
R – Porque é uma feira muito importante pra quem importa, você entra em contato com todo mundo do mundo editorial, todos os países concentrados num lugar só.
P/1– É uma forma de receber o leque da...
R – Isso, de ter uma compra, de ter crédito nessas editoras, enfim, de expandir mesmo.
P/1 – E a sua ideia era expandir?
R – Eu acho que aqui no Brasil ou você cresce ou você fecha. Não tem como você definir: “Eu vou ficar desse tamanho”, acho impossível isso, mesmo porque é uma área que todo dia tem coisa nova. Claro que tem coisa que sai do catálogo, sai e não volta mais, mas é muita novidade. Hoje nos recebemos 250 novos títulos por dia, é muita coisa.
P/1 – Em português?
R – Não, no total, não só numa língua, mas é muita coisa.
P/1 – Agora voltando a questão da filial, porque essa do seu irmão ainda tava um pouco na família, né?
R – Isso, mas aí já tinha a experiência do metrô e da PUC, modelos que eu falei: “Não, não é assim”. Eu falei: “Então agora vamos fazer o seguinte, vamos crescer na vertical, fazer uma sólida espinha dorsal e depois eu vejo como eu penduro coisas nessa espinha dorsal sem arrumar uma hérnia” (risos).
P/1 – O que é espinha dorsal sólida?
R – Sólidas estruturas, sabe? De serviço, tudo isso funcionando, porque era um negócio burocrático transferir coisas de uma loja pra outra, nota pra cá, nota pra lá, era uma papelada fantástica. Então de organizar isso bem. Aí eu falei: “Não, vamos crescer assim”.
P/1 – Isso significa pegar essa loja aqui e fazer ela super estruturada?
R – E fazer ela crescer, estruturas e tal, quando isso estiver bacana, aí a gente pode pensar em crescer na horizontal. Enquanto isso, na vertical.
P/1 – Essa foi uma decisão que você toma...?
R – Depois que eu percebi que não é assim que se abre filial. E aí, então, você chega na década de 90 e eu falo assim: “Nós vamos entrar na internet”. Chega a internet em 94, nós somos absolutamente pioneiros na internet e abrimos um site. Antigamente chamava-se BBS, Bulletin Board System, que acabou logo porque o sistema requeria uma linha telefônica pra cada um que ligava, e linhas telefônicas naquela época eram patrimônio, lembra? A gente comercializava linhas telefônica (risos), uma linha telefônica valia dinheiro, então era uma coisa que absolutamente não deu certo e aí imediatamente depois veio a internet. Aí a internet foi muito divertida porque nós começamos em 94, e aí com a ajuda de pessoas experientes na área, o Mandic, que depois fez a Mandic BBS, ele trabalhava na Siemens naquela época, no fim de semana ele sentava aqui: “Você vai me ajudar”, somos amigos até hoje, e começamos a desenhar, fazer (risos), fazer a coisa funcionar. E era uma colcha de retalhos sem fim porque todo dia tinha uma coisa diferente que a gente tinha que emendar uma coisa na outra, era muito divertido, e a gente começou a se deparar com esse mundo virtual que cresceu rapidamente e transformou até as pessoas. No início me lembro que se alguém escrevesse que lia lá o Hamlet, do Shakespeare, e escrevia Shakespeare com x, aí aparecia na tela dele lá: “Autor não cadastrado”. Aí o cidadão do outro lado, que eu não sabia se era João ou Maria, ele dizia que era João, mas eu não sabia se era mesmo, porque você não enxerga a pessoa, né, ficava bravo: “Mas que porcaria de livraria” (risos), mas é que ele escrevia Shakespeare com x e o computador não entendia...
TROCA DE FITA
P/1 – Nesse momento tinha outra pessoas fazendo o comércio virtual?
R – Não, ah, tinha, no inicio de tudo nós fomos a primeira livraria no Brasil a ter o comércio...
P/1 – O que te levou a explorar esse canal?
R – Era um meio de comunicação fantástico, né? O mundo passou a utilizar e eu vi um sinal: o Brasil é um país que mal tem bibliotecas públicas nos municípios, imagina livrarias! Então as pessoas de muitas cidades brasileiras não tem uma livraria, mas a internet facilitou a vida daqueles que querem um livro. E foi uma maravilha desenvolver, já resolvia-se um problema, outros eram criados. E aí nessa coisa eletrônica eu ouço dizer uma coisa: “Se funciona, é obsoleto”, literalmente se funciona é obsoleto, entende? Porque em cada dia tem uma coisa nova, é um investimento permanente de corrigir, introduzir novas coisas, sanar defeitos, sanar erros, criar coisas confiáveis, e o medo de pagar com cartão de crédito...
P/1 – Isso! E como foi? Você já começou a receber através de cartão de crédito?
R – Ah, todo mundo tinha medo, né? Eu sempre disse que eu tenho medo de dar o meu cartão de crédito pro garçom, quando ele desaparece na cozinha. Sei lá o que ele vai fazer com ele, né? Clonar ou não, enfim, mas isso todo mundo fazia.
P/1 – Começou a ter muito público pela internet, de cara, ou demorou?
R – É crescente todo dia, a cada dia mais gente tem acesso a internet, mais computadores, sabe? E hoje o computador já não e uma coisa tão estranha numa aldeia indígena.
P/1 – Agora, isso implicava em ter um sistema de pagamento online, um sistema de distribuição...
R – Tudo isso.
P/1 – Como foi que você foi descobrindo esses programas?
R – A gente foi construindo, construindo, sabe? Com os cartões de crédito, debitar, como fazer, foi tudo uma coisa permanente, isso não cessou.
P/1 – E na sua atividade isso se tornou uma prioridade?
R – Mas foi... É permanente isso, entende? Quando eu tive uma ocasião no inicio da década de 90, talvez fim de 80, em que uma grande fábrica de computadores falou: “Nós queremos informatizar a livraria”, eu falei: “Bom, eu não sei se eu tenho recursos pra informatizar”, era caro, “Eu não tenho dinheiro pra isso”; “Não, mas você já precisa e nós ganharemos a concorrência”; “Como ganharemos a concorrência, que história é essa?”, bom, enfim, me prometeram um monte de coisa, e era um monte... Eu não quero falar o nome da empresa por um questão de ética, mas me prometeram muita coisa e nada foi cumprido, nada. Aí depois eu falei: “Gente do céu, o que eu faço? Eu não vou parar agora, eu sei que o caminho é esse”, então todo mundo que trabalhava de alguma forma nessa área pra gente, pra terceiros, eu comecei a pôr pra dentro, admiti. E hoje tudo é feito aqui dentro.
P/1 – Ah, você começou a contratar os programadores?
R – Tudo é feito aqui dentro, tudo, tudo. Nada é terceirizado.
P/1 – Web design, design...?
R – Tudo, ta todo mundo aqui dentro.
P/1 – E essa foi uma decisão baseada nesse...?
R – Nessa promessa dessa grande multinacional que eu fiquei pendurado no pincel (risos), falei: “Não, assim não dá pra brincar, vamos fazer a coisa séria”. E começamos a fazer, fomos fazendo e fazemos até hoje. Hoje tem um diretor de TI, um diretor! Quer dizer, eu tenho uma pessoa que olha só isso, temos uma pessoa que olha a internet, temos uma pessoa que olha o sistema. É uma operação grande hoje. A internet, hoje, pra nós, é a segunda loja.
P/1 – A primeira loja é essa?
R – É, a primeira é a Paulista, a segunda a internet.
P/2 – A questão da distribuição da mercadoria, da entrega da mercadoria, demorou muito pra vocês pegarem o jeito?
R – Não, não demorou muito, mas as opções são muitas. Como é o cliente que paga o frete, ele escolhe, o frete mais caro é mais rápido, menos caro é mais lento, é uma escolha do cliente. Então eu uso bastante correio...
P/1 – O Sedex?
R – Ou não, o correio simples também. Quando a pessoa quer um livro e não tem pressa nenhuma pra que ele vai pagar a mais? Se levar 15 dias, ele espera 15 dias, vai chegar. Agora, se eu quero um livro pra amanhã, tem essa urgência. Às vezes o frete é mais caro que o livro, as vezes acontece isso.
P/2 – Nas compras pela internet tem um estoque central da livraria ou tem todos...?
R – Hoje o nosso sistema enxerga aonde está o livro: se você encomendar dois livros, digamos, um livro pode estar em porto Alegre e o outro pode estar em Fortaleza. Você vai receber dois pacotes, um de Porto Alegre e o outro de Fortaleza no seu endereço, mas você só vai pagar um frete, o sistema vai enxergar onde ele está.
P/1 – E existem pessoas responsáveis, em cada loja, por essa distribuição?
R – Tem o picking que são as pessoas que pegam esses pedidos e dão procedimento, aí vai pro faturamento, vai pra embalagem e pronto, é despachado.
P/1 – Quer dizer, isso tudo teve algum modelo em que você...?
R – Não, nós fomos montando, fomos visitando, trocando idéias, conhecendo.
P/1 – Por exemplo, a chegada da Amazon mudou alguma coisa na prática de vocês?
R – A Amazon não chegou, ela não achou a porta de chegada. Até agora ela não encontrou a porta por onde ela possa entrar. Meu filho, que eu tenho dois filhos que trabalham comigo desde a década de 90, então me ajudaram nessa coisa de internet, mas um deles falou o seguinte: “A Amazon tá habituada a abrir os negócios dela, que são maravilhosos, em países mais desenvolvidos do que o nosso, portanto ele classificou esses países como paraíso”, eles estão habituados a abrir negocio no paraíso, e aí ele falou: “Bem vindos ao inferno” (risos), e eles vão ter que enfrentar toda a problemática que nós enfrentamos. Não temos nenhum medo e não teremos porque ta cheio de competidores, todo mundo tem competidores. Não tem ninguém sozinho. Não há porque se temer alguém, a não ser que ele use de meios, de técnicas não habituais de livreiro. A Amazon é uma empresa que é muito processada pelas editoras, elas fizeram contratos com eles e estão totalmente arrependidas de terem feito. E o Brasil não entrou nessa, então nesse aspecto o Brasil ganha muito tempo porque os outros países fazem a experiência e aí o Brasil, por exemplo, não está seguindo o modelo que as editoras fizeram lá nos Estados Unidos com a Amazon, eles criaram um problema no mercado.
P/1 – Ah, é? Em termos da...?
R – Da forma de comercializar, sabe? É uma forma pouco elegante, eu diria, de comercializar. Então criou um problema sim, mas isso ta sendo visto e aqui, as editoras disseram não pra eles. Se a Amazon vier, e está vindo, eles terão a mercadoria nas mesmas condições que eu terei, e não diferentes, eu e outros concorrentes também terão as mesmas bases, então, sejam bem vindos, vamos competir.
P/1 – Ainda voltando a internet, em que momento isso começou a dar um pico pra se tornar um faturamento assim...?
R – Olha, a partir do ano 2000 é que esse crescimento que eu disse, na vertical, começa a se materializar no sentido de começar a ter uma coisa horizontal. A primeira filial fora daqui, do Conjunto Nacional, de São Paulo, foi no shopping Vila Lobos, e esse projeto começa a ser discutido em 96. Quatro anos antes de abrir, nós abrimos nos anos 2000, no dia em que o shopping abriu. E pela primeira vez na história brasileira, uma livraria é âncora de um shopping, as âncoras sempre eram grandes magazines, no tempo era a Sears, não sei se vocês se lembram, Mesbla, não sei o que, então isso mudou. O Vila Lobos foi o shopping que colocou a Livraria Cultura como âncora, e é até hoje. E esse modelo, que levou quatro anos entre a negociação, o projeto, a execução e a abertura, deu muito certo. Rapidamente fomos para o Rio Grande do Sul, aí começaram a vir ofertas de outras cidades pra gente expandir.
P/1 – E como é esse modelo de multiplicação? Que realmente vocês começaram a expandir e foram expandindo um atrás do outro...
R – A gente fez uma loja... A loja do Vila Lobos é uma loja com 3.350 metros quadrados, uma loja que tem café, tem um auditório. E a partir da loja do Vila Lobos nós agregamos a parte de música e vídeo, porque aqui nunca tivemos espaço físico suficiente pra trabalhar com música e vídeo. Quer dizer, nós achamos que quem lê também ouve musica, também vê filmes, eu acho que tem tudo a ver. E lê revistas, e num espaço agradável, tem lugar pra uma palestra, então esse modelo com 3.350 metros é um modelo que foi muito bem aceito.
P/1 – Quer dizer, faz parte desse conceito, isso é uma filial...
R – Isso, a primeira filial...
P/1 – O espaço...
R – Exatamente, o espaço já estruturado nessa primeira coluna, nós penduramos uma coisa nessa coluna que foi o shopping Vila Lobos.
P/1 – E a gestão, a administração, central?
R – Sim.
P/1 – Totalmente, não é uma franquia?
R – Não, nada. Não dá pra franquear. Hoje nós trabalhamos com mais de cinco milhões de produtos, cinco milhões de produtos é muita coisa. Sem a informatização isso não seria possível.
P/1 – Vocês fizeram algum tipo de publicidade e propaganda pra chegar nisso ou nuca teve?
R – Não, e eu acho que também não funcionaria. Não é um bem de consumo em massa, não é. O livro infelizmente não é, no Brasil ainda não.
P/1 – Então vocês abriram no Vila Lobos e dali foram surgindo convites?
R – Sim, e o Vila Lobos também foi um convite.
P/1 – Do próprio shopping?
R – Do próprio empreendedor do shopping. Então fomos pra lá, desenvolvemos essa idéia, cometemos erros e fomos aprimorando a arquitetura. Aí depois abrimos em Porto Alegre, abrimos Recife, abrimos mais aqui, enfim, foi indo.
P/1 – Mas assim, Porto Alegre depois Recife, lugares muito diferentes, pessoas muito diferentes, costumes, como vocês foram percebendo essas variações? Ou o modelo foi seguindo sempre o mesmo?
R – O modelo foi sempre o mesmo, se adapta um pouco com a coisa local, existe a literatura, digamos assim, pernambucana ou nordestina e existe a gaúcha também. Então claro que um autor gaúcho vende mais em Porto Alegre do que em Recife...
P/1 – Aí você põe lá?
R – Não, tem em todas, a gente é uma filial com a mesma cara, mas claro que vende mais um Veríssimo no sul do que em Fortaleza, mas o Suassuna vende melhor lá no nordeste do que em Porto Alegre, então essas coisas existem e sempre existirão, mas o mix de produtos é igual. Na tela do computador do atendente ele tem exatamente as mesmas coisas que aqui, com a mesma facilidade.
P/1 – Eu queria voltar pra isso da espinha dorsal, uma empresa familiar que começa a crescer, crescer, como foi? Houve uma necessidade de profissionalização?
R – Sim, e continua havendo.
P/1 – E como você saiu de trabalhar com a mãe, pra trazer os filhos, os diretores?
R – Os meus filhos que quiseram trabalhar comigo, primeiro eu tentei demovê-los da ideia porque se trabalha muito aqui. Eu fiquei quase um ano falando não pra eles, porque eu não tinha convicção. Quando eu senti firmeza eu falei: “Ta bom, agora é pra valer”. Eles eram jovens na ocasião, tinham 20 e poucos anos, aí eu falei: “Fim de semana no Guarujá, em Campos do Jordão... Vai ser de vez em quando, aqui se trabalha fim de semana” (risos), e eles aceitaram. Eu sou felizardo nesse aspecto, sou realmente felizardo porque eu não tenho que ficar brigando com eles. E incorporaram, foram fazendo a coisa como deve ser feita, e esse crescimento todo, sem o suporte deles, eu acho que eu não teria coragem de fazer, né? Hoje são dois mil funcionários, impossível administrar isso sozinho, eles me deram uma boa mão na roda, claro que a gente discute, briga, faz parte, mas de um modo geral eu sou um felizardo.
P/1 – E hoje como é o modelo de gestão?
R – Hoje eu presido o conselho de administração, que é uma S.A. de capital fechado, eu sou o presidente do conselho; o Sérgio, que é o filho mais velho, é o presidente da empresa, o outro é um diretor sem cargo, mas é um diretor, o Fábio. E tem o comercial, o marketing, que são diretores não acionistas.
P/1 – Acionistas são só...
R – Acionistas são três e hoje tem um fundo participando com 18%, que é o mezanino, o fundo do Itaú. Então temos um sócio que participa, é minoritário, tem mais ou menos 20%, pra arredondar, e nós temos 80% do capital.
P/1 – Na realidade a sua presença na administração é que você toma, vamos dizer, as grandes decisões?
R – É, é o conselho que toma as decisões e o conselho na verdade é, digamos assim, o chefe da diretoria (risos). O conselho de administração dá ordens para a diretoria executar, claro que a diretoria tem autonomia, to falando pra você de forma muito simples. Então eles são os executivos hoje.
P/1 – Houve o momento em que as lojas cresceram, a internet cresceu e o mercado editorial brasileiro, cresceu?
R – Cresceu, sem duvida.
P/1 – Da onde veio isso? Do contexto?
R – Eu acho que aqui descobriu-se que Monteiro Lobato tinha razão, que um país se faz com homens e livros (risos). Então fazer uma faculdade é extremamente importante, eu acho que é o local onde as pessoa se formam. A partir da formação você precisa, permanentemente, o quê? Se informar. Você se forma e depois você se informa. E nós trabalhamos com as ferramentas de informação.
P/1 – Mas isso mudou? Continuam as cidades sem livraria, faculdades de baixa qualidade...
R – Isso é outro setor, é um “problemaço”. Nós estamos extremamente frustrados, eu, pessoalmente, com aquilo que eu to vendo que ta acontecendo nesse país com relação ao ensino, né? Está nos jornais e é uma coisa muito triste de se ver. É um problemão pra qualquer empresário, pra qualquer profissão hoje.
P/1 – Mas assim, como você explica, com todos esses problemas, com esse perfil brasileiro, que a sua loja está sempre entupida de gente? O que explica essa freqüência, ela aumentou?
R – Eu acho que existe uma população interessada. Não sou eu que crio o interesse, o interesse em cultura, em saber, é da pessoa, ela recebe isso ou cria isso em si, sabe? Essa necessidade de saber mais, de ter o conhecimento. Eu acho que descobre-se lentamente no país que o Brasil é um país que nas universidades transmite-se saber, mas o mais importante de tudo é as pessoas saberem que elas precisam gerar saber. Não basta transmitir, não basta ter uma bibliografia deste tamanho: “Leiam”. Ela precisa aprender a pensar. E aí você entra num conflito, hoje, que é um conflito em que nós vivemos em uma sociedade que não ouve, só fala. Isso é ruim, muito ruim, as pessoas são incapazes de ouvir, mas eu acho que vão perceber que precisa-se ouvir sim, não só falar. Essa dependência dessa coisa superficial, que é a coisa eletrônica, essas redes sociais que estão aí, isso é de uma superficialidade ímpar. Não leva a pessoa a canto nenhum e toma um tempo danado da pessoa. Nós temos muita dificuldade em admitir gente aqui, muita, mas não sou só eu, todos os empresários tem esse problema. Se perguntarmos, tem vaga sempre, vou exemplificar aqui uma coisa: se perguntarmos quem escreveu Dom Casmurro metade levanta e vai embora.
P/1 – E vocês fazem uma prova de admissão?
R – É uma prova de cultura geral, não quero saber nada de física quântica, nada assim, mas conhecimentos gerais. Queremos que a pessoa leia revistas, jornais, esteja informado sobre o que está acontecendo. E isso não acontece, infelizmente não acontece.
P/1 – Mesmo assim você tem um público grande? Mesmo com o aumento das redes sociais...
R – Tenho.
P/1 – E isso aumentou, o publico vai aumentando?
R – Eu acho que as pessoa descobrem que não se vai muito longe com as redes sociais.
P/1 – Mas isso ta aumentando o seu público?
R – Aumenta, mas é uma superficialidade limitada a 140 caracteres. Não leva a pessoa a canto nenhum, não leva a um emprego bom, não leva a uma estabilidade, não leva ele a ser um doutor, que defenderia uma tese. Então as pessoas começam a ver que não há nenhuma profundidade neste tipo de saber. Eu acho que é um modismo e todo modismo vive pouco, a curva da moda é muito estreita. Recentemente o facebook abriu capital, acho que tem três meses, quatro, algo assim. Me lembro que as ações foram vendidas a 38 dólares, se não me falha a memória, hoje valem menos da metade. Que avaliação é essa? Perdeu-se muito dinheiro, quem pôs perdeu dinheiro e não vai recuperar. Agora, é um exemplo, entende? É nisso que eu vou investir, é nisso que eu vou me especializar? São questões, eu não tenho a solução, mas eu vejo as coisas.
P/1 – Quantas lojas vocês tem hoje?
R – Quantas? Quatorze.
P/1 – A segunda é virtual, tem uma marca, qual o próximo passo?
R – Olha, ainda há espaço em termos de crescimento de lojas físicas, porque as lojas físicas... É interessante esse comportamento, quando nós abrimos uma filial, não importa onde, o crescimento dos negócios, das vendas pela internet na região, crescem. Que é engraçado, né? Interessante. Mas eu acho que ao mesmo tempo, a livraria chegando em lugares novos, cria uma certa confiança no cliente e o cliente sabe que tem o suporte nesse lugar: “Se eu precisar de alguma coisa eu tenho com quem falar”, não é apenas uma coisa virtual.
P/1 – Mas como vocês decidem: “Agora a gente vai pra essa cidade”, ou é um convite?
R – Hoje, primeiramente vem o convite depois tem um estudo de viabilidade. Nós não procuramos. Todo dia chega uma oferta: “Nós vamos fazer um shopping na esquina da Jabuticaba, precisa de uma livraria Cultura” (risos). Claro que nem tudo é descartado, né? Mas não tem mercado pra tudo isso. Mas ainda há um bom espaço. Esse ano ainda estão previstas três unidades, uma em outubro e duas em novembro, se as obras forem entregues (risos).
P/2 – Hoje tem um cinema aqui no prédio, Cine Livraria Cultura, né? Eu queria saber com que intenção ele foi aberto, se ta dando certo, se vocês planejam continuar?
R – Nós somos patrocinadores, não somos gestores do cinema. É o naming rights. Nós não temos nenhuma gerência sobre o que vai passar no cinema. Temos um acordo com o proprietário do cinema, que a gente até utiliza pra fazer uma van premier, pra cliente, a gente usa o cinema pra isso, mas nós não temos nenhuma gerencia na bilheteria do cinema, nada disso. Não sei como funciona.
P/1 – E o teatro?
R – O teatro sim, o teatro agrega. E eu acho que é o único teatro nesse país que tem filiais, temos filiais em Brasília, Salvador, Curitiba, aqui, temos no Rio e Recife.
P – Então hoje o principio é: A loja vai com o teatro?
R – Se houver condições técnicas. Pra isso eu preciso de um pé direito, todas tem um auditório, no mínimo auditório. Um teatro se possível.
P/1 – E um café?
R – Café sim, as pessoas ficam, querem fazer uma pausa, tomam um café, conversam, marcam encontro, é ótimo.
P/3 – Como foi essa decisão de investir em auditório, teatro?
R – Foi no Vila Lobos, em 96, quando começa o projeto. E todas elas tem um auditório, todas as unidades, todas as filiais tem um auditório. Ou tem o auditório, que tem limitações, eu não consigo levar uma peça pra lá, não cabe um cenário, não tem profundidade, etc. Que um teatro requer. E nem pé direito, né? Uma platéia, enfim. Então havendo espaço a gente coloca um teatro, mas o teatro isolado não é um negócio, ele é um complemento, ele agrega.
P/1 – E essa experiência de Companhia das Letras by Cultura, esse comércio customizado, como surgiu isso?
R – Essa ideia surgiu quando nós mudamos pra dentro do antigo Astro aqui ao lado, aí ficamos com esse espaço vazio: “O que fazer, o que fazer?” Aí tivemos ofertas: “Vamos fazer uma casa de pão”, pão de queijo, pão-de-ló (risos), e nada disso nos agradava. Até que veio a idéia. Uma delas nós mesmo usamos, que onde tem os livros maiores, em formato, que nós chamamos de artes. E nós abrimos em 2007 a maior, e seis meses depois já estávamos de volta. E isso aqui ficou vazio e aí a gente teve a ideia de fazer uma store in store, uma loja dentro da loja. E nós somos a única livraria do mundo, literalmente no mundo, que tem 100% dos títulos disponíveis de uma editora pra entrega imediata, todas as unidades tem. E a editora, então, ela nos paga um fim mensal e o resto é tudo nosso, funcionários, CNPJ, luz, telefone, tudo.
P/1 – Então a editora põe todos os livros dela...
R – Aqui só tem livros de uma editora.
P/1 – Então como funciona? A editora se encarrega de colocar os livros, você não compra os livros dela?
R – Compro, claro.
P/1 – Esses livros aqui são da Cultura?
R – São consignados, mas tem todos aqui, 100% do catálogo disponível.
P/1 – Aqui?
R – Aqui,
P/1 – E aí a estrutura da loja, tudo, os funcionários, são daqui, seus, funcionários da Cultura?
R – Isso, exatamente.
P/1 – E qual é o papel da editora então?
R – Isso aqui é um cartão de visitas, ela pode fazer eventos, trazer professores pra promover, fazer o que ela quiser aqui dentro.
P/1 – E ela paga pra vocês?
R – Um fim mensal.
P/1 – Pela gestão dessa loja?
R – Exatamente.
P/1 – E esse negocio deu certo?
R – Deu muito certo
P/1 – E como vocês tiveram essa idéia? É uma ideia diferente.
R – Não sei, de repente surge a idéia. Se eu soubesse a receita de como dar ideias eu não ia falar com o microfone (risos). Eu ia vende-la muito caro.
P/1 – Mas foi sua a ideia?
R – Não, foi juntos, conversando: “A gente podia fazer isso...”, não teve um que chegou e falou isso, não. Teve uma editora que ocupou um dos espaços e não se deu bem, mas acho que ela também não de dedicou, fez tudo errado, mas como é o espaço dela, ela pode gerir da maneira dela, então ela devolveu ao término do contrato a loja. Que aí a gente chegou e chamou pra nós novamente, que é a loja Geek, que é um sucesso.
P/1 – O que é essa loja?
R – Sabe o que um nerd?
P/1 – Sei.
R – O Geek é um nerd que gosta de informática, de tecnologia, esse termo geek vem daí. É uma loja que nós abrimos em abril, ela tem quatro meses, e ta bombando, é um outro público.
P/1 – É de tecnologia?
R – Coisas de tecnologia. Mas na realidade, tudo o que tem lá dentro nós já tínhamos, só que tinha um pedaço aqui, um pedaço ali, tava tudo espalhado. Aí juntamos tudo e foi um sucesso.
P/1 – Pedro, você falou que aqui trabalha-se muito, então essa vida de comércio e tal, como é o seu dia-a-dia hoje?
R – Ah, eu to passando o bastão (risos).
P/1 – Então você hoje está com mais tempo?
R – To, eu tenho outras atividades. Eu falei agora há pouco do José Mindlin, eu presido a sociedade de cultura artística. Eu fui eleito depois que ele faleceu, eu sou presidente da sociedade e tivemos a infelicidade de ter um incêndio em 2008 que queimou o nosso teatro. Agora estamos empenhados na reconstrução desse novo teatro, que vai ser o teatro da América Latina. Enfim, isso também me consome, mas me da muito prazer. Zero de remuneração, mas me da um prazer interior, assim, fantástico! É uma extensão, sabe? Eu continuo envolvido com cultura, com música, com dança, com a cultura de um modo geral, não só a palavra escrita, mas isso me possibilita estar bastante envolvido com cultura.
P/1 – Então essa é uma atividade...
R – Me alimenta, me alimenta sim.
P/1 – Fora isso que outra atividade o senhor...?
R – Ah, eu faço parte de conselhos de organizações assistenciais, mas isso é uma coisa eventual, não me toma tempo e não sei também se quero. Quero ter um pouco mais de tempo pra viajar...
P/1 – Você gosta de viajar?
R – Gosto.
P/1 – Pra fora, pra dentro do Brasil?
R – Pra fora, pra dentro, pro alto, pra baixo (risos). Pra qualquer lugar.
P/1 – Me fala então do seu passado, o que é que caracterizou a sua vida de trabalho?
R – Eu acho que tem uma tecla que a gente não deixa de bater nela, que é a tecla qualitativa, qualidade, e que aqui nessa empresa e os que trabalham comigo não esqueceram uma palavrinha que nesse país, infelizmente, se erradicou: compromisso. Aqui nesta empresa todos tem compromisso, compromisso com o trabalho, com o cliente interno, externo, então isso a gente realmente valoriza muito. Eu acho que, de alguma forma, a gente contribui pra que os nossos funcionários sejam cidadãos diferentes, porque o que eles oferecem pros clientes, eles querem pra si. Eles são consumidores bem exigentes, isso eles praticam oferecendo. Então eu acho que a gente oferece uma formação pra eles e eles são muito gratos.
P/1 – Mas vocês fazem uma formação?
R – Sim, de alguma forma sim.
P/1 – Mas não formalmente? A pessoa não entra aqui e tem que cumprir um programa de trainee?
R – Não, não. Eles são treinados sim, permanentemente.
P/1 – E isso é muito importante? Você acha que isso é um diferencial?
R – Sem duvidas. A gente disponibiliza boas ferramentas pra eles trabalharem, eu tenho a obrigação de dar boas ferramentas. Eles não tem a obrigação de entender nada de física, mas ele tem que entender o que o cliente está dizendo, e se eu disponibilizar boas ferramentas de trabalho pra ele, ele vai chegar lá.
P/1 – Esse tipo de formação que você da aqui, você tem dificuldade em outra regiões, em outras cidades do país?
R – É tudo online, é igual. A nota fiscal de Fortaleza é processada aqui em tempo real.
P/1 – Mas a pessoa que esta na frente daquele sistema é a mesma?
R – É o mesmo sistema.
P/1 – Sim, mas ela tem que interpretar o sistema.
R – Interpretar não, é ensinado a usar.
P/1 – E não muda o aprendizado, você não tem dificuldade de lidar com as pessoas?
R – Não, no inicio a pessoa sofre bastante porque é tudo muito novo e é muito complexo. É muito complexo, demanda tempo e todo dia tem novidade, se funciona é obsoleto (risos).
P/1 – Eu vou te fazer uma pergunta, a gente ta chegando no fim, sobre receitas. Os jornais publicavam receitas, então o que você diria pra uma pessoa que diz: “Poxa, eu queria ser como você, acho que você tem um negócio diferenciado”. Tem receita? Qual é? O que você acha, na sua trajetória, que realmente marcou e te deu a possibilidade de construir o que você construiu?
R – Em primeiro lugar não tem receita, se tivesse eu já estaria milionário também, porque eu ia vender muito caro. Mas eu não tenho a receita, eu acho que é persistência, acreditar no que se faz, bom censo e pé no chão. Uma somatória de ingredientes que dão um bom prato, não é uma coisa só. Trabalha-se muito, você comentou na pergunta anterior, trabalhamos 363 dias por ano, só fechamos natal e ano novo, sábado, domingo e feriado.
P/1 – E teve um momento da sua vida de você trabalhar todos esses dias?
R – De domingo a domingo. Carreguei muita caixa. Quando eu comecei eu tinha cabelo (risos).
P/1 – Bom, agora uma coisa mais solta, assim, pra frente, você tem um sonho? Uma coisa mais lúdica?
R – To pensando em ir pra Marte!
P/1 – (risos) Você vai entrar naquele ônibus que eles estão...?
R – Por que não? Meu pediatra ta muito feliz comigo.
P/1 – Ta bom, vocês querem perguntar alguma coisa?
P/2 – Se o senhor puder fazer uma listinha dos seus livros favoritos.
R – Não, eu não tenho livros favoritos. Não tenho porque eu não li todos ainda. Se eu tivesse lido todos eu teria favoritos. Eu não posso selecionar porque eu não releio livros.
P/1 – Você não relê livros?
R – Não, eu tenho tantos pra ler, por que eu vou perder tempo com uma coisa que eu já li?
P/1 – E você lê vários ao mesmo tempo?
R – Leio, começo, largo, o Millôr diria pra mim: “Finalmente um cara sem estilo” (risos).
P/3 – Eu queria perguntar quais eram as suas brincadeiras de infância?
P/3 – Acho que não tinha uma específica... Ah, teve uma época que os clientes iam lá, eu era um menino, uns dez anos assim, eu roubava uma batata de casa, as pessoas vinham de carro e o cano do escapamento ficava quente, eu enfiava uma batata no cano do escapamento, a batata inchava e quando as pessoas ligavam o carro, o carro saía assoviando (risos), aquele apito de tampa de caneta, sabe? Que você assopra, as vezes eles abriam a tampa do motor pra ver o que era (risos), essas brincadeiras bobas assim. Mas eu fazia de tudo, absolutamente de tudo. Se eu não fazia de tudo, ainda farei.
P/1 – Ta bom, super obrigada, cansou? (risos)
R – Deu?
P/1 – Deu.
R – Beleza.
FINAL DA ENTREVISTA
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