Correios – 350 Anos Aproximando Pessoas
Depoimento de Ana de Cerqueira César Corbisier
Entrevistada por Isla Nakano
São Paulo, 17/06/2013
Realização Museu da Pessoa
HVC_016_Ana de Cerqueira César Corbisier
Transcrito por Liliane Custódio
MW Transcrições
P/1 – Ana, bom, vamos lá. Pr...Continuar leitura
Correios – 350 Anos Aproximando Pessoas
Depoimento de Ana de Cerqueira César Corbisier
Entrevistada por Isla Nakano
São Paulo, 17/06/2013
Realização Museu da Pessoa
HVC_016_Ana de Cerqueira César Corbisier
Transcrito por Liliane Custódio
MW Transcrições
P/1 – Ana, bom, vamos lá. Primeiro eu queria agradecer você ter se deslocado, vindo até aqui para contar a tua história. E para deixar registrado, eu queria que você falasse o seu nome completo, o local e onde a senhora nasceu.
R – Meu nome é Ana de Cerqueira César Corbisier e eu nasci em São Paulo. A família do meu pai era do Rio de Janeiro; e da minha mãe, daqui.
P/1 – E qual é a data do seu nascimento?
R – Dezesseis de abril de 1941.
P/1 – E qual é a história da sua família?
R – A família da minha mãe é uma família muito conservadora, chamada de os quatrocentões aqui de São Paulo; Cerqueira César. Eles são primos dos Mesquita, do Estadão, e têm uma família assim, você tem que andar bem na linha, têm padrões bastante rígidos. A família do meu pai era do Rio de Janeiro. Da parte paterna, eles eram todos oficiais da Marinha e muitos conspiraram no golpe de 64, junto com a família da minha mãe aqui em São Paulo. E a parte materna, eles eram muito ligados à coroa,
os irmãos dela eram monarquistas. Era todo mundo muito conservador, muito tradicional. Eu meio que fui um patinho feio, não sei como eu saí assim (risos), não consigo saber muito bem. Mas o fato é que desde que eu tinha 13 anos de idade, eu já tava na favela. Eu fiz parte daquele movimento da igreja, da esquerda católica do Vaticano II, da Igreja Progressista, até hoje é da Libertação, era bem ligada aos dominicanos. Minha família toda era udenista [União Democrática Nacional], eu já era getulista, eu era a favor da Petrobras loucamente com 12, 13 anos de idade. Eu sempre tive umas posições assim, diferentes da família. Eu estudei em colégio de freira, aliás, péssimo colégio, no Sagrado Coração de Maria, péssimo. Por sorte eu tinha feito um bom primário, eu tenho base de português, principalmente, história, de humanas em geral eu tenho boa base. Meu pai também sabia muito português. Meu pai era professor. Nós, a família nuclear, não tínhamos condições financeiras, porque meu pai era professor e na época não queria que minha mãe trabalhasse. Ela fazia as unhas da família, bordava muito bem pra família, tudo dentro de casa. Por isso mesmo ela me empurrou muito pra fora. Eu fui fazer faculdade, fiz Ciências Sociais na USP [Universidade de São Paulo], me formei em 68, no ano cabalístico de 68, mas mal participei do movimento estudantil, porque eu tava com filho pequeno, amamentava, meu marido não queria que eu estudasse, cada ano era uma luta, eu levei oito anos para fazer uma faculdade de quatro. Mas já meio ali querendo saber. Por quê? Como ele não me deixava trabalhar também, não sei como a gente casava nessas condições naquela época, mas casava. Eu fui fazer serviços sociais de graça, ser voluntária. E aquilo me deixava doente, porque toda semana você dava uma cesta básica pra mulheres, que falavam na época, “largadas do marido”. E eu via que aquilo não levava a nada, porque toda semana você dava uma cesta básica, toda semana a pessoa tem fome, precisa comer, não resultava nada. E o meu sogro era fazendeiro, tinha uma fazenda, e se perdia tanta fruta, e era manga, mamão, limão, e o caramba. Eu trazia aqueles sacos, porque eu não me conformava com aquelas pessoas passando fome e aquilo lá se perdendo. Ou seja, eu vi a luta de classe muito perto e era aquilo que me pegava. Não era a teoria. Eu nunca fui muito teórica, muito de estudar. Se você me perguntar qualquer coisa do Suicídio, do Durkheim, eu não me lembro de uma linha. Sempre o que me pegava era a injustiça, aquele negócio de ver meus filhos super bem criados, arrumadinhos, direitinho, e tanta criança [com] nada disso. Aquilo me fazia um mal. E uma vez meu filho mais velho, com quatro anos de idade, disse pra mim: “Aí, mãe, pobre? Quem gosta de pobre?”. Aí que eu fiquei mais chocada, o meu próprio filho falando isso. Hoje não. Hoje ele tem boas posições, mas na época de quatro anos de idade... (risos). Eu sei que eu fui me envolvendo, o casamento também foi dando errado, porque eu ia pra esquerda e ele ia pra direita, embora na época dos dominicanos a gente estivesse junto. Mas ele foi indo cada vez mais pra direita e eu mais pra esquerda. E uma frase que eu nunca esqueci foi um dia que ele me disse que o anseio dele era ter uma casa com cinco quartos e quatro garagens. E eu perguntei: “Mas por que cinco quartos?” “Ah, tem que ter um quarto de costura”. Eu digo: “Mas eu não costuro”. E quatro garagens, porque cada pessoa ia precisar ter um carro. Imagina isso? Há 50 anos. Quando a gente mal tinha um, porque a gente era classe média. Mal tinha um, imagina quatro. Aquilo pra mim foi o máximo [cúmulo]. Não era o meu sonho de jeito nenhum. Eu sei que com isso, misturando a político-social, a gente foi se afastando. Eu me lembro de uma passeata em que assim, a passeata, aí a guarda civil, e eu, e ele me puxando pra trás: “Mas você tem dois filhos”. Eu digo: “É por isso mesmo. É porque eu tenho dois filhos”. Porque aí veio o golpe em 64. Eu não me conformava que os meus filhos iam viver numa ditadura. E eu me lembro de uma reunião do pessoal da Democracia Cristã, que na época era o Montoro, o Chopin Tavares de Lima... Eu tinha acabado de ter o discurso de Brizola [Leonel Brizola], o mar de sargentos: “Vamos resistir e tal”. E as pessoas, o Chopin, especificamente dizendo, que depois foi secretário de educação, hoje ele é nome de rua. Ele dizendo: “Eu não posso fazer nada, porque eu tenho mulher e filhos”. Eu digo: “Mas é por isso que tem que fazer. É por isso mesmo que tem que fazer”. Eu era a única mulher e era bem mais moça, na época eu tinha 28 anos, eles tinham, sei lá, 40. Enfim, eu sei que aquela indignação foi crescendo, crescendo, e quando eu quis separar, o meu marido fez questão que queria ficar com meus filhos, queria ficar com as crianças. E eu o achava muito solitário, eu achei que era importante ele ficar com as crianças, porque eu tinha uma facilidade muito grande de relacionamento, e ele não. E eu gostava dele, quer dizer, a gente não tinha mais um casamento, mas eu não tinha nenhuma raiva dele, nada disso. Eu deixei as crianças com ele. Então eu tinha que dar um sentido pra minha vida, quer dizer, se ele quis ser mãe, eu tinha que ser pai. E na minha cabeça o pai, além de ser provedor, tem que apontar rumos, futuro, permitir o futuro. Aí eu me envolvi. Em 67 eu me separei. No dia seguinte que eu me separei, eu fui falar: “Quem tava organizado?”. Eu ficava pensando. Porque eu não tinha tempo de fazer movimento estudantil, então eu não sabia direito quem tava organizado no quê. Eu não mapeava as organizações. Aí eu me lembrei do Aloysio Nunes, que hoje é senador. Que era que nem um irmão meu, porque os pais eram amigos e os avôs já tinham sido amigos, tinha uma relação de família ali. Eu gostava muito dele, e ele de mim também. E eu fui procurá-lo, porque eu sabia que ele tava no Partidão, no Partido Comunista. Era a única pessoa que eu sabia onde tava. Eu achava o Partidão bem sossegado demais para minha cabeça, mas era o único que eu sabia. Aí quando eu fui conversar com ele, ele me disse: “Eu tenho uma coisa melhor pra você”. E aí me falou da ALN [Aliança Libertadora Nacional], que foi o movimento do Marighella [Carlos Marighella], que se cingiu com o Partidão e propunha a luta armada. E aí eu me dei quem nem um peixe n’água.
P/1 – Ana, eu vou querer saber vários detalhes sobre essa sua entrada na ALN. Foi legal você ter contextualizado, mas antes eu queria te fazer umas perguntinhas lá de trás, até pra gente entender um pouquinho como os seus valores foram se construindo, entender um pouquinho mais da tua família, você falou que foi a ovelha negra, só pra gente saber mais ou menos como isso foi acontecendo na sua vida. Se você pudesse falar um pouquinho dos seus pais, você sabe como eles se conheceram?
P/1 – Eles se conheceram na chácara de uma amiga comum. Também os pais eram amigos. E ela, que eu chamava até de tia, era a maior amiga da minha mãe de escola, eram colegas, foram colegas no Caetano de Campos, a escola na época chamava Escola da Praça, e elas foram colegas lá. E o meu pai, como os pais eram amigos, o meu pai conhecia essa moça dessa forma, pelos pais. E eles tinham uma chácara em Santo Amaro. Eu sei que foi assim, por amigos comuns que eles se conheceram. E minha mãe se apaixonou assim, loucamente. O casamento foi um desastre total, ela se separou numa época em que ninguém se separava, mas ela era apaixonada, foi apaixonada por ele. Ele era um homem muito interessante, bonito, falante, professor, foi deputado, imagina o perfil? Uma figura bem conhecida. Só que ele se mudou para o Rio. Quando ele separou, ele se mudou para o Rio, aí ele já não era mais tão conhecido aqui. Eu me identificava muito com ele, até eu era muito parecida com ele fisicamente, as pessoas me paravam na rua: “O que você é filha do Fulano?”. Aquilo era forte, era um orgulho pra mim.
P/1 – Ana, se você puder só falar o nome do seu pai e da sua mãe pra deixar registrado.
R – Claro. Meu pai chamava-se Roland Cavalcanti de Albuquerque Corbisier. Conhecido como Roland Corbisier. Foi escritor, deixou um monte de livros publicados. Ele estudava Filosofia, embora tenha se formado em Direito. Mas ele nunca trabalhou como advogado. Ele foi professor sempre, a vida inteira. Foi deputado, foi procurador da Justiça do Trabalho, foi caçado, foi preso cinco vezes em 64, mas não torturado, preso. Até tem um episódio engraçado, ele foi preso com o Raul Ryff, que na época era um sindicalista conhecido, do PTB [Partido Trabalhista Brasileiro], aí os dois: “Ai que bom, a gente vai ler muito, vai estudar muito, e tal”. No primeiro dia já puseram cada um numa solitária e acabou a alegria dos dois, rapidinho (risos). Mas pelo menos ele não foi torturado. Mas aquilo marcou muito, não o fato de ser preso. Ele dizia: “Privado da vida pública. Eu me vi reduzido à vida privada”. Aí ele já tava no segundo casamento, que também desandou. Porque quando o homem não tem trabalho e fica dentro de casa... Ele teve que inventar trabalho, ele dava curso de marxismo com assim, A estética... Sempre um nome e outro que camuflasse o que ele ia dar. Mas na casa das pessoas, em sindicatos, na Associação Brasileira de Imprensa, nesses lugares. Ah, ele antes foi integralista. Quer dizer, ele fez a trajetória inversa do Carlos Lacerda. Ele partiu do integralismo, daquela família super católica e virou marxista, fez esse percurso ideológico. E minha mãe, ela era uma batalhadora. Ela agora faleceu, mas era uma batalhadora, sempre foi. Porque as irmãs se casaram com gente de muito dinheiro, muito, então nunca precisaram trabalhar, nada. E ela muito orgulhosa, sempre trabalhou desde que separou, penou, porque não tinha formação pra isso, e ele mesmo não a deixava trabalhar. Então ela partiu do zero. Eu me lembro dela chegar em casa com uma dor de cabeça, porque ela não sabia datilografar, e tinha que datilografar. E também arranjaram um emprego pra ela no serviço público, ela ficou horrorizada com o serviço público, porque ninguém fazia nada, ninguém queria saber de nada. E ela era o contrário. Ela trabalhou, trabalhou, trabalhou muito. Depois, com 59 anos ela se mudou para o litoral, pra uma casa, sozinha, ela construiu a casa, foi morar na beira do mar em Ubatuba, e lá morou 30 anos. E nunca se arrependeu. Eu fiz a tentativa e não gostei. Mas ela se deu super bem. Até brincava que as bruxinhas amigas dela diziam que ela tinha antepassados fenícios para gostar tanto do mar. E ficou com horror ao meu pai, horror. Porque ele era muito mulherengo, muito, isso a magoou muito, judiou muito dela. Eles se afastaram quando eu tinha 13 anos, separam. Foi muito traumático, porque eu tava no colégio de freiras, as freias fizeram uma pressão, acabaram me expulsando da escola porque eles tinham separado. O padre no confessionário me mandava juntar os dois. Os dois tinham uma personalidade fortíssima, quem era eu, com 13 anos, pra juntar os dois? E nos pegou muito de surpresa, porque minha mãe era uma mulher muito educada, nunca vi uma briga. Também não via carinho, mas não via briga. Não tinha noção do que tava acontecendo, nos pegou assim, de surpresa, foi bem difícil. E na família não tinha ninguém nessa situação, então a gente ficou meio “os filhos do Roland”, meio estigmatizado. Eu tinha um irmão, tinha perdido um pequenininho, isso marcou muito a minha mãe também. O garotinho morreu com quatro anos e meio, não é fácil, e ficamos eu e meu irmão que tem dois anos de diferença de mim. Então meus pais eram assim, duas personalidades que você dizia: “Poxa, pra ser gente aqui, a gente precisa batalhar muito”. Porque os dois eram muito fortes assim, figuras, os dois. Ela era bonita também, linda, uma narizinho, uns tracinhos. Muito linda. E forte, batalhadora, porque para enfrentar aquela situação familiar, separada e tendo que trabalhar. Apesar de ela gostava de trabalhar, ela nunca rejeitou trabalho, não. Ela dizia que a vida dela era melhor que a das irmãs, porque ela tinha conhecido o mundo, ela viajou, conheceu gente. E as irmãs ficaram encapsuladas, na redoma delas. São três irmãs e tinha um irmão também. E ela era mais ligada com a mais velha e menos com os outros. Eu sentia isso, pelo menos. Não sei se você quer saber mais alguma coisa.
P/1 – Ah, eu queria te perguntar um pouquinho, Ana, como era, ainda na sua infância? Conta para gente da tua casa, da tua infância, o que você gostava de brincar.
R – A casa sempre foi de aluguel, porque meu pai era professor e professor ganha mal, a gente não tinha casa própria. E ela brincava muito com a gente, tipo esguicho. Brincava de água, metia a gente dentro do tanque, e fazia festa de aniversário no quintal. E a infância foi muito boa. Fora essa perda do meu irmão, que foi um horror. Esse meu irmão, o segundo, não o que morreu, esse que ficou, ele era bem complicado, tinha terror noturno, isso era meio complicado. Era uma criança delicada e que era tratada como eu, porque a minha mãe era tipo Luis Fernando Veríssimo, linha dura. E eu tudo bem, pra mim aquilo funcionava, mas para o meu irmão já não. Houve uma época que por falta de dinheiro ela dizia que o meu pai preferia os livros, então ele ficou morando na casa da mãe dele e a gente na casa da mãe dela. A minha mãe se incomodava muito com isso, porque um ano a gente ficou assim. Era perto, era tudo perto. E ele ia pra lá toda noite, tal. Mas ela se ressentia, porque ele dizia que ele preferia os livros à família.
P/1 – E como era o contato com as avós?
R – Ótimo. Maravilhoso. Eu dei muita sorte. Eu tive duas avós e dois avôs. Um, ele teve arteriosclerose muito cedo e morreu também cedo, relativamente cedo, então não foi tão próximo. Mas o outro desenhava pra mim as coisas da escola, era um avô assim, especial. E as avós, nem falar. Uma cozinhava maravilhosamente bem, tão bem que a gente engordava cinco quilos em duas semanas assim, ficando na casa dela, de tão maravilhosamente bem. E eu era neta mais velha, então era superquerida. E a outra, nossa! Essa que era carioca, ligadíssima à família. E tinha ficado muito sofrida, porque o meu avô teve muito dinheiro, ele era uma família imigrante francesa, ele vendia carro importado, ganhou um dinheirão, e na crise de 29 perdeu tudo. E ele era supercertinho, honesto, direitinho, vendeu tudo que tinha para ficar com a ficha limpa, quitar as dívidas, e foi trabalhar na junta comercial. Eles tinham casa própria perto da Avenida Paulista, Carro... Tinha um supernível e de repente não tinha mais nada. Isso meu pai tinha 14 anos, estudava no São Luis, perderam tudo. Então minha avó se retraiu muito. Mas com a gente ela era assim, se punha de quatro no chão pra brincar com a gente, sabe? Tinha uma filha solteira, uma tia, que era minha madrinha, também brincava, mas fazia teatro, e fazendinha, e não sei mais o quê, se dava ao trabalho com a gente. O maior castigo que minha mãe podia dar era dizer: “Olha, se vocês continuarem assim, não vão jantar na casa da sua avó”. Porque toda terça-feira a gente ia jantar lá. Para gente era um prêmio. Imagina, se não fosse jantar lá, era um castigo horrível. Então a relação com os avós foi assim, especial. Eu dei muita sorte.
P/1 – Ana, você falou que a sua avó cozinhava muito bem assim, tem alguma comida que ela fazia que você sente saudade assim?
R – Bolinho de bacalhau. Nenhum bolinho de bacalhau é igual ao dela. Nenhum. Era uma maravilha. Mas tudo que ela fazia era ótimo, muito bom.
P/1 – Ana, você comentou dos aniversários que a sua mãe organizava. Teve alguma festa que tenha marcado?
R – Olha, não especialmente. Eu me lembro de uma que ela fez, ela pôs um monte de mesinha no quintal assim, e todo mundo, a gente se sentindo gente grande, porque todo mundo na mesinha, eu devia ter oito anos, por aí. Mas foi muito legal aquela festa. Agora, a festa que eu mais me lembro, que foi incrível, eu já era adulta, foi um Réveillon. Ela fez uma festa, a minha mãe era bem festeira, fazia festas, e deu uma briga por conta de uma amiga minha, que era muito charmosa, e dois caras brigaram por causa dela. Então foi um tal de rolar um por cima do outro, e no fim um pai bateu no filho, porque tinha um grupo de amigos, meus pais tinham um grupo de amigos, casais, que saíam sempre, eram muito próximos. E eu fui criada com os filhos como se fôssemos primos. E um desses filhos acabou apanhando do pai sem querer, porque naquele rolo, um bateu no outro que nem sabia mais quem tava batendo, foi muito engraçado e acabou às cinco da manhã a festa. E eu me lembro da minha mãe querendo por ordem no pedaço, porque ela ficou sozinha. Ela separou, ficou sozinha e não casou de novo. Ela querendo se impor, mas a zona tava de tal ordem que não dava mais, não tinha mais jeito. Mas as festas eram divertidas. Assim, na adolescência ela arrumou uma garagem, a gente não tinha carro, arrumou uma garagem com mesa de pingue-pongue, a gente reunia os amigos. Então ela fazia todo domingo... Sabe a turma do Zé Celso da oficina? Eles moravam, eram cinco ou seis, moravam numa pensão. E eles eram colegas do meu então namorado, colegas de turma, a gente convivia muito. Eles iam domingo lá pra casa, minha mãe dava almoço para todo mundo, porque a pensão não dava almoço no domingo (risos). Então ela se dispunha muito. Fazia mingau de cará domingo à noite pra todo mundo, fazia chocolate com gemada, fazia coisas boas. Sardinha escabeche, que eu nunca, nem ela mesmo conseguiu fazer igual mais. Aquela coisa maravilhosa que era. Não sei se é o sabor da época, talvez, porque nunca mais saiu igual. Então eu digo que a infância foi boa, a adolescência também foi muito boa. O casamento foi frustrante. E, bom, mas não vamos avançar.
P/1 – Não, fique à vontade, Ana. Eu queria te perguntar em que região de São Paulo vocês moravam? Como era o bairro?
R – Quando eu nasci, os meus pais moravam com os meus avôs, porque como eles tinham perdido tudo, era o salário do meu pai que sustentava todo mundo. Então meu pai e minha mãe ficaram morando na casa deles. Era uma “ruinha” [rua pequena] que ainda existe, que chama Santa Branca, é bem pertinho da Igreja Imaculada Conceição ali na Brigadeiro, uma quadra. Uma casinha supersimpática, até hoje existe, não virou prédio. Então eu morei lá. Depois morei numa “ruinha”, que também existe, ao lado do que era na época a Sears, que hoje é o Shopping Paulista, que foi uma farra incrível, porque a “ruinha” era um beco e tinha uma escadaria que dava na Maestro Cardim atrás. Quando chovia, era uma farra, porque a gente escorregava e jogava bolinha, e todo mundo era amigo, como se fosse uma vila. Todo mundo era amigo. Tinha um que colecionava moscas. E a gente ia lá ver a coleção de moscas dele. Tinha outro que tinha um pé chuchu maravilhoso no quintal e a gente ia pegar chuchu. E tinha uma árvore no meio, a gente trepava na árvore. Nossa, era muito bom. O meu pai tinha certo problema com mulher brincando na rua. Mas minha mãe dava força, eeu não queria nem saber. Quem morava lá também era o Francisco Brasileiro, que era um sertanista, um romancista. O casal era muito amigo dos meus pais também. E ele tinha um verdadeiro zoológico, tinha macaco, tinha papagaio, tinha um monte de bicho. A gente ia pra casa dele, e lá podia fazer a maior bagunça, desmontava a sala, fazia sala de aula, brincava de escolinha. Aí a gente pulava para o hospital do outro lado, que era parede-meia com a tal da “ruinha”. O hospital, acho que era Oswaldo Cruz. E brincava no quintal, lá no jardim, que eles esqueciam de cortar a grama, o capim, ali era um lugar meio de ninguém, ou seja, nosso. Alguns ali da vilinha estudavam na mesma escolinha que era na Cincinato Braga. Então a gente ia junto, voltava junto. Eu era bem tonta, carregava a mala dos meninos pra eles poderem brigar (risos).
Eu levava uma mochila nas costas e duas nas mãos (risos). Mulher é sempre mulher (risos).
P/1 – (risos) Ana, a senhora até que conhece um pouquinho da história da tua família e tudo, eu queria te perguntar: você gostava de ouvir história, história de família ou outras histórias? Alguém contava história pra senhora?
R – Olha, eu tive uma tia, a prima-irmã da minha mãe que eu chamava de tia, com o nome idêntico, Camila Cerqueira César, que escrevia livros pra crianças. E alguns livros dela eram sobre a infância dela, ou dos sobrinhos. Tinha um, por exemplo, No reino dos mãos furadas, e ela contava pra gente. Essa outra minha tia, que era minha madrinha, que também ficou solteira, também contava história da família do outro lado. Tinha sim isso de contar histórias.
P/1 – E agora, Ana, a senhora falou dos amigos, de ir pra escola junto, voltar carregando as malas pra eles poderem brigar. Lembra-se do seu primeiro dia de aula? O começo da escola?
R – Olha, eu me lembro do último dia, acho que era do primeiro ano, porque eu já tinha passado nos exames, eu sempre era a terceira. Tinha uma que era sempre a primeira, outra que era sempre a segunda, eu era nem sempre a terceira. Eu sei que eu já tinha passado nos exames e tinha uma jabuticabeira, aliás, tinham três. E eu subi numa jabuticabeira e as donas da escola, que não eram freiras, mas eram ali [aliadas] com as freiras, me deram uma bronca tão federal, me tiraram de lá. E eu achando, porque eu vivia muito em fazenda, em meio rural, pra mim, subir na árvore e pegar fruta era uma coisa natural. Mas elas não acharam nada natural, não gostaram nada, me tiraram de lá. Isso eu lembro muito bem. Engraçado, eu não me lembro do primeiro dia de aula. Eu acho que não foi nada traumático, porque eu não lembro. Eu lembro muito da escola, porque eu gostei da escola do primário. Lembro assim, que tinha uns gêmeos, que ele era loirinho, ela era morena, eu achava superinteressante como eles eram tão diferentes. E me lembro da primeira da classe, da segunda. Reencontrei uma colega, que ficou chata pra caramba, anos depois lá onde a minha mãe morava. Mas assim, do primeiro dia de aula eu não lembro. E me lembro de não ter gostado nada do colégio das freiras, porque eu ia de bicicleta, nem largava na escola, largava na casa de uma amiga, perto. Era assim, “uma moça que se preze, não anda de bicicleta”. Ou seja, você vê que eu tava sempre na contramão da história (risos). Quer dizer, eu não seguia muito os parâmetros. E minha mãe dava força... Então a gente andava de bicicleta na beira do Rio Pinheiros. Onde hoje tem ciclovia era uma coisa de terra assim e a gente andava de bicicleta. Era muito gostoso. Muito bom. Fora o cheiro. Porque era bem mais forte ainda do que é hoje. Mas era bem gostoso. E frequentava o Clube Pinheiros, isso também foi importante na minha vida, porque não era esse clube chique que é hoje, era bem classe média. E tinha muita vegetação,
muitos eucaliptos. Tinha uma área de bosque, digamos assim, bem grande. Todo aquele fundo, que hoje é construído, não era. Era muito gostoso. Festa junina lá era o máximo. E aí eu tinha uma grande amiga, e frequentávamos juntas. Éramos três, na verdade, frequentávamos juntas em festas e nadar na piscina, era muito bom. O Clube Pinheiros desempenhou um papel importante nas nossas vidas, na nossa adolescência, digamos.
P/1 – Ana, a senhora falou que gostava de algumas coisas na escola, eu queira te perguntar quais matérias foi se identificando, ou um professor que tenha marcado.
R – Sempre foram as humanas que eu gostei mais. Eu tinha mais problemas com Matemática. Naquela época era muito comum isso, porque Matemática era muito mal dada, não tinha um método bom como depois eu notei que se inventou. Meus filhos, por exemplo, são ótimos em Matemática, mas já aprenderam de outra forma. A Estatística foi a única matéria que eu colei na minha vida, porque eu não tinha base nenhuma, não conseguia absorver. Era tudo decoreba. Dos professores, os que me marcaram foram os do Dante. Eu fiz o colegial no Dante Alighieri. E o Petrônio, que depois foi professor de Geografia da USP, ele marcou época na USP, era uma pessoa maravilhosa. Tinha o Sodero, era de Português, dona Branca de História, uns professores muito bons no Dante. Eu tive um filho temporão, quando eu já tinha 40 anos, de outro casamento, e eu disse que ia por ele no Dante, um filho meu do primeiro falou: “Mãe, o que você tem contra ele? Esse colégio é muito careta”. Eu digo: “Mas eu fui tão feliz lá. Eu aprendi tanto”. Pra mim, eu tinha só boa memória. Mas ele me disse que não era para por, que era muito careta, aí não pus. E de escola então fiz o primário nessa escola pertinho, que era ótima. Careta pra caramba, mas era ótima. Em termos de ensino era muito boa mesmo. Depois eu fui pra esse de freiras, que eu detestei, porque era muito dupla moral, aquela Maria Pia Matarazzo estudava lá, as freiras a tratavam assim [super bem], porque a mulher tinha grana. Eu não gostava disso. Não adiantava você se matar de estudar. Se você não desse bastante dinheiro para as missões, não rolava. Primeiro, ir de bicicleta já era um problema, depois meus pais se separaram, problema muito mais grave ainda, então não rolava. Depois eu fui para o Dante, que eu adorei, e depois eu fui pra USP, que eu também gostei. Só que a USP já ficou muito truncada, porque como o meu marido não me deixava estudar, eu fiz em oito anos. Agora até vai ter reunião dos alunos do primeiro ano. Mas eu tive um monte de turma, eu não consegui ter uma vida universitária, uma turma, porque ficava fazendo uma matéria por ano, ou duas no máximo, já casada, é diferente. É bem diferente.
P/1 – Ana, dessas escolas que você passou até o Dante, eu queria te perguntar, tinha uniforme? Você lembra como era?
R – Nossa! Total.
P/1 – Conta pra gente então.
R – Total. No primário acho que não tinha. No primário não tinha. No Sacré Coeur, imagina, colégio de freira, tinha um uniforme de ginástica, na época que ainda não falava Educação Física, falava ginástica, era uma saia com um elástico que vinha aqui, então ficava aquele balão horrível. Uma coisa horrível. E um chapéu. E o chapéu, como a gente o jogava pra lá e pra cá, era de feltro, tomava chuva, tomava sol, ele era azul-marinho, já tava cinzento. Nossa, era muito careta. E a saia por aqui [altura da saia], lógico, meia por aqui [altura da meia], branca, sapato preto. E era uma guerra pra ter aquelas meias com elástico aqui, porque o elástico laceava de tanto lavar e tal. E a gente nunca tinha aquela meia esticada direito como tinha que ser. Ai que nervoso, meu Deus do céu (risos). Era um sufoco o tal do uniforme. No Dante também tinha, mas eu não tinha problema com o uniforme (risos).
P/1 – E tem alguma amiga, amigo, que tenha marcado esses seus anos de escola?
R – Olha, deixe-me ver. Eu tive uma grande amiga no Sacré Coeur, que eu não revi, porque eu fiquei dez anos fora com a história de luta política e clandestinidade, eu fiquei dez anos fora daqui. Foi a única que eu não revi na volta. Eu fui colega também, no Dante, da Costanza Pascolato, a gente era muito amiga. E eu tinha vergonha de procurá-la, porque ela é tão chique, ela virou meio que uma estilista. E eu sou desse jeito que você tá vendo. Então eu achava que eu ia incomodá-la. Fora a minha história política também, que eu não sabia como ela tava pensando. Pois um dia a gente se encontra no casamento de um primo meu e dela, por partes diferentes. E, nossa, foi tão emocionante, foi tão legal. Foi demais. Demais de bom assim. Emocionei-me demais. Foi muito bom. E também quando meu pai morreu, foi uma colega minha de Dante, que eu perdi de vista totalmente, foi à missa de sétimo dia, também fiquei emocionada, só porque viu no jornal. Então tiveram uns episódios assim, fortes e legais também.
P/1 – E agora, Ana, a senhora contou pra gente que desde os 13 anos já tava envolvida, já tinha um projeto em termos de libertação, eu queira que você contasse um pouquinho como se deu esse envolvimento, como você foi pegando gosto.
R – Olha, eu acho que começou por vários caminhos. Porque eu fui bandeirante dos 13 anos aos 18. E as bandeirantes faziam um trabalho social na favela. Isso era uma motivação. E eu tinha uma tia, porque essa família da minha mãe, eles são assim, mas eles fazem um trabalho social, essa tia fazia, pelo menos. E eu me lembro de ir com ela arrumar cesta básica e tal pra levar pra favela. Eu acho que juntaram essas várias coisas. E aquele meu sentimento sempre de estar ligada assim, estar preocupada, chateada com a injustiça. E isso começou com 13 anos, isso eu lembro bem de ir para a favela Vila Alpina ali, perto de Osasco, por ali. Padre Comaru até. Depois eu fui saber dele, querer saber dele, ele tinha saído da igreja, tinha casado. A maioria dos padres progressistas saiu da igreja. Então eu acho que foi assim. Quer dizer, eu fazendo trabalho social sempre. E depois com essa história de não poder trabalhar, eu continuei fazendo trabalho social, dessa vez era na OAF, Organização do Auxílio Fraterno. A gente de noite saía pra distribuir cobertor e café com leite para as pessoas que estavam na rua, que, aliás, ficavam putas, ficavam bravas, porque elas estavam dormindo, já tinha tinham tomado todas e estavam dormindo, e a gente acordava para dar café com leite e cobertor. E na outra semana já tinham roubado o cobertor deles. Porque um rouba do outro, aquilo me deixava muito mal, muito mal. Tinha um jornalzinho que a gente fazia, eu lembro que a minha grande glória foi que eu inventei um título, De menores a crianças, para aquele jornalzinho, aquele número. Então eu fiquei toda feliz, porque eles usaram aquele número. Eu fui trabalhar com 16 anos, também foi bem jovem, fui trabalhar na Rádio Eldorado. Eu acho que isso também me jogou no mundo, porque você convive com muita gente, você vê muitas questões, muitos problemas. Mas marcou mais assim, acho que para questão da luta armada foi o golpe mesmo. Eu não me conformava. Porque eles diziam que a gente queria fazer a revolução socialista. Eu nem sabia direito ainda o que era socialismo. A gente tava fazendo educação pelo método... Alfabetização pelo método Paulo Freire. Aquilo me indignou muito, porque era tudo mentira o que eles falavam. Que nem hoje esses protestos. Quer dizer, a gente saía às ruas e era cavalaria em cima. Você saía porque a gente tava contra a Lei Suplicy de Lacerda, porque na época não tinha vaga na universidade, tanto que os milicos [militares] depois facilitaram de todo jeito para proliferarem as faculdades particulares, porque tinha um milhão e meio de jovens fora da escola na época, da universidade, não tinham condições. Mas então era igualzinho. Agora sábado eu fui ao Congresso da UEE [União Estadual dos Estudantes], eu tava ouvindo os meninos falarem, eu falei: “Poxa vida!”. Mas era assim mesmo. Você fica indignada, porque você não tá fazendo nada demais. E os caras te mandam a cavalaria em cima e gás lacrimogêneo, e bomba de borracha, igualzinho. Isso era ditadura, e hoje não é ditadura, mas o Alckmin, pelo amor de Deus... Enfim, então a gente foi radicalizando porque eles radicalizaram. A gente só tava lutando por isso, por melhores condições de ensino, por chance para todo mundo entrar na universidade, que até hoje ainda é duro. Agora tem as cotas, eu acho que tem algumas coisas que melhoraram, mas ainda é difícil. Geralmente quem estuda em escola pública só consegue entrar numa universidade particular, que é “carérrima” [muito cara].
P/1 – Ana, como você conseguiu a conquista de fazer Sociologia mesmo estando casada, de entrar na faculdade? Conta um pouquinho disso pra gente.
R – Olha, eu fiz vestibular antes de casar. Porque eu casei em novembro, no Finados, e o vestibular já tinha sido. Aí eu saí e fui estudar na França. Fiquei um ano na França estudando, e ele também. E a gente voltou. E no que a gente voltou, que começou a briga. Eu fazia Sociologia, depois eu fazia Antropologia, depois eu fazia Filosofia e Matemática, era assim. Negociado, tudo era negociado. Ano a ano foi negociado. Eu lembro que a gente tinha que fazer uma pesquisa, eu fui fazer minha pesquisa em Perus. Na época Perus esteve em greve um ano inteiro, sei lá, um monte de tempo, porque o tal do Abdala, que era o dono lá da fábrica de cimento, era um sacana total. Eu não tinha carro, mas eu tinha uma colega que tinha um fusquinha. E o fusca, não sei se é assim hoje, tinha um buraco atrás, não tinha porta-malas, era só um buraco. Eu punha o cesto do neném atrás, porque eu amamentava. E houve uma cena tão incrível, a gente tanto ia entrevistar o Abdala, como ia entrevistar os operários, o Abdala, a família dele, não me deixaram amamentar dentro de casa, eu tive que amamentar no carro, e um operário me deixou amamentar em casa. Então são tantas coisinhas assim, que você vê: “Pô, isso é a luta de classe”. Incrível. Porque na época não tinha esse negócio que nem tem hoje de exibir a barriga, de tirar a roupa e amamentar. Não, era tudo uma coisa muito discreta. Eu tive que botar abrigo assim na janela pra tampar pra poder amamentar. Era bem complicado o negócio.
P/1 – Fale um pouco mais do período de faculdade.
R – Ah, foi ótimo, salvo o professor de Filosofia, que acreditava em Deus, era religioso na classe, e as pessoas não eram. E o Oliveiros Ferreira também, que depois era do Estadão, e tal, que era nosso professor e que ficava provocando. A gente ainda não sabia nada de Marx, nada. Ele: “Vocês se dizem marxista, mas vocês não querem o poder. Como vocês podem ser marxistas se não querem o poder”. Claro que a gente não queria o poder. Imagina, com 18 anos você querer o poder. Pelo amor de Deus. Então tinham esses choques assim, que eles mesmos provocavam. Fui aluna do Fernando Henrique, do Paul Singer, dessa tropa aí boa, muito boa. Queriam convidar o Fernando Henrique para a comemoração, para o nosso encontro. Eu disse: “Bom, vocês me avisem, porque se ele for, eu não vou”. Porque eu acho que muita água passou debaixo da ponte e não foi tranquila essa passagem. Aquele negócio dele dizer isso, que isso é o que eu escrevi, e chamar os aposentados de vagabundo, sendo que ele era aposentado desde os 38 anos de idade, eu digo: “Aaahh”. Não quero. Mas, enfim, a faculdade foi assim. Eu passei direto [no vestibular]. Passei em 13º lugar, mas lógico que a procura na época não era a mesma, não era muita vantagem. Eu nunca fui muito de estudar, mas eu captava, eu prestava atenção na aula e tava ligada sempre. E com isso eu me dava bem. Passei bem até. Bom, aí voltei, em 61 eu recomecei e fiquei até 68. E foi isso. Mas foi bom. Com tudo que foi de loucura, de correria, de criança pra baixo. As pessoas iam estudar na minha casa, mas os garotos, quando já tinham dois e cinco anos, brigavam pra caramba. Então era difícil estudar, não tinha clima, era um auê. Então vamos dizer que a minha formação teórica deixa a desejar (risos). Mas foi um período interessante, estimulante assim, foi bem interessante.
P/1 – Fala um pouco do seu engajamento político, de como as coisas foram se desenrolando.
R – Então, aí ainda na faculdade, que eu comecei a tomar um pouco de pé, veio o Golpe de 64, eu estudei de 61 à 68, quer dizer, eu peguei justo o Golpe... Ah, e antes do Golpe, quando a gente voltou da Europa, tinha aquele negócio de festinha brasileira, homem pra um lado e mulher para o outro. E eu implicava com aquilo, eu dizia: “Por que será que aqui no Brasil a gente não conversa?”. Porque eu tinha morado na Europa e não era assim. Que coisa. Vai ver que é porque a gente é muito ignorante, a gente “mulher”. E fizemos um grupo de estudo de mulheres, que tinha um núcleo forte assim, de 14 pessoas, que às vezes aumentava, às vezes diminuía. A gente se reunia toda semana, os maridos rapidamente apelidaram de petit four, só pra desqualificar. Cada uma era encarregada de ler uma publicação, uma revista, na época a Veja era legal, era interessante, e um jornal, ou um jornal, e a gente chamava eventualmente alguém pra fazer uma palestra pra gente, então a gente estudava o Brasil. Quando chegou 64, algumas moças, porque tinham todas as posições políticas, tinha gente com todas as ideias, e nenhuma participação até então. Quando chegou 64, umas não queriam mais participar, porque achavam que era perigoso. Mas foi um grupo interessante, durou dois anos, porque todas foram estudar, ou foram trabalhar, ou foram participar mesmo, militar. Acho que foi um grupo que foi uma mola para as pessoas. Bom, isso era 64, eu separei em 67. Foi em 67 que o Aloysio me levou pra ALN. Eu conheci Marighella, fiquei encantada, adorava o Marighella. Quando ele morreu, pra mim, eu fiquei órfã. Porque meu pai já tava tão velhinho, ele teve Parkinson, ele ficou super mal. Eu o adorava, mas ele já tava tão mal que não tinha mais condições de ser meu pai naquele sentido. Mas o Marighella, pelo amor de Deus, parecia que tinham me tirado o tapete do chão quando ele morreu. Foi um horror. Um horror assim. Eu o adorava. Traduzia, porque eu sabia francês, eu traduzia os textos dele para o francês. Quando eu tive que sair, em 69, eu fui pra França, então eu ajudava a divulgar os textos, a luta aqui e tal. Então de 67, que eu separei, a 69, em junho, foi “pauleira” de luta armada. Porque eu ficava com os meus filhos, eu ia para o Clube Pinheiros, ficava com eles de oito ao meio-dia, ia trabalhar da uma às oito na TV Cultura, e nos intervalos eu fazia um monte de tarefa pra organização. Foi um período “pauleira” mesmo. Morava num apartamentinho, um estúdio, hoje não sei como chama, quitinete, na Praça Roosevelt. Mas foi maravilhoso também, um período muito legal, muito. Só era duro estar longe das crianças. Porque o meu marido, eu pensei que ele ia ficar eternamente grato, mas me sacaneou tudo que ele pôde. Se eu atrasasse cinco minutos, ele saía com as crianças de casa e eu ficava procurando por São Paulo onde eu tava pra pegar as crianças. Ele foi muito chato.
P/1 – Ana, você falou um pouquinho de como era encaixar as tarefas pra organização nesse dia a dia, queria te perguntar, como era quando entrava na organização? Como funcionava pra dividir as tarefas? Conta um pouquinho assim.
R – O Marighella não queria que gente, que tinha acesso, por exemplo, eu convivia com a minha família e eu tinha, portanto, acesso à informação, porque são do Estadão, imagina. Outro é banqueiro, era banqueiro, que agora morreu, mas era banqueiro. Então eu tinha acesso à informação. Ele queria que eu ficasse só circulando, mas nenhum de nós aceitava isso, porque a gente achava que: como que alguém ia pra linha de frente e a gente ia ficar na retaguarda se poupando? Não podia. Entendeu? Então a gente, todo mundo ia pra linha de frente também, participava de ação. E eu participava de um grupo que chamava GTA na época, Grupo Tático Armado, que era um grupo de ação. Eu tinha que fazer levantamento dos bancos, aí eu me dava bem, porque eu me arrumava direitinho, tal e tal, entrava no banco, ia ao banheiro do banco, conferia tudo que acontecia no banco pra saber depois como a gente ia atuar. Mas não tinha formalidade nenhuma, não. Cada um fazia o que sabia, o que queria. Lógico, tinha muita disciplina, muita compartimentação, isso tinha. Tipo, você tava aqui, por exemplo, hoje me perguntam: “Você conhece fulano?”. Da mesma organização, eu não conhecia. Você conhecia o teu grupo, mas não todo mundo, porque era uma questão de segurança.
P/1 – E como funcionava essa questão de vários grupos, pra dividir como iam ser feitas as estratégias, as ações? Como era decidido?
R – Bom, discutiam lá em cima. Discutiam lá em cima. A gente eventualmente propunha uma ação, aí subia para o Marighella. Na época eu nem sabia do Toledo, do Joaquim Câmara Ferreira, que era o segundo dele. Na época eu nem sabia dele mesmo. E aí eles lá resolviam se a gente ia fazer ou não, e fazíamos. Geralmente fazíamos, porque ninguém... A frase do Marighella: “Ninguém precisa pedir licença pra fazer revolução”.
P/1 – Ana, como foi tua ida pra França?
R – Eu fui pra França porque a polícia ficou em cima de mim. Na última hora eles me confundiram com outra moça, então meu nome ainda demorou seis meses pra cair. Mas saiu no jornal, tudo indicava que eles iam me pegar, tanto que eu não voltei pra casa, nem nada. Isso foi seis de junho, uma ação dia seis de junho. Olha, tá fazendo aniversário. E dia 13 de junho eu viajei pra França. Por que eu fui? Porque meu namorado tava lá, então eu tinha um pretexto. Eu tinha direito a férias na TV. A minha mãe foi lá à TV e levou uma carta de um médico como se eu não tivesse muito bem da cabeça, pra eu ter uma licença também, pra regularizar o negócio, deixar tudo arrumadinho. Não adiantou nada, mas ela fez isso. Até achei graça, porque esse Francisco Brasileiro, que eu falei antes, ele me levava prá lá e pra cá, ele era imenso, tinha dois metros de altura e andava de fusca, então ele ficava assim no fusca, dobrado em três assim, porque ele era muito grande para o fusca. Você vê que o fusca desempenhou um papel nas nossas vidas (risos). E ele dizia: “Bom, agora é que é o problema, porque é o imposto de renda”. E eu pensando: “Não, o meu problema não é o imposto de renda, o meu problema é o DOPS [Departamento de Ordem Política Social]”, que era quem dava o passaporte. Mas eu saí legal, porque meu nome demorou pra cair. Como essa minha amiga também tinha um fusca, também tinha um filho pequeno, se confundiram. E demorou pra cair, eu saí legal. Só que quando eu chegue, a minha ideia era ficar um mês e voltar. Eu queria ver em que pé que iam parar as coisas pra ver se dava pra voltar, se tudo bem. Quando eu cheguei lá, o meu chefe, que era o Soares Romora, que depois foi diretor da TV, presidente, mandou um recado pra eu não voltar, que a polícia tinha estado lá e tinha vasculhado a minha mesa. Lógico que eu tinha deixado a mesa limpinha, então não deu problema nenhum de endereço, nada, mas eu não voltei. Aí o Marighella mandou ordem pra todo mundo que tava na França ir pra Cuba, mas muitos não foram, por exemplo, Aloysio não foi, mesmo meu namorado, o Itobi, não foi, porque ele tava trabalhando com o Glauber Rocha na época, então ele demorou alguns meses pra ir. Outro que morreu agora pouco, virou depois funcionário da ONU [Organização das Nações Unidas], também não foi, Guilherme Lustosa. Eu fui a primeira que fui. Você dava a volta ao mundo pra chegar a Cuba, porque não tinha relações, imagina. Era a coisa mais clandestina que existia. E eu amei Cuba. Amei. Nossa, como eu me dei bem. E lá a gente treinou, fez treinamento de guerrilha, rural, urbana, tudo. Trabalhei num monte de coisa, tudo. Porque aqui você tem que ganhar certo salário, você não vai trabalhar de peão, porque seu salário não vai dar, fora que você não tem preparo pra aquilo. E lá não, lá eu podia trabalhar, porque a gente ganhava 40 pesos por mês dos cubanos. Então eu fiz de tudo, trabalhei em hospital, fui parteira, fui cabeleireira, trabalhei em gráfica, trabalhei na agricultura, tudo assim. Ou seja, uma experiência de vida única, que aqui eu não poderia ter nunca, não teria. Imagina se eu fosse, sei lá... Parteira até que vai, mas trabalhar na agricultura, ou ser cabeleireira mesmo, aqui pra minha família, nossa. Então fui livre lá, até porque o nome era outro, não tinha que dar satisfação pra ninguém de família, não tinha pressão social. A pressão lá é por trabalhar, se você trabalhar, tá tudo certo. Nossa! Depois, você vê, o sistema, era um país pobre, bem pobre, que resolve os problemas básicos. As pessoas estudam, têm atendimento à saúde, têm casa pra morar, comem, fazem esporte, têm acesso à cultura. A cinemateca de lá, eu tinha conhecido a de Paris, é melhor que a de Paris. Eu fiquei assim. Ou seja, o nível lá, a gente podia namorar qualquer pessoa. Porque aqui é um gueto, você só se entende com gente mais ou menos do seu meio. Você não vai namorar a pessoa da favela, porque não tem nada em comum, não é por nada, não é por preconceito, é por não ter nada em comum. E lá não. Lá qualquer pessoa tem um baita nível cultural. Imagina que eu dei um curso de política depois que eu voltei, depois da anistia, um ano só com o que eu tinha lido e vivido lá. Eu dei um curso de política que fez sucesso, porque ninguém sabia aquilo lá, era terceiro mundo, África, Ásia, América Latina... Pra mim foi uma descoberta, porque eu achava... Eu lembro que quando o Marighella falava em socialismo, eu dizia: “Ai, Preto...” – a gente o chamava de Preto – “Ai, Preto, para com isso, isso é coisa para os nossos netos”. Pra mim, o socialismo era uma utopia, uma coisa muito distante. Quando eu cheguei lá e vi, eu fiquei louca, porque resolvia todos os meus problemas. Eu tinha aquele horror de criança não estar na escola, de passar fome, de tudo isso. Lá não tem nada disso. Quer dizer, com aquele país pobre, porque não é um país rico de jeito nenhum. Pequenininho. Eu disse: “Nossa, quer dizer que é possível?”. E dizem que os milicos aqui tinham uma lista negra de gente do nosso grupo que tinha que ser morto todo mundo, porque com a gente não adiantava, que a gente era cabeça lavada. Não é que eles tinham razão? Porque de fato a gente, depois que você conhece lá, você não pensa de outro jeito, não tem como. Não tem como. Porque você vê que tem jeito. É verdade que precisa fazer uma revolução, mas tem jeito. Então eu me dei muito bem, muito bem. Tem um companheiro nosso, que era o nosso contato com o Partido Comunista de lá, quando ele vem pra cá, a gente fica assim, grudado o tempo todo. Muito bom. Muito bom. Ele agora mora na Nicarágua, eu fui vê-lo na Nicarágua. Muito bom mesmo. Adorei. Fiquei lá, acabei ficando seis anos. Porque como eu sou mulher e eu tenho um defeito na perna, os cubanos morriam de medo de eu voltar e ser muito fácil de detectar por causa do defeito. Mas eu me dei muito bem, eu fiquei quatro anos clandestinidade. Meus companheiros todos foram mortos, sobramos o Dirceu e eu. Dos que voltaram, só sobramos nós dois. Muitos ficaram na Europa, não chegaram a voltar. Só sobramos nós dois. Ele, como era uma liderança, era muito visado, se poupou mais também. Eu não. Eu não era ninguém, então eu organizei, fiz lutas. Não dava pra fazer luta armada, óbvio, mas eu organizei, organizei, tudo era pretexto pra organizar: era rato, era falta d’água, era qualquer coisa. Até vi um episódio engraçado, que eu tava numa luta lá contra os ratos e tava dando supercerto, o mulherio tava em peso, porque aquilo atormentava, rato caindo na sua cabeça à noite, pelo amor de Deus. Muito bem. Aí a última reunião era um sábado, eu marquei um sábado à noite. Tava tudo certo. Não veio ninguém. Eu não entendia: “O que tá acontecendo? Não veio ninguém? O movimento tava ótimo, não sei o quê, não sei o quê”. Era porque era o último dia da novela da Globo. Eu falei: “Hã, então eu tenho que assistir novela, eu não posso ficar por fora desse jeito” (risos). Futebol e novela se você não assiste, você não sabe o que as pessoas estão sentindo. E teve outro episódio engraçado, porque nessa época já tava começando uma abertura, digamos assim, o fato é que os movimentos sociais na Bahia, em Salvador, se reuniam no mosteiro de São Bento, os padres davam acolhida. E depois eu soube, na época eu não sabia, mas depois eu soube que o pessoal achava que eu era uma infiltrada, porque ninguém me localizava, porque eu era clandestina, eles achavam que eu devia ser infiltrada. E o meu trabalho dava certo, sabe quando você tem um período assim que você tá inspirada? Parecia um milagre, dava tudo certo. Fiz uma luta lá (risos), porque na época tinha o negócio do BNH [Banco Nacional de Habitação]. Era um financiamento como se fosse Minha Casa Minha Vida, um financiamento habitacional. Só que as pessoas não conseguiam pagar e saíam. A classe média largava porque não conseguia pagar. E aí o povo lá na Bahia tinha o costume de ocupar. Tinha pelo menos dois conjuntos, eu fiz luta lá com êxito. E nessa daí a gente enfrentou a polícia. Eu não podia dar a cara, porque imagina, clandestina como a clandestinidade, não podia dar a cara. Mas a gente organizou de tal jeito, foi a coisa mais linda, eu ainda tenho as fotos. A gente enfrentou a polícia com metralhadora, durante o dia, contra mulheres, e velhos, e criança, porque os homens estavam trabalhando. Uma vergonha, assim. Uma vergonha. E foi tão louco, porque a gente tinha se preparado com todo mundo no pátio embaixo. Era um conjunto habitacional. E o pátio era de cerâmica, vermelho, de tijolinho, essa coisa vermelha. E as crianças ficavam correndo pra lá e pra cá enquanto a gente fazia a reunião. Ou seja, eles ouviam, mas a gente não tava preocupado com eles, tava preocupado com a organização, porque a gente já sabia que iam desalojar. O primeiro conjunto a polícia tentou desalojar todo mundo junto, então a gente organizou todo mundo, a igreja ajudou, tinha uma igreja que funcionava lá perto dos Alagados. Então, isso era em Salvador na Ribeira. Os dois conjuntos foram na Ribeira. E os padres ajudavam ali, tinha um trabalho ali, eu aprendi muito com eles, aliás. E aí nós impedimos nesse primeiro conjunto. Aí a polícia: “Bom, não dá pra desalojar todo mundo ao mesmo tempo, porque aí todo mundo se une”. Então resolveram desalojar separadamente. Só que a gente percebeu o que eles iam fazer. E uma recebeu intimação pra sair, mas a gente: “Olha, vai acontecer isso, porque aconteceu no outro, vai ser assim, assim, assado”. Então organizamos tudo. Cada mulher, no dia que a polícia chegasse, ia pra um telefone, os orelhões, porque na época ninguém tinha celular. Era povão mesmo, ninguém tinha telefone, celular não existia ainda, nem internet, nada disso. Então cada uma ia pra um orelhão, uma pra falar com o advogado, que a gente já tinha um contato, outra com o deputado... Cada uma com uma... Bom, moral da história, eles chegam ao meio-dia e cai uma tempestade. E a gente: “Ouviram do Ipiranga as margens plácidas...”. A gente tinha lido que a polícia não pode passar por cima da bandeira, então a gente pôs uma bandeira na frente da casa da senhora que ia ser desalojada. Eles nem ligaram, rasgaram a bandeira, E a senhora, ela era grandona assim, devia ter uns 46, por aí. Tenho foto dela assim com as mãos na frente da casa dela. E o conjunto tinha quatro prédios e no fundo, eles entraram com o caminhão do despejo na frente, e um monte de fusquinha, que a polícia só tinha fusquinha, um monte de fusquinha atrás. Você acredita que as crianças furaram os pneus dos carros? Que era uma das sugestões que tinha surgido nas reuniões, mas que não foi aprovada. Mas as crianças queriam lá saber se tinha sido aprovada ou não? Furaram os pneus do caminhão. Eles ficaram bloqueados, porque o caminhão tapava o acesso à rua. Então o policial que tava comandando, que tava do lado de lá, ficou ilhado. Gente, foi incrível, incrível. Foi de tal ordem que saiu na imprensa, o bispo foi rezar a missa de ação de graças, o Candomblé, obviamente, fez um ato, uma senhora montou uma peça de teatro, a gente fez uma peça de teatro. Foi o máximo assim. Foi uma luta com todo o êxito. Então deu pra fazer isso durante a clandestinidade. Fora que eu trabalhava profissionalmente, porque tinha que me sustentar, lógico. Até teve outro episódio de trabalho engraçado, porque primeiro eu trabalhei de vendedora ambulante, então eu andava pela Bahia inteira junto com uma equipe vendendo brindes. Por quê? Porque eu achei que era um emprego interessante, porque eu não ficava tão visada. Porque você não sabe um monte de coisa quando você chega a uma cidade estranha, ainda mais a Bahia, que é cheia de personalidade. Eu não sabia um monte de coisa, podia não me comportar adequadamente, tinha estado fora cinco anos num país completamente diferente, não sabia as músicas que estavam se cantando, tava por fora, roupa, tudo. Então eu achei que esse trabalho de viajante era bom, deslocava de mim a atenção. Tudo bem. Aí viajei, viajei, foi ótimo, conheci o interiorzão, o sertaozão inteiro do nordeste. Foi incrível. Mas aí eles resolveram me tirar do interior, diziam que era porque eu era mulher… Na verdade, era
porque eu tava ganhando bem, porque como eu trabalhava muito direitinho, eu vendia feito água. E eles resolveram me tirar, e botar em Salvador. Eu fiquei brava. Arrastei os caras pra justiça , porque, como sempre, faziam um monte de coisa errada, a empresa foi à falência, nós ganhamos em três meses. A empresa foi à falência. Digo: “Ê, meu Deus, dei um tiro no pé”. Bom, aí arranjei um emprego de arquivista, no arquivo do Jornal da Bahia. Adorei. Imagina trabalhar em jornal, que delícia. E lá é pequenininho, então você trabalha aqui, a diretoria é logo ali, você conhece todo mundo. Na hora que saiu a anistia, que eu fui me despedir do meu patrão, porque era o dono do jornal, eu convivia com ele, eu conhecia, e ele disse: “A hora que você quiser o emprego, é seu, tá às suas ordens”. Eu não falei nada de anistia, é claro, eu falei que a minha mãe tava velhinha, tava precisando de mim. Ninguém sabia nada. Eu falei: “Que pena, nunca...”. Pensei: “Nunca vou poder aproveitar essa oferta tão generosa” (risos). Porque o nome era outro, como eu ia poder voltar? Complicado.
P/1 – Ana, deixe-me te perguntar, eu fiquei curiosa, referente ao nosso projeto, eu queria te perguntar, durante o seu tempo na França, em Cuba, você se correspondia com alguém? A senhora enviava alguma carta? Recebia alguma?
R – Desde a Caetana, todo mundo me pergunta daqui, porque é o foco do trabalho, no caso. Ocorre que nem cogitar em trocar correspondência, era completamente impossível, porque eles nem sabiam, os milicos, nem sabiam onde eu estava e nem podiam saber, porque uma hora eu ia voltar, e aí? Tanto que eles mataram um monte de gente, por várias razões. O que eu disse aqui que eu tenho de correspondência são três coisas. Acho que duas de maior interesse. Agora, depois que meu pai morreu, há pouco tempo, a minha madrasta descobriu lá nas coisas dele e me mandou, umas cartas que ele me escreveu para o endereço que a gente falava: “Então escreve pra lá”. Eu não sei por que, já não lembro o que aconteceu, que eu nunca recebi essas cartas, voltaram tudo. E ele escreve com o nome suposto, mas meu pai não sabia ser clandestino, então é óbvio do que ele tá falando, é muito engraçado (risos). E tem uma carta que eu mandei para o Dirceu da última vez que ele foi pra tirar a prótese. A gente tinha um sistema também de comunicação. Eu tenho uma carta que eu mandei pra ele, não sei porque tá comigo, aliás. Talvez ele tenha me dado quando voltou, ou voltou com os documentos que vieram de Cuba, eu sei que eu tenho uma carta desse período. Eu acho que talvez seja interessante... A Márcia, a fotógrafa, até disse que vai me procurar a semana que vem, porque eu não trouxe hoje, pra pegar.
P/1 – Mas Ana, você falou que vocês tinham um sistema de comunicação. Tinha algum jeito de outra pessoa receber a carta em nome de outra? Tinha algum esquema que era feito?
R – Não tinha. Porque, primeiro, eu morria de medo que eles pegassem os meus filhos ou a minha mãe. Morria de medo. E a minha mãe, como ela tinha uma posição oposta a minha, ela era muito incauta. Imagina que a primeira coisa que ela fez quando eu sumi, foi ir à casa de uma pessoa que ela conhecia, que era secretária do secretário de segurança daqui e perguntar pra ela de mim. Só que ela chegou lá e tinha um cara com um olhar que ela não gostou nada, que era um cara do DOPS. Então, quer dizer, não dava pra ter algum esquema, porque era um ambiente minado, minado. E eles fizeram isso com outras crianças, pelo menos com uma que eu soube lá. Prenderam uma criança com dois anos, ele ficou preso dos dois aos quatro anos. Saiu daqui falando palavrão, fumando com quatro anos de idade, um horror. Os cubanos conseguiram, porque a mãe tava em Cuba, levar a criança pra Cuba e aí fazer todo um trabalho de recuperação da infância daquela criança, porque ele tava fumando e falando palavrão com quatro anos de idade. Então eu morria de medo, morria. Eu tinha mais medo disso do que de ser torturada, de qualquer coisa.
P/1 – E durante toda a sua trajetória, mesmo antes, talvez, desse engajamento se aprofundar, teve alguma correspondência, alguma carta que tenha marcado assim?
R – Ah, tem as cartas de amor, que sempre marcam.
P/1 – Com quem a senhora trocava carta de amor?
R – Ah, teve um cara que gostou de mim que me escreveu várias cartas. Eu tenho essas cartas. Preciso até procurar, mas tenho.
P/1 – E teve alguma que a senhora tenha enviado ou recebido com alguma notícia importante?
R – Não. Não. Quer dizer, sim, eu devo ter escrito, devo ter respondido, sei lá, mas ficaram com ele, não sei que fim levaram. Essas cartas que eu escrevi, eu não tenho.
P/1 – E dessas de amor, tem alguma que tenha um conteúdo que foi mais especial que a senhora lembra?
R – Não, carta de amor é sempre especial. Vamos dizer que (risos) faz muito bem para o ego (risos). E o cara era poeta e tal, então sabia escrever.
P/1 – Bom, Ana, agora eu queria te perguntar, durante todo esse tempo de ativismo assim, quais foram os momentos mais difíceis? O que foi mais difícil de lidar?
R – Ah, ficar longe dos filhos. Com certeza essa foi a dificuldade. Não vê-los... Marcou-me muito um negócio, não vê-los se alfabetizarem, porque é um momento muito importante. Eu não vi. Porque eu os deixei com quatro e sete. E voltei, eles tinham 14 e 17. Então eu perdi a infância deles. Isso eu acho que foi o mais difícil.
P/1 – E quando você chegou tanto à Cuba, quanto à França, quem foram os primeiros amigos? Como a senhora foi recebida?
R – Olha, na França eu tava cheia de amigos, porque tinham outras pessoas que tinham ido pra lá, inclusive meu na morado, na época. Então era ótimo, tinha os amigos, os amigos daqui. E em Cuba, nossa, fui tão bem recebida. E depois eu fui pra esse grupo de brasileiros, que é chamado O Grupo dos 28. Todo mundo era companheiro e tava tudo certo. E tinha uma amicíssima minha, essa que tinham me confundido, ela ficou também no mesmo grupo, ela era muito minha amiga. Então eu tava em casa, digamos. E me dei bem, porque o pessoal se organizava muito, tinha equipe pra fazer almoço, equipe pra fazer jantar, equipe pra limpar a casa, e se rodiziava. E a gente fazia ginástica, e lia, e não sei o quê, era tudo muito organizado. Eu me dei bem com esse sistema, porque trabalho pra mim não era problema, tanto que eles diziam: “O seu forte é o trabalho”. Ainda bem.
P/1 – Ana, a senhora contou pra gente que antes de entrar na faculdade, antes a senhora morou na Europa?
R – Eu fiz vestibular e fui pra Europa.
P/1 – Com o ex-marido?
R – É.
P/1 – E como foi? Por que a senhora foi pra Europa?
R – Eu tinha um sonho. Eu sou de família francesa, como você pode ver pelo meu nome, então eu era louca pela França e tinha muita vontade de viajar. Eu sempre gostei de viajar, tanto que com bandeirantes eu viajei, sempre que eu podia eu tava viajando. Só que o dinheiro era muito curto, então o negócio era bolsa de estudos. Aí meu pai arranjou pra ele também, para o meu marido também arranjou uma bolsa de estudos. Meu pai é fundador e diretor do ISEB, Instituto Superior de Estudos Brasileiros, que foi um instituto que marcou época naquela... Porque dava aula sobre o Brasil, de nacionalismo. As pessoas ainda eram muito voltadas para a Europa ou para os Estados Unidos. O ISEB foi importante, tem vários livros, a Marilena Chaui escreveu sobre o ISEB, vários livros publicados e tal. Então meu pai podia solicitar e conseguir bolsa. E conseguiu. E a gente foi estudar no Instituto Superior de Estudos Sociais e Econômicos, que é uma coisa ligada a Sorbonne. E ficamos lá um ano estudando, e depois ainda viajamos seis meses pela Europa inteirinha. Um carro daqueles que vendiam na época só pra estrangeiros, custou 50 dólares, e viajamos pela Europa inteira sem um tostão, dormimos em albergue juventude, dormindo dentro do carro, comendo pão com queijo-patê e tomando vinho, aquela viagem bem de estudante. Pela Europa inteirinha, a gente viajou. Então também foi uma experiência muito rica.
P/1 – E nesse tempo não tem nenhuma historinha de correspondência ou carta? Porque aí ainda dava pra mandar, nessa época, né?
R – Tinha. Tinha. Não, tem. Tem. Tem muita correspondência.
P/1 – Se você puder contar pra gente assim, talvez uma que tenha enviado pra mãe, ou...
R – Não, tenho. Tenho correspondência dessa época, sim. Tenho as cartas que eu enviei para os meus avôs.
P/1 – E tem alguma que a senhora tenha recebido que tenha emocionado, alguma história especial de cartas dessa época assim?
R – Bom, receber carta também é outra coisa maravilhosa que se perdeu. Porque agora você só recebe conta pelo correio, né? Não tem uma bendita carta, nunca. E isso é uma pena, porque era muito bom receber carta. Mas então certamente foi bom. Agora, eu não me lembro de nenhuma especial. Eu tenho cartões também dos meus filhos. Eu tenho bastante coisa. Não da época da clandestinidade. Ou antes, ou depois.
P/1 – E outra coisa, depois Ana, depois dessa fase, não tem mais nenhuma outra história de correspondência talvez que tenha marcado depois? Talvez de algum amigo que tenha conhecido no exílio e que acabou ficando o contato depois?
R – Olha, eu tenho uma amiga que eu perdi agora, morreu o ano passado, morava em Arraial do Cabo, e ela não tinha computador, não tinha um tostão, era uma situação muito ruim. E eventualmente ela escrevia. Pra mim era muito angustiante, porque era um problema sem solução. Ela tinha 23 cachorros, 13 gatos, sei lá quantos gatos, ou seja... E os gatos eram mais importantes que os próprios filhos, que os netos, e o caramba, então não tinha jeito. A mulher escrevia que era uma beleza, sabia escrever, fez uma tradução daquele Histoire d'O, História de O, que é meio famosinho, acho que é erótico, eu nunca li. Dizem que é um clássico a tradução dela. Ou seja, ela não precisaria estar na miséria que ela tava. Pra você ter ideia da falta de grana, ela recebia dinheiro do Auxílio ao Idoso, que é pra quem não tem nada, o governo dá um pouco menos que um salário mínimo. Então uma situação muito horrorosa. Então ela escrevia, porque eu a ajudava, então ela me escrevia. Eu tenho cartas dela, com certeza. Agora, me angustiava, não vou dizer que me desse prazer, porque não me dava, era muito angustiante. Porque era uma falta total de meios. Era o único meio que ela tinha de se comunicar, era o correio meio.
P/1 – Ana, agora eu queria... Se você pudesse, talvez, pontuar pra gente, ou assinalar um pouquinho tanto da sua trajetória na ALN, depois do teu exílio, o que você aprendeu em Cuba, o que foram talvez os marcos, os divisores de água que talvez definam um pouquinho da tua personalidade hoje?
R – Bom, que nem eu te falei, ter conhecido Cuba marcou pra sempre. A minha mãe que dizia que eu melhorei da água para o vinho, depois que eu vim de Cuba. Porque eu tinha um mau gênio horroroso, e fiquei tão “legalzinha” (risos), segundo ela. E de fato, porque em Cuba você percebe que você não é o centro do mundo, porque lá o individualismo não é cultivado. Então você se educa. Eu me eduquei. Eu percebo isso, que eu me eduquei. Acho que foi fundamental ter ido pra Cuba. Essa decisão de não ficar na Europa, até porque eu já tinha vivido na Europa, eu sabia que aquilo não leva a nada. Ficar fazendo a revolução do café não resolve. Que nem as pessoas ficavam, aquela discussão eterna em torno de uma mesa de café. Ai, não dá pra mim. O meu negócio é por a mão na massa. Então pra mim, ter ido pra Cuba foi determinante. Ver que era possível uma mudança social e econômica só com a mudança de organização do país. E o que mais? Bom, isso eu acho que foi o mais importante, o mais positivo. E essas lutas na Bahia também foram muito importantes pra mim, porque foi uma experiência incrível. Eu tava sozinha, eu tinha que inventar, que criar da minha cabeça, eu não sei da onde vinha tanta força. Ah, e depois ainda teve outro episódio. Quando eu voltei, eu sou fundadora do PT [Partido dos Trabalhadores], e eu continuava iluminada, continuava dando certo, porque eu fui a primeira secretária, secretária mesmo, não secretária política, secretária. E também surgiam os lucros assim, que pareciam cogumelos. Eu conseguia ligar lé com lé, cré com cré no Brasil inteiro. Então também foi uma experiência assim, incrível, incrível. Assim, gratificante. Quando você percebe que você esticou tua corda, o teu arco, o máximo, e a flecha páá, vai certinho. Eu me senti utilizada ao máximo. Era muito bom. Muito bom.
P/1 – E conta um pouquinho pra gente como você foi parar primeiro logo como secretária, trabalhando no PT, qual é a história?
R – Então, eu cheguei no dia 23 de setembro, aí a pessoa que tava na articulação lá, que até eu perdi de vista, me ligou. Não sei quem deu o contato pra mim, não sei da onde me descobriu, porque eu vim quietinha, não fiz festa nenhuma na hora de voltar, porque todo mundo as pessoas iam buscar no aeroporto, mas eu não confiava nada que aquilo ia durar, eu morria de medo. Eu tinha tido o nome falso, então eu seria condenada a mais quatro anos, pelo menos. Então eu voltei quietinha. Não sei como ele chegou a mim. O fato é que ele chegou, me convidou pra uma reunião, nunca vou esquecer, dia oito de novembro. Minha mãe queria morrer, porque eu chego em setembro, fim de setembro, já oito de novembro já to numa reunião do PT. No começo da articulação, era 79. E aí eu me ofereci pra ser secretária. E eles acharam pouco e bom. E tinha o Zé Ibrahim, que morreu agora, ele era do grupo dos sindicalistas, e eu tinha conhecido ele na Europa, numa das minhas passagens pela Europa. Porque nesse período eu voltei várias vezes clandestinamente. Enquanto eu tava em Cuba, eu vinha e saía pra cumprir tarefa. E eu cruzei com o Zé Ibrahim na Europa, então ele me conhecia. Aí ele me chamou pra Comissão de Organização, aí sim era político. E eu me dispus a ser secretária lá. E ganhava assim, pra pagar a condução e o sapateiro, pra sola do sapato. E morando na casa da minha mãe. Que minha mãe resolveu morar no litoral e pediu pra eu ficar morando na casa dela. Pediu, quer dizer, na verdade era pra quebrar um galho pra mim, mas ela pediu, que ela era uma mulher elegante, ela não tava me fazendo um favor, eu que tava fazendo um favor pra ela. Ficar morando na casa dela, porque ela não sabia se ia dar certo lá no litoral. Então, ou seja, não pagava aluguel, já era uma grande coisa. E a gente dividia as despesas: eu, meu companheiro, que é o pai desse último meu filho temporão, e ela. Uma vida muito simples também. Eu sei que eu ganhava nada, acho que era 50 reais por mês, uma coisa assim. Era pra dizer que ganhava. E foi uma beleza. Deu tão certo, tão certo, deu tão certo que acho que a Irma Passoni, que na época era deputada, ficou com ciúme. Porque todas as correspondências do partido apareciam assim: “Contato com Ana”. Ana é Maria, mesma coisa, pode ser qualquer pessoa, não identifica ninguém, ou seja, não era um personalismo, era só pra facilitar mesmo. Porque ela me acusou de estar cobrindo o boy, de estar roubando, que de fato dele tava roubando, mas eu não sabia que era ele, eu não podia condenar sem prova, e a corda sempre estoura do lado mais fraco. E o menino era indicado pelo bispo de Osasco, eu não podia condenar sem ter certeza. Aí o meu marido, que não tinha os mesmos pruridos, arrombou... O menino morava embaixo, era um lugar que o Luiz Eduardo Greenhalgh cedia para o PT, ali na travessinha da Brigadeiro Luis Antônio. E o garoto morava embaixo, como se fosse um porão mesmo, tinha uma casinha assim. E meu marido foi lá, forçou a porta, e tinha depósito em carteira de poupança todo dia, todo dia, então ficou provado que era ele mesmo. Então aí é diferente. Com prova é diferente. Mas nessas, a dona Irma Passoni me tirou de lá. E depois, pra ter esse último filho, eu fiquei seis meses na cama. Então eu perdi o pé, porque a gente tinha construído um núcleo, que depois virou diretório, lá no Itaim Bibi, onde tinha três favelas. Todas as favelas tinham núcleo do PT, foi incrível, incrível mesmo. A gente tinha 700 filiados. A gente ia de porta em porta, porta em porta. Porque na época, pra você formar um partido, ou você tinha X deputados, ou X lotação em cada estado, era bem difícil, não sei como tá hoje. Ou você tinha que ter filiados. E pra ter filiados, só indo de porta em porta, porque não tinha, deputado era meia dúzia. Quem acreditava no PT no começo, essa coisa de sindicalista? Então a gente tinha 700 filiados, era o máximo. Imagina que a gente mantinha a sede aberta nove horas por dia só com trabalho voluntário, porque tinha muito professor, muito aluno, então eles usavam as janelas, como eles falavam, pra fazer plantão lá. Era lindinha a sede, toda bonitinha, toda arrumadinha, vendia livros, vendia camisetas, era um agito. Fazíamos festa na rua com 300 pessoas, tinha núcleo de doméstica. Quando juntava todo mundo... Um dia teve uma discussão histórica. O Antônio Cândido, sabe o Antônio Cândido? Era do diretório também. E o Marco Aurélio Garcia, esse que agora é grandão lá da Dilma, era do diretório. O Marco Aurélio todo metido, com pincenê, usava pincenê, vê se pode. Sabe o que é pincenê? Usava.
P/1 – Se você puder descrever pra gente...
R – Eram uns óculos de um olho só, todo assim, chique, muito chique, e que se usava, sei lá, em 1920, sei lá quando, ele é muito metido. Um dia ele usou uma palavra tão difícil, tão difícil que eu nem me lembro da palavra e nem sabia o que era. Aí houve aquele segundo de silêncio total, até que uma das domésticas, que era uma gorda, uma negra desse tamanho assim, “quaaaa qua qua qua qua”, deu uma gargalhada, mas foi a coisa mais genial, todo mundo caiu na gargalhada junto. E a cena do Antônio Cândido, que pra mim é emblemática assim, é Antônio Cândido discutindo com um cara da favela. Porque o pessoal da favela tinha assim, tinha delinquência e tinha os trabalhadores, e os trabalhadores ficavam indignados, porque a delinquência não os deixava dormir, porque botava música alta, tinha baile a noite inteira. Eles queriam posto de polícia lá dentro pra botar ordem no pedaço. Aí o Antônio Cândido explicando para o cara porque não era interessante um posto de polícia lá dentro (risos). Ai, demais, gente. Foi uma experiência incrível aquele diretório. Incrível. Mas aí o meu marido, esse segundo, era um baiano, uma pessoa do povo. E os intelectuais não curtiam, porque o meu marido tinha uma liderança incrível, a favela votava com ele sempre, ele era a liderança ali dentro. Quando eu fiquei na cama seis meses, fazendo trabalho para o partido, eu organizava curso, assim, eu tinha uma lista de professores, intelectuais, especialistas em muitos assuntos, e os núcleos pediam: “Nós queremos uma palestra sobre tal assunto”. Aí eu ligava pra aquela pessoa daquele assunto: “Você pode ir?”. Marcava o dia, arrumava tudo por telefone. Então eu continuei fazendo o trabalho. E a minha casa era uma sucursal do diretório, porque era perto, e o pessoal vivia lá, e tinha muito jovem, viviam lá em casa. Mas ninguém queria, como eu tava ameaçada de perder o bebê, ninguém queria me sobrecarregar e não me contavam os problemas, e não me contaram. Então os intelectuais disseram que o meu marido tinha pegado dinheiro com uma favelada e não tinha pagado. E meu marido, que era que nem um galo empinado assim, ficou bravo, retô, como eles falam na Bahia, retô, e saiu, se afastou. E eu fui solidária a ele, porque tinha que ser, imagina que absurdo falar um negócio desse. E era puro ciúme. Ciúme, porque ele era uma bruta liderança ali dentro. Em vez de eles entenderem a importância daquilo, deram um jeito de queimar. Bom, não precisa dizer que o diretório fez assim porque eles pensam que o espaço é o poder. Não é o espaço, é o que você constrói naquele espaço. Aqui é lindo, bonitinho, arrumadinho e tal, se não tiver trabalho, não adianta. Não existe o Museu da Pessoa sem trabalho. Óbvio. E assim era lá. Então foi assim que eu perdi o bonde, sem nem saber direito o que tava acontecendo.
P/1 – Ana, agora eu fiquei curiosa também. Durante esse seu tempo de secretária, você falou das correspondências que chegavam pra você. Eu queria saber um pouquinho do fluxo de correspondências do partido no começo, de onde vinham, o que chegava.
R – Olha, dessas co... Eu acho que eu não tenho. Eu tenho até duas caixas com material do PT, mas acho que não tem correspondência.
P/1 – Mas mesmo se a senhora não tiver, só de a senhora contar pra gente já é importante.
R – Eu sei que as pessoas ficavam sabendo, não sei como, e entravam em contato. Porque não tinha internet ainda, era mesmo por escrito, ou telefone. Telefone mais, porque facilita mais. Mas as pessoas entravam em contato. E aí eu ia juntando. Por exemplo, tipo, uma pessoa que lida com artes gráficas, uma hipótese, eu botava lá no núcleo, ou botava em contato com gente que fazia a mesma coisa.
P/1 – E o que as pessoas escreviam?
R – Que estavam interessadas na proposta, que tinham sabido da proposta e que estavam interessadas e gostariam de participar. Esse tipo de coisa.
P/1 – E teve alguma dessas que chegou de interesse, que tenha chamado tua atenção, você lembra? Alguma história peculiar assim?
R – Não lembro. Não lembro. Eu tinha até as fichas, mas eu entreguei acho que foi pra Fundação Perseu Abramo. Eu tenho pânico de ficar guardando informação pra mim, eu sempre mando em frente. Até eu to com essas caixas porque eu não sei pra quem passar. Aliás, eu tive um material, menina, na minha mão, que eu devolvi agora há pouco, que vocês iam ficar... Imagina que houve um momento, quando eu tive esse menino, pequenininho ainda, eu fui trabalhar com um cara que trabalhava pra sucursal de um jornal dos Montoneros, sabe quem são os Montoneros? É um movimento argentino de luta armada. E esse senhor trabalhava pra eles, ele chama Paulo Schilling, era pai daquela Flávia Schilling, foi presa no Uruguai, enfim. Um economista. E ele me chamou. Eu fui indicada pelos cubanos como uma pessoa de confiança pra ser secretária dele. Muito bem. E fui, portanto eu ajudei os Montoneros, alugava apartamento pra eles, porque eles não podiam fazer nada, completamente clandestinos. Pois você acredita que agora, há pouco tempo, três anos atrás, quando eu mudei pra essa última casa, eu descubro um envelope com um monte de carta de um rapaz que tinha escrito pra mulher, montonero. E eu fiquei, não li, não li as cartas, porque eu achei que seria uma indiscrição horrível. Mas um bilhete pra mim, sabe assim? “Eu sei que vai estar em boas mãos, que você vai guardar pra mim, não sei que, não sei que.” Olha quantos anos fazia. O João tá com 31 anos, quer dizer, fazia no mínimo 31 anos. E eu: “E agora pra devolver? Pra entregar pra quem de direito?”. Você acredita que eu recebo um e-mail falando mal do líder deles, que é o Mário Firmenich, que eu conhecia da época que teve um filho que nasceu todo trocho por conta da tortura da mãe, uma história horrorosa. Mas dizendo que ele tinha se encontrado com o torturador, onde já se viu, não sei o quê, com militar, enfim, pra gente se manifestar contra e mandava o e-mail dele, do Firmenich. Eu falava: “Aleluia! Deus é grande”. Eu não acredito nele, mas às vezes parece que ele existe. Eu mandei um e-mail para o Firmenich, trocamos figurinhas, foi superbom. E ele me mandou o nome de uma pessoa lá do Rio Grande do Sul, que luta pelos direitos humanos e que seria uma pessoa pra quem eu poderia devolver as cartas. E assim eu fiz, eu devolvi as cartas. Olha! Fiquei com as cartas 30 anos, já pensou? Sem saber que tava com elas, porque esqueci totalmente.
P/1 – Ana, durante o seu tempo de ativismo político, teve algum momento de confronto com a polícia? Algum momento de assustador nesse sentido assim, de talvez perder a vida?
R – Olha, teve o confronto que eu não chamei de perder a vida, mas que era uma coisa forte assim, que foi nas passeatas em 68. Depois eu me lembro de um dia, a gente já tava em plena luta armada, não clandestina ainda, e a polícia foi grosseira, e abusou dos seus direitos, como ela costuma fazer, com uma companheira minha, uma amiga. Era de noite ali Avenida Angélica ali em cima. E eu confrontei os caras. Depois me deram uma bronca, porque a gente tava na luta armada, quer dizer. Depois houve outro momento, que eu tava levando uns documentos do Marighella para o meu pai. E tava indo para o Rio de Janeiro, ele morava no Rio, com os meus dois filhos, como se fosse passar férias, passar uns dias no Rio, não lembro quantos dias. Eu sei que eles olharam, eles cismaram, meu filho fazia lição e usava como mala uma pastinha 007 assim, de plástico, coisa de criança, eles cismaram com a tal da pastinha, onde não tinha nada, óbvio, e não olharam dentro da mala onde tinha os documentos do Marighella. Esse dia eu passei apertado. Porque eles faziam blitz na estrada. Eu tava na Dutra, eles faziam blitz. Eu nunca andei tão bem arrumada na vida, porque era uma forma de despistar, ainda com duas crianças, tudo. Mas mesmo assim o negócio era perigoso. Dá um frio no estômago (risos). Então foram dois momentos. Fora isso... Ah, eu fui presa uma vez, você acredita? Sabe por quê? Porque estávamos eu e mais dois estudantes e outra moça, a gente tava pregando uma faixa do PT, olha só, já era 81 isso “Por que não vamos votar hoje? Vá à inauguração da sede do PT”. Que era esse núcleo que eu te falei. Imagina? Aí veio a polícia, nos levou pra delegacia do bairro, depois nos levou para o DOPS, passamos a noite. Mas aí eu já não tinha medo nenhum. Medo, nem aflição. Ah, era muito ridículo. “Por que não vamos votar hoje?” dá prisão? Eles falavam: “Vocês seguem esse Lula? Esse Lula vai ao Tamatete”. Eu tinha acabado de chegar de fora, eu lá sabia o que era Tamatete. Mas pela conversa, eu deduzi que era um lugar de rico. Depois eu apurei que era uma danceteria, acho que nem existe mais. E eu dizia: “Mas tem algum problema operário ir à danceteria? Nós não estamos na democracia?”. Porque já tinha aberto. Já era depois do Geisel. Imagina? Olha o preconceito. “Vocês seguem esse Lula que vai ao Tamatete?” E eu confrontando os caras. Até que às cinco horas da manhã esse pai desse último filho meu arranjou nosso amigo advogado e foi lá com o advogado e nos tirou. E eu morrendo de medo das mães dos meninos, porque olha a responsabilidade. Eu tinha 38, mas eles tinham 18. Então não ficava bem. Eles tinham contado pra mãe que tinham ido à uma festa. Então os confrontos foram esses. Outro momento difícil também foi quando me roubaram na Bahia. Eu tava com uma bolsinha assim com todo o dinheiro que eu tinha, os óculos, que eu era míope pra caramba, a chave de casa, da casa que eu tinha conseguido alugar, ou seja, tudo. Ah, e os documentos, o kit documentos falsos, maravilhosos, bem feitérrimos, me roubaram tudo. E eu sem saber se era ladrãozinho ou se era uma coisa dirigida. Decidi arriscar e arrisquei, mas, olha, foi um frio na barriga. Aí tirei todos os documentos legais, legalmente com o nome falso. Isso eu acho que foi um ato assim, muito bem realizado (risos). Ah, e teve outro lance, que essa casa que eu aluguei, depois que eu já tava lá, sei lá, há um ano, eu descobri que o meu senhorio, que morava em cima, era um delegado. Eu quase morri do coração. Rapidamente arranjei outro lugar pra morar e sair de lá. Ou seja, nunca fui presa e torturada. Eu acho que foi uma boa decisão não ter vindo pra São. Não sei porque os outros vieram pra São Paulo. Até hoje eu não consegui saber isso. Porque São Paulo tava toda infiltrada. A USP então, nem falar. Não sei porque. Porque tanto que se discutiu isso em Cuba, que não podia voltar pra São Paulo. Por isso que eu não vim, eu fiquei em Salvador.
P/1 – Ana, você falou do Marighella, como era o contato dele com os outros participantes do movimento?
R – Ele era uma pessoa tão delicada, amena, sossegada, na dele. Tranquilo e calmo. Uma vez eu dei carona pra ele ali pra Higienópolis. E era muito perto o lugar onde ele tava, lógico que eu não deixei na frente, porque a gente não podia saber, da Polícia Federal, que até hoje é lá o quartel general. Eu disse: “Preto, mas você tá maluco?”. Ele: “Ah, é o melhor lugar. É o mais seguro”. (risos) Do lado da Polícia Federal. E a casa do meu amigo que ele ficou hospedado, até vai sair o livro do meu amigo e ele conta isso, eram 200 metros do comandante do 2º Exército. Sabe ali na Groelândia com a Rua Polônia, aqui no Jardim Europa? Imagina? E ele ficou hospedado na casa do meu amigo um monte de tempo. Ou seja, ele era totalmente calmo, na dele, convicto, muito convicto. Mas não fazia nem uma força de ficar fazendo proselitismo de convencer. Tranquilo. Tranquilo. Sóbrio assim, pra comer. Uma pessoa muito especial. Muito especial. Maravilhosa. Adorei-o. Adorei. Adorei.
P/1 – Ana, eu vou encaminhar agora a entrevista pra uma parte final. Eu queria que você falasse um pouquinho do jeito que você falou do seu primeiro casamento, do segundo. Eu queria que você contasse um pouquinho de como conheceu, como foi o casamento, tanto de um quanto do outro, e falasse um pouco dos teus filhos pra gente também.
R – Bom, os filhos é a melhor parte (risos). Então, o primeiro casamento eu conheci porque a gente tava fazendo um curso de alemão, porque minha mãe pagava tudo quanto era curso, porque ela não me queria dentro de casa, ela queria que eu fosse trabalhar com condições. Eu tava fazendo um curso de alemão no Porto Seguro, que na época era na Praça Roosevelt. E ele tinha feito, ainda fazia, eu acho, aula de Filosofia com a minha tia. Existia um instituto chamado Jackson de Figueiredo, e ele seguia os cursos dela, então ele conhecia a minha tia. E a gente ficou amigo, assim. Ele me dava carona, porque na época ninguém tinha carro, mas ele já tinha um fusquinha, então ele me levava pra casa, eu morava ali na Cidade Jardim. E da Praça Roosevelt era uma reta só, Augusta, Cidade Jardim. Ele me dava carona e a gente conversava horas e horas, a gente era muito amigo. Eu acho que na verdade a gente era amigo. Houve certa confusão de virar casamento, virar namorados e casar. Mas os filhos foram tão maravilhosos e são tão maravilhosos que valeu muito a pena. E o segundo eu conheci daquele jeito que eu falei, acho que eu falei. Ele foi meu primeiro supervisor, foi o meu supervisor quando eu fui trabalhar de vendedora ambulante na Bahia. E foi engraçado, porque ele tava noivo de uma jovem bem mais moça que ele, ele é cinco anos mais moço que eu, e ela era nove mais moça que ele. E ele tinha aquela relação de homem e mulher, que você finge que você recua, o outro avança, aquele joguinho, eu tinha horror a isso. Então eu comecei a dar aula pra falar pra ele: “Não se relacione assim, se relacione assado, faça de outro jeito...”. Aí ele começou a se envolver comigo. A menina ficou muito brava, disse: “Você vai ficar com aquele bagulho?”. Porque eu era quatro anos ou cinco mais velha que ele, quer dizer, eu já tava com 33, ele tinha 29 pra 30. Ela ficou bem brava. Quando eu ia voltar pra anistia, ele não sabia nada de mim, eu disse: “Você quer voltar?”. Você quer voltar. “Você quer ir pra São Paulo comigo? Eu tive problema com o movimento estudantil.” Não falei a barra pesada, não enumerei assim. Ele quis vir pra São Paulo comigo. Aí eu tive o filho aqui, não lá, aqui. Então foi assim... E a gente se dava muito bem, a gente era muito amigo, muito...
P/1 – Teve festa de casamento?
R – Não. Eu era toda: “Não. Não quero isso”. Não teve nem fotógrafo. Por acaso, por acaso não, porque minha família é do Estadão, então mandou o fotógrafo, e a única foto que tem é a fotografia do Jornal do Estadão. Mas as bandeirantes fizeram alas, foi super bonito, me deram um broche de ouro, que se dava nos casamentos. Foi militante, só que militante das bandeirantes. Foi de manhã, às nove da manhã do dia três de novembro, que era pra não dar tempo de ninguém ir ao cabeleireiro, nem se emperiquitar, porque tava todo mundo no Guarujá. A minha mãe não se conformou e fez um almoço pra, sei lá, 20, 15, 20 pessoas. E eu já embarquei direto, nem fui pra hotel, nada disso. Já embarquei pra Europa no ato. E com o outro eu não casei. Ele queria casar, mas eu dizia: “Não, casar dá azar”. Porque eu era tão amigo do outro, e depois que a gente casou, virou um desastre. Então eu: “Não. Não. Casar dá azar. Não vamos casar, não”. Então eu nunca casei com o outro.
P/1 – E me fala um pouquinho dos teus filhos agora.
R – Ah, sim. Esse assunto é muito bom. Não é por falar, mas eles são o máximo (risos). O mais velho mexe com teatro e circo. Fazia trapézio, engolia fogo. Agora ele não tá fazendo porque ele já tá com 50 anos, então não dá. Mas ele dirige, é ainda ator também, até tá levando uma peça, João e o pé de feijão, que ele ainda roda pelas paredes, anda pelas paredes. E é bonito. Como ele fez muito esporte e faz, até porque apareceu uma diabete, então ele é obrigado a fazer muito esporte, muita academia, ele tá numa forma física ótima para os 50 anos dele. O outro é psicanalista. Fez Psicologia na PUC [Pontifícia Universidade Católica], depois fez Filosofia na USP e fez aquele curso de Psicanálise no Sedes Sapientiae, sabe? É um superprofissional, especializado em adolescência. Então mestrado, doutorado. Bonito também, magrinho, tá com problema de tireoide, então tá magro demais da conta, mas é bonito, elegante. Eu brinco que não sei como eu tive um filho lorde, porque ele é muito elegante. E o mais moço, que tem 31 anos, largou tudo aqui, resolveu morar em Ubatuba, porque diz que São Paulo é um horror, não sei que, foi morar em Ubatuba. A mesma praia, o mesmo loteamento que a minha mãe morava. E fez uma padaria integral lá, que é uma graça, virou point, deu supercerto. Casou com uma chinesa, a moça é filha de chinês. Eu brinco que é a liga das nações, que a minha nora mais velha é de origem italiana, bem italiana, fala alto, come bem, cozinha bem, esse tipo, um mulherão assim; a outra é judia, família judia, então é aquele narizinho, olho azul enorme, e é arquiteta da FAU [Faculdade de Arquitetura e Urbanismo], muito chique; e a terceira é china e é tatuadora. Olha só. Eu morria de medo de tatuagem por causa da polícia (risos), agora eu já to acostumada. E ela é ótima, maravilhosa. Eu dei muita sorte com minhas noras. E tem um filhinho. Agora eu já to com quatro netos, o primeiro tem um, o segundo tem gêmeas, e esse último já tem uma filhinha. Então trabalham muito. As duas coisas que eu acho mais interessantes, eles são muito trabalhadores, todos, e são muito éticos, às vezes até demais, sabe assim? Aquela pessoa que não transgredi com nada. Eu digo: “Gente, até a ética é uma questão de classe, às vezes a gente que entende, porque empregado faz alguma coisa não tão certa, a gente tem quem entender”. Eles não têm conversa, são muito certinhos. Então eu acho isso melhor, antes de mais que de menos. Nesses tempos de Maluf, é melhor. Então eles são incríveis,
conseguimos, eles e eu, retomar a relação. Porque no começo, principalmente com esse segundo, que é uma pessoa muito delicada, sensível, foi muito difícil. Porque todo mundo meteu na cabeça deles que eu tinha abandonado. Ninguém pensou que eu não tive saída. Porque eu de fato queria alguma coisa melhor pra eles, mas eu não pensava ficar dez anos fora deles, da vida deles. Então, pra todos efeitos, uma colega dele da época disse que diziam: “Ah, esse aí é o que a mãe abandonou”. Então foi difícil. Mas a gente conseguiu superar isso. E ter uma relação legal. Até hoje eu me emociono. Foi forte. Foi meio forte isso. Foi a parte pesada. Não é fácil. Mas valeu. Não me arrependo de nada.
P/1 – Ana, conta um pouquinho então agora como é a tua rotina hoje, o que você gosta de fazer nas horas de lazer.
R – Então, eu to num dilema danado, porque eu tentei parar, porque eu me aposentei, e não consegui. Porque eu sempre trabalhei, então não consegui parar. E tentei fazer trabalho político, social, porque eu traduzo, traduzi muito pra essa editora do MST [Movimento Sem Terra], Expressão Popular. Depois eles pararam de me mandar, eu nunca consegui saber porque. Espremo, espremo e não consigo saber. Estou traduzindo pra uma revista virtual que trabalha com terceiro mundo, voluntariamente. Faço revisão de tese pra muita gente que me pede. É engraçado que são os psicólogos que me pedem, então eu to ficando por dentro de vários assuntos. E eu trabalhei muitos anos, desde que eu voltei, quase, desde 85 eu trabalhei na Cesp [Cia Energética de São Paulo], 15 anos. Então eu me especializei em meio ambiente. Sendo socióloga, eu fui pra essa área, que é uma área que tem muito trabalho. Então já faz dez anos que eu presto serviço pra uma empresa particular. Agora, imagina você, eu to trabalhando com o Belo Monte. Eu sempre digo com as pessoas: “É melhor que a gente faça. Porque a gente faz bem feito e puxa para quem tem que puxar, do que deixar qualquer mercenário aí fazer”. Então eu to trabalhando esse ano, o ano passado eu trabalhei direto, full time, normal. Esse ano eu negociei pra ficar mais solta, porque eu tava muito presa. Também não queria nem tanto o mar, nem tanto a terra, então esse ano eu to mais solta. Também acabei de sair de uma gripe ferrada, então fiquei 15 dias meio de molho. E to fazendo hidroginástica por uma questão de saúde, mas to gostando muito, to tendo prazer com isso. Adoro mexer com casa também, já reformei várias, ou para os meus filhos, ou pra mim. E a minha casa é demais, então dá vontade ficar. E é isso. Sexta-feira eu fui ao Congresso da UEE, foi uma experiência interessante.
P/1 – Ana, agora conta... E seus sonhos? Talvez inspirações para o futuro.
R – Aí tá difícil. Eu to com 72, você tá querendo que eu ainda... (risos).
P/1 – Tem bastante tempo ainda.
R – Ah, é ver os filhos e os netos bem, isso é importantíssimo. Ver o PT se sair bem nos seus diversos governos, torcer pelo Haddad não ficar dando muito a mão para o Alckmin (risos). Para o MST avançar, eu sou fã do MST. E pra Cuba não ter um retrocesso. O que mais? Ah, se a gente pudesse ser socialista, ia ser uma felicidade louca, mas eu sei que isso é um sonho distante. E é isso.
P/1 – E se você talvez... Não sei como a senhora responderia essa pergunta, vamos pelo menos tentar responder. Como o serviço dos Correios, talvez telegramas, pacotes, encomendas, e as próprias cartas marcaram a sua trajetória de vida? Qual foi a importância disso na tua trajetória?
R – Ah, é sempre... Até hoje. Quando chega pacote de livro, por exemplo, é gostoso, é muito bom. O único problema é que muitas vezes não tem gente em casa, aí eu sou obrigada a ir lá à sede dos Correios pra buscar. Na sede não, na agência dos Correios. Tenho uma boa relação com os Correios, gosto deles. Porque fazem direitinho. Eu fico bem amiga do carteiro. Sempre fico amiga do carteiro. Um dia um cara chegou lá, aquela chuva, eu disse: “Toma o guarda-chuva”. Dei meu guarda-chuva pra ele, porque ele tava na rua, eu tava em casa. Da outra vez chuva de novo, e ele de novo sem guarda-chuva. “Ô, rapaz, cadê o guarda-chuva?” “Ficou em casa” “Tá, agora eu já não tenho outro pra te dar, não”. Eles são sempre muito especiais. Uma gente dedicada, eu gosto deles.
P/1 – E tem algum que entregue há mais tempo na sua região assim?
R – Faz três anos que eu to lá, faz três anos que eu to amiguinha dele (risos).
P/1 – (risos).
R – Esse é bonito. É um jovem assim, bonitinho, uma graça.
P/1 – E agora, pra gente finalizar, Ana, são duas perguntinhas assim: uma, eu queria perguntar pra senhora o que a senhora acha desse projeto de a gente contar essa história dos 350 anos dos Correios através da experiência de vida das pessoas?
R – Eu acho superbom. Acho que juntou a fome como juntou o Museu da Pessoa com os Correios, acho que combina. Eu fiquei um pouco perdida quando a Caetana me procurou, porque eu não tinha aquela correspondência. Depois você pensando, você vê que até tem coisas. Mas é tal história, não tem mais carta, então... Mas não são só cartas também, eu recebo livros pelo Correio, Sedex, a gente pede os documentos, manda. Esquece e manda. Eu mando para os meus filhos, meus filhos mandam pra mim. Quer dizer, a gente usa os Correios, não é dizer que não usa. Enriquece muito. É uma coisa que dá um conteúdo incrível. Tava lendo aí pelas paredes. É demais. As pessoas têm umas frases, têm umas coisas ótimas, ótimas. Você deve ouvir tanta coisa.
P/1 – E, Ana, pra gente finalizar, como foi pra senhora contar sua história, voltar um pouquinho lá atrás, lembrar-se das coisas?
R – Então, você sabe que todo mundo fala que eu tenho que escrever, porque eu lido bem com o texto. Sei lá se é por preguiça ou por não achar o tom, eu sei lá por que, o fato é que até agora eu não escrevi. E como eu acho que é uma obrigação contar, porque muita gente não tem noção do que foi aquela época, eu falo. Já falei pra estudantes fazendo doutorado, mestrado, TCC [Trabalho de Conclusão de Curso] Eu falo e falo e falo, porque é uma forma de estar transmitindo. Agora eu vou dar depoimento pra Comissão da Verdade. E eu acho que é uma obrigação. É uma obrigação. É uma história muito rica, muita cheia de coisa, uma história pouco usual pra mulheres, eu sou sobrevivente, porque a maioria morreu, então eu tenho que falar. Um dia até os meus amigos, eu fui num lançamento de um livro ali na livraria da Vila, e os meus amigos me tratando tão bem, meus companheiros da época, me tratando super bem, eu digo: “Gente, por que vocês me tratam tão bem?” “Ah, porque você é uma sobrevivente Ana”. Tá bom. Então eu sou sobrevivente. Até minhas amigas de infância morreram. Éramos três, morreram duas. Quer dizer, até desse grupinho eu sou sobrevivente, então eu tenho que falar.
P/1 – Então, Ana, em nome do Museu da Pessoa e do projeto, eu agradeço muito tua participação.
R – Imagina.
P/1 – E parabéns pela tua história de vida.
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