P/1 – Eu queria que você me dissesse seu nome, data de nascimento, local.
R – Meu nome é Rosemeire Chamberlain. Eu nasci em São Paulo, Beneficência Portuguesa, ali na Liberdade, e você quer a data de hoje, é isso?
P/1 – Data de nascimento.
R – Eu nasci no dia 11 de setembro de 1974.
P/1 – E seus pais, a data de nascimento e local.
R – Meus pais são nordestinos, retirantes da leva dos anos 70. Os dois são pernambucanos. Minha mãe diz que nasceu em Recife, mas depois foi criada… quando conheceu meu pai já morava em Bezerros, na cidade de Bezerros. Meu pai nasceu em Sairé, que é uma cidadezinha pequena, e também depois mudou para Bezerros e lá eles se conheceram, meu pai com 14 anos, minha mãe com 13 anos. Namoraram e casaram quando o meu pai tinha 18, minha mãe tinha 17 e aí meu pai veio para São Paulo um ano depois para começar a ver se arrumava emprego e trazer a minha mãe. Deixou a minha mãe grávida lá de três meses e quando ela estava de seis meses, pegou um ônibus, viajou três dias para vir para São Paulo porque parte da família já estava aqui também. Meu avô foi casado duas vezes, quando o meu avô casou com a minha avó, a mãe do meu pai, ele já tinha dez filhos e ele já tinha filha quase da idade da minha avó quando casou com ele. Então, ela tinha 15 anos, ele já tinha uma filha de 14, assim. Então o meu pai é o mais velho dessa segunda família do meu avô, que no total são 18 filhos. Hoje já morreram alguns e tal, mas nessa época, grande parte dessa família estava começando esse movimento também de vir para São Paulo. Então, ele já tinha umas irmãs que moravam em São Paulo, tal. E minha mãe veio na sequência.
P/1 – O nome da sua mãe?
R – Minha mãe chama Maria Casemiro, mas todo mundo chama ela de Zera, que no nordeste, você é primeiro batizado e depois, registrado. Meu avô era alcoólatra, então ela foi batizada como Maria dos Prazeres. E Prazeres, Prazerinha, Zera, só que ela foi registrada dez anos depois, meu avô estava bêbado, trocou o nome dela só pra Maria Casemiro e a data de aniversario dela também deu mais de um ano mais nova, então, ela está tentando se aposentar agora, ela já faria 60 anos esse ano, mas no documento ela só vai fazer o ano que vem.
P/1 – Entendi. (risos)
R – E o meu pai chama José Bezerra da Silva Irmão, apesar de não ter nenhum irmão com o mesmo nome, é porque o meu avô trocava os sobrenomes porque ele achava que dava sorte ou porque não estava dando sorte. Então assim, graças a Deus que ele não tinha dinheiro, porque quando ele morreu, assim, metade dos filhos são dos Santos, outro é da Silva, outro é Bezerra, ele ia registrar e falava: “Esse sobrenome não está dando sorte, então registra aí com esse sobrenome”, ai mudava assim (risos).
P/1 – Então, é uma família cheia de sobrenomes diferentes.
R – É uma família com vários… é, e ele deu nome dele de José Bezerra da Silva Irmão, apesar dele não ter nenhum irmão chamado José Bezerra da Silva. Ele acho que Irmão, sei lá, era um sobrenome, não sei porque.
P/1 – O único vínculo que provava era o nome do seu avô?
R – É. Tem outros que são Bezerra também, tem assim, alguns eram… tinha um aglomerado, ele ficava alguns anos persistindo, porque nascia uma criança por ano, naquele sobrenome, aí ele achava que não estava dando sorte, aí ele mudava (risos), botava outro. Então assim, para fazer genea… como fala?
P/1 – Árvore genealógica.
R – É, árvore genealógica da família não dá, né, porque é tudo…
P/1 – Entendi. E quem que era o bebê que ficou na barriga enquanto o seu pai veio para cá?
R – Eu.
P/1 – Você.
R – É, eu sou a mais velha, nós somos três. Sou eu que tenho 40 anos, meu segundo irmão nasceu quando eu tinha sete anos, e o meu terceiro irmão quando eu tinha dez anos.
P/1 – Qual o nome deles?
R – Tudo no “R”, Rose, Rodrigo e Rogério (risos).
P/1 – E eles já nasceram em São Paulo?
R – Já. Não, assim, minha mãe veio em 73, meu pai veio em 73, depois de alguns meses, minha mãe veio também em 73, não, minha mãe já veio em 74. E nunca mais voltaram para morar lá. Vão assim, visitar de vez em quando, mas fincaram mesmo assim. Quando eu nasci nós morávamos num bairro chamado Jardim Miriam, que é ali perto da Americanópolis, Diadema, sabe aquela região ali de São Paulo. Porque era um aglomerado, moravam vários irmãos, as irmãs, as mulheres, tudo meio que próximo. E quando eu tinha de quatro para cinco anos, meu pai comprou um terreno em Itapecerica da Serra, junto com a minha madrinha, tia Luzia, e nós mudamos quando eu tinha cinco anos. E eu vivi lá até os 18 anos, quando eu fui para a universidade, depois eu parei a universidade, voltei para casa e saí de novo aos 24, vim para São Paulo, morei três anos em São Paulo e com 27 fui embora do Brasil.
P/1 – Mas quando vocês foram para lá, para Itapecerica, só foi uma tia ou mais alguém da família que morava no Jardim Miriam?
R – Não. Família de nordestino nunca vive sozinha, imagina que vai ter só a família! (risos) Eu cresci sempre com um tio, um primo, um prima, uma tia, tinha sempre um agregado assim, tipo, minha mãe terminou de educar várias pessoas, casou outras, tia que vinha, enfim, hoje só… o agregado hoje sou eu e os meus dois filhos, estamos lá na casa da mãe faz dez meses (risos), estamos indo embora. É, cresci sempre.
P/1 – Em torno…
R – É. Que eu lembre assim, pronto, nessa época quando eu tinha cinco anos morava o meu tio que era irmão da minha mãe, tinha 16 anos na época. E antes disso, ou depois? É, depois disso, veio uma irmã do meu pai, uma irmã de criação, que na verdade era sobrinha do meu pai, porque ela era filha de uma irmã dessa primeira família do meu avô. E o meu avô pegou ela para criar, então, ela era uma neta criada pelo avô. E ela veio para a casa dos meus pais, adolescente e ela ficou lá, ajudando a minha mãe, ajudou a cuidar de mim, tudo, até o meu irmão nascer também, quando ela casou, foi ai que ela saiu de casa, que chama a Zefa. Eu não chamo ela de tia porque a gente tem uma idade… eu fiz 40, ela fez 50, isso, ela é dez anos mais velha do que eu.
P/1 – A sua infância foi então…
R – Em Itapecerica da Serra.
P/1 – A maior parte da lembrança é em Itapecerica?
R – Total, assim. E tipo uma Itapecerica que quando a gente foi morar naquela Rua Inglaterra, porque o bairro que os meus pais moram, que eles compraram o terreno foi uma fazenda, uma ex-fazenda loteada e não tinha água encanada, na rua em que nós chegamos, tinham três casas, três ou quatro casas assim, e eu lembro que no final da rua tinha uma bica que era onde a mãe levava às vezes para tomar banho, lavava uma louça, às vezes trazia uma água ou senão comprava esse caminhão pipa que vinha e vendia água, por um bom tempo. Eu tive uma infância bem de rua, não tinha asfalto na rua até acho que até pouco perto dos anos 2000, assim, não tinha asfalto. Telefone, até eu ter 17 anos, não tinha telefone na minha casa. Então, eu brincava na rua com os meninos, andava de carrinho de rolimã, tinha o mato assim, a gente ia e catava bambu para fazer festa junina, aquelas coisas mesmo, jogava queimada, taco, quebrei o braço duas vezes brincando de esconde-esconde (risos).
P/1 – Nossa, como foi isso?
R – Eu era muito santa e eu resolvi me esconder em cima da laje do vizinho e subi pelo poste de luz e escorreguei (risos). Mas essa foi a segunda vez. A primeira vez que eu quebrei foi o meu tio, esse que tinha 16 anos que morava, tinha um tonel, sabe esses tonéis de lata mesmo, grande assim? Então, eu subi em cima… ele que me aconselhou, deu ideia: “Sobe em cima para você fazer malabarismo, assim”. Eu subi em cima, ele pegou e chutou, eu voei para trás assim e taquei o meu… como chama isso?
P/1 – O seu punho?
R – O meu punho no chão e aí trincou o osso. E da segunda vez foi brincando de esconde-esconde, caindo de cima do poste.
P/1 – E a sua mãe, como…?
R – Minha mãe sempre achou que eu era uma peste, né? (risos)
P/1 – Como é que ela era?
R – A minha mãe é uma pessoa muito rígida. Sempre foi assim. Minha mãe vem de uma família, uma história de vida muito difícil. O pai dela era alcoólatra, violento, batia muito na mãe dela. Minha avó ficou grávida 15 vezes, teve um episódio que ela abortou de tanto apanhar. Então, chegou um momento que ela tomou uma decisão que ela ia se separar, no momento em que uma mulher separada no meio do Nordeste, numa cidadezinha pequena, era pior do que ser puta, entendeu? Mas ela assumiu, mas para isso assim, a minha mãe começou a trabalhar aos oito anos de idade, ela diz que botava tipo um gradeado assim, para ela subir em cima, para ela poder alcançar para lavar a louça, entendeu? E ela ficava na casa das pessoas ajudando em troca de um prato de comida, não tinha nem um pagamento, nada assim. E assim como os irmãos dela também trabalharam na rua vendendo cocada, faziam o que podiam, assim. E a minha avó era violenta, ela amarrava para bater. Esse meu tio de 16 anos, ele diz que tinha dia que ele ia dormir, ele ficava pensando: “Está faltando alguma coisa, o que não aconteceu hoje? Ah, não tomei uma surra” (risos), porque ele era mais danado e ela tinha pouca paciência. E ela trabalhava dia e noite, então ela não dormia também direito. Então ela foi virando uma mulher muito amarga, a minha avó, e meio que passou isso também assim, um pouco para a minha mãe assim. E a minha mãe trabalhou muito a vida inteira. Ela só estudou até a quarta série primária e veio para São Paulo, mudou um pouco de situação, mas uma vida difícil também de nordestino, retirante. O meu pai é mecânico, eletricista mecânico. A gente comprou o terreno lá de Itapecerica, ele construiu um cômodo com um banheiro e nós moramos naquele cômodo comum, que era tudo, era sala, era cozinha, só o banheiro era separado até a minha mãe ficar grávida do meu segundo irmão. E aí, dentro desse cômodo, meu pai fez dois cômodos e construiu um outro quartinho no fundo do terreno pra poder a gente mudar para lá, para ele poder colocar a laje. E nesses dois cômodos, eu cresci até os meus 17 anos, nós dividíamos o mesmo quarto, eu, os meus pais e os meus dois irmãos. E tinha uma cozinha que era sala também e o banheiro. Depois, ele construiu em cima mais dois quartos e uma outra sala. Quer dizer, demorou 18 anos para ele poder concluir a casa dele. Hoje a casa dele é super bonitinha, toda rebocadinha, tal, mas eu cresci assim, com vergonha. O meu marido foi o primeiro homem que entrou na minha casa. Eu nunca tinha levado, quando eu era adolescente eu não levava namorado, não deixava entrar em casa, eu tinha vergonha da situação mesmo, assim.
P/1 – E como é que era o seu pai?
R – Ah, meu pai é um doce. Minha mãe é aquela que… minha mãe, eu morria de medo que ela batia mesmo, descia o cacete até o mijo correr pelas pernas, não queria saber. Meu pai não, meu pai já é um canceriano. Meu pai quando veio para São Paulo, ele tinha estudado pouco no Nordeste, mas quando ele veio para cá, ele estava com 20 anos. Ele foi fazer o supletivo, ele terminou o segundo grau, fez um técnico em Contabilidade. Na época em que eu era pequena ele se interessou por cinema, estudou um pouco de cinema, ele lia muito. Então o meu pai me deu um pouco de educação mais refinada. Eu lembro que aos 16 anos, ele me deu Karl Marx para ler, “O Capital”. Ele é daqueles que se sentem totalmente traídos pelo PT, porque passou acho que… o Lula se candidatou umas dez vezes antes de ganhar, ele votou no Lula todas as vezes, até ele…
P/1 – Na década de 80.
R – É, exatamente. Ele nunca foi tipo filiado a nenhum partido, mas ele gostava das ideias mais socialistas, entendeu? Ele lia muito. E eu lembro que quando eu era adolescente, escutava tipo Jovem Pan durante a semana, essas rádios besteiras assim, e chegava no final de semana, ele falava: “Não, hoje você vai ouvir música”. E ele que introduziu assim, o Vinícius, Caetano, Chico, toda a boa MPB e tal, e foi super importante assim. E os meus pais são muito novos, meu pai tem 60 anos e a minha mãe tem 59 (risos), vai fazer 60, enfim é uma confusão, mas ela diz que tem 59 porque está no documento, assim. Quer dizer, 58, ainda vai fazer 59 (risos). São muito novos, mas eu acho que… o meu pai também, vem de uma família muito pobre. O meu pai começou a trabalhar aos seis anos de idade. Então, acho que esse trabalhar o tempo todo assim, hoje eles estão cansados. Agora, o pai voltou a ler um pouquinho, e o meu pai sempre foi muito sereno, aquela pessoa calada que você não sabe muito bem o quê está passando assim, sabe? Minha mãe, não, minha mãe já é daquelas que reclamam, que se vitimiza. E hoje, realmente, está mais deprimida mesmo, está calejada…
P/1 – Como é que era a sua rotina de infância? Descreve um pouquinho essa rotina.
R – Minha rotina de infância. Então, com cinco anos, até os sete anos eu fui a rainha da família, porque tinha esse bando de tios e eu era a única sobrinha-neta. Então assim, tanto é que aos cinco anos eu já comecei a perder os meus dentes de tanto açúcar que eles me davam, totalmente spoiled…
P/1 – Que açúcar que era?
R – Doce, bala…
P/1 – Doce, bala, qualquer coisa?
R – Bala, doce e bala. E todo mundo me adorava e presente… Páscoa, essa época de Páscoa, chegou Páscoa que eu ganhava 20 ovos de Páscoa. Era uma coisa! E quando a minha mãe resolveu ficar grávida, as minhas tias também, então perdi o reinado de uma vez só, assim, Maria Antonieta, perdi a cabeça (risos), foi um processo difícil. Mas eu lembro, por exemplo, quando a gente foi para Itapecerica, minha mãe foi trabalhar numa empresa suíça chamada Schrack, que fazia relê para produtos eletrônicos.
P/1 – O que é relê?
R – Relê são circuitozinhos, umas pecinhas que vão dentro dos aparelhos eletrônicos, assim, uma coisa… hoje em dia, provavelmente, é máquina que faz, mas naquela época, era manual. Isso a gente está falando de 1977. E essa empresa tinha uma creche que era filiada com essa empresa e eu adorava, era uma creche maravilhosa, assim, eu adorava. E tinha as brincadeiras, era uma casa com um jardim, com balanço e eu lembro, eu tenho memórias deles, levarem a gente para o zoológico para passear, para outros lugares. Tinha música, a gente dormia à tarde, porque era conveniada a comida vinha da empresa, era uma comida bacana, tal.
P/1 – Era no mesmo espaço que a empresa?
R – Não, não, era separado. A empresa, hoje é onde é a Prefeitura de Itapecerica, era mais perto da minha casa. E essa creche ficava depois do centro da cidade de Itapecerica, mais ou menos um quilômetro. E tem uma história interessante, eu gostava tanto de ir, a rotina era assim: a gente acordava de manhã, o pai ia trabalhar, então, a gente tomava café e o pai me levava, me deixava lá na escolinha, na creche e depois, à tarde, ou a minha mãe me pegava ou o tio, esse meu tio de 16 anos, ele me pegava e me levava para casa até a minha mãe chegar. Uma vez a minha mãe estava doente, e aí ela falou para o meu pai não me levar porque ela estava doente e ela não ia poder me buscar. E eu fugi. Eu acordei, eu queria muito ir, eu acordei, eu tinha cinco anos, eu fui andando e fui. Cheguei lá e menti ainda, quando eu cheguei lá, a tia perguntou: “Como é que você veio?” ”O pai deixou e já saiu aí”, e fiquei lá brincando, bonita, sem nem pensar e nem nada. Diz que a mãe acordou, imagina, naquela época não tinha telefone, não tinha muito vizinho, não tinha nada assim! Ela ficou enlouquecida e aí deu na cabeça dela de ir na creche e eu estava lá (risos).
P/1 – Você lembra de alguém da creche? Alguma professora?
R – Eu lembro da cozinheira, não me lembro do nome dela, mas eu me lembro da cozinheira, ela era uma negra assim, gente boa, ela tinha uma filha da minha idade que estudava lá que a gente se odiava, assim, eu tenho uma marca de beliscão até hoje que a menina me deu. Tipo, aqueles de grudar com a unha e arrancar a pele, assim mesmo? Eu lembro disso (risos). E lembro da família, da Tia Nancy, que era a dona da creche, porque ela morava na rua perto da minha casa e depois, mais tarde, a minha tia foi trabalhar na casa dela e quando eu virei adolescente, tinha um filho dela que era adolescente também, a gente fazia parte da mesma turma, uma filha também. Então acabou sendo uma família que ficou marcada na minha infância, na minha adolescência.
P/1 – E ai, como foi a fase… vamos caminhando para a adolescência, você falou das brincadeiras e tal, mas agora, a adolescência.
R – Então, aí o meu primeiro irmão nasceu, aí tinha a minha tia, que dava uma força em casa, não sei o que, a minha tia casou. Quando o meu segundo irmão nasceu eu tinha dez anos. Minha mãe ficou oito meses de licença, tal, quando a minha mãe voltou a trabalhar, eu estava com 11 anos. E aí a minha mãe me escalou para cuidar da casa e deles. Então eu estudava de manhã e a minha prima, que tem até na foto, a Sandra, que tem a mesma idade que eu, ela também, era difícil para ela porque os pais dela de separaram, ela é filha do irmão da minha mãe com a minha tia. A minha tia tinha se separado do pai dela com duas filhas e a minha tia era completamente analfabeta e tinha mudado do Carrão, na Zona Leste, para Itapecerica e morava também lá, num quartinho e trabalhava de empregada, tal. E a minha prima estudava à tarde, então minha prima de manhã ficava em casa e cuidava do meu irmão e aí eu chegava da escola, eu rendia a minha prima e aí, eu cuidava dele à tarde…
P/1 – E da casa?
R – E da casa. Minha mãe saía de manhã e falava: “Hoje você vai fazer o arroz, o feijão, essa carne aqui e essa verdura”. E tinha que fazer, eu queria brincar e tinha que fazer a minha lição e não sei o quê, então tiveram alguns episódios assim, tipo, não cumpri muito com as minhas responsabilidades e aí a mãe chegar e soltar porrada (risos).
P/1 – A mãe e o pai ficavam o dia todo fora?
R – O dia todo fora. É! Sempre assim. E aí eu fiquei meio assim, eu odiava cuidar de casa, essas coisas e eu fiquei prisioneira até os 16 anos. Eu lembro que final de semana era um inferno porque a minha mãe é obsessiva compulsiva com limpeza assim, aí eu tinha que limpar… eram dois cômodos, assim, o quarto era de taco, a gente tinha que tirar todos os movéis, toda semana, e limpar e passar cera e passar enceradeira. E quando ia ter festa, tinha que limpar a casa antes e depois da festa, tinha que tirar sofá para lavar o chão, esfregar. Quando eu fiz 16 anos eu fui trabalhar com o meu pai, eu me libertei assim.
P/1 – Lá na?
R – Então, quando o meu pai veio para São Paulo, ele foi trabalhar no posto de gasolina, depois ele saiu, arrumou emprego numa empresa que chamava Samambaia, que era uma concessionária da Volkswagen, e depois dessa concessionaria, ele mudou para Morumbi Motor, fica na… vindo para pinheiros, na Vila Sonia, no Butantã. Na Francisco Morato. E ele trabalhou acho que uns dez anos na Morumbi Motor. Ele pediu a rescisão dele e ele abriu uma oficina para ele lá no Socorro, na Avenida de Pinedo, que é onde ele trabalha até hoje, faz mais de 20 anos isso. Quando eu tinha 16 anos... primeiro eu fui trabalhar no jogo do bicho (risos), eu fui caixa de jogo do bicho. Eu estudava de manhã num colégio lá em Itapecerica, eu estava no segundo ano. No primeiro ano eu fui fazer Cefam, mas…
P/1 – Magistério?
R – É, mas eu fiz um ano e eu falei: “Esse negócio não é para mim, não”. Aí sai fora, fui pro colégio normal.
P/1 – O colégio ficava no bairro?
R – É, tudo lá em Itapecerica. No bairro, assim, Itapecerica é grande, é uma cidade hoje acho que tem uns 250 mil habitantes, de 250 a 300 mil assim, é grande! E é grande em território também, porque tem muitas áreas de mananciais. Então hoje virou parte da Grande São Paulo, mas foi um sitio indígena, teve uma importância significativa na rota também desse caminho desbravado daqui para a BR-116, indo para o Rio de Janeiro, para o Rio de Janeiro, não, para o sul. Faz parte, Embu das Artes, Itapecerica, Cotia, tem aquela ida ali. E lá mesmo, em Itapecerica, fui estudar no João Batista, saí do Cefam, tal. E à tarde, uma amiga que estudava no colégio, me arrumou esse emprego para trabalhar dentro da banca de bicho.
P/1 – Que era?
R – Que era…
P/1 – Próximo da sua casa?
R – É, tudo com distância de andar, entendeu? Não precisava pegar ônibus, nem nada assim, tudo muito perto assim. E aí eu saía do colégio e acho que eu ia em casa, almoçava e vinha para banca para fazer o jogo… acho que são dois jogos ou três jogos que eles faziam por dia. Eu sei que a gente fazia aquele primeiro jogo e assim, os cambistas iam até a banca mesmo, entregavam e eu fazia as contas, cada papelzinho daquele assim, para ver quanto que cada cambista vendeu, entendeu? E depois, eu ia para a casa, dava um tempo e voltava de novo, trabalhava até a noite e ganhava um salário…
P/1 – E seus pais sabiam?
R – Sabiam, claro. Era ilegal, mas a polícia era normal ir lá uma vez por mês para pagar, para receber, os investigadores, era tudo. E os donos da banca eram gente boa, na sexta-feira, levavam a gente para comer, para passear, para uma adolescente era ótimo. Depois, eu não sei porque, que agora eu não me lembro se foi antes ou se foi depois que eu fui trabalhar, sei que teve um tempo que eu fui trabalhar com o meu pai lá no Socorro, eu era office-boy dele. Que foi quando eu comecei a andar, eu pagava todas as faturas dele, não sei o quê, ia no banco, quando tinha que ir nos cartórios, porque tinha coisa de prestação atrasada, eu fazia esses cartórios no Centro, tudo. Às vezes, ia no cinema à tarde assim, eu sempre gostei. Eu comecei a gostar muito de cinema porque aos 14… eu tinha os dentes todos tortos, e naquela época, aparelho era uma coisa muito cara, né? Aí eu não sei como, a gente descobriu que tinha uns pós-graduandos da USP que doavam, que você podia ser paciente para os pós-graduandos lá na Brigadeiro Luis Antônio. Você tinha que fazer um atestado de pobreza, mostrar que você não tinha condições de pagar e aí, eu fui, minha mãe foi, não sei o que e eu consegui. Então, dos 14 aos 17 anos, eu tive tratamento ortodologico…
P/1 – Ortodôntico.
R – Ortodôntico de graça. Só que no começo, enquanto a minha dentista estava estudando, eu ia na Brigadeiro. Quando ela acabou o curso dela, para continuar dando o tratamento, ela morava em Santo André. Então, eu ia de Itapecerica para Santo André, naquele dia era o dia que eu ia viajar, assim, eu ia sozinha, foi quando os meus pais começaram a deixar eu sair sozinha…
P/1 – Você tinha?
R – Quatorze anos. E ia, o meu pai sempre me dava um dinheiro, não sei o que e tinha um shopping center quase que em frente a casa dela, o shopping lá de Santo André, e tinha o cinema. E foi aí que eu comecei assistir Almodóvar, eu adorava! Eu ia para o cinema sozinha e eu criei o hábito de ir ao cinema sozinha, que até hoje eu vou ao cinema sozinha, adoro passear sozinha, também, nenhum problema, mas começou aí. Então quando eu fui trabalhar de boy para o meu pai eu já tinha esse costume do cinema e aí eu dava uns PTs nele, às vezes (risos) quando eu ia para o Centro e assistia os filmes, tal. E fiquei um tempo. Pronto, trabalhei com o pai. Quando eu terminei o colegial, aí eu fui trabalhar no Shopping Iguatemi e fui fazer cursinho no Etapa, aqui na Frei Caneca.
P/1 – E como é que era a escola, Rose?
R – Eu sempre estudei em colégio público, a minha vida inteira. Eu estudei no mesmo colégio da primeira série até a oitava série, no Belchior de Pontes. Eu descobri muito rápido, assim, descobri ou pensei, fiz a conexão, que a única forma de eu mudar a minha situação era se eu estudasse. Quer dizer, eu cresci com a minha mãe sempre dizendo assim: “Isso não é para você, isso é coisa de gente rica, porque você tem que se conformar que você é pobre, que não sei o que…”. E eu sempre achei que… eu via as coisas, via as pessoas, via televisão, então assim, eu ficava… eu nunca entendia: “Por que eu não posso?”, essa questão da condição financeira não entrava muito na minha cabeça. E o meu pai, por outro lado, sempre me incentivou. Então assim, eu queria fazer curso de… sei lá, de bordado, o pai deixava. E eu, assim, comecei e parei duzentos cursos, e a mãe ficava p. da vida, porque eu dizia que ia fazer o curso e não fazia, aquelas coisas, mas sempre experimentei muito, entendeu? O colégio, eu adorava o colégio. Eu nunca fui a CDF, eu nunca fui a primeira da classe, mas eu sempre fui a segunda, porque eu gostava também de me divertir um pouco, era mais sociável e tal. E eu fazia muitos eventos no colégio, sempre gostava, eu era produtora. Eu lembro que a gente fez uma adaptação de “Senhora”, eu peguei um lençol em casa, tingi, levei para a costureira para ela fazer aquele vestido, passei o dia de canecalon, escalei os meninos que carregaram cama da minha casa a pé para fazer o cenário. Assim, eu era a agitadora do colégio (risos), principalmente na área de teatro, essas coisas assim. Eu gostava muito de estudar, eu fazia ginástica desportiva, fiz ballet, comecei a fazer ballet quando eu tinha uns dez anos, depois eu fiz jazz, sempre fui muito fisicamente ativa, né?
P/1 – Não no colégio?
R – Então, no colégio, eu não gostava de… eu nunca fui boa…
P/1 – De Educação Física?
R – Não, eu gostava de Educação Física, mas eu nunca fui boa em jogos de time. Futebol, até que eu jogava um pouco melhor, mas vôlei, essas coisas, handebol, e tal, então eu era sempre aquela assim: você, você, você… mas eu me destacava nos esportes individuais, então eu corria, eu fazia ginástica rítmica de solo, essas coisas eu gostava de fazer.
P/1 – E os professores? Algum que você se lembra?
R – Vários, vários, vários.
P/1 – Marcantes?
R – Lucineia de Desenho Artístico e Desenho Geométrico, que ela era de Ourinhos, uma solteirona, gente boníssima, adorava, ela também me adorava. Professor Edson, que era o professor de Geografia, coroa, acho que ele já tinha uns 40 anos naquela época, que sempre mandava as gostosinhas passar o ponto na lousa e ele não fazia p. nenhuma. A prova dele dava dez questões, decora aí e está tudo bem (risos). Acho que por isso que eu sou ruim de Geografia até hoje (risos).
P/1 – Parte é do professor.
R – Culpa do professor Edson. Ainda namorei o filho dele, a vingança (risos).
P/1 – Olha! Quem era o filho dele? Tinha quantos anos?
R – Adélcio. Eu era adolescente, acho que eu tinha o quê? Uns 17 anos. Ele estava fazendo Engenharia na Faculdade São Carlos. Foi um namorinho rápido. Mas vários professores. Professora Fernanda, que foi minha professora do prezinho. Depois ela virou diretora da minha escola e dizia-se as más línguas que ela e o professor Edson tinham um affair. Porque eles estavam sempre juntos, ela era bonitona, ele era bonitão, tinha aquela fantasia assim (risos).
P/1 – Que eles tinham um romance.
R – Que eles tinham um romance (risos). Era a história da escola. E do Belchior foi isso. Eu passei pro Cefam que era um colégio que você ficava o dia inteiro e ganhava um salário. Eu fui pro primeiro ano que o governo tinha lançado esse programa do Cefam, foi tumultuado, teve greve de professores. Eu passei de ano, mas eu resolvi que eu não queria ser professora e eu mudei pro João Batista pra fazer o segundo ano normal de manhã, e lá eu fiz o segundo e o terceiro ano. E foi legal porque lá eu encontrei, porque o Belchior nessa época não tinha o segundo grau e os meus amigos que a gente estudou desde a quarta série até a oitava série parte tinha ido pro João Batista e a gente continuou. Voltei, encontrei alguns amigos, foi interessante.
P/1 – Quem são os amigos?
R – Rosilene, que é minha amiga até hoje, Rosilene de Oliveira, que é atriz e é minha amiga até hoje. O José Eduardo Gonzales, que é espanhol e tinha ido pro Brasil pequeno e hoje mora na Espanha, também é meu amigo. Kátia, que chegou depois. Várias pessoas.
P/1 – O que vocês faziam nessa época?
R – Bem, na adolescência, já no segundo ano, aí eu, Rosilene e Kátia a gente se conectou. Rosilene por ser atriz está fazendo Macunaíma já naquela época, com 16 anos, adorava o David Bowie (risos), só saía de casa se colocasse um pó branco na cara (risos). E foi interessante porque a Kátia também, a mãe era jornalista, ela veio de São Paulo. A Rosilene também é nascida e crescida em Itapecerica, mas Kátia não, vinha de São Paulo, Boiçucanga, a mãe dela era riponga, aquelas histórias, então ela chegou já com uma outra bagagem. E eu lembro, foi quando eu fui introduzida pra Herman Hesse, a gente estudava Jung, a gente se encontrava nos sábados para discutir Jung, pra ficar discutindo Filosofia, foi bem legal. Foi quando eu fui ler o Sidarta, o Lobo da Estepe.
P/1 – Vocês saíam?
R – A gente nem saía, a gente se encontrava no sábado de manhã na frente do colégio pra ficar filosofando. A gente lia os livros, ficava falando, ia na casa, acho que eu fui uma vez só na casa da Kátia. As meninas até saíam mais porque estavam fazendo teatro, não sei o quê. Eu saía porque eu ia trabalhar, mas ir pra noite mesmo, acho que eu comecei a sair quando eu tinha uns 17 anos. Minha mãe tinha uma história que eu não podia namorar até os 15 anos, então realmente eu dei o primeiro beijo quando eu tinha 14 anos, dei um beijo.
P/1 – Em quem?
R – Num menininho lá, num alemãozinho, besteira. Um ano depois eu dei outro beijo (risos), num outro que virou meu namoradinho, tal, Marcelo, que aliás é uma história tristíssima, ele foi assassinado.
P/1 – Nessa época?
R – É, ele foi assassinado, foi horrível. Ele foi assassinado poucos... assim, a gente namorou um tempo. Eu conheci ele e conheci um outro menino e eu me apaixonei por esse outro menino, só que esse menino era do Taboão da Serra, eu morava em Itapecerica, não sei o quê, a gente se encontrou duas vezes e eu fiquei arrastando corrente uns dois anos por ele. E nesse ínterim eu conheci o Marcelo na Fonte. Tinha uma fonte de água lá em Itapecerica que era onde os motoqueiros todos se encontravam. E aí eu comecei a frequentar esse point e eu conheci o Marcelo. O Marcelo era filho do dono de um restaurante tradicional lá de Itapecerica, o Pilão, que nem existe mais, e ele tinha 19 anos. Ele era marinheiro, recruta, marinheiro mesmo. E ele se apaixonou por mim, ele gostou muito de mim, só que a gente namorou um mês e pouco e eu gostava do outro, aí eu terminei o namoro com ele. Um mês depois um dia ele desapareceu com uma garota que era o primeiro encontro deles. E aí descobriram dois dias depois, um dia depois, uma coisa assim que eles tinham sido assassinados. Foi uma coisa horrível, até hoje ninguém sabe se foi vingança, mas o pai, mais dois ou três filhos, sequestraram os dois, levaram pro mato, ele morreu com 21 canivetadas no peito e eles violentaram a menina, enfim, mataram os dois. Foi horrível porque a família dele, as pessoas achavam que ele estava comigo, então algumas pessoas achavam que tinha sido eu que era vítima, ficou uma história troncha. Eu passei um ano dentro do cemitério também porque algumas primas dele falaram: “Ah, se você estivesse com ele...”, enfim, rolou toda uma paranoia, demorou um tempo para eu me livrar. Foi triste, saiu até naquele: (cantando) Que saudade de você. Sabe aquelas pessoas que escrevem a música?
P/1 – Não.
R – Não? Tem um programa de rádio, não tem esse programas de rádio tipo Zé Bettio, não sei o quê?
P/1 – Sim.
R – Então, tem um à tarde que você escreve essas cartas, essas histórias tristes.
P/1 – É AM?
R – Sei lá. É, acho que é. Isso, é AM. E você manda essas cartas. E uma prima dele mandou a carta contando toda a história e fala de mim também. Foi a minha primeira aparição na mídia.
P/1 – E foi seu primeiro namorado oficial?
R – Foi meu primeiro namorado oficial, foi o meu primeiro namorado que os meus pais conheceram. Mas que ele não entrou na minha casa. Está vendo, tinha essa coisa, me pegava no portão, saía, tal. Aquela fase que você só beija (risos).
P/1 – E à noite, quando você começou a sair? Onde é que você ia?
R – Teve essa coisa dos donos, na banca, que às vezes eles traziam a gente aqui no Margherita, ali nos Jardins, pra comer pizza, saía assim. Mas de galera, de sair mesmo, de ficar fazendo besteira, acho que com uns 16, 17 anos eu comecei, tinha um bar, uma pizzaria chamada Girassol, era o point. Eu comecei a sair um pouco com os motoqueiros também. Eu lembro que teve uma época que eu não andava mais a pé na cidade, porque quando eu estava subindo tinha um motoqueiro subindo, dava carona; quando eu estava descendo... Meu pai nunca brigou, mas ele sempre dava uns apelidos. Eu lembro uma vez eu estava conversando com um menino na frente de casa, depois que eu entrei ele falou: “Quem é aquele espantalho de pobre?” (risos) Ele sempre desclassificava os garotos assim (risos). Mas nunca proibiu. Depois fiquei na época pré-universidade, que eu fiz Engenharia Mecânica, três anos de Engenharia Mecânica, eu ficava lá no Girassol, que era aquela época de sertanejo. E Itapecerica tem um rodeio que é famoso, então era a grande festa do ano, eu esperava um ano, eram 12 dias de festa eu dava 12 beijos diferentes, era ótimo, adorava os rapazes (risos). Ah, era ótimo. E comecei a beber. Minha família bebe muito cedo, eu fiquei bêbada aos seis anos (risos).
P/1 – Aos seis? Mas como é que foi isso?
R – Então, minha família sempre muito permissiva porque eu era a xodozinha, então desde pequenininha eu tinha uma xícara e quando eles estavam bebendo eu pedia, eu falava: “Põe um pouquinho aqui na minha xiriquinha”, e eles botavam um pouquinho de cerveja, todo mundo é muito cervejeiro. E aí eu tomei gosto pela coisa. E um dia uma tia estava cuidando de mim e ela foi tomar vinho licoroso, eu pedi para experimentar e ela deixou. E ela foi fazer a siesta dela junto comigo. Eu esperei ela dormir e a cada dez minutos eu ia lá na geladeira, abria, tomava um pouco e voltava, até uma hora que eu fui e não conseguia mais voltar porque eu estava no chão, completamente bêbada, tinha tomado meia garrafa de vinho licoroso. Minha mãe chegou, foi um escândalo (risos). Ela ficou p. da vida com a minha tia e queria me descer o sarrafo ainda (risos). Mas é. E aí tipo aos 16, 17 anos, aí comecei.
P/1 – O que vocês ouviam, sertanejo?
R – Ouvia sertanejo, ouvia muito sertanejo, MPB, teve a fase do sertanejo. Depois eu fui pra universidade e com 20 anos foi quando eu mudei de galera, que aí tinha um médico que chegou na minha cidade, um médico pernambucano, doutor Epaminondas, ele era reumatologista, mas especializado, ele tinha vindo da Harvard alguns anos antes, tinha feito uma especialização em prevenção de Aids. Ele tinha ido pra Itapecerica trabalhar com os jovens adolescentes. Ele tinha uma tomada interessante porque ele usava a arte-educação como maneira de prevenção. Então ele atraía os jovens através de arte, teatro, de música, não sei o quê, pra disseminar a prevenção e falar de DST. E aí uma amiga um dia me levou numa festa que ele estava, não sei o quê, e ele era uma figura. Primeiro que ele tinha memória fotográfica, então ele era muito inteligente. E ao mesmo tempo megalomaníaco, tinha um ego que era uma coisa absurda, mas, quer dizer, a gente foi ficando muito amigo e ele foi pivô pra todos os meus amigos hoje, toda a minha irmandade hoje, mesmo os meus amigos que eu escolhi, aquela segunda família que a gente escolhe na vida, todos vêm daí, através dele.
P/1 – Aos 20 anos.
R – Aos 20 anos. Porque aí eram duas galeras. Lá em Itapecerica ele formou um secto em volta dele que eram jovens da minha idade, lá de Itapecerica, que hoje está tudo nos 40, 41. E ele tinha a galera de faculdade dele, que era todo mundo naquela época nos seus 38, 40 anos, que hoje está todo mundo aí com quase 60 anos, 50 e poucos anos. Então durante cinco anos da minha vida eu convivi com essa galera e ele foi também outra pessoa que completou a minha educação intelectual. Eu comecei a ler pra poder ter o que falar com ele porque ele citava Borges, Sartre, Simone de Beauvoir, Camus, todos esses existencialistas, estas figuras todas, eu queria saber. Eu fui ler os caras, aí fui ler Filosofia, fui ler os gregos, mitologias. E muita MPB, a gente cantava muito, fumava maconha o tempo inteiro (risos), ele era outro médico permissivo (risos).
P/1 – Um jovem, né?
R – É. Ele usava muito, dava pra gente muito remédio tarja preta para emagrecer chamado Inibex, que você toma com cachaça e dá o barato. Ele passava a receita e a gente comprava. Aí na festa, tem um episódio que um amigo grita na festa assim: “Epa, pode quantos?”, ele fala assim: “Cinco!”, que você podia tomar até cinco Inibex está beleza.
P/1 – Tinha um critério.
R – Sim. Porque senão você chapa, né?
P/1 – Sim, pra ficar todo mundo bem.
R – É, pra ninguém ficar OD, overdose já é careta (risos).
P/1 – E como foi o seu trabalho, o primeiro emprego no jogo do bicho? Faz essa memória descritiva, você lembra?
R – Eu era caixa e aí eu ficava calculando. Eram quatro sócios, o Mancha, o Paulinho, tinha mais dois... lembro do Mancha e do Paulinho, mas tinha mais dois. Tinha um deles que naquela época eu achava ele um coroa, ele deveria ter uns 40, 41 anos, a minha idade (risos). Ele gostava de mim e ele queria namorar comigo de qualquer jeito. Então ele ficava me levando pra cima e pra baixo, acho que foi aí que eu descobri como é que você manipulava os homens pra ser seu sugar daddy. Porque eu não ficava com ele porque eu não gostava dele, eu achava ele um velho, eu tinha 16, 17 anos (risos). Com 16 anos eu achava ele um velho (risos). Mas ele me levava pra jantar (risos), a gente ficava só no charme. Era divertido, mas não teve nada. E era bom porque eu comecei a fazer dinheiro, ganhava uma graninha. Ele pagava mal, sei lá, acho que nem um salário mínimo.
P/1 – E o que você fez com o primeiro salário?
R – Ah não, eu era uma imbecil. Porque eu tinha essa dificuldade com a questão socioeconômica, então eu achava que se eu me vestisse de marca ia tampar esse buraco, dessa vergonha de ser pobre. Então durante muito tempo eu gastei todo meu dinheiro pra me vestir. Demorei um tempo, até eu começar a me sustentar mesmo, que aí já com 24 pra 25 anos, quando eu vim morar aqui em Pinheiros, que eu tinha que pagar aluguel e não sei o quê, eu saquei que o negócio não importava a marca, você tinha que ter bom gosto e se sentir bem, entendeu? Às vezes você compra uma roupa barata, você mistura com um sapato mais caro, enfim, você cria o seu próprio estilo e isso é o que vale mais do que você estar com a Nike. Porque eu lembro uma história, eu não trabalhava, acho que foi por isso que eu comecei a trabalhar. Eu fiquei com o meu pai: “Eu quero um Niki. Eu quero um tênis Niki”, eu não sabia nem falar. Eu queria um Nike e ficava: “Eu quero um Niki. Eu quero um Niki”. E meu pai já muito socialista falou assim: “Eu dou qualquer outra, mas esse eu não vou dar”. Porque esse custava um salário mínimo, alguma coisa assim, era uma grana. Ele falava: “Por quê? Não precisa disso, isso não vai” “Ah, mas eu quero esse” “Então você vai trabalhar, você trabalha o mês inteiro, pega o salário e dá num sapato só”. Eu fui e fiz e comprei o meu Niki (risos).
P/1 – Foi o primeiro salário?
R – Meu primeiro dinheiro que eu ganhei. E aí, mas isso. Comprava roupa, essas coisas assim.
P/1 – Na época da faculdade você está trabalhando com seu pai, você vai pra faculdade...
R – Na verdade eu acho que eu tinha uma tendência artística muito grande que eu até queria ter investido, tal. Eu até lembro que uma vez a mãe tentou me levar até o Macunaíma e a gente não achou, aquelas coisas assim. Mas de novo, sempre permeado por essa culpa, por essa vergonha da situação socioeconômica, na minha cabeça eu pensei: “Ah não, artista não ganha dinheiro. O que eu vou fazer? Quero ser engenheira, porque engenheiro ganha dinheiro”. E fui fazer faculdade de Engenharia Mecânica, estudei um ano inteiro de cursinho, trabalhei, paguei uma parte...
P/1 – Trabalhava com seu pai?
R – Não, eu trabalhava no Shopping Iguatemi. Eu trabalhei no Shopping Iguatemi um tempo só, mas depois eu não aguentei mais porque eu saía de casa às cinco e meia da manhã pra chegar na Frei Caneca às sete, pra começar a estudar às sete, sete e pouco, ficava até umas quatro horas, eu acho, até depois do horário de almoço, ia pro Shopping Iguatemi, ficava até às dez no shopping pra pegar o ônibus e ir pra Itapecerica. Eu chegava meia-noite em casa. E não dava, aí meu pai pagou o cursinho um tempo, ajudou, tal. Eu passei na FEI, fiquei na lista de espera da Unesp e depois eu entrei na Unesp, mas era para fazer em Ilha Solteira, e pra fazer Elétrica, eu não queria. Eu já estava na FEI também. Quando saiu a lista de espera da Unesp eu já estava matriculada na FEI. Só que aí eu fui pra faculdade e eu pirei nos primeiros seis meses porque eu saquei que não era aquilo que eu queria só que eu não tinha coragem de falar pro meu pai. Eu tomei um pau na universidade, eu não consegui enxergar desenho geométrico de forma alguma, não conseguia tirar do papel. Era semestral, eu falhei três semestres, eu não consegui passar naquela matéria, porque você tem que ver 3D, hoje eu consigo ver, mas naquela época eu não conseguia. E aí era aquela coisa assintomática mesmo, só quem é idiota não percebe. Minha melhor matéria era Filosofia (risos). Filosofia e Química eu arrasava, Cálculo também. Agora Física e Desenho Geométrico era horrível, não consegui passar. E virou uma bola de neve. E eu fui ficando deprimida, ficando deprimida, eu fiquei dois anos na FEI, aí eu consegui passar pro segundo ano, com dois anos, aí eu resolvi mudar pra Unip, em São Paulo. Pra ir pra Itapecerica e ficar indo pra Unip à noite. Eu fui trabalhar na Moto Remaza, vendendo consórcio. Nunca odiei, morria de vergonha. Depois eu consegui, eu detestava vender consórcio, aí eu consegui arrumar emprego pra trabalhar dentro da Moto Remaza, eu vendia moto, CG 125.
P/1 – Mas o consórcio você ia nos lugares?
R – Porta em porta. De vender bíblia, amiga (risos).
P/1 – Como é que era isso?
R – Era horrível (risos). Eu não vendia p. nenhuma, passava o dia inteiro pra cima e pra baixo.
P/1 – Tinha alguma história?
R – Não, a história é que eu conheci uma maluca, Silvana, Silvana Severina, tem que escrever um filme sobre essa mulher. Ela era paraibana, linda, daquelas paraibanas acho que mistura europeia, morena com os olhos verdes e aloirada. E ela tinha uma irmã que era garota de programa que casou com um alemão e comprou uma cobertura na Rua dos Ingleses, uma travessa da Consolação.
P/1 – Na Bela Vista?
R – Isso, ali. Onde tem o Clube Inglês, no final da rua. Só que a irmã era mais louca do que ela, porque a história é assim: a irmã morava na Alemanha e a irmã quando vinha pro Brasil mobiliava a cobertura toda e quando ela ia, ela prendia todos os móveis e deixava a mãe e o irmão e Silvana, que na verdade se chamava Severina, e mudou o nome porque ela não queria ser Severina, queria ser Silvana, deixava a mãe, a Silvana e o irmão morarem num quarto dentro da cobertura. E a cozinha tinha um fogão na frente do fogão embutido, a mãe dela não podia nem usar as coisas da cozinha. E eu conheci a Silvana lá no Consórcio Remaza e ela me convidou pra passar um tempo com ela lá, porque, claro, quando a irmã não estava a Silvana tomava conta, a cobertura era dela. Porque a Silvana era assim, uma mulher linda de boca fechada, mas quando ela chegava em casa ela comia uma bacia com as mãos, ela não tinha cultura nenhuma. E a história dela, ela queria dar o golpe, ela queria casar com um homem rico. Ela não queria se prostituir como a irmã. Então o que ela fazia? Ela seduzia. Então ela seduzia o gerente do banco pra aumentar o cheque especial dela, ela seduzia as pessoas, os caras, e aí conseguia vender, ela era a melhor vendedora do consórcio. Ela entrava nas lojas, na época que ainda não tinha esses detectores, ela deixava o sapato velho, calçava o novo e saía. Tirava o cinto velho. Ela parecia uma patrícia, era uma patricinha, linda, toda bonitinha, não sei o quê, mas a pessoa era meio desregulada (risos). E eu fui morar na casa dela, eu fiquei um mês, um tempo lá, num momento em que eu estava entrando em depressão mesmo, porque quando eu mudei pra Unip e essa coisa vai, não vai, não tem trabalho, eu já estava deprimida, foi rolando. Eu não queria fazer engenharia, eu não conseguia admitir pro meu pai que eu não queria fazer aquilo porque eu já tinha consumido o dinheiro dele durante três anos, com a minha mãe já falando na minha cabeça desde o começo que não era pra ele pagar mesmo aquilo, que a universidade particular era coisa de burguês e eu não era filha de burguês, então, criou aquele monstro. E pra completar a história um dia eu saí com Silvana e aí eu conheci o vice-presidente da Fepasa e ele se apaixonou por mim. Eu me apaixonei por ele, mas eu estava apaixonada por outra pessoa, foi uma confusão, não sei o quê. Rolou uma história muito rápida, com uma semana que a gente estava junto ele já deu a chave do flat dele, não sei o quê, um apart hotel e ele queria, ele estava com 39 anos na época, eu tinha 20 e ele estava procurando uma mulher pra casar porque ele queria ter filho, estava preocupado que estava ficando velho, não sei o quê. Eu não queria casar, né? Quando ele falou isso pra mim eu falei: “Você acha que eu tenho cara de babá, né?”, porque eu era muito agressiva com os homens, tal. Mas um mês não deu certo a história. Também foi outro grande educador, porque aí com ele eu aprendi ópera, ele me levava pro cinema, pro teatro, aí ele introduziu o cinema alemão, aí a gente vai conhecer o Dogma, entendeu? E quando eu me separei dele eu entrei em depressão por causa já de faculdade, de não sei o quê naquele momento mesmo. Eu comprei todos os livros que ele tinha citado, eu li todos os livros que ele tinha citado, eu comprei todos os discos que ele tinha (risos), eu me eduquei, refinei a minha educação.
P/1 – E você morava com a Silvana?
R – Morei com a Silvana. Com a Silvana, fiquei lá um mês e pouco. Mas aí eu estava ficando muito deprimida. Eu fui ao médico, fui numa terapeuta, tal, uma amiga conversou: “Sai da sua casa que a sua saúde mental não tem preço”. Porque a Silvana era louca, ela fazia eu ficar imitando, como você está no altar, entendeu, tãnãnã, tãnãnãnã, ela falava pra mim. Eu tenho um processo, quando eu estou deprimida eu leio. Leio, leio, leio, leio, leio, leio, leio, leio, leio. Quero ver filme. Eu me tranco nesse universo. E eu estava lendo, lendo, lendo e ela falou assim: “Homem não quer saber de mulher inteligente, homem quer saber de mulher bonita”, ela tinha umas coisas absurdas. Eu lembro que uma vez ela falou assim... pronto, ela conseguiu seduzir o dono do flat do prédio que o Mauro morava. E ela falou assim: “Ai Rose, eu vou sair com ele, se ele perguntar que tipo de música que eu gosto, o que eu falo pra ele?” “Sei lá, fala que você gosta de música clássica” “Tipo Julio Iglesias, assim?”, “É, tipo do Julio Iglesias” (risos). Eu não sei exatamente que fim levou Silvana porque eu desapareci da vida dela porque eu tinha medo dela mesmo, assim, porque às vezes a gente ia trabalhar, eu tinha o dinheiro só do meu almoço, cara, e ela fazia eu pagar o táxi pra gente ir de táxi. Porque se eu não pagasse ela fazia um escândalo no meio da rua, entendeu? Ela era uma pessoa meio doida (risos).
P/1 – E você foi pra onde?
R – Voltei pra casa dos meus pais, arrumei emprego em um hotel lá em Itapecerica, um hotel de business que na época tinha conta da Skol, da Brahma, as pessoas iam pra lá e passavam a semana inteira estudando, fazendo aquelas conferências e eu fui trabalhar de assistente do gerente. Eu entrava no hotel junto com a empresa e eu era a secretária da empresa, a ponte entre a empresa e o hotel nesse período em que eles estavam hospedados. Então eu verificava se o coffee-break estava, fazia a coordenação da cozinha, da recepção.
P/1 – Atendimento.
R – Do atendimento, exatamente. E trabalhei lá dois anos, ou dois anos e meio. Eu trabalhei lá até 97, até o final de 97, quando eu resolvi que o meu negócio era cinema, que o que eu queria fazer era cinema. Eu arrumei um emprego numa produtora ali perto da Berrini como atendimento também, vendendo o trabalho da produtora, e na época o cinema brasileiro estava começando a retomada e tinha o curso da USP e tinha um curso na, essa que é aqui no Pacaembu?
P/1 – Faap.
R – Na Faap e tinha vários cursos, tipo cursos rápidos de roteiro ali, de não sei o quê aqui e eu comecei a fazer esses cursos e rapidamente já me envolvi com o pessoal da ABD, que é a Associação Brasileira dos Documentaristas, que se reuniam toda semana no MIS, comecei a entrar nesse grupo. E aí fui desenvolvendo e em agosto de 1998 eu fui violentada. Eu fui numa festa, a festa do meu ex-gerente do hotel que é gay, eu ajudei ele a organizar a festa e era um espaço comum, era a casa da dona do hotel que a gente já tinha feito festas lá e todo mundo estava na festa.
P/1 – Aqui em São Paulo?
R – Itapecerica. A dona do hotel estava lá, todo mundo. Os amigos, essa galera do Epaminondas, é o povo normal, ele já tinha feito várias festas lá. E aí era cinco horas da tarde eu já comecei a beber porque eu comecei a organizar a festa, fiquei bêbada rapidamente. E no começo da noite a gente estava na torre fumando um baseado e chegou um rapaz jovem e a gente ofereceu e ele falou que não queria, que ele tinha uma coisa mais forte pra mais tarde, não sei o quê, e esse rapaz era amigo do aniversariante, que era meu ex-gerente. E a gente ali pela festa, às duas horas da manhã eu já estava quase completamente bêbada, eu estava sentada na frente da casa, ele veio e me ofereceu uma linha de cocaína, e eu aceitei. E ele me guiou pro estacionamento do sítio, era num sítio. E aí ele pediu que eu abaixasse pra ninguém nos ver. E no que eu abaixei ele já veio por trás, me deu uma gravata, me puxou pra dentro do mato e a gente brigou muito. Eu lembro que chegou uma hora que, tipo, eu sinto como se tivesse saído do meu corpo e tinha me visto lá morta e eu só pedia a Deus: “Meu, eu vou fazer 24 anos”, faltavam 11 dias para eu fazer 24 anos, e eu estava começando a desenvolver o meu projeto do meu primeiro filme, tinha encontrado com Walter Salles, tinha tanta coisa legal que estava acontecendo, que eu só falava: “Ai, eu não quero morrer assim, pelo amor de Deus, eu tenho tanta coisa pra fazer, não deixa eu morrer, o que eu faço?” E veio na minha cabeça: “Finge que você está morta”. Eu fingi mesmo que estava morta, aí ele respirou assim: “Ah, morreu” e saiu fora. E aí eu levantei, voltei pra festa. E eu tive que fazer uma reconstrução de nariz, eu tenho 15 centímetros de platina no meu braço, com cinco parafusos e tive que fazer uma reconstrução de períneo. Eu falei o que tinha sido, quem era, que eu estava lúcida e aí foram pra casa e ele estava dormindo com a roupa toda ensanguentada do lado, faltava 20 e poucos dias para ele fazer 18 anos. Ele era menor, ele foi tratado com menor, foi pra Febem, com três meses ele fugiu. E no que ele fugiu eu fugi de Itapecerica, foi quando eu vim morar em São Paulo e aí nunca mais voltei. Assim, pra morar. Eu fico indo e voltando, tal, foi quando eu vim morar na Teodoro Sampaio. Isso foi em 1999.
P/1 – E me conta um pouco mais essa coisa do cinema na sua vida.
R – Nessa época, quando aconteceu isso, eu já estava no cinema.
P/1 – Você falou do Walter Salles, como é que é isso?
R – Ah então, Walter foi meu grande padrinho, eu falava que ele era o meu futuro marido, porque ele era muito bonitinho e uma figura maravilhosa. Nessa retomada do cinema brasileiro, cinema nacional, eu me envolvi, comecei a ver documentários. Aí eu vi Poeta dos Vestígios, que é um filme sobre o Krajcberg, que o Walter faz. Depois ele lança Central Station. Mas o Central Station foi quando ele estava fazendo o filme do Krajcberg, que o Krajcberg falou da Socorro Nobre, que era uma presidiária, que depois que o Krajcberg tinha dado uma entrevista para a Veja, ela começou a se corresponder com ele, tanto é que o Walter vai conhecer a Socorro e faz o Socorro Nobre, que é o documentário dele. E eu já fiquei ligada, tudo que tinha do Walter eu falava do pessoal pra todo mundo, toda vez que eu via eu falava: “Ah, meu futuro marido, meu futuro marido”. Então meus amigos já ficavam assim: “Teu futuro marido vai estar não sei onde”. Aí ele lançou o Central do Brasil e eu não tinha visto, mas já tinha lido tudo, sabia o plot do filme, não sei o quê. E aí um amigo me ligou no trabalho, eu trabalhava lá na Berrini, e falou: “Ó, o Walter vai estar lançando um filme sobre o André Bazin, que é do Cahiers du Cinéma, na Fnac, lá hoje”. Eu falei: “Vou lá”. Saí do trabalho e voei. E escrevi uma carta pra ele dizendo: “Eu sou ouvinte da ECA”, na época eu era ouvinte da ECA. Eu trabalhava na produtora, era ouvinte da ECA e fazia parte do diretório lá da ABD, cheia dos engajamentos.
P/1 – Você já tinha saído da FEI...
R – Ah não, eu fui pra FEI em 93, a gente está falando em 1998. Morava em Itapecerica ainda, mas estava trabalhando na Berrini, já numa produtora. Já tinha saído do hotel. Fui lá encontrar com ele, levei a cartinha, bonitinha, ele estava lá em pé, eu toquei assim no ombro dele. Eu falei: “Olha, eu quis entregar em mãos, eu fiquei com medo que alguém engavetasse”, que era o plot do filme dele, que a mulher escrevia as cartas e não mandava. E ele adorou aquilo: “Você é muito inteligente, não sei o quê, não sei o quê”. Ele veio, conversou comigo, eu fiquei toda encantada. Depois eu comecei a fazer pesquisa do meu filme. Estava se aproximando 2000, o Brasil ia completar 500 anos e eu fiquei com essa vontade de querer saber desses 500 anos através do viés do olhar do índio. Comecei a fazer uma pesquisa, o Walter estava lançando o livro do Central do Brasil, aí fui com um amigo na feira do livro, passei um cheque sem fundo conscientemente pra comprar o livro, entrar na fila e pegar um autógrafo (risos). E o banco era Unibanco, então até tudo bem, né? (risos)
P/1 – Era pra ele.
R – Era pra ele (risos). Foi um ato de caridade da Lei Rouanet (risos). Fui lá, estava a Fernanda Montenegro, não sei o quê. Ele lembrou de mim e eu perguntei pra ele: “Foi você que fez”, tinha uma série sobre o Xingu que passava na TV Manchete na época e eu achava que ele que tinha feito. Ele falou: “Não fui eu, não, mas foi um grande amigo meu, por quê?” “Porque eu estou fazendo uma pesquisa sobre os indígenas, quero fazer um documentário”. E ele de pronto me deu o telefone do amigo dele e falou: “Liga pro meu amigo e fala que fui eu que pedi pra você ir lá. Vai lá pro Rio de Janeiro ver os arquivos dele pra você fazer sua pesquisa”. E o cara me recebeu de braços abertos, eu fiquei lá uma semana.
P/1 – Quem era ele?
R – Eu não lembro, cara. Era uma produtora na Urca. E eu fiquei a semana inteira lá vendo realmente os arquivos, não sei o quê, enfim, fiz minha pesquisa, tal. Quando foi em 99, quando eu estava fazendo todo o processo pra Capes Jovens Artistas, que mesmo que se você não tivesse uma universidade eles estavam dando pra especialização uma bolsa pra você ir. E aí eu entrei em contato com o Walter novamente e ele me deu uma carta de recomendação. Eu tinha um projeto que eu vinha trabalhando há um tempo, chamava Nosso Olhar, que era pra fazer um projeto com meninos de rua. Eu fiquei uns três anos tentando financiar, arrecadar dinheiro, foi pra Rouanet, foi pra todas as leis, eu virei especialista em fazer projeto pra Rouanet, mas nunca consegui levantar um centavo pra esse projeto. Mas eu dei o projeto pra ele analisar, ele gostou e ele me deu uma carta de referência falando que eu era o futuro do cinema brasileiro (risos).
P/1 – Você tem essa carta?
R – Tenho a cópia dessa carta. Porque foi com essa carta que eu ganhei a bolsa e depois perdi porque eu falhei no Toefl duas vezes, mas quando eu fui pra Inglaterra, essa carta que eu consegui minha vaga de mestrado. E aí continua meio essa relação com o Walter porque aí eu fiz o mestrado na Inglaterra.
P/1 – Como é que foi ir pra Inglaterra? Porque a gente ainda está aqui no Brasil.
R – Então, em 2000 eu fiz o documentário. Eu namorava uma figura que eu amo até hoje, que é um médico, outro médico louco na minha vida, que ele tomava banho lendo jornal (risos). Exatamente.
P/2 – No chuveiro?
R – No chuveiro. Ele tinha um preguinho na parede em frente ao chuveiro e colocava o jornal e ele tomava banho lendo o jornal (risos). Ótimo. E um dia eu estava tomando banho lendo o jornal e estava lá falando que ia ter a Primeira Conferência Indígena na Bahia durante aquela semana de comemoração dos 500 anos do Brasil, que 180 tribos estavam vindo do Brasil inteiro pra ficar lá em Cabrália. Eu catei o jornal, consegui ligar pra Folha de São Paulo, descobri o jornalista, ele me deu o contato, eu entrei em contato. Consegui, na época, fazer parte de uma cooperativa de cinema, entrei em contato com a Rede Bandeirantes, os índios não estavam deixando os repórteres entrarem dentro do acampamento, só tipo amadores como eu que ia ter acesso, e eu ia ter acesso. Então eu vendi algumas imagens, troquei algumas imagens pela minha passagem e um câmera, meu amigo que ia fazer câmera, que eu já tinha feito um trabalho de graça pra ele antes. E aí a gente foi, passou uma semana lá em Cabrália, meio que dormindo com os índios, comendo junto lá e eu voltei com 14 horas de material. Demorei nove meses e cortei esse filme, fiz um documentário de 26 minutos chamado ABA, que foi como eu consegui emprego aqui, também. Esse documentário ficou pronto em janeiro de 2001. Eu mandei pra cá, uma amiga me falou do Museu e eu mandei pro Zé a minha fita. E aí foi que ele gostou, ele assistiu ao documentário e me chamou pra trabalhar e eu comecei a mandar pra festivais internacionais e eu fui selecionada para ir pro Fica, Festival Internacional de Cinema Ambiental, em Goiás Velho. Eu fui pro festival e no dia que eu cheguei o meu filme passou. Assim que o filme passou foi completamente ovacionado, foi uma coisa assim, eu saí da sala emocionada, eu fumava naquela época e fui lá fumar um cigarro lá fora. E quando eu olhei do outro lado da rua assim tinha uma criatura branca, toda assim, vermelha, que eu sabia que ele não era brasileiro, né? E quando eu vi aquela figura me deu um trilili, eu tinha que falar com ele imediatamente. Eu atravessei a rua e com todo o inglês que eu tinha eu falei com ele bem convincente, como se eu falasse inglês assim: “Are you lost?”. Ele falou: “Yeah, I lost my friend”, eu disse: “So do I” (risos). Que era meu ex-namorado que estava lá comigo, né? (risos) E daquele momento eu só queria saber de Mike Chamberlain, entendeu assim? Porque festival, quando você vai que você é convidado, todo mundo come junto, hotel, você acaba vendo as pessoas o tempo todo, né? E aí a gente ficava se esbarrando, não sei o quê. Eu lembro que ainda meu namorado estava de carro lá, então ele levou a gente para uma boate. Eu sei que no último dia do festival eu estava convencida que eu ia dar um beijo na boca daquele inglês, que eu era bem agressiva quando eu era solteira (risos), eu grudava e beijava mesmo. Só que o cara ganhou o festival, ganhou 25 mil dólares.
P/1 – Ganhou com qual?
R – Com um filme que ele tinha produzido chamado Coconut Revolution.
P/1 – Que tratava do quê?
R – Tratava de uma revolução. Que na Nova Guiné os guerrilheiros fizeram uma guerrilha usando coco, eles usavam coco pra tudo. Eles fizeram a arma de coco, eles usavam coco como óleo pra carro, comiam coco, é a revolução dos cocos, é bem legal, Coconut Revolution. E ele ganhou. E aí não dava porque o governador do estado veio dar o prêmio, a Rede Globo, porque o festival Fica é um festival grande, não sei como está indo, mas na época era um grande festival, no último dia tinha Zé Ramalho e Elba Ramalho cantando, era uma estrutura grande. E pra completar a impossibilidade estava tendo a reunião nacional da ABD Nacional lá, então todos os meus companheiros de associação estavam lá, eu não podia grudar no inglês que ganhou o prêmio máximo porque eu ia ficar parecendo uma golpista, né? Aí tipo, não rolou nada (risos), a gente só trocou uns e-mails assim e tal, beleza. E eu voltei pra São Paulo. E essa história de ir pra Inglaterra, desde os 17 anos eu queria ir pra Inglaterra. Eu nunca quis morar, nunca tive o sonho: “Eu vou viver na Europa, eu quero casar com estrangeiro”. Não, eu queria ir pra Inglaterra porque eu nunca queria ir pros Estados Unidos, que eu achava muito babaca, eu queria ir pra Inglaterra aprender inglês e depois fazer um backpack, ficar cada três meses em um país diferente, viajando, ira pra Itália, tal e voltar pro Brasil. Queria aprender inglês. E eu tinha uma amiga que tinha morado comigo no apartamento aqui na Teodoro e ela já estava lá. E aí juntou várias coisas, eu conheci esse cara, que não rolou nada e eu até levei na época, eu fazia terapia, eu levei pra minha terapeuta e falei: “Mas eu não consigo esquecer esse inglês, a maior idiotice, eu nunca mais vou ver o cara e não consigo tirar o cara da minha cabeça”. Ela falou: “Não, daqui a pouco sai”. Aí nisso ele mandou um e-mail. Só que inglês é assim, ele vai jantar na sua casa e depois ele manda um texto, alguma coisa dizendo muito obrigado, foi legal te conhecer. Então assim, ele mandou pra todo mundo, ele achei que ele só tinha mandado para mim, eu era especial, entendeu? Então eu jump in total. Ele mandou e eu falei: “Nossa, estou indo pra Bahia fazer pesquisa de outro documentário, quer ir comigo?” (risos) Aí que ele falou assim: “E aquele namorado seu, você não estava com um namorado?” “Não, é só meu amigo” (risos). E aí ele falou que ele era casado fazia dez anos, que o casamento dele estava em frangalhos, a mulher dele estava indo embora pra Malásia e que ele estava muito confuso. Eu falei: “Não, você gosta da sua mulher, vai aí”. Mas realmente o casamento estava muito desestruturado, ela estava pleiteando um emprego pra ir embora pra Malásia e foi mesmo. E a gente começou a se corresponder, isso em junho. De junho até dezembro. E aí foi uma época que eu não sei como eu não perdi o emprego aqui no Museu da Pessoa porque eu chegava às oito da manhã e só começava a trabalhar às onze porque eu ficava traduzindo, com dicionário, letra por letra os e-mails que ele mandava e ficava enchendo o saco da Bárbara, que é a que está agora em Hong Kong, que eu falei com a Rosana?
P/1 – Sim.
R – Ela trabalhava aqui, ela falava inglês também, então eu ficava atrás dela: “Bárbara, o que eu escrevo aqui? O que ele quer dizer aqui?” E foi super legal porque a gente não tinha Skype, era só e-mail mesmo, a minha primeira conta de Yahoo. E foi legal porque a gente desenvolveu uma amizade antes de qualquer coisa ainda. Foi uma confluência, pela primeira vez na minha vida eu estava tendo um salário que dava pra pagar meu aluguel e ainda dava para juntar uma graninha pra pagar minha passagem. Minha amiga que tinha morado comigo estava lá e falou: “Olha, eu estou indo pra Índia, eu deixo meus trabalhos aqui pra você”. E eu estava apaixonada por um cara que era inglês e que estava a fim que eu fosse pra lá também. E eu estava pleiteando a bolsa de novo, entendeu? E eu não queria falhar no inglês, então eu queria ir antes pra poder aprender a falar em inglês. E aí foi, tipo, eu fui, em dezembro, dia 28 de dezembro de 2001. O Zé falou que não ia deixar eu ir embora, eu falei: “Como você não vai deixar?” “Não, você não vai sair do Museu” (risos).
P/1 – Trabalhou quanto tempo aqui no Museu?
R – De janeiro a dezembro de 2001.
P/1 – Ficou 11 meses.
R – Onze meses. E aí fui. E foi ótimo, o meu marido foi me buscar, o Mike foi me buscar no aeroporto com um par de luvas e um cachecol, eu achei super bonitinho porque era inverno, eu cheguei lá dia 29 de dezembro. E a gente nunca mais se desgrudou (risos), estamos juntos há 13 anos.
P/1 – Como é que foi chegar na Inglaterra? Você lembra da sensação?
R – Lembro, claro! Lembro. Eu estava com medo. Tinha toda aquela paranoia de não poder entrar, aquela coisa que eles recusavam, mandavam pra trás, não sei o quê. Mas aí eu fui toda bonitona, o Museu me deu uma carta dizendo que eu estava de férias, que eu tinha emprego. Mandei e-mail para um hotel numa área mais chique de Londres e só perguntando se tinha vaga e eles mandaram de volta que tem, essa aqui é a minha reserva (risos). E eu tinha inglês suficiente pra convencer o cara da imigração de que eu ia passar 15 dias. Ensaiei o texto bonitinho e convenci o cara. E naquela época era muito mais tranquilo, hoje em dia a coisa mudou muito. Naquela época, realmente, eles eram muito mais tranquilos. Você entrava como turista e ficava seis meses, aí você começava a estudar e mudava o visto de graça, de turista pra estudante. Tinha gente que ficava como estudante cinco anos, aí depois de cinco anos ganhava o visto permanente. Hoje mudou tudo, entendeu? Não tinha que provar conta em banco, que você tinha dinheiro pra se sustentar, não sei o quê. E pra mim foi muito mais fácil ainda porque eu cheguei em janeiro, o Mike, oficialmente a mulher dele foi embora em abril, a gente já foi morar junto. Em abril mesmo nós viemos ao Brasil que ele veio pedir minha mão em casamento pros meus pais, e foi o primeiro homem que entrou na minha casa e meu pai estava assando um javali (risos). O meu pai é bem churrasqueiro, sabe, adora um churrasco. E aí fez o Mike cortar lá o javali (risos). Meu tio deu um porre nele de cachaça de canela, à noite ele estava chorando: “Ah, eu queria que meus pais estivessem aqui”, os pais dele são mortos, já eram há 15 anos quando a gente se conheceu. E na volta eu já tinha o e-mail do tutor da Goldsmith e aí eu consegui um ano e meio de visto de estudante no aeroporto, eles carimbaram.
P/1 – Então você foi em janeiro, voltou abril.
R – É, fui em dezembro, já me matriculei em escola, não sei o quê e eu já sabia do Goldsmith, que quando eu tinha pesquisado pro outro ano pra bolsa eu já tinha encontrado o Goldsmith. Só que o Goldsmith era mestrado e a Capes não dava pra mestrado, só pra especialização. E aí eu marquei uma entrevista com o tutor desse curso e com o meu inglês capenga e minha carta do Walter Salles, e meu vídeo, meu documentário e mais o trabalho que eu tinha feito aqui. Nesses anos de 98 até 2000 eu continuei engajada, então eu participei muito, trabalhava em curta metragem, trabalhei como roteirista, fiz várias coisas, trabalhei em várias áreas no cinema. O cinema estava começando, então eu trabalhei com várias pessoas. E aqui também eu tinha uma posição de chefia, eu montei o estúdio todinho e eu tinha os meninos que trabalhavam comigo.
P/1 – Aqui no Museu?
R – Aqui no Museu. Eu era Gerente do Departamento Audiovisual naquela época, junto com o Zé. O Zé era o meu chefe e era eu e aí tinha os meninos, essa era a nossa equipe. Thiago, Roberto, era bem legal. Fui lá, convenci ele com o meu inglês capenga, que em setembro eu ia estar falando inglês perfeitamente. Mentira, demorou seis meses para eu entender uma palestra inteira, eu sabia o que estava falando, e o curso tem oito meses (risos).
P/1 – Quase (risos).
R – É. Entendi, mas no final eu estava entendendo tudo (risos). Mas convenci e ele me deu uma vaga incondicional. E, claro, desde que eu pagasse. Custava dez mil libras, que na época seria 50 mil reais. Mas aí meu marido estava vendendo a casa dele pra fazer a partilha de bens com a ex-esposa dele e ele pagou. Ele puxava o cheque assim, ó, e falava pro cara: “Pelo amor de Deus, isso aí é o apartamento”. Na época, realmente, 2002, era um apartamento aqui no Brasil.
P/1 – E qual foi a sua primeira impressão da cidade?
R – De Londres? Ah, eu me senti completamente...
P/1 – Como estava o tempo, como que era?
R – Lá era inverno, estava nevando. O pé, a pessoa falava, eu vou morrer aqui, meu pé vai ficar assim... mas estava apaixonada também naquela época, tudo era lindo, né? Mas eu me senti traída com a questão do... eu fui super preconceituosa no meu primeiro ano com os indianos, porque era uma pobreza, uma sujeira, eu ficava assim: “Eu vim pro primeiro mundo, eu não quero ir pra Índia. Se fosse pra ir pra Índia eu tinha ido pra Índia. Pobreza e sujeira eu fico lá no Brasil mesmo”. E tudo preconceito, claro. Depois eu fui conhecendo a cultura. Eu me recusava entrar nos restaurantes indianos, durante um ano eu não comi comida indiana (risos). Mas aí depois eu fui. Mas estranhei algumas coisas.
P/1 – Comida?
R – Não, a comida é uma merda, né? E eu não cozinhava, porque tinha aquela história assim, eu fui obrigada a cozinhar dos 11 aos 16 anos, quando eu me libertei das garras da minha mãe eu deletei, não, eu deletei do meu cérebro que eu sabia cozinhar. Tanto é que quando eu estava na FEI eu passei seis meses comendo pastel. Tinha uma pastelaria e eu fiz uma conta lá, eu comia pastel todos os dias. Então no meu primeiro ano na Inglaterra, quem cozinhava era meu marido e eu comia besteira, comia essas comidinhas de microondas, não sei o quê e rapidamente eu engordei cinco quilos. Eu comecei a me interessar por comida e comecei a cozinhar novamente quando eu fiquei grávida do meu primeiro filho, que foi quando eu estava, em dezembro de 2002. Eu fiquei grávida, tinha começado meu mestrado em setembro, que lá o ano letivo é de setembro a julho. Eu comecei meu mestrado em setembro de 2002 e em dezembro eu fiquei grávida, o Chico nasceu em setembro. Então eu terminei, eu tinha que entregar o meu último ensaio, tipo um papel, em agosto e o Chico estava marcado pra nascer em 17 de setembro, é que ele atrasou, entendeu? Eu estava editando com a barriga, e eu engordei 28 quilos em cada gravidez, eu viro uma elefoa (risos). E é isso.
P/1 – Volta um pouco no mestrado. Porque você não tinha graduação, tinha?
R – Então, não tinha graduação. Aí que eu descobri que na Inglaterra, na área de Artes, se você tiver cinco anos de experiência comprovada você não precisa ter um BA, você não precisa ter um bacharelado, você já pode fazer um mestrado ou um PhD, um doutorado, de caro. E eu tinha os cinco anos de experiência comprovada porque eu tinha meu documentário, eu tinha um portfólio que eu tinha feito. Então foi assim que eu consegui. E foi bem legal porque tinha uma outra brasileira na minha classe, eram dez alunos, eu digo que esses foram os amigos mais caros da minha vida porque me custou dez mil libras fazer amizade porque eu não fiz nada com o meu mestrado, nada. Eu não ganhei um centavo porque eu tenho o mestrado. Eu tenho um papel que diz que eu sou Master of Arts, só isso. Mas são meus amigos. Uma dinamarquesa, uma outra brasileira, a Hanna, que hoje é roteirista da Bela Gil. A Wibica. Uma da Fire Island, da Ilhas de Fogo, um paisinho desse tamanhinho assim que é uma briga entre a Escócia e a Dinamarca, a Escócia diz que é deles e a Dinamarca diz que é deles e os caras estão tentando ser independentes, vive de pescaria, de peixe, é um país bem pequenininho. Dois gregos, uma menina de Tobago, uma alemã, era isso? A Regina. Ah, uma israelense.
P/1 – E todos no mesmo perfil, tinham graduação ou não?
R – Alguns sim, alguns não.
P/1 – E como é que era esse convívio?
R – Era ótimo porque na época eu só estudava, eu ia de manhã pra universidade e era aquela coisa, assistir filme, ler, discutir, filosofar, coisa besta. E era um projeto, era um prático, era um mestrado prático, não era teórico. Então o grande trabalho do mestrado era fazer um filme. A gente tinha palestras, não sei o quê, mas tinha a parte prática também, de laboratório e eu resolvi fazer um documentário sobre brasileiros morando em Londres. Eu pesquisei e eu segui a vida de uma faxineira que ela fazia 20 casas por semana. Ela fazia às vezes até sete casas em um dia, era uma coisa absurda o que ela trabalhava, das sete da manhã às sete da noite. Eu acompanhei ela. Tinha uma menina que entregava panfleto na Oxford Street. Tinha um rapaz que trabalhava de sub-chef, ele era um chef abaixo do chef. Quem mais? Era o Batata, acho que eram quatro pessoas. Eu lembro desses três. Eu segui e fiz um recortado da vida dessas pessoas, era um dia de trabalho de brasileiros e falando sobre a questão dos brasileiros em Londres. Foi meu trabalho de conclusão de mestrado. Eu saí do mestrado, meu filho nasceu em setembro aí eu fiquei um ano sem trabalhar. Nós mudamos de Londres pra Luton e aí eu criei o Festival de Cinema Brasileiro.
P/1 – Luton fica quanto?
R – Quarenta milhas de Londres, indo pro norte, como se você estivesse indo pra Cambridge. Bedfordshire.
P/1 – Você estava falando do seu documentário e a gente estava falando da relação com essa vida acadêmica do mestrado.
R – Mas foi isso, foi interessante, mas também assim, porque eu já tinha uma boa experiência no final eu até achei o mestrado meio fraco, entendeu? Se fosse para alguém que não tivesse experiência nenhuma, tudo bem, mas como eu já tinha alguma experiência, aí eu achava... foi legal pela parte teórica. Eu fui fazer um mestrado prático e no final eu gostei mais da parte teórica (risos), essa parte teórica foi interessante.
P/1 – Que era o que você não tinha.
R – Que era o que eu não tinha. Quer dizer, até tinha um pouquinho porque eu fui ouvinte da ECA, mas eu tinha no sentido de cinema brasileiro e alguma questão de semiótica, umas coisas assim, mas na área de documentário mesmo, essa base mais teórica foi lá, de conhecer as pessoas, os nomes, e começar a frequentar festivais em Amsterdã, em outros lugares. E através dessa história de festival eu criei o Festival de Cinema Brasileiro em Londres, que não tinha na época, em 2005, eu me uni com uma revista que existia lá chamava Jungle Drums e a gente fez o primeiro festival de cinema brasileiro. E o filme que abre o festival é Central do Brasil. Eu fui pra Paris, encontrei com o Walter e pedi permissão a ele pra passar os filmes. E a gente levou o Vinícius, o menino, que na época já era um rapaz. E foi ótimo, a gente fez uma retrospectiva do Beto Brant. E aí eu trabalhei com o festival de cinema, eu dirigi, produzi o festival em 2005, depois em 2006, aí eu parei em 2007, fiz em 2008, foi o último que eu fiz como direção e produção. Em 2009 eu fui contratada por uma empresa brasileira, do Rio de Janeiro, que faz o Festival de Miami, faz vários festivais, a Infinito, aí passei a ser produtora deles, fiz mais dois anos. Em 2006 eu lancei uma revista nacional chamada Film Festivals que era sobre a economia do festival de cinema no mundo inteiro. E aí foi bacana, eu passei uns dois anos viajando, fui pra Cannes, ia pra festivais, era jurada, era uma vida de glamour, mas sem nenhum centavo. Mas quando eu fiquei grávida do meu segundo filho, da minha filha, da Luna, meu marido também trabalha na área de projetos, de documentário, tudo, então, dinheiro é sempre um laço assim…
P/1 – Uma questão.
R – É, uma questão. Porque ele fez o filme com o Zé Padilha, demorou cinco anos pro filme ficar pronto, então, aí eu, tipo, fiquei meio assim, falei: “Não, alguém vai ter que sacrificar essa paixão”. E eu já gostava de cozinhar, porque a gente estava falando de comida antes, quando eu fiquei grávida do meu primeiro filho, do Chico, em 2002, 2003, eu comecei a me interessar por comida, queria comer melhor, não sei o quê, e eu já comecei a fazer suco, comprei... mas também ao mesmo tempo foi legal porque eu não falava inglês super bem, mas eu descobri esse movimento de chef celebrity que está tendo no Brasil agora, isso estava rolando lá nessa época, no começo dos anos 2000. Então eu ficava muito tempo em casa, eu fiquei um ano sempre trabalhar, sem fazer nada, ficava assistindo televisão, então eu aprendi a cozinhar com Jammie Oliver, com a Nigella, com a Rachel, assistindo essas pessoas. E porque estava lá, eu sabia a base, só que eu tinha meio que bloqueado. Então era muito fácil pra mim, eu comecei a cozinhar, a ficar bom e eu comecei a dar jantares, comecei a negociar com as pessoas. Eu não conseguia me expressar muito bem, e é horrível, quando você muda para um novo país e você não sabe falar a língua, a impressão que dá é que todo mundo acha que você é um imbecil.
P/1 – Você estava há quanto tempo já lá?
R – Eu cheguei no final de 2001, fazia um ano e meio, mais ou menos, que eu estava lá. Então falava, mas não dava. Se eu quisesse mandar alguém ir pra p.q.p. eu não ia saber direitinho ainda (risos). Não sabia tudo. E foi legal, a comida também veio como uma forma de expressão, de dizer: “Olha, eu não sou um imbecil, entendeu? Também tenho alguns talentos” (risos). E foi legal, eu fui gostando de cozinhar, não sei o quê e foi uma coisa que ficou. Na festa de 30 anos eu fiz toda marroquina, eu aluguei as coisas, pratos, eu fiz tahines, eu fiz toda a comida, fiz doces, a salada, fiz tudo. Uma festa pra 30 pessoas, eu fiz o buffet inteiro.
P/1 – Tudo em casa.
R – Tudo em casa. Eu fiquei com o cinema de 2005 até 2010, aí a minha filha nasceu, eu pedi demissão, fiz o último festival, em 2010, pedi para não renovar meu contrato e fui fazer um curso de chef. Também me matriculei num curso de nutrição naturopata, pra ser terapeuta, e comprei um café. E abri um buffet. E trabalhei durante três anos, foi uma loucura. Aí eu falei: “Não, café não dá, não quero isso pra minha vida”, tomei um grande prejuízo que a gente está pagando até hoje, e terminei agora, recentemente, meu curso de...
P/1 – De nutróloga.
R – Não é nutróloga, é diferente, Nutrição Naturopata. A Nutrologia aqui no Brasil é uma área que acomoda outras modalidades, então tem acupuntura e fitoterapia tudo misturado. O meu curso não, eu fiz um curso um ano de biologia, de biomedicina e dois anos de clínica aplicada, de nutrição aplicada à clínica. Então eu servi 200 horas de clínica vendo paciente, observando paciente. A Naturopatia é uma medicina complementar criada por Hipócrates que usa os alimentos como forma de medicina, como forma de remédio, então a gente é treinado pra cuidar mesmo das mazelas do corpo, pra equilibrar o corpo usando os nutrientes, entendeu? Você não precisa estar doente, mas se você tem um desequilíbrio, a gente, através da alimentação e da suplementação, porque lá eu posso suplementar, eu posso prescrever vitaminas e minerais, aqui no Brasil não pode, mas lá eu posso. A gente faz esse equilíbrio e usando de ferramentas hoje, de testes genéticos, de testes sanguíneos, de várias ferramentas que estão à disposição.
P/1 – Eu quero voltar um pouquinho no seu casamento.
R – Ah, meu casamento! Eu casei quando estava sete meses grávida, parecia uma elefoa. Eu casei em Richmond.
P/1 – Não, o pedido, na verdade. Vou corrigir, o pedido de casamento quando vocês vieram pra cá. Como é que foi o dia, me descreve.
R – Foi ótimo. Eu vim antes e eu ficava sempre na casa de um amigo que mora ali no Sumarezinho, aí depois, o Mike chegou, apresentei São Paulo, ele não conhecia São Paulo, não sei o quê, e aí no domingo meu pai fez um churrasco pra família, pros amigos e aí nós fomos e apresentei. Meus pais não falam inglês, o Mike, hoje ele entende português, mas não falava nada. E foi interessante, foi legal.
P/1 – Você lembra, exato assim, como foi entrar na casa, apresentar, a festa, o churrasco?
R – É, eu lembro. Foi engraçado, assim, tinha os outros amigos. O Epaminondas estava lá, tinha uma festa, então os amigos, os amigos médicos em volta, não sei o quê. Foi engraçado, meu tio de sacanagem deixou o Mike bêbado.
P/1 – Qual tio que é?
R – Esse é o irmão caçula da minha mãe, tio Zé, que mora lá em Itapecerica também. E eu lembro à noite a gente voltou pra casa do Roberto e ele chorava, chorava. “Por que você está chorando?” “Porque eu queria que os meus pais estivessem aqui para conhecer você” (risos).
P/1 – E aí vocês voltaram.
R – E aí a gente voltou junto pra Inglaterra, a gente morava junto lá. E aí a questão de oficializar mesmo o casamento é porque eu precisava de visto, senão não precisava casar. Eu não queria casar, na verdade quando eu era jovem eu não queria casar, não queria ter filho, era existencialista (risos), depois a gente vai mudando essas coisas. Mas aí tinha uma questão burocrática, sem eu casar oficialmente eu não podia ficar lá, e estava tendo filho. A gente fez um casamento, foi legal, foi bonito o meu casamento. Eu já estava grávida, a gente casou em Richmond, que é uma área linda de Londres, no sul, acho que é sul, indo pra Kent. A gente casou no cartório e depois fizemos um jantar só pra 20 pessoas. Todo pago no cartão de crédito (risos).
P/1 – Como era o jantar?
R – O jantar ótimo, o hotel super bacana. Mas o Mike durão, a gente duro. “Não, vamos fazer uma festa pra dez pessoas”. Aí é aquela história, se você convida um você tem que convidar outro. Aí Fulano tem a namorada. No final ficou 20 pessoas. A gente fez uma coisa modesta, tal, e fomos pra Grécia passar uma semana de lua de mel em Escíatos, que foi super bacana.
P/1 – Você não conhecia ainda?
R – Não, não conhecia nada. Quando eu saí da Inglaterra eu nunca tinha saído do Brasil. Até que conhecia bem o Brasil por causa de cinema, porque eu trabalhei aqui também eu viajava muito pelo Museu, fazia as coisas, então já tinha conhecido o Nordeste, que eu ia desde pequena, e Goiás Velho, Chapada dos Veadeiros. Depois eu realmente fui pra Bahia fazer uma pesquisa na Chapada dos Guimarães para um novo documentário, tinha um deputado que pagou a viagem (risos), tinha umas histórias truncha (risos). Então conhecia bastante o Brasil, mas nunca tinha saído, tinha ido até o Paraguai (risos), que a minha tia uma época carregava muamba.
P/1 – Você ia junto.
R – Ela levava as crianças, levava eu, levava meu irmão (risos), era o nosso passeio. E pra Inglaterra foi a primeira vez. E foi super bacana que uma das coisas que eu gosto muito lá é de estar assim mesmo no portão da Europa, então, essa oportunidade, eu adoro Paris. Eu brinco com as pessoas porque eu moro perto de um aeroporto, a oito minutos de um aeroporto que faz várias conexões para a Europa, então eu brinco com as pessoas e falo que estou a uma hora de Paris e a 40 minutos de Londres (risos), minha casa. Porque Luthon é uma cidade meio caidinha, é uma cidade dormitório, então muito imigrante, tem muito indiano, muçulmano, hindu e muito descendente de africano e caribenho, então uma cidade que o povo olha down, assim, sabe? Aí eu sempre brinco, eu falo: “Imagina, eu moro a 40 minutos de Londres e a uma hora de Paris” (risos), quer coisa mais chique do que essa? E conhecer, foi importante conhecer a Europa.
P/1 – E a lua de mel?
R – A lua de mel foi ótima, eu estava barriguda, mas ainda num estágio controlado, sem ter explodido ainda, na fase elefoa, estava bonita ainda, sete meses. Foi ótimo. Eu acho que eu e o Mike, a gente teve muita sorte porque como a gente começou o nosso relacionamento à distância, ele num momento fragilizado, eu também, eu estava saindo de uma relação de cinco anos muito conturbada, até mesmo pela minha história com homens, não sei o quê, então foi legal porque a gente teve essa distância, a gente ficou amigo antes, entendeu? A gente criou uma intimidade, mas um respeito também e esses seis meses de comunicação sem estar com a pessoa te dá mais coragem de perguntar coisas mais honestas, entendeu? Então quando eu cheguei lá, a gente tem um grau de intimidade que eu nunca tive com nenhuma outra pessoa na minha vida, então isso foi muito bacana. A lua de mel foi bacana, mas a gente já viajava antes, já fazia outras coisas, já tinha ido pra Praga com ele, a gente já tinha ido pra Itália uma vez, viajava dentro mesmo da Inglaterra. Apaixonados (risos). Ele saindo de uma relação de 17 anos, que ele ficou dez anos casado, mas ele namorou sete anos com a namorada dele. Era bacana, foi bacana. Difícil é o dia a dia (risos).
P/1 – Como foi a notícia da primeira gravidez, você lembra?
R – Os nossos dois filhos foram planejados. A gente parou, olhou um pra cara do outro e falou: “Vamos fazer filho”, e aí a gente fez, de primeira. Não foi nenhuma surpresa, a gente queria. Eu, quando eu fiz 25 anos comecei a ter um comichão, eu falei: “Ah, acho que eu vou ter um filho”. E quando eu o conheci, até mesmo pela experiência que eu tinha tido com o meu ex-namorado, que eu sabia que eu jamais ia poder ter um filho com ele, que não ia rolar, quando eu conheci o Mike, por causa da circunstância em que ele estava, essa história da mulher que está separando. E por mais que o cara chegue e fale, ele está sendo honesto, mas essa história tipo: “Ah, eu estou casado e meu casamento está acabando”, você sempre fala assim: “Ah, já vi esse papo, essa historinha aí já é velha”, então você fica sempre com o pé atrás. Quando eu cheguei lá eu fui muito clara com ele, eu falei pra ele: “Olha, a história é a seguinte, eu estou a fim de conhecer alguém pra casar e ter filhos, se você não estiver a fim, você nem enche o meu saco, entendeu? Não fica me enrolando, me faz esse favor”. Porque esse foi um dos motivos também que acabou o casamento dele, que ele queria muito ser pai e ela não queria, então combinou assim, toda a confluência de interesses (risos).
P/1 – E o primeiro filho?
R – Foi legal, assim, mas é desafiador. Eu acho que eu tive muito menos paciência com o Chico do que com a Luna, por exemplo. A Luna já, eu tinha o Chico. Eu detestei ficar grávida, detestei, detestei, destruiu o meu corpo, durou 36 horas o parto, eu jurei que eu nunca mais ia ter outro filho, mas aí ficou o Mike na minha cabeça, o Chico na minha cabeça: “Tem outro filho, tem outro”. Quando o Chico estava com cinco anos eu falei: “Tá bom, então vamos ter outro”. A Luna veio, que é uma gracinha, que é bem diferente, são personagens completamente diferentes. O Chico é dramático, o Chico é daquele que estava tendo aula de Ciências, o professor estava falando de pedra no rim. Ele chega em casa já falando assim: “Mamãe, como é que a gente sabe que tem pedra no rim? Estou sentindo uma dor aqui nas minhas costas” (risos). Ele é desse naipe, entendeu? Se impressiona profundamente. A Luna não, a Luna é aquariana, totalmente descolada, ela nunca chorou com fome porque eu ensinei pra ela com três meses de idade que ela fazia assim ó (barulho com os lábios), eu perguntava: “Está com fome?” Ela fazia (repete barulho com os lábios), ela nunca nem chorou. Consegue se expressar, se ela não gostar de uma coisa ela fala de cara, ela é super resolvida, bossy, dá ordem em todo mundo, é uma graça, tem uma opinião super forte. São duas pessoas completamente diferentes, o Chico é todo emocional.
P/1 – Você tem algumas histórias com eles assim, que você lembra e quer contar?
R – Histórias. Ah, não sei, tem várias histórias assim. Por exemplo, o Chico acha super estranho o comportamento das crianças brasileiras. Por exemplo, na escola do Chico os meninos ficam o tempo inteiro falando sobre pênis, eles são super... O Chico fica: “Por que os meninos aqui ficam pensando em pênis o tempo todo?”, ou às vezes ele chega em casa falando: “Mamãe, eu tenho cara de gay?” “Meu filho, por que você está com essa besteira?” “Ah não, é porque os meninos não sei o quê”. Aí outro dia a gente foi passar o final de semana com uma amiga em Angra, e ela rica, os sobrinhos ricos, aquelas crianças, uma menina de dois anos já tinha um tablet, todo mundo no tablet. E essa história de tablet, que a Luna falou que queria um tablet no Natal, eu falei: “Shhh”. Aí o Mike me deu o tablet e ela falou assim: “It’s not fair!, não é justo, você ganha o tablet, eu não ganho o tablet”. Aí o Chico perguntou pra mim: “Por que eu e a Luna somos as únicas crianças no Brasil que não têm tablet?”, eu falei: “Porque você até agora só encontrou classe média, meu querido” (risos). Então eles acham diferente as crianças. Por exemplo, eles não são acostumados a comer arroz e feijão todos os dias, então pra eles é super difícil ter que comer arroz e feijão todos os dias, eles acham difícil. Eles acham difícil a quantidade de doce que as crianças comem, então tem umas coisas estranhas, eles acham estranho. A gente se beija na boca, meus filhos são muito afetivos e aqui, sabe, tem umas coisas que... minha mãe já não deixa a minha filha beijar na boca dela, sabe, dar uma bitoquinha, não pode. Em casa, por exemplo, a Luna dorme sem calcinha, na casa da minha mãe, minha mãe não deixa (risos). Tem umas coisas assim.
P/1 – Uma mudança cultural.
R – É, uma mudança cultural, mas que eu acho que é importante pra eles também, eles são meio brasileiros, então eu acho importante eles terem essa experiência.
P/1 – Você veio pra cá agora...
R – Então, eu vivi esses 13 anos na Inglaterra com uma imagem fixa de uma ilusão da época que eu vivi com os meus amigos aqui, quando eu tinha 20 e poucos anos, querendo reconstituir aquela fase da minha vida. E fiquei esse tempo todo lá, meio sozinha, achando que os meus amigos estão no Brasil. E eu sempre quis ter um trabalho que eu pudesse fazer essa ponte, não sei o quê, e agora meus pais estão ficando mais velhos, tal. Eu falei: “Quem sabe agora eu consiga, a gente passa um tempo no Brasil e eu fico fazendo um trabalho aqui, na Europa um pouco, tal”. Só que eu cheguei aqui e vi que era só uma ilusão porque essas pessoas já foram, a vida delas mudaram, cada um está no seu caminho. E o Brasil está complicado, é difícil, tem umas coisas que depois de um tempo que você vive, principalmente num país como a Inglaterra, que existe um senso de civilidade muito grande, entendeu, é muito difícil no Brasil. A responsabilidade das pessoas com os outros, sabe assim, e com o ambiente em que eles vivem, é uma coisa que perturba. Ah, coisas bestas de você entrar no ônibus e falar bom dia pras pessoas e elas responderem, de um amigo marcar com você e cumprir com o compromisso dele (risos). Ou de não te deixar no ar, sem te dar uma resposta porque ele vai resolver a vida dele, se sobrar, sabe umas coisas assim? Parece besteira, mas é importante. De cuidar do espaço em que você vive, então não quebrar as coisas, não danificar porque faz parte do coletivo.
P/1 – E as crianças, é a primeira vez que eles vieram?
R – Não, vêm todo ano.
P/1 – Todo ano.
R – É. Chico vem desde os três meses de idade. A gente fica duas semanas. O Chico ficou uma vez três meses, a Luna é a primeira vez que fica desse tanto. Quer dizer, eu também, dos 13 anos que eu moro lá, a primeira vez que eu fico aqui de novo seis meses.
P/1 – Da primeira vez que ele veio e percebeu o ambiente, você lembra dessa sensação?
R – Ele gosta muito do Brasil, assim. A ideia, o plano que a gente tinha era ir morar na França primeiro, uns anos, e depois fazer essa transição pro Brasil. Mas aí o Chico começou a falar, ele estudava francês na escola dele, ele falou: “Não quero, eu já falo português e inglês, eu não quero ter que aprender mais uma outra língua agora. Eu quero ir pro Brasil, eu quero ir pro Brasil, vamos pro Brasil, mamãe, vamos pro Brasil mamãe”. Eu falei: “Tá bom, vamos pro Brasil, vamos tentar ir pro Brasil”. E a gente veio. A ideia não era mesmo vir morar em São Paulo de qualquer forma, era ir morar em Florianópolis. Por quê? Porque em Florianópolis tem uma style num preço legal. Porque eu quero ainda, em algum momento da minha vida, realmente morar perto do mar, eu gosto de fazer esporte no mar, eu quero aprender a surfar (risos), tem essas coisas. Eu acho que a vida é mais saudável. Eu pratico Yoga, a minha linha de trabalhar é mais numa linha natural mesmo. E nós passamos três semanas maravilhosas, a família inteira, esse ano agora a gente passou o Natal em Itapecerica e dia 26 a gente foi pra Florianópolis e ficamos lá até o dia nove. E foi fantástico, realmente eu moraria naquele lugar, é muito bacana. Só que assim, eu não tenho dinheiro pra investir em nada nesse momento, e mesmo que eu estivesse, com a inflação do jeito que está, essa atmosfera política que está nesse momento no Brasil, que está meio sinistro o negócio. Quando você começa a ver Gladiadores do Senhor, sei lá...
P/1 – De Deus.
R – De Deus, as pessoas violentando as outras em nome de Deus, entendeu? É coisa... tem várias coisas que eu acho que está fantástico. Eu acho que, por exemplo, nessa minha área de trabalho, os últimos três anos deu um salto quântico, realmente, falava de quinoa três anos atrás, mas quinoa? Agora, sabe, essas casinhas Mundo Verde e tudo, tem naturologia, tem duas faculdades de naturologia no Brasil agora, está crescendo, tudo. Antigamente surgia alguma coisa na Europa, demorava um ano, dois pra chegar no Brasil, agora é meio que ao mesmo tempo, eu vejo isso. Tem uma galera jovem tomando conta dos espaços públicos e tentando fazer uma coisa legal. Mas ao mesmo tempo eu acho que o Brasil está caminhando para uma revolução que eu acho que vai ser legal, entendeu? Eu acho que tem mesmo, vai chegar um momento que a gente tem implodir esse Congresso, enfim, fazer as coisas mudarem. Eu só não sei se eu quero estar aqui (risos). Egoistamente, eu acho que o negócio vai ser difícil. E não é só isso, é mais que isso. Eu não tenho dinheiro pra voltar e reproduzir a minha vida que eu tenho lá na Inglaterra. E nós não somos ricos, mas nós vivemos com dignidade. Eu consigo comer as coisas direitinho que eu quero comer, eu consigo ir pra França uma vez por ano, eu tenho acesso às coisas, eu vou ao teatro. Meus filhos vão pra escola. Se fosse pra gente reproduzir essa mesma vida aqui eu teria que ganhar 23 mil reais por mês, onde eu vou ganhar 23 mil reais por mês aqui, nesta configuração econômica, política e eu chegando agora sem ter dinheiro pra investir num projeto, em nada, pra começar do zero? Não é o momento. Então eu acho que vou voltar pra casa, vou reavaliar e enfim...
P/1 – Você volta?
R – Dia 15. É madrugada do dia 16, mas tem que ir pro aeroporto dia 15 à noite. Mas assim, não é uma coisa: “Ai, eu comprei a passagem agora pra ir embora”. Não, quando eu vim eu já tinha a passagem pra ir nessa data, sempre foi uma pesquisa de mercado mesmo, pra ver o que rolava e o que não rolava. E aí eu vi que não rola, então eu vou voltar. Mas eu fiz uns contatos, foi legal, semeei umas coisas, pode até ser que, entendeu, ainda venha a trabalho.
P/1 – E o Mike, seu marido?
R – O Mike está lá, está trabalhando em Londres, numa produtora. Minha casa nesse momento está subalugada para uma família de franceses pelo Airbnb (risos) e vão ficar lá até a véspera da gente chegar. E estou feliz de voltar pra casa. Porque também eu fiquei aqui dez meses eu não tenho nem uma cama, entendeu? Eu fico na casa da minha mãe a gente tudo amontoado, eu dividindo o colchão com o meu irmão, o dia que ele vai pra casa eu durmo no sofá, o dia que ele não vai pra casa eu durmo no colchão, entendeu? Isso não é forma de se viver (risos), aos 40 anos não dá, entendeu?
P/1 – Vou me aproximando já do final, eu queria fazer umas últimas perguntas.
R – Tá bom.
P/1 – Quais as coisas mais importantes pra você, hoje?
R – Pra mim? Equilíbrio emocional porque a minha depressão vai e volta desde os 20 anos, é uma coisa que me persegue, então eu tenho que ter isso. Me alimentar bem, exercício, saúde das pessoas que estão perto de mim, minha família. Liberdade de expressão, essas coisas.
P/1 – Quais seus sonhos?
R – Meus sonhos? Acho que eu queria ficar rica e famosa (risos). Não, eu quero escrever, acho que eu quero escrever.
P/1 – O que?
R – Eu quero escrever um livro infantil na área de Ciências. Quando eu descobri a Biologia eu me fascinei por câncer, câncer é o assunto que eu mais gosto, tanto é que é o que eu mais gosto de tratar também. Eu acho que a grande antítese do ser humano é o câncer, porque a gente morre tentando ser imortal. Eu já venho desenvolvendo uma fábula em cima dessa história e sempre fico protelando, não sei o quê, então eu queria ter disciplina, meu grande problema é disciplina, pra sentar a bunda e escrever (risos).
P/1 – E como é que foi contar a sua história aqui pra gente?
R – Foi bom, eu gosto. Eu gosto de falar de mim porque eu sou amostrada (risos).
P/1 – Então tá bom, obrigada Rose.
R – De nada (risos).
FINAL DA ENTREVISTA
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