Projeto Minha História, Sua História, Nossa História
Depoimento de Laura Margarete Arrueta Camelo
Entrevistada por Marcia Trezza e Tereza Farias
Rio Branco, 27 de abril de 2018
Realização Museu da Pessoa
HTC_HV18_Laura Margarete Arrueta Camelo
Participação de Teresa Farias.
Transcrito por Karina Medici Barrella
Revisado e editado por Paulo Rodrigues Ferreira
P/1 – Laura, a gente vai começar a nossa conversa. Só para começar, diga o seu nome completo, onde você nasceu e a data.
R – Laura Margarete Arrueta Camelo. Catorze de agosto de 1977. Nasci aqui em Rio Branco mesmo, aqui na Capital do Acre.
P/1 – Laura, a gente vai começar desde quando você era criança. Quais são suas primeiras lembranças da infância?
R – Lembranças da infância... Eu fui criada por uma mãe solteira. Ela já tinha tido um relacionamento e acabou, isso daí é o que eu soube. Acabou tendo um relacionamento com uma pessoa que não quis assumir. E ela assumiu a gravidez e criou os filhos sozinha. A lembrança que eu tenho é de uma mãe que sempre incentivou no estudo. Então, sempre vindo a questão de que a única forma de fazer diferente seria através do estudo.
P/1 – Como é o nome da sua mãe?
R – Gabi. Gabi, não é Gabriela, é Gabi.
P/1 – E o sobrenome?
R – Gabi Inês Arrueta Camelo.
P/1 – Você teve irmãos? Quantos?
R – Eu tive dois irmãos, tenho dois irmãos. Na realidade, tenho só uma irmã, a Helen. Eu sou a caçula, não é? E o Johnny faleceu, este ano fez quinze anos que ele faleceu. Éramos três.
P/1 – Mais velhos que você.
R – Isso. O Johnny era o mais velho, a Helen do meio e eu a caçula.
P/1 – E vocês brincavam bastante juntos?
PAUSA
P/1 – Eu perguntei se vocês brincavam juntos, você e seus irmãos. Como era?
R – Com meu irmão, não. Ele era mais velho, não tenho lembranças brincando com ele. Tenho com a minha irmã, algumas lembranças muito esporádicas, é mais com a Helen, com o Johnny não.
P/1 – Do que você brincava com a Helen?
R – Nós brincávamos muito de casinha. Eu lembro que nós morávamos no centro de Rio Branco e a minha mãe sempre trabalhou muito. Ela trabalhava fora. Ela, inicialmente, pelo que eu lembro, ela era professora de Educação Física, contrato temporário. Acabou o contrato dela, aí ela acabou sendo tipo um ‘severino’, um faz tudo numa mercearia, e então nós ficávamos o dia todo sozinhas. A gente brincava muito de casinha. Eu sempre brincava de cozinhar, tanto que, modéstia à parte, eu cozinho melhor do que ela hoje, não é? E a lembrança que eu tenho é assim, nós não tínhamos bonecas, tanto que hoje eu sempre falo com a minha mãe que o meu sonho é ter dinheiro para comprar todas as bonecas, essa é a minha vontade. Eu não sei se vou realizar, mas eu queria todas as bonecas. Não Barbie, mas aquelas bonecas grandonas, o meu sonho.
P/1 – Tem alguma que você comprou? Alguma?
R – Não. Não comprei. Mas eu comprei para a minha mãe. Porque eu acho que foi no ano passado, ano retrasado, no finalzinho do ano, ela falou que tinha lembrança de que a minha avó, também muito carente na época, fez umas bonecas de pano com a cabeça de milho, eu acho, alguma coisa assim. E ela lembrava muito daquela boneca, e aquela boneca para mim se tornou uma questão de honra. Procurei o material para fazer uma boneca de pano, eu mesma fiz. Então eu digo que comprei a boneca porque eu comprei o material, não é? Eu fiz a boneca e, no dia do aniversário dela, eu entreguei para a minha mãe e disse que aquela boneca representaria a minha avó. E aquela boneca dorme todas as noites na cama da minha mãe. Então, a única boneca próxima que eu tive foi aquela.
P/1 – E você disse que ela trabalhava bastante, você ficava com a sua irmã em casa.
R – Isso.
P/1 – Cozinhava?
R – Eu cozinhava, ela cuidava da casa.
P/1 – Mas cozinhava, não de brincadeira.
R – Não de brincadeira. Desde os seis anos. Era minha irmã com de z, eu com seis - uma diferença de quatro anos - e nós ficávamos responsáveis pela casa e por ir à escola. A minha mãe saía às seis horas da manhã, voltava às seis horas da tarde, então, nós tínhamos que cuidar da casa e ter a responsabilidade de ir para a escola. Então a gente brincava de casinha, mas cuidava da nossa casinha.
P/1 – E como era para vocês cozinhar? Você começou a aprender a fazer prato? Como funcionava isso?
R – Para mim, a lembrança que eu tenho... No início, eu estava... Acho que fui fazer café, alguma coisa do tipo, assim, e eu me queimei. A água derrubou, eu me queimei, fiquei com muito medo de cozinhar. Mas como a minha mãe saía muito cedo, nem sempre dava para ela fazer comida, eu tive que aprender a fazer o básico - o arroz e a carne. Nem sempre também tínhamos; dizer que a gente tinha tudo, não tinha. Eu vim a tomar iogurte depois que meu filho nasceu. Eu era louca para roubar Danoninho do meu filho. E eu roubava uma colher antes de dar para ele, não vou mentir.
P/1 – Você diz que hoje você cozinha muito bem.
R – Modéstia à parte, eu sou excelente na cozinha.
P/1 – E tem um prato que você... Aquele prato de que todo mundo gosta?
R – Assim... Eu gosto muito da comida típica daqui, porque ela é à base do tucupi. Então, um risoto de camarão eu faço melhor do que ninguém, modéstia à parte.
P/1 – Voltando para a infância. Você disse que tinha responsabilidade de ir para a escola no horário.
R – Sim.
P/1 – E vocês cumpriam? Conseguiam dar conta de ir para a escola?
R – Sim. Mesmo a minha mãe trabalhando muito, ela era presente. Quando ela estava, ela sempre era muito exigente. Eu ainda, com a idade que tenho, a minha mãe só olha para mim, eu abaixo a vista. Então ela sempre foi muito rigorosa, ela sempre dizia que nós só iríamos sair daquela situação em que nós estávamos, estudando. Então, eu nunca reprovei.
P/1 – E como era a escola na época? O ensino fundamental? Que lembranças você tem da escola?
R – Eu tenho lembrança de uma professora - Célia, o nome dela. E acho que era na terceira série, quarta série. Eu lembro do aniversário dessa professora, ela era muito especial para mim. E nós juntamos um dinheiro e compramos acho que um bolo muito simples, da padaria. E quando chegou, ela achou aquela coisa de criança tão simples, tão maravilhosa, que eu comecei a me apaixonar mais para ir para a escola para ficar perto da professora. Não pela falta que a minha mãe fazia, mas eu acho que era porque ela fazia essa... Como é que eu digo? Um pouco... Ela meio que substituiu essa ausência que a gente tinha da minha mãe. Mas a ausência era pelo trabalho, era necessário, a gente sempre compreendeu. Então, a escola fazia com que a gente ficasse mais com pessoas que não fossem a minha irmã. E era assim.
P/1 – E essa professora era especial além desse momento, por outros motivos?
R – Eu não consigo lembrar da aula. Eu lembro... Quando me falam professora, eu me lembro da professora Célia. E eu tive a oportunidade de depois, já adulta, professora, encontrar com ela, como colega de trabalho, e dizer que: “Olha, uma parte de estar aqui, eu me inspirei em você”. Não que eu quisesse ser professora, porque eu nunca quis.
P/1 – Você pensava em ser o quê?
R – Médica. Meu sonho sempre foi ser médica, eu cresci com a ideia de ser médica. Mas...
P/1 – Você brincava assim, de ser médica?
R – Brincava. A minha tia, a irmã da minha mãe, é médica pediatra. Então, eu era fascinada pela Medicina.
P/1 – Você chegava a brincar assim com a sua irmã?
R – Chegava. Quando a gente conseguia ir para a casa da minha tia... Porque assim... Nós éramos os parentes pobres, não é? Quando a gente chegava perto da casa da minha tia, eu conseguia brincar com os brinquedos dos meus primos, que tinha aquela coisa de médico. Então eu ficava fascinada por aquilo.
P/1 – Você morava no bairro, tinha brincadeiras na rua?
R – Tinha.
P/1 – Vocês participavam?
R – Meu Deus do céu! Depois que minha mãe chegava, só depois que ela chegava, é que nós tínhamos autorização de brincar na rua. Então era de esconde-esconde, de peteca, era de correr, do pega-pega, eram as brincadeiras que hoje a gente não vê, mas eu tenho umas lembranças. E eu conto para o meu filho e ele diz assim: “Eu não vejo a senhora brincando assim”. Eu digo: “Você não vê porque não existe mais, infelizmente. Mas nós brincávamos”. Nós tínhamos um grupo de amigos na época.
P/1 – E você lembra de alguma noite ter acontecido alguma coisa que até hoje essa história ficou na sua memória?
R – Na época de criança, não.
P/1 – E na escola, na convivência com os amigos, algum momento além da professora marcante?
R – No decorrer?
P/1 – É, no ensino fundamental. Pode ser no ginásio, na época não sei como chamava, mas de quinta a oitava.
R – No ensino fundamental só?
P/1 – É.
R – Não. Eu lembro que uma vez, correndo numa escola... Porque as séries iniciais foram perto da minha casa, bem próximas. Quando chegou do quinto ano em diante, nós precisávamos ir para uma escola mais distante, que seria no centro, pegar ônibus e tudo. E a minha mãe conseguiu colocar numa escola chamada Ética. Hoje é o José Rodrigues Leite, uma escola padrão de ensino médio; na época, era Fundamental e Médio. E eu lembro que parece que tinha uma atividade para fazer. E era de dois andares. E eu saí com medo do professor contar para a minha mãe que eu não tinha feito, alguma coisa do tipo. E eu caí, rolei na escada, aí eu torci o meu pé. A minha preocupação era contar para a minha mãe. Botei a calça, baixei a calça, fui para casa para minha mãe não ver, e eu chorando de dor. E minha mãe veio me perguntar o que estava acontecendo e eu chorando, mas estava chorando com medo da minha mãe falar alguma coisa, de me tirar da escola. Sei que depois de um dia minha mãe descobriu o que eu tinha feito, me levou para o médico. Mas ela não me tirou da escola (risos).
P/1 – No ensino fundamental ainda, você lembra como era a metodologia? O jeito dos professores trabalharem?
R – Sinceramente? Muito chato. Muito.
P/1 – Por quê?
R – Porque eu tinha que decorar. Aí uma característica que eu tenho, principal, da oitava série, uma professora - Francisca, o nome dela - de Matemática. Eu lembro que ela chegou para mim e disse: “Você precisa decorar a fórmula de bhaskara”. “Por quê?” “Não me interessa por quê, você precisa, você vai reprovar”. Aí eu decorei. Hoje eu sei, vou morrer sabendo, mas na época eu não sabia por que eu precisava. Eu lembro que fiz a prova, lembro que eu estudava, mas era um aprendizado que se você me perguntar hoje de conteúdo, só lembro-me do bhaskara. Mas os demais, nada.
P/1 – E quando você foi se tornando adolescente, entrou na juventude, o vocês faziam? Quais eram as atividades?
R – Fora da escola?
P/1 – Sim.
R – Festinhas. Aqui, eu digo, década de 80, 1985, por ser uma cidade muito pequena, nós ficávamos... Como é que eu posso dizer? A diversão era pouca. Dia de domingo, tinha uma praça lá perto da Catedral, onde nós ficávamos andando em círculos, aquilo era o nosso passeio de domingo. Ficar numa praça. E festinhas em casa. Quando minha mãe deixava eu ir para festa, meu Deus, era uma festa! Eram aquelas festas que a gente ficava até onze horas da noite conversando, meio que despertando aquela ideia de namorar. Então assim... Era o que acontecia naquela época.
P/1 – E quando vocês ficavam andando na volta da praça tinha aquela coisa da paquera?
R – Meu Deus! Era o dia de você botar a melhor roupa. Porque todo mundo se encontrava lá, então era de paquerar, mas eu não me dava bem, não. É, eu não me dava bem, não. Eu ficava muito triste com isso. Mas era muito bacana, era maravilhoso. Eu acendia muitas velas, eu vinha já de mão assim, de tanta vela que eu acendia. Todo mundo se dava bem, menos eu. Mas o tempo passou e depois eu me dei bem.
P/1 – Você teve um namorado, o primeiro, quando você se deu bem? Como foi?
R – Eu lembro do meu primeiro beijo numa festa, nessas festinhas. O rapaz... Stênio, o nome dele. Não me lembro como chegamos e nos beijamos. Meu Deus! Aquilo para mim foi lindo. Eu achei que já estava namorando. Para mim, eu já estava praticamente casada com aquele rapaz. Mas assim... Ele é o que eu lembro da ideia de namoro, não é? Primeiro beijo. Eu sempre fui apaixonada pelo meu primo, mas minha tia nunca quis.
P/1 – E esse primeiro beijo, como foi que você se sentiu? A sensação que você tem até hoje?
R – Nossa,”já sou adulta”. Essa era a ideia que eu tinha. Treze anos, “já sou adulta”.
P/1 – E você era apaixonada pelo seu primo. Aquele que você visitava, na sua tia?
R – Era. Sempre fui apaixonada por ele.
P/1 – Como ele se chama?
R – Marcelo.
P/1 – O que é que fazia você se apaixonar por ele?
R – Não sei, não sei. O Marcelo era, para mim, um amor platônico, digamos. Aí ele foi embora com a minha tia, foram embora para São Paulo, nos afastamos na época em que eu tinha doze anos e o meu mundo caiu quando eu recebi o convite de casamento dele. Foi. Foi triste. Mas eu fui para o casamento.
P/1 – Ele era bem mais velho?
R – Não, Marcelo tem a minha idade. Ele casou com outra. Não tem problema, não.
P/1 – Mas já tinha passado bastante tempo.
R – Já. Mas eu ainda alimentava, mesmo tendo filho já.
P/1 – Você ou ele?
R – Eu.
P/1 – Ah, é? Então conta essa história.
R – História dos filhos?
P/1 – Como os filhos chegaram.
R – Eu tenho um filho. O homem da minha vida nasceu no dia nove de setembro de 1996. Eu, na época, tinha dezoito anos, trabalhava na TV Acre aqui de Rio Branco e fui fazer não lembro o quê em Rondônia, pela TV Acre também. Na época, muito bonita, tudo em cima, não é? E conheci um rapaz, comecei a namorar com o rapaz. Aí, namorava com o rapaz lá, aqui, lá, aqui, lá, aqui, e engravidei. E lembra que eu falei que meu sonho era fazer Medicina? Eu tinha acabado de concluir o ensino médio. Estava concluindo o ensino médio e a minha mãe me chamou porque o rapaz não ia assumir a gravidez, ele não assumiu a paternidade. Ela disse: “Eu vou te fazer duas perguntas, daí a gente vai decidir a nossa vida. Quer realizar o seu sonho de ser médica? Esquece essa gravidez. Quer realizar o sonho de ser mãe? Esquece a Medicina”. O meu sonho tem vinte e um anos, é o homem da minha vida. Não sou médica, tive que mudar de sonho e hoje eu tenho certeza de que talvez eu não seria uma médica da forma como eu sou professora.
P/1 – Como ele se chama?
R – Victor Mateus. Eu queria botar Marcelo, minha mãe não deixou. É, foi uma briga. Porque Victor era o nome do meu avô. Eu disse: “Vai ser Victor Marcelo”. “Laura, pelo amor de Deus!” “Mas mãe, é a única forma de eu ter o Marcelo perto de mim”. Aí, a minha mãe não deixou. Fiquei frustrada.
P/1 – Quando ele mandou o convite de casamento você já tinha o Victor.
R – Já tinha o Victor. Nós fomos para o casamento, viajamos para São Paulo, para o casamento, conheci a noiva e ela sempre soube dessa história, desse amor platônico. No começo, ela ficou com um certo receio porque quando eu cheguei, eu já era uma mulher, já tinha um filho, não é? Depois ela foi entendendo que era só coisa de criança.
P/1 – Criança que durou até...
R – Durou. Meu marido...
e
P/1 – Ele sabia que você gostava dele assim?
R – Era recíproco. Mas a minha tia sempre falava: “Não pode. Não pode porque se vocês tiverem filho vai nascer deficiente”. Então, nunca deixaram.
P/1 – Quando você viveu, assistiu o casamento, qual foi o seu sentimento, a sensação?
R – De frustração. Devia ser eu. Quando terminou o casamento, nós estávamos na casa da minha tia e era a primeira noite que ele ia para a casa dele. Então nós acompanhamos e a noiva foi se despedir dos pais, e eu fui com ele, no elevador - era no oitavo andar. E naquele trajeto, do térreo até o oitavo andar, nós conversamos toda a nossa vida. Eu disse assim: “É, enfim você casou”. E ele me disse: “É, e você teve filho. Então as nossas vidas se separaram por escolhas”. Mas, enfim, hoje o Marcelo tem um casamento maravilhoso, hoje também já sou casada, mas meu marido sabe do meu amor pelo Marcelo, a esposa do Marcelo sabe dessa coisa que aconteceu.
P/1 – Como você encontrou o seu marido?
R – Ah, é muito engraçado. O Adriano, eu dava aula em 2002 em uma escola da periferia aqui em Rio Branco e o Adriano falava comigo, mas o Adriano, para mim, não era nada na época, nada. Ele me dava boa noite e eu não respondia, porque eu não gostava dele. E isso foi em 2002. Passou. Em 2006 eu fui convidada para entrar no projeto piloto do Projovem aqui no estado. Entrei e Adriano fez o processo seletivo e passou. Então nós nos conhecemos, ele me fez lembrar aquele 2002, de “Oi, boa noite”, e eu ignorava. E fomos nos conhecendo, me tornei amiga, ele acabou se tornando meu melhor amigo e dessa amizade começou uma relação que hoje nós já estamos há doze anos e vamos nos casar no religioso este ano, já.
P/1 – Vocês são casados no civil?
R – Casamos em 2009 no civil, ele sempre me joga na cara que era para a gente ter se casado em 2002 mas eu não quis, porque eu não o tinha visto, não tinha prestado atenção nele. Ele não era insignificante para mim não, de jeito nenhum. Tudo no tempo certo, não é? Aí, quando foi no ano passado, no finalzinho, setembro, eu acho, outubro, ele me fez o pedido: casar no religioso. E eu vou casar vestida de noiva, linda, e o Marcelo vai vir para o meu casamento.
P/1 – Laura, quando ele lhe pediu em casamento depois... Você sempre quis casar na igreja?
R – Sempre foi meu sonho. Mas esse sonho tinha um pouco acabado com o decorrer dos anos, não é? Quarenta anos eu completei no ano passado e eu já tinha acabado esse sonho porque, no início, eu sempre falava que queria casar, queria casar. E o tempo foi passando e ele nunca quis. Aí, acho que foi um pouco depois do meu aniversário de quarenta anos que ele fez o convite, ele fez o pedido: “Você quer casar?”. Eu disse: “Mas nós já somos casados”. “Não, no religioso, do jeito que você sempre quis, com festa”. Meu Deus do céu, praticamente eu já estava vestida de noiva na frente dele. “Eu estou pronta meu bem, é agora”.
P/1 – Como foi, onde foi esse pedido?
R – Esse pedido foi aqui. Aí nós nos organizamos para fazer uma viagem para o Caribe, passar o Carnaval e realizar o casamento lá. Fomos um grupo de amigos, quinze pessoas, madrinhas, meu filho, meu sobrinho, minha mãe, damas de honra, tudo, casamento tudo certo, pagamos por todo o pacote, fomos para o Caribe. O casamento ia ser no dia 12 de fevereiro, numa segunda-feira. No dia 11, no domingo, por volta de nove horas, eu perguntei para o rapaz: “Como é que vamos fazer a ida do hotel para a praia?” “Ah, vamos todos de ônibus”. Eu disse assim: “Jamais! Meu marido vai me ver de noiva na frente do padre”. Somos católicos, então a ideia do casamento religioso era de um casamento católico. E o organizador disse: “Ah, por falar em padre, não existe padre. O padre me ligou dizendo que cancelou, dizendo... Porque era Carnaval, e ele viajou”. Eu disse: “Como assim, o padre viajou? Passar Carnaval onde?”. Aí começamos uma pequena discussão, onde ele disse que o casamento seria um casamento evangélico, com pastor. Nada contra a religião, mas eu acho que a gente deve respeitar. E não aceitei. Voltamos para o hotel e o rapaz ainda tentou meio que remediar a situação, fomos até uma igreja, na cidade de Porlamar, lá na Venezuela - Isla Margarita - conversar com o padre. E o rapaz assim: “Padre, eu preciso da sua ajuda, essas pessoas querem casar”. E o padre foi enfático: “Se tivessem me procurado três meses antes eu teria explicado todo o processo de casamento. Padre não casa em praia, nós temos um templo. São normas do Vaticano”. E ele explicou. A partir desse momento eu descobri que tinha sido enganada. Porque durante todas as conversas com o rapaz é bem claro que eu estava pedindo um padre. E ele sempre soube que não havia isso. Então ele pensou assim: “Ela vai vir, vai encontrar a estrutura dos sonhos”. Porque a estrutura foi fantástica, que eles mostraram. O bolo foi maravilhoso, de cinco andares. Meu vestido era... Tudo lindo. E eu disse não.
P/1 – Com todos os convidados lá?
R – Com todos os convidados, tudo feito, eu disse não. E nós voltamos para cá. E eu voltei com o coração partido. Acabei tomando decisões judiciais para reaver aquilo, porque acho que, independente de ser casamento, eu acho que nós não devemos... Como é que eu posso dizer? Destruir o sonho das pessoas, não é? Você destruir o sonho de uma mulher... Porque, querendo ou não, tem algumas que não desejam se casar, ter filhos, mas outras desejam. E você destruir isso da forma como foi destruído. Aí o meu marido fez o convite novamente: “Vamos casar aqui, com toda a família, da forma que você sempre quis”. Eu vou casar dia 29 de junho, às 19 horas, vestida de noiva, linda. E agora vai ser pra valer. Não vai ser na praia, mas vai ser do lado da família. E, principalmente, com a benção de Deus. Porque quando se fala de fé, eu acho que é importante respeitar.
P/1 – Claro.
PAUSA
P/1 – Agora vai ter toda a família.
R – Agora vai estar toda a família, minha irmã, meus sobrinhos, os amigos mais próximos que tinham ido para a viagem, então os demais amigos que não tiveram oportunidade, vai ser a realização de um sonho e a união da família, não é?
P/1 – E vem um convidado que você também queria...
R – Vem, o Marcelo! Ele vai vir com a minha tia, sem a esposa. Mas ele vem.
P/1 – Você vai estar linda de noiva.
R – Meu Deus do céu! Casando e ele vai estar lá.
P/1 – Você tem um filho.
R – Isso, somente um, o Victor.
P/1 – E como vai ser ele no casamento?
R – O Victor vai me conduzir para o altar. E ontem nós estávamos elaborando as placas para passar para a cerimonialista. Tem uma placa lá onde diz... Aquelas plaquinhas que as crianças... Vão dois sobrinhos pequenos, de cinco anos, abrir. “Tio Adriano, não, lá vem a noiva, tio. Foge, ainda dá tempo!” E a outra criança: “Foge não, tio! Ela está do lado do Victor e o Victor é grande”. O Victor é grande. O Victor faz academia, ele quer virar monstro, então Adriano não vai fugir. Acabou.
P/1 – Muito bom (risos). Agora vamos voltar para a escola. Você fez o ensino médio onde?
R – O ensino médio, ele é muito... Como é que eu posso dizer? Ele é muito triste para mim. Eu fiz o ensino médio, primeiro ano na escola do Colégio de Aplicação aqui, que é um anexo da Universidade. Quinze para dezesseis anos, menina nova, meio que com algumas influências, acabei me tornando uma aluna um pouco problemática, estudava numa turma problemática, acabei me influenciando. E minha mãe era chamada um dia sim, outro também. Não só a minha, mas a mãe de vários colegas. E no meio do ano, do primeiro ano, no finalzinho do primeiro ano do ensino médio, eu estava para ser expulsa junto com meus colegas. E a minha mãe foi convidada a me trocar de escola porque eu não era uma aluna que deveria fazer parte daquela escola tão renomada. E uma conversa, no dia seguinte, com a professora Fátima, de História – eu odiava História. Ela falou para mim assim: “Você não tem futuro nenhum. O máximo que você vai conseguir é rodar a bolsinha na curva do Preventório” (emocionada). Que é onde nós estamos aqui, este hotel. Ela disse que o meu futuro era ser prostituta. E aquilo para mim foi muito difícil. Porque eu apanhava da minha mãe por ser muito danada mas ninguém nunca tinha dito para mim que eu não teria futuro. A minha mãe me tirou da escola e me colocou em outra escola, no ensino noturno. E aquilo ficou na minha cabeça. Eu odiava História. Aí, conheci o professor Hélio, um professor de História ótimo. Só que eu “gazetava” todas as aulas dele, todas. Até que um dia ele pegou e me chamou, ele disse assim: “Por que você não gosta de História?” Fui e contei para ele. Aí ele disse assim para mim: “Você não é aquilo, você pode ser mais”. O tempo foi passando, eu prestei o vestibular para História, por causa do professor Hélio. Entrei em 2000, no vestibular kpara História da Universidade Federal do Acre. Me formei em 2004. Em 2006 abriu a primeira turma de mestrado aqui pela UFAC. Eu fiz o processo seletivo e passei em 2006, me tornei uma estudante do curso de mestrado. E em um momento do mestrado eu precisei dar uma aula no Colégio de Aplicação, onde a diretora era a professora Fátima (emocionada). E, subindo as escadas do Colégio de Aplicação, eu encontrei com ela descendo, e ela disse assim para mim: “Você me lembra alguém”. Eu disse: “A senhora também me lembra alguém. Só não me recordo quem é”. Eu sabia quem era ela. Eu tinha que me apresentar para a diretora, aí eu disse assim: “A senhora é a dona Fátima?” Ela disse: “Sou”. “Eu queria conversar com a senhora. Podemos ir até a sua sala?” “Não, eu tenho que ir ver a aula de uma professora que vai se apresentar agora”. Eu disse: “Ótimo, posso acompanhar a senhora?” E nós fomos. Passou o meu orientador, fez as falas e chegou a hora da minha prática. E, na abertura, eu falei que era um prazer estar ali, tipo a Gleici, não é? “Vocês não sabem o prazer que é estar de volta”. Eu me apresentei e a minha fala foi diretamente para ela. Eu disse: “Meu nome é Laura. Laura Margarete Arrueta Camelo, a senhora deve lembrar desse nome porque, em 1995, nesta mesma escola, a senhora disse que eu não teria um futuro, que eu seria uma prostituta se eu continuasse daquela forma. E hoje, cara colega, sou professora formada pela Universidade Federal do Acre, sou aluna do curso de mestrado, enquanto a senhora é apenas uma graduada, diretora de um colégio, extremamente preconceituosa. A escola não é digna de ter a senhora aqui, porque a senhora destrói sonhos, a senhora não sabe
o que é ser uma professora”. E acabei saindo de lá. Nesse mesmo período eu fui obrigada a desistir do mestrado porque eu tinha um filho e o mestrado era dedicação integral, não existiam as bolsas de incentivo. Mas, a partir daquele momento, onde eu voltei para o meu passado e mostrei: “Olha, eu não fui aquilo que você me desejou, eu fui muito mais”. E desde que eu entrei na sala de aula eu não quero que meus alunos encontrem Fátimas na vida deles. Porque eu poderia, sim, ter sido o que ela falou. Mas eu não fui. Hoje eu digo que talvez, se eu não tivesse encontrado o Hélio, que foi o meu professor da UFAC, que disse assim: “Não, você não vai ser isso, você pode ser o que você quiser”, eu talvez não estivesse aqui. Infelizmente, existem muitas Fátimas no ensino regular. Então, o meu ensino médio foi muito frustrante. Eu tenho a Célia, a melhor professora que eu tive, infantil, mas quando me falam de ensino médio, me vem a Fátima. Mas a Fátima me tirou o sonho e o Hélio me deu um empurrãozinho. E quando eu concluí, ele estava lá. E eu sempre quis ter essa imagem de Hélios na minha vida, tanto que hoje, na Educação, eu tento fazer a diferença.
P/2 – Esse cuidado que você teve com o Wesley, que ele mesmo fala, você vê alguma relação com a professora Fátima, o que ela fez com você, ou o que o professor Hélio fez com você? Você está para o Wesley... Você vê alguma relação?
R – Sim. Porque não só o Wesley, eu não sei, eu tive com todos os alunos, eu sempre fui de resgatar. Porque os meus alunos sempre chegaram com histórico de desistência, de reprovação, de professores que não sabiam seu nome, sempre tratavam como número. Então, o Wesley, dentre vários outros, o Wesley, eu fui buscar ele numa ‘bocada’, não é? Local onde vende drogas. E eu dei o prazo para ele, morrendo de medo, dei o prazo para ele retornar à escola. E ele disse: “Você não é a minha mãe”. Eu disse: “Eu posso não ser a sua mãe em casa, mas na escola eu sou. E você tem um prazo para voltar para a escola”. E ele falou várias coisas, e no dia seguinte ele estava lá. E não só ele, mas vários outros. Fui atrás. Teve um dia que um aluno morava próximo à casa de um traficante e eu entrei para conversar com esse rapaz. E eu tinha uma caminhonete com um estepe atrás. E eu voltei, olhei para o carro, diferente, não é? Fui atrás de resgatar o aluno, aí o traficante estava parado desse jeito e disse assim: “Esse carro é teu?” “É. Mas ele tem alguma coisa de diferente”. Ele disse: “Tu veio fazer o quê aqui?” “Eu vim falar com o rapaz que é aluno meu lá no Lindaura, ele está sem ir para a aula e tudo”. “Tu é professora?”. Eu disse: “Sou, do Projeto Poronga”. “Sério mesmo? Pera só um instantinho”. Aí ele foi, pegou o telefone: “Traz o estepe. É da professora”. Aquilo que estava fazendo falta era o estepe, que eles tinham levado. A partir daquele dia, ele disse: “Você pode vir as vezes que você quiser resgatar os alunos. E se eles faltarem, você pode falar comigo”. Então assim... Não só com o Wesley, mas com todos, eu não queria que eles tivessem a Fátima na vida deles, mas, independente de professora que destrua, eles também ficavam à margem. E a Educação, eu sempre fui muito presente, eu sempre quis trabalhar a pedagogia da presença, estar próximo deles, sempre. Então, sempre quis fazer mais pelos meus alunos. E hoje eu durmo tranquila porque eu dou o meu melhor. Porque eu faço, não pelo dinheiro, porque professor não ganha, mas eu faço porque gosto. De você encontrar um aluno e ver ele bem, de você encontrar colegas. Eu tenho alunos que são meus colegas de trabalho, professores. Infelizmente, eu tenho alunos também que foram pelo outro lado, mas eu sei que fiz tudo o que podia. Quando eles saíram do meu lado, aí foi com eles, foi uma opção. Mas eu fiz tudo o que podia, nunca afundei aluno meu nenhum.
P/1 – Laura, como você fez o mestrado? Ou melhor, cursou uma parte...
R – Somente o início.
P/1 – E como você virou professora? Como foi o começo dessa carreira?
R – É meio que uma piada. O início da docência vai se dar no período ainda da graduação. Eu tinha um filho, recebia uma bolsa de estagiário na UFAC e vi uma placa assim: “Precisa-se de...”. Eu fazia História. “Precisa-se de professores de Matemática para trabalhar no Telecurso para as telessalas dos funcionários da UFAC”.
PAUSA
R – Então eu estudava e tinha uma bolsa, só que eu queria trabalhar. E, no horário de almoço, eu vi a placa: “Procura-se candidatos para vaga de Matemática, para dar aula no Telecurso para a telessala da UFAC”. Eu disse: “Aquela vaga é minha”. Eu fazia História. Procurei saber, iria ser com a pró-reitora da UFAC, às duas horas, a entrevista. Marquei a entrevista, perguntaram se eu fazia Matemática, eu disse: “Sei tudo de Matemática”. Fui para casa. Aí, nesse dia, choveu muito. Fui debaixo de chuva, a pé. Eu moro aparentemente próximo, dois quilômetros da Universidade. Fui, coloquei a minha melhor roupa. Cheguei, tinha três rapazes - dois do curso de Matemática e um do curso de Economia. E eu de História. E começou a entrevista, a pró-reitora falando que era a vaga para dar aula para os funcionários que não tinham ainda concluído o ensino médio. Meu Deus. E precisavam de um professor que dominasse a linguagem dos senhores. Porque eram já pessoas com uma certa idade, perto de aposentadoria, então precisava concluir os estudos. Aí ela fez a pergunta: “Olha, vai funcionar assim: ‘Eu quero que vocês me expliquem as quatro operações, lembrando que eu sou um trabalhador, pai de família, trabalhei o dia todo aqui na UFAC e não tenho paciência de estudar’”. E eles explicaram matematicamente tudo, lindo. Como eu tinha um filho pequeno na época, eu acordava muito cedo e, de manhã, passava as teleaulas do Telecurso, aqui em Rio Branco. E eu lembro de ter assistido uma aula, se não me engano - eu não sei se foi na época do ensino fundamental ou do médio - onde os dois atores estavam num bar falando sobre as quatro operações, alguma coisa assim parecido. Chegou a minha vez e eu lembrei daquela teleaula. E ela disse: “E você, que é a única mulher? Você é formada em...?” “No decorrer da entrevista, a senhora vai sabendo”. Eu disse: “Então, professora...”. Não me recordo bem o nome dela, Carol, professora Carol! Ela tem até um café hoje, é aposentada, tem um café - Café da Carol. Eu disse: “Professora Carol, vamos a um bar?”. Ela: “Oi?” “É, vamos a um bar, o Bar do Pio, bem perto daqui”. Atravessando a rua tinha um bar, chamado Bar do Pio, era onde os estudantes ficavam. Aí ela disse: “Vamos fazer o quê, no bar?” Eu disse: “Nós vamos tomar uma cerveja. Estamos lá nós duas, duas mulheres lindas e, de repente, nós estamos querendo tomar uma cerveja, eu peço uma, a senhora pede duas, nós já tomamos quantas?” “Três”. Eu disse: “Ótimo, nós estamos adicionando, professora. Mas aí, a senhora é mais bonita do que eu, teve um rapaz que olhou para a senhora e, de repente, esse rapaz pagou uma cerveja para a senhora. Lembra, eram três, não é? Como é que nós vamos fazer para pagar?” Ela disse: “A gente só vai pagar a que ele não pagou”. “Nós estamos subtraindo, a senhora subtraiu aquela que ele lhe deu. Porém, somos mulheres modernas, professora, eu pago a minha e a senhora paga a sua. Como é que nós vamos fazer?” “A gente vai dividir a conta”. “Perfeito. Divisão. Mas aí tem um problema. Quanto é que custa uma cerveja?” Aí ela falou um valor. “Eu não sei quanto é que vai dar. Como é que nós fazemos?” “Ela disse: “Bom, eu acho que nós pegamos o valor pela quantidade de cerveja” “Multiplicação, professora”. Ela olhou para os rapazes e disse: “Desculpe, a vaga é dela”. E eu entrei em 2002 para assumir a telessala da UFAC como professora do curso de História, para dar aula de Matemática. Foi a minha primeira experiência com o Telecurso. Na época, a telessala ficava na reitoria, ainda com as fitas VHS, tinha que levar aquelas TVs de tubo, o videocassete não funcionava direito, as fitas não eram armazenadas de forma correta e era uma confusão, mas eu consegui vencer o desafio de dar aula de Matemática. É claro que eu estudei, não vou dizer para vocês que foi fácil. Não foi fácil, mas as teleaulas me davam suporte. Eu estudava em casa, mas eu chegava cheia do conhecimento. Meus alunos nunca souberam, na época, que eu estudava História. Eles juravam que eu era do curso de Matemática. E foi assim.
P/1 – Daquela época até hoje, como você vê essa proposta de um professor especialista não precisar ser professor daquela área, ser de outra área? Como você vê isso hoje? Passada toda essa experiência.
R – Eu acho que naquela época eu, se estivesse no lugar da professora, teria repensado um pouco porque eu não dominava o conteúdo. É claro que eu estudei, me dediquei, eu precisava daquele dinheiro. Então, se precisava do dinheiro, eu precisava manter o meu trabalho. É um desafio. Porém, hoje, com a internet, as várias formas de informação, de conhecimento que nós temos, qualquer profissional, ele não precisa ficar só na sua disciplina, nós temos um leque enorme de aberturas que nós podemos nos permitir. É como um professor de Matemática dizer que não vai ensinar o seu aluno a ler porque ele só sabe fazer conta. Então, essa ideia de você dar oportunidade ao professor para ele se tornar pesquisador, para fazer essa troca com o aluno, é fantástica.
P/1 – Você, depois, trabalhou no ensino fundamental, no Telecurso.
R – Inicialmente foi com o Telecurso na Universidade. Depois eu fui contratada pelo Sesi, trabalhei com carteira assinada no Sesi durante dois anos, ainda naquela mesma metodologia. Fui professora de Física. Do curso de História, mas fui professora de Física. E depois eu fui indo para a minha área afim. Só que assim... Não tinha essa cobrança metodológica, era: “Precisamos de um professor”. Então você precisava, você ia lá, se inscrevia, passava e ia para a sala de aula. Mas, desde que eu entrei, em 2002, eu sempre corri atrás. É tanto que são dezesseis anos de sala de aula. Desses dezesseis anos, somente quatro no ensino regular e doze trabalhando com a metodologia do Telecurso.
P/1 – E quando você trabalhou no ensino fundamental... Não sei se eu entendi que teve um período em que você trabalhou com o Fundamental.
R – O ensino regular.
P/1 – E o Telecurso com o Fundamental, não?
R – É porque assim... Nós temos o ensino regular, o tradicional. Eu trabalhava, durante o dia, como professora de História e, à noite, na época, o que seria a EJA, com o Telecurso. Depois de um tempo eu entrei como professora de História e Geografia trabalhando sempre as áreas afins. Mas eu posso ser muito sincera? De 2002 a 2009 eu trabalhava a metodologia, mas eu não trabalhava a forma correta. Eu só aprendi a trabalhar com a metodologia do Telecurso, a pedagogia da presença, fazer a diferença 100% na vida do aluno quando eu entrei no Projeto Poronga. Quando eu fiz o processo seletivo, em 2009, eu passei mas fiquei fora das vagas. Fui para a formação sem ser convidada, mas eu fui. Fiz várias formações que a Fundação Roberto Marinho fez aqui, do Telecurso. E eu achava fantástico, meu sonho era entrar no Projeto Poronga, porque quem iniciou, em 2002, na época... Só que eu tinha um receio, todo mundo falava: “Não, lá você trabalha com todas as disciplinas”. Aí, em 2009, eu passei, fui para a reunião, onde foi feita a convocação. E conversei, na época, com a professora Emilly, que era a gerente. E disse: “Olha, eu fiz o processo seletivo, não passei. Aliás, eu não fui chamada, eles chamaram dez, eu era onze. Eu queria saber da vida de todos, porque eu queria saber se alguém iria desistir. E eu queria que a senhora me desse uma oportunidade”. Conversei. Ela disse: “Infelizmente, ela foge à minha alçada. Se alguém desistir, a senhora entra”. E eu fiquei lá. No terceiro dia, a pessoa dez desistiu e eu entrei. Em 2009 eu entrei e foi assim um choque. Eu achava que sabia dar aula e não sabia. Eu achava que era só passar a fita VHS e não era. Eu achava que era só o que você viu, sentiu e ouviu, e acabou. E, de repente, eu fui obrigada a tirar tudo o que eu imaginava e começar a minha formação. Então, eu posso dizer que comecei a ser professora, educadora, mediadora, a partir de 2009, quando eu vim a conhecer a real prática do Telecurso. E eu me apaixonei. Foram nove anos de paixão, trabalhando em escolas sempre periféricas, escolas muito difíceis, com alunos problemáticos, mas que eu consegui fazer com que eles se apaixonassem, da mesma forma que eu. Eu fiz com que eles percebessem que a metodologia é fantástica, que aquilo que a gente imagina que não valhe a pena, vale. Vale! Quando houve a mudança da fita para o DVD as coisas foram mudando, as tele aulas foram sendo reformuladas. A gente assistia à teleaula e adaptava para a nossa realidade. E o aluno sabia que o que ele estava aprendendo aqui, todos estavam aprendendo nas mesmas telessalas de todo o Brasil. Então eu conseguia fazer com que meus alunos entendessem que eles não eram diferentes, porque alguns alunos falavam assim: “Ah, o ensino do Sul é diferente”. O ensino dos alunos do Projeto Poronga, com a metodologia do Telecurso, é a mesma do Rio, é a mesma de Porto Velho, é a mesma de qualquer lugar. Foi aí que eu comecei a entender que essa metodologia é fantástica.
P/1 – Laura, no que você disse assim… “eu tirei o que eu tinha, o que eu fazia, para incorporar toda essa metodologia que é fantástica, não é?” Se você tivesse que contar para alguém - agora você está contando - o que é mais fantástico? Que coisas são mais fantásticas?
R – Tudo. Assim... Se nós pudermos enumerar: primeiro, o conhecimento que o professor tem. Porque, formada em História, eu não tenho necessidade de aprender Matemática, Inglês, Geografia, Ciências, Português. Mas, a partir do momento em que nós trabalhamos com todas as disciplinas em uma única sala, quatro horas por dia, cinco dias por semana, ela tem que ser apaixonante. E a metodologia do Telecurso é apaixonante. No início, eu lembro que as pessoas falavam assim: “Laura, não vale a pena, é muito trabalho, é isso, é aquilo”. E eu fui com receio, o meu primeiro ano foi experiência. O segundo foi de paixão. E eu posso dizer que tudo, tudo na metodologia é fantástica, ela é pensada para dar certo - desde uma atividade integradora, desde a problematização antes do vídeo. Porque não é o vídeo pelo vídeo. Se é assim, ele assiste em casa. Na época, passava pela manhã. É atividade, é a conversa, porque você não é aquele professor: “Gente, hoje eu vou ensinar História: ‘O Brasil foi descoberto em…’”. Não, é uma troca. É o que você sabe e o que eu posso acrescentar, é uma mediação de saber que permite, através dessa metodologia, o que o ensino regular não permite. E eu vejo hoje o meu marido, ele está coordenador do ensino integral aqui, que ainda é um projeto piloto aqui no estado. E, nas nossas conversas, tudo o que ele falou, eu disse: “Tudo isso eu sei porque é a metodologia que eu trabalhei, é a metodologia que a gente tem conhecimento e que sabe que dá certo”. Então assim... Tudo.
P/1 – Na formação que você teve, quando você chegou, se você puder descrever um momento que foi muito significativo, ou alguns momentos. Descrever.
R – A formação inicial, ela era feita passo a passo. Como eu deveria trabalhar a metodologia na minha telessala. Primeiro eu tinha que entender o que era uma telessala. Então, a importância da telessala. Telessala. Eu posso dar aula sem a TV? Como assim? Eu posso dar a minha aula sem o vídeo? Não existe isso. Então, a formação sempre foi baseada em ensinar; nos fazer compreender a importância do passo a passo. Eu não digo nem ensinar. A partir do momento em que você sabe que é importante, você vê, está fazendo sem perceber, sem ser aquela coisa. “Não, agora é a problematização, agora é a...”. “Ah, não, nós vamos dividir as equipes”. Não, é automático. Você sabe da importância, então ele está dentro, você já começa a trabalhar. Então assim... Inicialmente, as dinâmicas, as atividades integradoras, eu ficava pensando: “Meu Deus, é brincar por brincar”. Não. Aquilo ali tem uma importância enorme, porque você está dando o pontapé inicial para a sua aula, você está mostrando para o aluno que a sua aula não vai ser aquela coisa a que ele está acostumado. Ele vai relaxar, ele vai poder conversar. Aí entra a questão da problematização, de você pegar os conhecimentos prévios do aluno sem podar o seu aluno. Tipo, eu lhe digo assim: “Eu queria que você me dissesse o que aconteceu, quando aconteceu a Revolução Industrial”. Aí você me diz: “Ah, a Revolução Industrial aconteceu em 1500”. “Não, está errado”. Não, nós entendemos o que você falou, eu registro, mas no decorrer da nossa conversa você vai perceber e vai dizer: “Professora, olha, desculpa, eu acho que eu estava equivocada, agora eu tenho certeza de que foi aqui”. Então, essa importância de você entender que o aluno não é um vaso, uma pedra, não. Ele é um ser que já vem com conhecimento, ele não está organizado. Você assistir ao vídeo, mas fazer com que ele entenda que aquele vídeo faz parte, desde a atividade integradora, problematização, a atividade que você vai fazer depois, a divisão das equipes. Então, se for falar um ponto, não existe; são todos. É fantástico.
P/1 – Você pode contar para a gente uma história de aluno? Pode escolher. Que momento aconteceu para a gente perceber bem como isso com os alunos vai sendo tão fantástico.
R – O início foi em 2009, eu entrei numa escola chamada Lindaura Martins Leitão e aquela turma foi um desafio para mim. Tinha um rapaz, o nome dele é Lucas. O Lucas hoje mora em Mato Grosso. O Lucas vinha de cinco anos na quinta série, reprovado. E um menino muito inteligente, enorme. E ele dizia que aquelas aulas eram chatas. No início da aula do ano, que aquelas aulas eram chatas, que ele não iria ficar. Eu disse: “Mas calma, vamos nos conhecendo”. Aí o Lucas sentava sempre na frente. E eu fiz com que o Lucas começasse a se apaixonar, da mesma forma que eu. Entender a importância da atividade integradora. O Lucas sempre trazia alguma coisa no caderno. Sem perceber, ele escrevia poemas. Então, eu comecei a fazer com que o Lucas percebesse a importância de fazer o momento na aula e coloquei o Lucas como membro da Socialização, da equipe. E ele achava aquilo fantástico. Organizava, lia os poemas dele, tocava as músicas de rap, tudo, e ele foi se soltando, foi participando das atividades, foi participando dos debates durante o período que terminava a teleaula. E nós tivemos uma reunião e ele não queria que a mãe dele viesse. Eu perguntei para ele por quê. Depois de muito tempo, ele falou que a mãe dele era analfabeta, ela não ia poder assinar a lista de presença e ele tinha vergonha daquilo. E ele começou a me escrever toda a história dele no Memorial, usando o Memorial na forma de um diário, era uma conversa. Aí ele dizia que a Educação não valia a pena, que ele estava com quinze anos, na quinta série há cinco, desde os dez. E que ele iria desistir porque aquilo não iria levar ele a lugar nenhum, e tudo. Então eu comecei a trabalhar forte com o Lucas, através de um amigo, Sidnei, que sentava do lado dele. Começando a trabalhar a questão de parcerias, de trocas de conhecimento. O Lucas foi se desenvolvendo, fazia conta de cabeça. Lembram-se da fórmula de bhaskara, que eu aprendi? O Lucas sabia. O Lucas sabia tudo, era inteligentíssimo, mas tinha vergonha da mãe. Aí, uma vez, a gente fazia as aulas de reforço E o Lucas falava bem, escrevia, tinha alguns erros, mas ele escrevia muito e eu perguntei a ele se ele podia fazer com que a mãe dele também começasse a escrever. Então, o Lucas... O que ele aprendia na sala, ele passava para a mãe. Isso em 2009. O Lucas tirava só nota dez. Quando foi no final do ano, eu conheci a dona Raimunda, foi quando ele permitiu que ela chegasse. Aí ela veio conversar comigo, ela disse: “Olha, eu não conhecia a senhora pessoalmente, não sei o que a senhora fez para fazer com que meu filho não falte um dia de aula”. O Lucas foi se apaixonando, o Lucas ensinou a mãe dele a escrever, ele meio que alfabetizou a mãe dele. O Lucas se formou em 2009... 2010, 2011, 2012. Em 2012 eu recebi a visita do Lucas na minha sala, na mesma escola, dizendo que ele fazia parte do grêmio da Escola Glória Perez, de ensino médio, e ele falou lá na frente de todo mundo que aquilo ali ele devia à metodologia que tinha sido trabalhada. A diferença que ele tinha tido em um ano, ele não teve em cinco anos de quinta série, de sexto ano reprovado. Então assim... O Lucas percebeu que aquilo era extremamente importante, entrou para um projeto, começou a trabalhar projetos na UNE daqui de Rio Branco e recebeu um convite para trabalhar na UNE do Mato Grosso. E, no início do ano, ele mandou para mim uma foto, pai de família, tem uma filha, casou, e ele colocou assim: “Tudo o que sou devo a você e à sala com a metodologia”. Então, assim... O aluno de 2009, eu tenho 2010, 2011, 2012 trabalhando essa metodologia de: “Eu me importo com você, vale a pena você aprender, você prestar atenção e fazer a diferença”.
P/1 – Emocionante, não é? Ele tem alguma fala de quando ele ensinava à mãe dele?
R – Tem. Tem. Ele dizia que falava assim: “Mãe, agora eu já sei, eu já posso lhe ensinar”. A mãe tinha muita vergonha. Ela conta, quando ela foi, que ela tinha vergonha até de assinar no comércio em que ela devia, ela tinha que fazer assim. Então, ele diz que o que ele aprendeu, a forma como ele aprendeu, ele pôde passar para a mãe. E ele disse que ele a ensinava através das teleaulas, de madrugada. E ela fez, na época,.. Porque nós temos aqui o EJA, e ela fez o provão. E ela concluiu o ensino fundamental. Depois dela ter feito alfabetização, ela fez a prova da alfabetização e concluiu o ensino fundamental. Logo depois o Lucas foi embora, então ela... Mas ele fez a parte dele através do incentivo que ele teve dentro de sala, da paixão que ele teve pela diferença, porque ele sempre falou que não teve, nas outras cinco salas, durante cinco anos.
P/1 – Laura, os alunos falam metodologia? Eles usam... Eu quero dizer é se eles compreendem que é uma forma diferente.
R – Inicialmente, não. Eles acham que... Assim...Vou me referir ao Projeto Poronga. Eles acham que estar no Projeto Poronga é só para alunos desistentes, reprovados, alunos problemáticos. Mas não. Eu digo que os alunos do projeto são aqueles alunos que a escola não soube aproveitar, porque aquele aluno que a professora diz assim: “O Joãozinho é insuportável na minha sala, ano que vem ele vai ser seu”. Eu digo: “Ótimo”. E ano que vem, eu conto para ela que o Joãozinho é excelente. O Joãozinho participa da aula, o Joãozinho assiste à teleaula e sabe colocar a opinião dele. O Joãozinho deixou de ser aquele acúmulo de matérias para começar a construir o conhecimento prévio dele. Então, no início, eles não sabem essa diferença, eles acham que é um castigo. No decorrer é que eles vão entendendo, eles são os primeiros a defender: “A minha aula não é só escrever no quadro, não, como o professor faz, não. A gente tem... Fora escrever no quadro, a gente tem as teleaulas e tudo é falado na nossa linguagem, isso é o principal”. Então é uma parceria ali, é o aluno, a teleaula, os momentos. “Professora, nunca deixaram eu escrever no cartaz porque a minha letra é feia”. Não, ele escreve, ele começa a aperfeiçoar. Nas equipes, ele começa a aprender a falar. Eles chegam e não falam: “Não vou apresentar, não”. Depois eles já estão: “Então, professora, a síntese de hoje é isso, é aquilo”. É tudo que ele se apaixona. Quando ele conhece.
P/2 – O que você destacaria no trabalho com as equipes? O que ficava mais marcante para eles?
R – Aquela ideia de que a gente tem, assim: “Vamos fazer um grupo”. “Eu vou fazer com você, eu vou fazer com você e eu estou sozinha”. A equipe une os alunos. Não tem aquela exclusão de grupinhos. Então, a importância das equipes é: “Eu hoje estou na Socialização, mas amanhã estou na Síntese, depois estou na Avaliação, depois estou na Coordenação”. Então eles interagiam a sala porque, qual é a diferença do ensino regular? Nós temos alunos do fundão, os inteligentes e aqueles mais ou menos no meio. Essa diferença, aparentemente, de alguns colegas, que nós temos. Nas equipes, nós temos a sala, nós temos uma equipe que trabalha junto para ter um objetivo: a aprovação através do conhecimento. Não é aquela coisa de que: “Ah, eu vou passar só por passar”. Não, do outro se importar: “Não, vá lá, eu estou contigo, tu vai conseguir”. O próprio nome diz. Eu não tinha um aluno A, B ou C, eu tenho uma equipe. Então, as equipes são extremamente importantes porque elas unem a sala no todo, sem excluir: “Ah, eu não gosto daquele ali porque ele é mais inteligente do que eu”. Ah, aquele que é mais inteligente, então quando você estiver com dificuldade é ele que vai te ajudar, ele está lá. Porque a gente tem aqueles alunos que aprendem mais rápido, aqueles que vão mais devagar. Então, na hora da equipe, eu digo: “Olha, você tem que fazer a sua parte ali”. Aí ele puxa a cadeira e senta: “Professora, eu entendi agora. Ele me ajudou e eu entendi”. Então, é primordial a equipe.
P/2 – Laura, você achou que o planejamento coletivo contribuiu para a sua prática pedagógica?
P/1 – Ou como, não é? Se contribuiu, como?
R – Meu Deus do céu! Aí eu faço a diferença. Inicialmente, quando eu entrei, trabalhar com a EJA, que eles falavam que era o Telecurso, não existia planejamento. Eu não sabia dar aula, eu passava a teleaula, só. O planejamento foi importante e ele é extremamente necessário porque o professor não vai sem as armas para a guerra, ele vai preparado e com o suporte atrás, um suporte coerente, um suporte que se preocupa. Porque assim... Quando a gente está na metodologia, no Poronga, em qualquer sala, o professor está ali na frente, mas por trás tem toda uma equipe pedagógica estudando, tem toda uma equipe pedagógica disposta assim: “Ah, eu tenho uma dificuldade em determinado ponto ali”. Ele está ali para lhe dar um suporte porque, na hora em que você erra, não é você, é toda a equipe. Então, é extremamente importante justamente essa parceria. Como ele ajudava? Fazendo essa troca. “Não, eu sei sozinha”. De jeito nenhum. Nós somos juntos e juntos somos mais. E se nós conseguirmos juntos, nós conseguiremos o maior número de alunos com o mesmo empenho. É primordial.
P/1 – Esse planejamento coletivo, todos participavam? Conte um pouco como era. Quem participava? O material vinha pronto, era isso? Ou não, vocês tinham que criar? Como que o planejamento compunha?
R – O planejamento funcionava assim: início de ano começamos com planejamento voltado para iniciar Português e Ciências. As teleaulas já vêm prontas, porém nós temos que adaptar para a nossa realidade. Nós temos que adaptar para a nossa linguagem, mas não podemos fugir, até porque as teleaulas falam de uma maneira mais acessível para o aluno aquilo que é mecânico. Então, os planejamentos eram com o objetivo da gente trazer para a nossa realidade. A teleaula que passa aqui é a mesma que passa em qualquer lugar do Brasil, mas a forma adaptada é pelo local. Nós trabalhávamos, segunda a sexta, na sala de aula, com os alunos; e aos sábados, com o planejamento. E o planejamento se tornou uma frequência. Não era aquela coisa: “Ah, vou trabalhar no sábado”. Você trabalha que dia? De segunda a sábado. Ela estava inserida na gente. Então, a necessidade da gente ir fazer essa troca: “Ah, na minha sala deu certo esta tele aula aqui”. “Na minha sala já não foi mais tão bacana”. Então, essa troca, essa adaptação, essa conversa que a gente tinha e, principalmente, esse estudo. Porque o planejamento sempre foi à base de estudo, com um suporte, com assessoras. Na sala é o professor e cada professor tinha sua assessora, ou seja, uma assessora ficava com uma média de cinco, seis professores responsáveis para ela estar fazendo esse acompanhamento mais de perto. No sábado, era com assessora, com a equipe pedagógica. E sempre a gente tinha a visita da gerente para estar dando esse incentivo: “Olha, dá certo. O que não deu certo, vamos reformular”. Então, o planejamento acontecia da mesma forma que a aula, na mesma necessidade.
P/1 – O Memorial, como é que vocês conversavam pelo Memorial? Mais de um aluno fazia isso?
R – Eu sempre fui assim: eu dizia para eles que tudo na minha aula valia ponto. Infelizmente, os nossos alunos estão condicionados àquela coisa: “Vale ponto? Precisa escrever? Faz isso, faz aquilo”. Então eu dizia: “O Memorial é extremamente importante por quê? O que é o Memorial?” “Ah, memória; lembra memória”. “Isso. Então assim... Nós vamos fazer assim, você precisa me retratar como foi seu aprendizado, quais foram as suas dificuldades, porque na hora em que você está... “Vocês entenderam?” Às vezes você não entendeu e tem vergonha do seu colega achar que você é burro, então você vai colocar lá. E eu vou ver em que parte a gente não está conseguindo acertar e vai acertar juntos. Você escreve e se você achar necessário falar mais alguma coisa, fale. Porque ali eu não vou lhe dizer quem vai ler, mas você vai receber uma resposta para aquilo”. Então eles colocavam: “Professora, o aprendizado foi isso, eu gostei da aula, sim”. Aí, logo em seguida, eles vinham: “Professora, eu queria contar um fato que está acontecendo na minha vida, queria saber o que a senhora acha”. Aí eu colocava lá embaixo e quando eu... Eu sempre pegava na sexta-feira, eu sempre trabalhei com uma turma muito grande, uma média de quarenta alunos por sala e sempre exigi os Memoriais: “Ah, eu não tenho condições de comprar o Memorial”. Nós produzíamos. Pegávamos folhinha, grampeávamos, arrumávamos todas, sempre tendo todo o cuidado. Eu sempre falava que a sala do Poronga tem que ser sempre a mais bonita, a mais cheia de cor e, principalmente, com os alunos mais abertos a socializar. Então, eles começaram a entender aquele diário, eles falavam que era o diário o Memorial deles. Era o diário de aula e o diário de vida. E ai de mim se não desse a resposta na segunda. Tinha que dar a resposta quando eles falavam assim: “Professora...”. Eu lembro de que estava dando uma aula sobre os sistemas reprodutores feminino e masculino. Eu peguei um vídeo na internet, do Professor Jubilut, que é um professor que acaba trabalhando uma linguagem do jovem e ele conta muito essa questão da sexualidade dos adolescentes. E o rapaz explicou no Memorial a aula e colocou a dúvida dele, que ele ficou com vergonha de falar. Então eles viam o Memorial como uma forma de expressar aquilo que eles tinham vergonha de colocar para os demais. E sempre eu cobrei e sempre tive os meus caderninhos de Memoriais, as minhas respostas eram muito importantes, sempre teve esse elo. Porque ali era algo que não era falado na frente de todos, eles pegavam o Memorial deles na segunda-feira, aí iam lá ler: “Hum!”. Eles só faziam assim. Então: “Valeu a pena, aprendi isso”. Depois: “Professora, aprendi, bacana. Mas o que acontece se eu não fizer isso, isso e isso?”. Então, o Memorial sempre esteve muito presente com todos os meus alunos.
P/1 – A gente ouve muito falar assim: “Ah, mas quarenta alunos não dá para fazer isso”.
R – Dá.
P/1 – Como que dá?
R – Vou lhe dizer por que que dá. Quando a gente gosta, a gente se esforça, faz por prazer. E eu posso lhe dizer sem...
PAUSA
R – Trabalhar com quarenta alunos é possível? É, quando você faz com prazer. Eu digo muito que eu estou na sala de aula hoje porque eu gosto. E se você gosta, você faz bem feito. Então, eu sempre tive o cuidado... Se o aluno fazia, por que eu vou fingir que não li o Memorial? Por que eu vou fingir que está sendo corrigida uma coisa sem eu saber? Então, o que eu fazia? Eu pegava o Memorial na sexta-feira e tinha o final de semana para ler. “Mas e a tua vida?” Não, tudo tem um tempo. Eu tenho o planejamento nos sábados. Eu tirava um tempinho para ler o Memorial. O Memorial sempre foi muito importante para eles. A atividade, os trabalhos. Então, digamos que no sábado eu trabalhava e no domingo eu estava com a minha família, mas na segunda eu estava lá com os cadernos deles e eles ansiosos. Sempre corrigi. Eu sempre cobrei e eles falavam assim: “Professora, um professor meu não corrigia meu caderno, não lia, não circulava palavra errada. A senhora lê tudo, não é?” “Sim”. Porque se a gente cobra do aluno, a gente também tem que mostrar o que a gente está fazendo. Então cobrava e fazia a minha parte - corrigia e orientava. Dava para fazer com quarenta.
P/1 – O que era corrigir?
R – Corrigir, eu digo, é tipo passar um exercício. E eles passavam... Porque eles gostam muito de pontos, não é? Então, passei uma atividade: “Professora, a senhora vai corrigir o meu caderno?” E uma das coisas que eu sempre gostei é de não trabalhar com caneta vermelha, sempre fui muito traumatizada com a caneta vermelha. Meu caderno sempre foi vermelho na época em que eu estudava. E então os meus alunos... Eu sempre fazia a correção das atividades deles com canetas, circulando alguma coisa que estava errada para ele perceber o que estava errado e corrigir. Eu dava orientação para ele e ele voltava com aquela atividade corrigida e o conhecimento assimilado. Então, essa era a parte da correção, nesse sentido.
P/1 – Você acha que, em que medida o Memorial ajudava na escrita? Ou ele não ajudava na escrita?
R – Meu Deus do céu, ele ajudava... Em que medida? Em todas. Porque quando você está escrevendo, você está aperfeiçoando a escrita, não é? E eles desenvolviam muitos textos ali, eles contavam tudo o que acontecia na aula e contavam um pouco da trajetória de vida particular deles. Então, ele desenvolvia a escrita mesmo sem perceber. Era uma aula de caligrafia. E quando eu pegava aqueles Memoriais, tipo, tinha alguma palavra errada. Aquele não era o momento que eu tinha para corrigir: “Hein, Joãozinho, essa palavra está errada”. Não. Ele escrevia, digamos, a palavra faça com dois ‘esses’ ali no Memorial. Durante a aula, na semana, eu colocava assim: “É preciso que se fassa um bolo”. No quadro, escrito com dois ‘esses’. “É preciso que se faça um bolo, com ‘cê-cedilha’. “Gente, vocês acham que aqui tem uma coisa errada?” “Professora, eu acho que está. Não é com dois ‘esses’”. “Ah, já sei porque é que a senhora está falando isso, não é? Já, ó! Valeu, hein?” Então, era o momento deles estarem escrevendo, desenvolvendo a escrita, mas sem podar o meu aluno. A gente orientava de uma forma mais... Como é que eu digo? Discreta, mais carinhosa. Então era isso.
P/1 – Eu já vou começar a fechar a nossa conversa. Se você puder fazer uns paralelos assim... Você aluna, naquela fase que foi difícil, e seus alunos e o Telecurso, Poronga. Você já fez uma, não é? Da caneta vermelha.
R – É.
vários paralelos. O que acontece? Que relação é essa de você com seus alunos? Que linguagem é essa que você não tinha na escola, quando você era aluna? Porque tem aluno que vem mais rebelde. Além de toda a metodologia, falando da relação.
R – Quando eu estudava, era aquela coisa do professor chegar e passar o conteúdo. Eu cheguei a quase reprovar por vinte e cinco décimos. Aquele professor que chegava e: “Se você não fizer isso, você vai reprovar”. Então, eu tinha aquele professor que me via só como mais um, aquele número. E quando eu entrei para ser professora do Projeto Poronga, eu posso dizer, com todas as palavras, nunca tratei meu aluno como número, sempre soube o nome de todos, sempre chamei pelo nome todos os alunos. “Ah, impossível para mim, cara colega, aprender os nomes dos meus alunos”. “Não, não é. Não é. É fácil. Você não tem vários amigos? Você convive com quarenta, trinta e cinco durante a semana toda e você não saber o nome deles?” “Eu não preciso saber”. E aquele aluno que vinha com mais dificuldade, com problemas de violência, com problemas de drogas, de ‘n’ coisas, era aquele aluno que eu fazia questão de tê-lo para mim. Porque ele podia ser aquele aluno que, lá na frente, eu iria encontrar no caminho errado. Eu não queria que eles seguissem o caminho que não era o certo. Eu nunca disse para um aluno meu que ele não iria vencer; por mais que ele não venceu, eu estive ali, do lado dele. Então, qual é o maior problema, hoje, da Educação em si, em algumas escolas tradicionais? É fazer com que o aluno se sinta só mais um. E o Projeto Poronga me fez perceber que não é, que eles não são mais um. E eu sempre me referia aos meus meninos, eu falava no início do ano: “Olha, nós vamos começar um lindo namoro. Esse namoro vai durar um ano. Nós vamos ter brigas, a gente vai ficar intrigado, vocês não vão querer mais namorar comigo, mas a gente vai voltar. Mas tudo o que tem o começo, vai ter o meio e o fim”. E quando a gente terminava, quando a gente rompia esse namoro, eu percebia que valia a pena porque eu via aqueles meninos assim, tristes, porque iriam para o ensino regular. Mas muitos dos meus alunos permaneceram com a metodologia do Poronga do ensino fundamental, indo para o PEM, seguindo a mesma linha. Então, ele saía do ensino fundamental, ia para o PEM, ensino médio. Aí a faculdade era com eles.
P/2 – Laura, a gente sabe que na Educação de Jovens e Adultos a evasão é um dos maiores desafios. Me conta, como você conseguiu que na sua turma tivesse evasão zero?
R – Eu sempre brincava com eles: “Amores...”. Essa frase, se pegava algum aluno... “Amores, vocês têm uma professora linda, magra, loira e alta”. E eu sempre fui morena. E eles falavam assim: “Mas, professora...”. Eu dizia: “Olha, é assim... Eu sou muito carente, eu preciso da atenção de vocês. Se vocês faltam, eu não tenho condições de dar aula. Se vocês faltam, eu vou ligar. Lembra daquela menina apaixonada? Eu vou ligar. E se não me atender, eu vou atrás”. Então assim... A evasão, eu posso dizer que não tive, foram nove anos de Poronga, foram nove anos de conclusão com 100% de alunos. E eu digo, com todo orgulho: eles me tinham como o carrapato na vida deles. Eu ligava, eu sabia o telefone da mãe, eu sabia o endereço. E quando eu ia visitar, eles tomavam um susto, mas eles falavam assim: “Meu Deus do céu, se eu voltar, a senhora não vem mais aqui?” Eu dizia: “Não sei, posso vir tomar um café, conhecer mais a sua família”. E eles iam, eles não faltavam e eles não desistiam. Eu tive muitos alunos que tentaram desistir e eu ia buscar. O Wesley Braga, eu fui buscar ele no posto de lavagem, fui buscar ele numa ‘bocada’ de fumo, fui buscar ele numa festa que estava acontecendo durante a aula, fui buscar ele em casa, porque ele estava dormindo durante a aula. Eu ia. Então assim... Eles falavam assim: “Professora, só por curiosidade: se eu faltar, a senhora não vai me fazer passar essa vergonha, não é?” Eu dizia: “Mas é lógico que vou. Porque se você não vem, eu não consigo dar aula”. Então eu cobrava, fazia uma chantagem emocional, dizia que era uma menina apaixonada por eles, que se eles não fossem, eles desistissem... E eu me apaixono por meus meninos, eu digo que eu sou muito fácil, eu me apaixono, mas quando é no final do ano eu já corro atrás de outros amores. E os meus amores permanecem, alunos de 2009, 2010, 2011, continua o mesmo amor. Tem duas meninas na rede social - Raiane e Daiane - que elas escreveram para mim essa semana: “Como é que eu faço para ver aquela linda, loira e alta?” Eu disse: “Meu amor, já estou namorando outros. Mas, olha a minha foto”. Eu mandei uma foto. Aí ela disse: “Professora, a senhora não existe”. Então assim... Trabalhar a importância de você estar ali, de você estar aprendendo. Era um trabalho diário, um trabalho apaixonante com os meus meninos.
P/1 – Você ia no horário da aula, ia atrás deles?
R – Ia.
P/1 – Como você fazia?
R – Você faltou... Porque sempre as escolas em que eu trabalhei eram escolas periféricas, casas aparentemente próximas. Durante o intervalo, eu pedia ao diretor que assim que batesse o horário alguém ficasse na minha turma, questão de cinco minutos, eu sempre ia de carro e eu ia procurá-los no horário do intervalo. Eu não parava a aula. Mas assim,...Eu não lhe achei hoje, amanhã eu chegava mais cedo, tentava lhe pegar em casa, no horário de almoço, para falar com a sua mãe, para saber se ela sabia que você não estava indo para a aula. E muitas mães não sabiam. Porque muitas mães, como a minha, trabalhavam. Trabalham o dia todo e elas não sabem se os filhos vão para a aula. O filho diz que vai e não vai. Então eu fazia durante a aula, no intervalo, sempre com uma parceria em todas as escolas em que eu trabalhei, sempre tive esse apoio da escola. Eu fazia o diretor se apaixonar para me dar todos os suportes de que eu precisava. E era assim que a gente resgatava, foi assim que eu resgatei, foi assim que eu concluí, de forma muito presente com meus alunos. E quando eles levantavam o certificado na formatura, eu falava assim: “Valeu a pena?” “Valeu, professora”. Aí eu dizia: “Agora sim, valeu. Vamos para o ano seguinte”. E era dessa forma.
P/1 – Vamos fechar com isso, o que você acha? Quer perguntar alguma coisa? Valeu a pena?
R – Valeu e vale a pena. Vale sim. Se você faz por amor, não ser mais um. É você fazer a diferença na vida do aluno, é você mostrar para ele que é capaz e ele pode vencer. E se ele não venceu, você fez tudo. Mas você deixou por conta dele, a escolha foi dele, a sua parte você fez. Então, vale muito a pena sim.
P/1 – Laura, você quer falar alguma coisa que a gente não perguntou? Que você gostaria de deixar registrado? Da sua história, desse trabalho maravilhoso, apaixonante.
R – O que eu poderia dizer assim... Que hoje eu sou uma professora completa. Hoje eu sou uma educadora. Eu sou uma pessoa totalmente diferente depois de tudo isso, porque eu agreguei todo o conhecimento dos meus alunos, eu não transmiti, nós fizemos uma troca. Então, foi uma fase da minha vida muito importante que fez a diferença não só para os alunos, mas para mim também. Hoje eu sou, realmente, uma educadora.
P/1 – Muito bom! O que você achou de contar essa história? Assim... Dessa experiência? Como foi essa experiência?
R – Eu acho que todos os professores deveriam se apaixonar pela Educação porque a Educação é a única profissão que não pode ser substituída. Por mais que você esteja assistindo a uma vídeo aula, tem alguém dando aula. E, infelizmente, hoje os professores... Eu encontro pessoas que: “Ah, eu estou fazendo Pedagogia porque é a oportunidade de trabalho mais fácil”. Mas ele não tem o dom. Eu nunca quis ser professora, mas sempre fui uma professora. Eu sonhei ser médica, mas eu tenho certeza de que não seria uma boa médica, porque a Educação me mostrou a minha verdadeira vocação. Hoje eu dou aula porque eu quero. Hoje eu estou na sala de aula porque eu gosto. Não é aquela coisa de você chegar arrastando o mundo nas costas. Não. Eu vou para a escola linda, loira, alta e magra e faço os alunos se apaixonarem por mim, da mesma forma que eu sou apaixonada por eles, pela docência, não é?
P/1 – Você continua no Poronga?
R – Não, eu sai do Poronga, voltei para EJA, voltei para os meus adultos. Hoje eu trabalho numa escola de zona rural, que é a Escola Aracy Cerqueira, ela fica próxima ao aeroporto, onde eu trabalho com alunos... Eu tenho alunos... Todos eles são de quarenta para cima. As minhas meninas são maravilhosas. Elas trabalham no polo, vivem da horta, da terra e é fantástico eu chegar lá e ver aquelas meninas cansadas, mas elas ficam, elas participam, elas fazem atividades, são esforçadas. Continuo na sala de aula. Infelizmente, a EJA não trabalha mais a metodologia do Telecurso. Porque chegou a trabalhar. Mas eu levo para eles tudo o que eu aprendi, tudo.
P/1 – Você pratica a metodologia.
R – Meu Deus, 24 horas. E na sala de aula são as quatro horas ali. Tem que ter atividade integradora, tem que fazer a sondagem da aprendizagem. Não tenho teleaula, mas aí a gente faz a questão dos livros, da explicação do professor, atividade. Trabalham em grupo, fazem apresentações. Então eu saí do Poronga, mas o Poronga não saiu de mim. E nem vai sair.
P/1 – Muito bom! Acho que encerramos aqui, não é? Obrigada, parabéns, viu? (palmas)
R – Eu é que agradeço. Para mim foi uma honra e eu queria, sinceramente, que todos fossem apaixonados. Mas a gente só pode apaixonar quando a gente conhece, não é? E muitos não estão dispostos a conhecer. Mas os que se apaixonam, fazem a diferença.
P/1 – E um ótimo casamento para você! (risos)
R – Meu Deus do céu, vai ser lindo!
P/1 – Depois você manda umas fotos.
R – Mando, mando sim. Com certeza.
FINAL DA ENTREVISTA
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