Entrevista de Gilberto Dimenstein
Entrevistado por Karen Worcman
São Paulo, 29 de abril de 2020
Transcrito por Fernanda Regina
P/1 – É uma sensação, é uma imagem, é um toque. É uma sensação. Escolhe essa sua lembrança. Ás vezes não é uma lembrança completa, é um fragmento de lembrança. Percebe se ele traz algum som, se ele te traz algum sentimento, se a sua mente para nesse momento ou se ela começa a circular. Percebe. Só busca tranquilamente esse momento. Tem cheiro? É calor? É quente? Tenta sentir esse momento que é a primeira lembrança. Quando você sentir que esse momento está lá, que você consegue sentir lá e aqui. Você pode ir voltando e se percebendo nesse dia de hoje, lembrando o dia de hoje, o seu acordar, a sua sensação ao acordar, o tempo que passou entre você acordar e chegar aqui nessa sala, refazendo, tudo que você fez de lá até aqui. As palavras, os detalhes, as sensações do corpo, da mente, as sensações do coração. E vamos refazer esse seu caminho no jardim, passo por passo, percepção por percepção. Você chegava aqui, tudo que a gente falou e brincou, os olhares, a poesia, as trocas, até a gente chegar nesse momento que a gente está. E quando você sentir que você encontrou esse próprio momento agora, pode chegar.
R – Eu posso falar? Respirei fundo, fui fazendo uma pescaria em minha memória e apareceu a primeira cena em que Gilberto Dimenstein foi Gilberto Dimenstein. A paisagem é o seguinte: os sons, os sabores, os... são os seguintes. Ilha de Mosqueiro, no Pará, onde minha família tinha casa. Por que em Ilha de Mosqueiro, no Pará, alguém chamava Gilberto Dimenstein? Porque a minha família veio do Marrocos, se instalou em Belém e comprou essa casa de praia e rio. Um lugar chamado Mosqueiro, que era um paraíso, nós íamos de carro, era um paraíso. As casas muito antigas, as conversas longas dos mais velhos, os pescadores que paravam na casa do meu avô e chamavam ele de Marcos, que ninguém fazia isso, que ele era autoridade, não autoridade política, ele era... Chamavam de Marcos. Nesse local aconteciam sabores maravilhosos como a chegada do peixe de manhã cedo, o cheiro dos bois, dos bois negros, na verdade, dos búfalos de manhã cedo, tinha um cheiro de jasmim, tanto que eu nunca mais me libertei de cheiro de... Me libertei, não... Deixei de cheirar jasmim, desde menino, todo lugar que eu vou, eu planto jasmim, todo lugar. Mas eu me lembro que quando chegava a tapioca, docinha, bem docinha, ela vinha em folhas de bananeira, aquilo ali era uma explosão na boca, tirar a tapioca da flor de bananeira e comer, nunca mais senti esse cheiro. Tinha o cheiro do café com leite, tinham os cheiros que vinham do rio, as frutas: maracujá, taperebá, aquelas coisas amazônicas. Foi nesse cenário que aconteceu o momento em que eu fui eu, que eu me lembro pela primeira vez. Eu não sei quantos anos eu tinha, era muito pequeno, mas eu era muito pequeno. A minha vó falou assim: “Olha, meu neto, pega essa galinha e leva lá no galinheiro”. Eu fui levar a galinha no galinheiro, quando eu cheguei no galinheiro eu falei assim: “Pô, mas isso não é justo!”. Não sei se eu falava exatamente assim, mas foi exatamente o que eu pensei: “Isso não é justo”. Aí eu peguei a galinha, libertei e libertei todo o galinheiro, todo o galinheiro, não sobrou nada. Aí eu falei: “Puts, eu vou tomar uma surra”. Eu libertei todo o galinheiro e as galinhas saíram correndo, correndo, porque lá tudo era quintal. E, para a minha surpresa, o meu avô, meu avô era a figura mais importante para mim, toda a minha vida, mais que meu pai, mais que minha mãe, meu avô era a figura. Ele viu isso como um gesto divino, eu ter a sacada de libertar as galinhas. Então, lógico que eu não apanhei, se meu avô achou uma coisa legal, ninguém ia me bater. Eu carreguei essa imagem por toda minha vida, quando eu pensava sobre mim, onde que estava e tal, eu lembrava da coisa da revolução do galinheiro que eu tinha feito. Eu entendi exatamente naquele momento, mas eu entendia, não é que eu não entendia, que eu estava promovendo a liberdade das pessoas. A minha vida sempre foi de algum jeito... Não sou santo, pelo amor de Deus, se fizer inventário com as minhas ex mulheres vai sair um... Você nem estaria sentada aqui de tanta coisa ruim que ia sair. Eu não sou santo, mas eu sempre tive um prazer na vida que foi transformar a minha energia em energia também dos outros, ou seja, usar as coisas que eu sei fazer para compartilhar e enriquecer o mundo. Certamente, é por isso que eu não estou angustiado na minha morte, porque eu olho ali... Aliás, teve uma cena tão engraçada quando eu fui me operar a primeira vez do câncer de pâncreas, eu tinha feito uma bobagem, né? Eu li o Google, falou assim: “O Google diz que você só tem um mês de vida quando você tem câncer de pâncreas, que não dá para tratar, é só paliativo”. Ah, mas eu estava lá no hospital, eu operei, passou um dia, eu pedi um celular qualquer ali, peguei um celular qualquer. Eu peguei o meu Wikipédia em inglês, porque só português não bastava, tinha que ser inglês e português e tinha tanto elogio para mim, tanto elogio, do Obama, Obama que fez um documento baseado nos meus projetos, a Bolsa-Escola que eu ajudei a criar. Eu olhei assim: “Tá bom, vamos em frente”. Ou seja, o que gruda para mim, não é que todo mundo tenha que ser assim, nada disso, se o cara quiser ser baderneiro, ser boêmio, cada tem a vida que... Mas aqui está a essência que é transformar a sua vida em protagonismo e enriquecimento da sociedade, se você não vive e não faz nada disso, a sua vida não teve valor para mim. São as galinhas de Mosqueiro, que é uma ilha amazônica, você toma banho no rio, mas você acha que é mar porque você não vê o outro lado.
P/1 – Gilberto, eu queria voltar lá para o galinheiro, que você me contasse um pouco mais do seu avô, como era o nome dele? E o que você conhece da história dele?
R – O meu vô era uma peça... Eu tinha um pai que era muito batalhador, muito mesmo, sofreu muito, porque ele veio... Ele ficou órfão cedo, ficou vivendo em tudo quanto é canto e, naquela época, não tinha terapia para homem, né? Isso era coisa de boiola. Ele não fez terapia, ele nunca soube pesar o que foi essa orfandade, como era uma coisa agressiva com o ser humano. Aí ele era muito violento, mas era muito violento, violência verbal e violência física. Aí para eu sobreviver, eu tive que me distanciar dele, psicologicamente, né? Se não eu ia me matar, se a imagem dele - a que tinha de mim -, fosse a minha imagem de mim, eu estaria morto, seria um Zé Ninguém rastejando por aí. Então tinha essa figura, ao mesmo tempo, tinha o meu avô, que era líder religioso lá em Belém, construiu a sinagoga mais linda que eu conheço do mundo. Ele fez uma sinagoga, acho que ele levantou a maior parte do dinheiro, mas ele fez uma sinagoga inspirada no arquiteto de Florença, que fez a sinagoga de Florença. Era uma coisa tão maravilhosa, porque tinha aqueles vidros grandes e entravam o vento com o cheiro amazônico de manga, porque tinha manga em tudo quanto é canto, né? E de frutas, a Amazônia estava lá dentro. Ao mesmo tempo, estava lá dentro essa cultura paraense-judaica que é muito exclusiva, não tem nenhuma coisa perto, porque pegou coisa amazônica. Eu me lembro que as cadeiras ficavam assim, né? E tinha uma fileira aqui, pequena e meu avô sentava aqui. Eu sentava ao lado dele, comportado, né? O orgulho dele era tão grande, tão grande, tão grande que conseguiu contrabalancear o efeito do meu pai, né?
P/1 – Mas me conta um pouco quem era ele? Chamava como?
R – Chamava Marcos Athias.
P/1 – Ele nasceu lá ou ele...?
R – Nasceu, nós somos judeus de muito tempo aqui no Brasil, porque a minha mãe nasceu aqui, o pai dela, o Marcos, nasceu aqui, o avô da minha mãe já nasceu [lá] e veio muito pequeno para cá.
P/1 – Do Marrocos?
R – Do Marrocos. E a minha bisavó nasceu aqui.
P/1 – E eles foram para Belém?
R – Foram para o Belém porque estava tendo um surto de febre amarela no interior do Pará e eles não conseguiram vir para cá, ficaram fora, depois que vieram. Para você ver o grau de integração da comunidade judaica com a comunidade local, no sábado, nenhum judeu religioso trabalha, eles não trabalham, ficam rezando, rezando. É um crime, um pecado. Meu bisavô, meu tataravô, o pai do meu avô Marcos, deixava todos os produtos para vender na beira do rio, sem ninguém olhando, as pessoas passavam, pegavam o produto e deixavam o dinheiro. Isso é... Nossa, você imagina uma coisa aqui no Brasil, que é o país da malandragem, as pessoas não pegarem o dinheiro. O meu avô, obviamente, como muitos judeus, estudou o que podia estudar na época, foi para Belém, que já era uma capital importante por causa da exportação de borracha, o Brasil era o maior exportador de borracha do mundo, né? Daí que você tem aqueles teatros na Amazônia, incríveis, tem teatros em Belém incríveis também. Ele se formou em Contabilidade, aí, como ele tinha uma habilidade relacional muito grande, virou empresário exportador de castanha do Pará, que era outra coisa forte do Pará. E, com isso, ele ficou um homem, acho que para o padrão daquela época, rico. Então ele era uma personalidade, não só na comunidade, mas na comunidade belenense. Foi ali que ele construiu sinagoga. Era uma pessoa que sempre estava filosofando, sempre estava filosofando, pensando, mas também era um capitalista que queria ganhar o dinheiro dele. Era isso, era aquela coisa marroquina, amazônica, brasileira.
P/1 – E a sua avó, você sabe como eles se casaram? E como ela era?
R – Minha avó veio de uma família mais aristocrática-judaica, né? Que é a família dos Levys, que o pai dela era ligado ao Getúlio Vargas, foi indicado prefeito de Macapá, o grande orgulho da família é, às vezes, passar lá em Macapá e ver uma ponte com o nome do meu tio: Major Eliezer Levy. É engraçado ter isso como... Mas ele via longe, ele me deixou uma herança, esse bisavô, uma frase que dizem que é dele, que é o seguinte: “Se alguém não puder ser seu amigo, não o tenha como inimigo”. Essa frase eu usei a minha vida inteira para mim mesmo, né? E fez com que eu pudesse me livrar das porradas ou aceitar as porradas e não ficar berrando porque se não podia parar no meio, né? Porque a arma do medíocre não é vencer, é te deixar parado. Então, eu sempre tive cargos que exigia muita, muita, muita, muita negociação, paciência, vontade de matar, mas ficar em silêncio e elogiar a pessoa, inclusive. A minha avó era uma pessoa muito calada, a vida dela era meu avô, ela não era uma pessoa expressiva, assim, embora venha de uma família expressiva, muito expressiva. Em 1948, foi assinado, 48, eu acho, o tratado da ONU criando o Estado de Israel. Foi a casa dela um dos polos que se discutia esse tratado, o cara que assessorava o Osvaldo Aranha, frequentava a nossa casa, ele via a paixão da família por Israel, então é nesse nível. O meu bisavô era jornalista, tem até a máquina dele aí.
P/1 – Ah, ele era jornalista, então.
R – Não, ele era político. Jornalismo é uma profissão recente, né? Jornalismo até um tempo atrás era bico. Eu tenho até uma história maravilhosa de como era bico, que o melhor emprego que se tinha conseguido na década de 50, sei lá, foi do Guimarães Rosa para O Globo, colunista, era uma fortuna. Aí ele deixou o emprego, ninguém entendeu. “Pô, Guimarães, está louco, tá ganhando o melhor salário, tal”. Ele falou assim: “É que eu não consigo escrever na areia”.
P/1 – Não consigo escrever na areia?
R – Não consigo escrever na areia. Era assim o Jornalismo, era um bico. Uma vez um repórter, fui reclamar, era o Assis Chateaubriand: “Chateaubriand, eu não estou ganhando nada, tal, estou com dificuldades”. Ele falou assim: “Para que você tem carteira de jornalista?”. Então a minha avó não chega a ter um papel importante, um papel muito secundário.
P/1 – E ele teve com seu avô?
R – Toda a vida.
P/1 – Sua avó e seu avô tiveram quantos filhos?
R – Teve minha mãe, minha tia Mirian, meu tio Fortunato, meu tio Eliezer e teve um que morreu.
P/1 – E todos em Belém? Vamos parar essa família. Sua mãe, queria que você me contasse, vamos continuar, um pouquinho dela? Depois a gente...
R – A minha mãe?
P/1 – É.
R – Então, a minha mãe é um... É uma coisa incrível, às vezes, eu não aguento muito porque ela tem 85 anos e tem uma energia, uma capacidade de superar as coisas. Ela sai com as amigas o tempo todo, tanto que essa quarentena para ela está sendo um inferno. Ela sai com as amigas o tempo todo, ela lidera a família. A gente não consegue falar não.
P/1 – Mas ela na história dela, o que você tem, tipo assim, ela nasceu quando? Conta um pouco da história dela?
R – Ah, não sei, se ela tem 85. Ela desde menina tinha essa coisa criativa, de escrever programa de rádio, ela estudou. E meu pai achava que mandava, mas não mandava.
P/1 – Ela estudou em Belém?
R – Ela quis fazer faculdade lá em Belém, mas não deixaram. Acharam que ela não...
P/1 – Que mulher não...
R – Ela estava casando, não ia...Mas quando ela foi estudar, ela veio para cá para São Paulo, ficou um tempinho no Rio, como todo paraense e veio para São Paulo. Aí não fez. Aí quando já tinha nascido os quatro filhos, ela foi estudar na USP, virou professora. É notável, né?
P/1 – Ela estudou o quê?
R – Ela estudou hebraico para ser professora de hebraico. Eu acho incrível isso, a força de vontade. Até hoje tudo ela gosta, quer ir, quer ver. Ela vai nas exposições, nos museus, ela consegue comprar os melhores CD’s pirateados. Ela conhece a 25 de Março na palma da mão, quando ela chega lá é todo mundo: “Dona Esther, Dona Esther, Dona Esther”, conhece cada loja. É incrível, ela fala sem parar. Tanto que quando está com ela, a gente nem fala, eu não falo, não dá tempo (risos). Ela tem essa força.
P/1 – E seu pai, você começou dele... Vamos esperar um pouquinho dela, queria que você me contasse, o nome dele qual é?
R – Era Adolfo - logo ele nasceu antes da Guerra, né? – Dimenstein. Ele teve essa...
P/1 – Ele era de onde, você sabe?
R – Ele nasceu no Brasil, mas os pais vieram daquela região que se misturava, acho que era mais próximo da Ucrânia e Polônia. Ele teve tragédias, assim, ele viu a mãe se matar.
P/1 – No Brasil?
R – No Brasil. E os pais são... A gente costuma dizer que aquela região lá, mudava cada... Ela viu o pai se matar... A mãe se matar, chamava supostamente Maria. E o pai já estava morto. Então, ele ficou em uma terra, assim, meio estranha, né?
P – Quantos anos ele tinha mais ou menos?
R – Acho que tinha uns doze, treze anos. Aí ele conseguiu sempre apoio, porque tinha outros irmãos mais velhos. Mas ele viveu em pensões, em casa de outras pessoas, deve ter sido muito ruim. Ele nunca fala, nunca falava nisso, você ia descobrindo, assim, naturalmente.
P/1 – Isso onde? Ele cresceu em?
R –Recife.
P/1 – E como foi que ele em Recife e ela em Belém, como foi esse encontro?
R – Então, é interessante, né? Em Recife e também ele estudou Agronomia em Aracaju. Tinha um curso bom de Agronomia e tinha um grande professor, que tinha conexões mundiais: Vanderlei. Eu sei disso porque era a única foto que o meu pai tinha do lado do criado mudo dele. Aí ele resolveu ganhar dinheiro, como muitos judeus fazem há muito tempo, com joias. E uma parada dele foi em Belém e ele foi na sinagoga, né? Não com nenhuma intenção religiosa, era com... E não havia uma possibilidade de chegar um judeu de fora que não apresentassem as filhas e tal. Não havia. Ainda mais que meu pai era alto e tal. Os marroquinos são mais baixos. Aí foi. Foi assim.
P/1 – Eles contavam sobre esse encontro deles? Me conta um pouco o que você lembra da relação do seu pai com a sua mãe? Como era? Como era isso que você lembra e como dali, eles vieram parar aqui em São Paulo?
R – Olha, minha mãe não reclamou... São Paulo era obrigatório, meu pai via impossibilidade de ganhar dinheiro em Belém, eles foram para o Rio também, passaram um ano no Rio e vieram para São Paulo, em que a gente não tinha muita base familiar, tinha pouquíssima base familiar. A relação do meu pai com a minha mãe, eu não sei te dizer exatamente. Mas eu só via o meu pai chamando ela: “Esther, Esther”. E via também muita agressividade.
P/1 – Com ela?
R – Mas não física.
P/1 – Como? Me explica?
R – Berrando. “Ah, a comida está ruim”. Sempre berrando. A comida está ruim, o bife não ficou não sei o quê, está salgado, caiu o chuveiro, a água do chuveiro não está funcionando, era sempre uma relação... Tanto que eu jurei na minha vida nunca gritar. Mas a minha mãe gostava.
P/1 – Ela gostava dele ser...?
R – Não sei se tinha essa consideração hoje, né? Depois do feminismo. Mas ela tinha a vida dela, separar não ia separar. Ela tinha a vida dela, tinha as amigas, tinha a sinagoga, tinha as amigas que jogavam cartas, tinha as amigas que jogavam não sei o quê, ela amava essa vida, tinha os filhos. Mas eu sempre me lembro dele gritando. Deve ter outras faces que eu não... Deve ter outras facetas da relação que eu não... Tanto que quando ele morreu ela chorou bastante, né? Mas cinco dias depois, estava jogando carta com as amigas. É porque dizem que não tem viúva triste, né? Dizem que não tem viúva triste, que toda viúva é... Porque o cara estava... Meu pai morreu doente, né?
P/1 – Morreu de?
R – Morreu doente do pulmão, né? Ele está lá chamando, chamando, chamando, doente, não podia sair da cama. No fundo, eu acho, no fundo tem um incomodo, né? Quando a pessoa morre, eu acho que foi assim: “Poxa, posso dormir sem ninguém...”. Não sei, estou pensando. Ele morreu triste. Minha mãe morreu triste com a morte dele.
P/1 – Ficou triste.
R – Mas não parou a vida. Zero. Porque não faz parte dela parar a vida.
P/1 – Agora ele, por exemplo, continuou trabalhando com joias?
R – Continuou.
P/1 – Joias?
R – Não, depois que ele veio para São Paulo, começou a trabalhar com móveis.
P/1 – Móveis. Então vamos chegar aí, vocês nasceram aqui? Me conta um pouco, quantos são os irmãos e a casa? O que você lembra?
R – A gente nasceu no Ibirapuera.
P/1 – Em uma casa lá?
R – Na Rua do Livramento, que fica bem do lado. Naquela época, São Paulo, mais ou menos, quando eu nasci, eu nasci em 56, Ibirapuera foi inaugurado em 54, que era o quarto centenário, né? Era outra cidade, você imagina que tinha 54 mil carros em São Paulo, Ibirapuera não tinha Assembleia, não tinha o quartel militar. Daí você vê o desrespeito que as pessoas têm, em vez de transformar em parque, transforma em prédio. Aí começou no Livramento, depois passou para um outro lado do parque. O parque era... Para nós era, não era assim, era maior, mas era essa a sensação: de que o parque fazia parte da nossa casa. Uma diferença de um quarteirão, assim. Mas engraçado, toda vez que eu dava esses depoimentos, não fazia menor questão de ser preciso e agora eu estou com uma questão...
P/1 – Qual é a questão que você está?
R – Que eu estou sendo preciso. Eu falar que o parque era logo ali não é uma mentira, mas é um exagero, era um quarteirão. E os jornalistas adoram exagero, né? Formados com exagero. Mas, de qualquer forma, a gente tinha uma vida, assim... Eu virei bem paulistano, mas com essas heranças todas que eu estou te falando do Marrocos, da Polônia, de uma São Paulo exuberante. Era exuberante São Paulo naquela época, fábricas, museus, MASP [Museu de Arte de São Paulo Assis Chateaubriand], sabe? Os cafés com jeito inglês, exuberante. Era civilizada, não tinha criminoso. O único criminoso que tinha dava bala para criança que era o Meneghetti, que é dos melhores personagens que São Paulo produziu, eu acho, porque ele era totalmente contra violência, ele roubava as casas sem arma, ele foi aposentado aqui na Livraria da Vila, tem uma placa lá. Ele foi preso, ele falou assim: “Eu tenho que parar de roubar, não dá mais, não, porque um bom ladrão tem que ter bom ouvido”. Ele não ouviu os policiais chegando. “Um bom ladrão tem que ter um bom ouvido”. São Paulo era exuberante, não tinha desemprego, nós tínhamos uma língua diferente que era o português, que era italiano, espanhol, o alemão, era uma coisa impressionante. O italiano sobretudo, acho que se falava mais italiano em São Paulo do que português, acho não, se falava porque a população italiana era maior. E lugares incríveis como Bexiga, depois a Liberdade, que estavam praticamente intocadas ainda, o Bom Retiro, dos judeus, que você comia comidas deliciosas da Europa. E o bonde, o bonde, tinha o bonde que não parava em casa, mas junto de casa, um bonde, imagina? Bonde? Aí você vê o que São Paulo fez, tirou o bonde e deixou o carro lá. Aí tirou as marginais e deixou... A área da marginal e deixou carro entrar. Então era uma coisa. Somos quatro irmãos: o Bernardo, que estudou na PUC e hoje mora em Israel, feliz, Mirian, que mora aqui em São Paulo e é pedagoga, trabalha com crianças bem pequenas e o Renato é físico nuclear, trabalha com medicina nuclear. Então, cada um se virou ali.
P/1 – E você é o último, o primeiro, o do meio?
R – O primeiro.
P/1 – Você é o primeiro?
R – Que é um problema, né?
P/1 – Por quê?
R – Você se sente sempre cobrado, né? Você tem que ser o exemplo.
P/1 – Então me conta um pouco dessa sua infância, como era?
R – Ah, tem um lugar da minha infância que fez a narrativa da minha vida, né? Eu sempre fui ansioso, não ansioso... Ansioso no sentido de achar que a catástrofe faz parte do cotidiano. Toda a minha vida eu fui ansioso, tinha uma festa que meu pai ia, minha mãe ia, eu achava que não iam voltar, eu achava que eu não ia sobreviver nunca porque eu nunca ganharia dinheiro, eu achava que eu nunca teria competência para nada.
P/1 – E desde quando você tem essa sensação com você?
R – Ah... De muito pequeno. Isso se confundiu ou se juntou com déficit de atenção, hiperatividade, mas eu hoje... Eu tive diagnóstico de hiperatividade, mas eu acho que a ansiedade era mais forte, porque a ansiedade, o que é a ansiedade? A ansiedade não é você estar “bãã”, ansiedade é você achar que existe um inimigo que vai te atacar a qualquer hora, isso é um inferno. Isso é um inferno nessa idade, uma das piores coisas que alguém pode sentir.
P/1 – Você lembra disso na infância? Me conta, assim, alguma situação, alguma história especifica onde você lembra disso super forte?
R – Eram sonhos, era vendo pessoas. Era esse medo da família não voltar de uma festa.
P/1 – E na escola, me conta sua escola?
R – E na escola era uma tragédia, porque ansiedade você não presta atenção. Eu sempre fui um aluno horrível para os padrões deles, né? A escola, eu estudava em escola chamada I. L. Peretz.
P/1 – Você estudava em escola judaica?
R – É. E os judeus tem uma tradição conteudista, né? Você tem que aprender e eu não conseguia. Não conseguia fazer força. Passava o ano, né? Passava o ano, mas eu não conseguia. Era uma tortura.
P/1 – Ir para escola era uma tortura?
R – Você tinha amigos?
P/1 – Tinha. Mas eu nunca fui de amigos, sempre fui meio melancólico, não tinha amigos, assim. Era muito por causa disso, porque eu achava que a vida era difícil por causa da ansiedade, sabe? E que qualquer coisa que eu enfiasse a mão, ia dar errado. Eu só fui sacar isso muito tempo depois, os efeitos da ansiedade. Você está sempre atento ao ruim. Por exemplo, quando eu ia transar eu tinha ejaculação precoce, porque eu estava lá, mas estava com... Você sempre acha que vai ter uma cagada grande. Morte dos pais... E prosseguiu com os filhos. Quando nasceram os meus filhos foi uma felicidade imensa, mas eu falava assim: “Como que eu vou aguentar a ansiedade com eles?”.
P/1 – Então você já tinha essa relação com você mesmo? Você se sentia amado? Sua relação com seus pais como era?
R – Meu pai, não, minha mãe, sim. Era Belém, Belém era referência, meu avô era referência.
P/1 - Você ia passar férias lá?
R – Era uma espécie de antídoto, porque você chega, meu pai todo certinho. Aí você chega com... Eu desligado, porque a ansiedade você fica assim. Aí vinha os boletins.
P/1 – E aí, o que ele fazia?
R – Não acreditava, era desprezo. Eu tive que perdoá-lo, o papel de entender era meu, não dele. Então, mas por exemplo, tudo que acontecia (nasceu meu neto. E eu já melhorei muito, com remédio, só com terapia não deu, a médica falou: “Gilberto, só com terapia você não resolve, pode esquecer”. Aí eu tomei uma coisa que eu preciso indicar o inventor para o Prêmio Nobel da Paz, é um depressivo, mas que tem efeitos ansiolíticos chamado Lexapro, passou seis meses eu me senti assim, olha: [assopra indicando alívio]. Eu continuo, mas, por exemplo, quando os meninos viajavam, eu achava que eu não ia vê-los de novo. Quando meus pais viajavam, eu não ia ver de novo. E quando eu viajava, eu achava que também não ia vê-los de novo. Aí ficava ligando todo dia para saber se eles estavam bem. Loucura! Puts, chegou um dia que eu falei assim: “Eu não vou viajar mais”. Eu viajava muito a trabalho, mas eu viajava e era como eu conhecia Roma, Nova York, Paris, Berlim, eu conheci boa parte do mundo assim, Tóquio, trabalhando. Foi onde eu falei assim: “Eu não vou viajar mais, que viajar me deixa nesse estado de ansiedade, eu acho que eu vou voltar para casa”. E quando os meninos viajavam, eu ficava louco porque eu não tinha contato. Eu não tinha contato. “Meu Deus do céu, eu não estou tendo contato”. Tem uma coisa que eu tenho uma habilidade, eu posso falar isso, porque é reconhecida, não é só meu, que é repórter investigativo, né? Fiz várias reportagens que tiveram impacto mundial. Quando eu me desesperava, eu conseguia achar meu filho lá na puta que pariu, entendeu? O que eu vou falar? Lá na puta que pariu. Aí achava, achava a prefeitura, depois da prefeitura achava... (risos). Hoje eu rio disso daí, mas era ridículo. Ás vezes tinha que voltar mais cedo para encontrar o Gabriel e deixava almoços importantes. Louco! Louco! Louco! Isso eu defino como louco.
P/1 – Mas então isso já estava dentro de você quando você era criança?
R – Já, foi piorando.
P/1 – Então, assim, você passou pela escola, você tem alguma coisa da escola que te marcou?
R – A escola marcava porque ela tinha, independente da Matemática, Química, Biologia, tal, conteúdos culturais, escola judia, né? Tinha muitos conteúdos culturais, muitos conteúdos de teatro, cinema, de filosofia, de psicologia, era uma escola muito avançada nisso.
P/1 – E isso você se ligava?
R – Muito, pois eu me lembro até hoje.
P/1 – Então você lia?
R – Lia.
P/1 – Me conta essa sua vida com livro? Como era?
R – Eu lia muito. Minha cultura vem... Eu só não ferrei de tudo porque eu lia muito. Eu lia muito romances. Eu lembro que o primeiro romance que eu li, eu chorei.
P/1 – Qual foi?
R – O primeiro romance que eu li e chorei, precisão, foi “Meu pé de laranja lima”. Foi a primeira vez que a arte me tocou. Filmes, o primeiro filme que eu vi e chorei chamava “Casinha Pequenina” de Mazzaropi, porque era um filme que eu me toquei com a solidão, eu me identifiquei com a solidão dele, a cena final. Acontece que uma tia minha - era uma festa de aniversário ir no cinema -, deixou para mim um pacotinho de, uma coisa que eu descobri que acabou, Drops Dulcora cereja, enquanto eu chorava, eu ia [gesticula como se tivesse comendo], eu comendo Drops Dulcora cereja. Se alguém pudesse falar assim: “O que você faria no último momento da sua vida?”. Era chupar um Drops Dulcora cereja (risos). Sabe? Ah, mas eu já lia livros sérios sobre a questão de Israel.
P/1 – Isso com quantos anos você começou a entrar na história dos livros?
R – Onze anos.
P/1 – Onze? E quem te trouxe isso, quem foi o personagem que te introduziu a leitura?
R – A minha mãe insistia muito com a leitura, minha mãe insistia muito, depois foi... Eu hoje eu sou meio caipira, eu acho, sabe? Porque eu lia todos escritores argentinos, os escritores estrangeiros morando em Londres e nos Estados Unidos. Hoje eu sou caipira, eu sabia de tudo, eu sabia de tudo. Aí eu foquei em uma cultura meio de rua, porque depois eu virei um moleque de rua, adorava conversar com as prostitutas, eu não comia, adorava conversar com as prostitutas, achavam que elas tinham muito... Depois eu fui saber que isso virou uma temática minha jornalística, das pessoas marginalizadas, né? Que tem um projeto a resolver. Eu me lembro que uma vez, eu estava conversando com uma prostituta que ela tinha uma conversa muito legal, elas têm muito ensinamento de vida, quem sofre tem muito ensinamento de vida, quem não sofre, não, pode ler o que quiser. Aí ela falou assim: “Gilberto, eu posso dormir na sua casa?”. “É claro”. Eu só tinha uma cama em casa, tinha um quarto e sala no Bexiga, quando Bexiga era o auge da... Ela dormiu, acordou, eu acordei, ela falou assim: “Posso te fazer uma pergunta?”. “Pode”. “Você é viado?” (risos). Porque eu não comi ela, né? Eu falei: “Não, são situações diferentes”. A relação dela com sexo é uma, eu não tenho essa... Eu não me sinto bem. “Você é viado?”. Eu falei: “Não, por quê?”. “Não entendi isso, você não me comeu”. Achava inimaginável que um homem... Mas se eu como, eu perco a relação de amizade pelo sexo estar ligado à funcionalidade. O que eu estava falando?
P/1 – A gente chegou aí, mas a gente estava falando da leitura...
R – Então, a leitura e também teve uma coisa muito importante na minha vida que foi o Movimento Juvenil Judaico.
P/1 – Que foi qual movimento que você participou?
R – Da CIP (Congregação Israelita Paulista), né? Esse eu não podia deixar de lembrar, porque ali foi mais importante que a escola para mim. A CIP foi muito mais importante que a escola, porque sempre tinha debates, sempre tinha. Aquela coisa de Israel pegando fogo, de Guerra e tal, Guerra Fria. Naquela época, no tempo que eu passei, você tinha Vietnã, você tinha mais para baixo, Biafra, Camboja. O mundo todo era em convulsão, então foram muitos livros ou livros importantes para poder entender o seu entorno. Até hoje, hoje, para mim, o mundo é o meu mundo. Eu me sinto um brasileiro, ok e tal. Mas eu me sinto que eu acordo de manhã e leio jornais em inglês, os principais jornais ingleses, depois eu leio em português. Até porque nessa época, quando fala a palavra Bolsonaro eu fico terrível, eu acho que estou com prisão de ventre por causa do Bolsonaro, eu estou a quatro dias sem ir no banheiro. Eu acho terrível, eu acho a coisa mais nojenta que eu já vi em toda a minha existência de repórter, tenho 63, tenho nojo de olhar para cara dele, tem uma parte do cabelinho assim. Eu nunca pensei na minha vida que esse cara tão desqualificado ia ser presidente do Brasil. Mas voltando ao livro, foi assim, tinha CIP.
P/1 – CIP que era aquele movimento que você ia aos sábados?
R – Sábado, às vezes domingos, você não saia. Sempre tinha atividades culturais, sempre tinha comentários de livros.
P/1 – Nessa época, nós estamos falando de quê, você estava com uns 15 anos, 16?
R – Não, não.
P/1 – Treze?
R – Doze, eu acho.
P/1 – Ah, desde pequeno você ia?
R – Na minha casa se lia muito, minha mãe lia muito, meu pai não. Na minha casa se lia muito.
P/1 – Seus irmãos também?
R – Meus irmãos também. A gente logo pegou inglês, né? Que não fala até hoje, mas de qualquer forma (risos). Toda a vida , eu sempre me virava. Mas isso eu acabei indo para das melhores escolas americanas, né? Olha como eu estou caprichado, porque se você fala assim “das duas melhores” você acha que são duas das melhores e eu passei um tempo em Columbia, três anos, dois anos e meio e passei um tempo em Harvard. A Columbia eu cagava muito, mas Harvard eu levei a sério. Eu levei tão a sério que a universidade fez um dossiê sobre mim.
P/1 – E foi bom para você ter ido lá?
R – Foi. Eu descobri de verdade o que é excelência. O que é excelência. Lá excelência você encontra no banheiro. Eu lembro que um amigo falou uma frase tão engraçada, ele falou assim: “Gilberto, aqui é o lugar que você vai no banheiro e encontra um Prêmio Nobel”. E aconteceu comigo, eu fui no banheiro e encontrei o Desmond Tutu mijando e com o pau muito maior do que o meu (risos). Eu falei: “Porra, que sacanagem”. E era assim, onde você andava... Um dia, eu estava em uma festa, estava uns chineses muito engraçados, né? Eu falei: “O que está fazendo aqui?”. Ele falou assim: “Ah, agora eu estou fazendo uma bobagem, eu quero fazer uma pesquisa nova”. Eu falei: “Que bobagem?”. Ele era da matina. Ele falou assim: “Ah, o que estou fazendo agora é que na China tem muito remédio falsificado, eu inventei um aplicativo que mostra se ele é falsificado”. Eu falei: “E você acha isso bobagem, meu?”. “É que não tem a dimensão que eu quero”. Teve uma vez que eu estava indo embora e perguntei para um garoto indiano que estava lá, daqueles geniozinhos, eu falei: “O que você aprendeu aqui?”. “Ah, eu aprendi que aqui o céu não é o limite, é apenas o começo”. Indiano, danado. Um belo dia o homem mais rico do Brasil me convidou para ir em uma aula com ele lá em Harvard, o Jorge Paulo Lemann, ficamos na aula, tal, ele dormiu, né? Ficamos na aula de Economia. Aí acabou a aula, surpreendentemente, desce a reitora de Harvard, que é uma pessoa de uma importância planetária, Drew Faust. Ela desce lá e tinha uma recepção para ele, que era um grande doador de Harvard, grande doador. Lá em Harvard você tem pedófilo, assassino, o que for, megalomaníaco, mas você não tem leso.
P/1 – Você não tem?
R – Leso, leso é...
P/1 – Sim.
R – Não tem [faz cara de bobo]. Aí o Jorge Paulo me apresentou a ela, então ela, como o Jorge Paulo é doador, ela tinha que dar alguma deferência. Aí ela falou assim: “Gilberto, o que você está aprendendo aqui em Harvard?”. Aí eu falei é a minha chance de mostrar que eu não sou leso, aí eu falei: “Olha, eu estou aprendendo que aqui o céu não é o limite, apenas o começo”. Abriu o olho dela assim, eu falei: “Eu sou um gênio” (risos). Serei categorizado como gênio. Aí ela falou assim: “Eu posso ‘to quote you?’”. Quote é... I’m gonna quote you, can I? Quote é parágrafo.
P/1 – Citar.
R – Citação. Aí eu falei assim: “Olha, eu lamento informar, mas a senhora não pode me quotar, porque quem falou essa frase foi um indianozinho lá da matemática do MIT, então eu lhe dou o nome dele, você vai procurar, que eu vou passar o nome”. Então, eu só fui me livrando do estigma do mau aluno só na faculdade e mais importante: trabalhando. Tudo que exige essa coisa, assim, ler e escrever, tal. Quando eu virei jornalista, aconteceu o que a gente chama de epifania, né? Que apareceu uma primavera dentro dos meus dedos, aquilo foi a minha explosão de talento. Eu não acreditava, não acreditava que era eu. Eu achava que tinha algum ser estranho lá fazendo coisas. Engraçado, dá uma insegurança, né? Eu falei: “E quando esse cara for embora? Eu estou fodido”. Eu tinha essa sensação de que tinha alguém lá dentro, eu comecei a ganhar prêmio e mais prêmio, prêmio e mais prêmios, livros, reconhecimento no exterior, prêmios no exterior, tal. Eu falava: “Não sou eu, não sou eu isso daqui”. Para quem teve a vida escolar toda a vida um fracasso, né? Era tido como um fracasso?
P/1 – Na faculdade de jornalismo... Você fez jornalismo, né?
R – É, na faculdade ainda não aparecia, mas eu já comecei a me sentir em casa. Comecei a me sentir em casa, porque eu não tirava notas ruins e tal, era fácil, era fácil. Aí quando eu fui trabalhar...
P/1 – Seu primeiro trabalho como jornalista foi?
R – Foi na Shalom, revista judaica. Depois foi no "O Globo", depois foi Jornal do Brasil, depois foi Folha, aí fiquei na Folha um tempão e foi lá que eu fiz grandes trabalhos. Apesar de no O Globo e JB, a gente ter ganho muitos prêmios, tal, mas onde eu fiz grandes trabalhos foi lá na Folha. E da Folha eu fui para Columbia, da Folha eu fui para Harvard. Na Folha, muitas matérias geraram livros: assassinatos de meninas, exploração sexual de meninas, corrupção, eu era um detetive, quase, com jornalista, como eu sabia escrever...Você sabe que eu aprendi escrever sem erro de português adulto?
P/1 – Trabalhando como jornalista?
R – E a pessoa dizendo, está errado aqui, aí eu me esforcei para aprender. E meu remédio foi tascar algumas coisas na veia: Clarice Lispector, Machado de Assis e o Rubem Braga, que era um cronista incrível, também tinha outro que morreu agora, o Rubinho Fonseca. Me forçava, lia, tal, incrível isso. Porque, na verdade, era melhor eu ter um tutor do que ter um professor, né?
P/1 – É. Eu vou voltar a sua vivência nisso, seu trabalho com educação, mas antes eu posso voltar com você em uma coisa?
R – Claro.
P/1 – Queria falar da sua vida amorosa, mas lá na adolescência, assim, como é que você inseguro, ansioso... Como é que foi o começo dessa sua vida com menina? Me conta a sua lembrança sobre? Não sei se é o amor ou sexo...
R – Ela foi piorando a minha vida amorosa, né?
P/1 – Mas você lembra desse seu início? Como é que era? Me conta essa história.
R – Meu início foi com uma menina chamada Tamara . Meu encontro foi na Ilha de Mosqueiro com uma menina chamada Mônica Nicolau da Costa, engraçadíssima, eu tive uma paixão enorme por ela. E a Mônica, além de ser engraçada e tal, depois ela virou uma puta artista plástica. A minha relação com ela era tão profunda que muitos anos depois, eu a encontrei por acaso lá em Nova York, foi o mesmo lugar que a gente passou um tempo, muitos anos depois. Ela foi a primeira paixão, mas não aconteceu nada. A segunda foi com uma menina judia chamada, judia não, não era judia, chamava Tamara, tinha uma coisa de tesão e tal. Mas eu já tinha essa coisa da ejaculação precoce.
P/1 – Você sabia o que era ejaculação precoce? Como é que ficou, assim?
R – Sabia, porque era muito rápido e frustrante. Tinha um sexo frustrante. Mas aí veio a grande paixão da minha vida que chamava Betty Birger, que é uma advogada... Arquiteta. E com ela não teve mais ejaculação precoce e a gente foi junto para Israel. Essa ficou por muito tempo.
P/1 – Essa foi sua namorada? Vocês foram com...
R – Ela foi em um avião e eu fui em outro. A gente era convidado a trabalhar lá, você não ia de graça, você tinha que trabalhar, tinha que trabalhar em várias coisas. Aí foi gigantesco, foi uma paixão enlouquecedora, depois que a gente separou, eu fiquei sem... Só bico. Aí entrei em uma fase péssima, né? Que eu acho que eu desenvolvi, acho não, eu desenvolvi, a pior coisa da minha vida que foi obsessão sexual.
P/1 – Tipo, explica?
R – Tipo comer três mulheres durante um dia, quatro.
P/1 – Mas como era, me explica exatamente como você consegue comer quatro mulheres no mesmo dia? (risos).
R – É uma boa pergunta, é uma boa pergunta.
P/1 – Tá, então me explica, assim, concretamente.
R – Quatro nem sempre, né, mas...
P/1 – Tá, mas o que era isso uma obsessão sexual? Você acordava...
R – Se você não gozar, você não se aquieta. Muito parecido com drogas, a minha psiquiatra explicou que é no mesmo campo da cocaína, das drogas, do vício. É vício, vício... Ou do alcoolismo. Então, como é? O importante não é usar, o importante é agarrar a vítima, sabe?
P/1 – Era isso que te dava? Você olhava e “eu preciso”...?
R – Você já tinha... Para você ter o assédio sexual e não ser preso, você pode ser preso, né? Você tem que ter o circuito montado de mulheres com algum problema que topam transar a qualquer hora. E sempre tem mais de cinco, nunca faltava, entendeu? Então, faltava, você saia na rua que nem louco para achar uma pessoa, quando todas as pessoas conhecidas estavam...
P/1 – Tipo, Gilberto, você acordava de manhã, você já estava adulto, ia trabalhar? Isso é depois de adulto?
R – Ia, mas aí você aproveitava o horário do almoço.
P/1 – Aí você ligava para alguém.
R – Você aproveitava o fim do trabalho, você aproveitava o começo da noite, você aproveitava a madrugada, horrível, puts, é horrível, é uma degradação. Por que como é que faz a minha cabeça que é sensível, assim, com o outro, está preocupada com a menina da Nigéria e trata as mulheres assim?
P/1 – Mas você tinha esse conflito ou não?
R – Muito. Eu fui fazer terapia por causa disso, foi essa a única motivação que me levou a fazer a terapia, porque tinha perdido o controle de mim mesmo e me sentia traidor de mim mesmo. Era horrível. Em Nova York, então. Nova York era uma coisa, porque Nova York você come o mundo todo se você quiser, a cidade é muito solteira, né? Naquela época, ainda era atlético, tudo. Eu lembro que eu aprendi a palavra “go”, o sentido mais diferente dela é em Nova York. Muito engraçado, era uma menina que chamava Lexa, de família grega, a gente saía sempre, porque era muito inteligente, jornalista, ajudava ela fazer o livro. A gente estava transando ela começou a gritar a primeira vez: “I’m going, i’m going”. “Goint to where? Whats happening? Tell me”. Going também significa gozar, aí ela caiu no riso. Nova York foi quando eu conheci a Ana, mas Nova York foi horrível, porque...
P/1 – Mas você casou antes de conhecer a Ana?
R – Eu estava casado com a Âmbar, mas a Âmbar me deixou sozinho lá em Nova York, estava certa ela. Aí tinha um apartamento vazio com uma governanta, imagine o que é isso?
P/1 – Você tinha um apartamento vazio com uma governanta?
R – [assente] Em Nova York, eu morava em Nova York.
P/1 – Eu preciso entender melhor, posso?
R – Eu morava em Nova York.
P/1- Tá, você morava em Nova York. Antes de ir para Nova York, você casou aqui...
R – Com a Âmbar...
P/1 – Isso não tinha antes, essa obsessão sexual?
R – Tinha.
P/1 – Quando você casou com a Âmbar você já tinha. Você pode me contar esse início do casamento com a Âmbar?
R – A Âmbar é uma pessoa extraordinária, eu acho extraordinária, ela é muito melhor do que eu, até agora a gente teve um diálogo que foi maravilhoso, porque agora tudo recompôs, né? Eu falei: “Âmbar, eu estou ligando para pessoas para pedir desculpa, eu acho que eu não fui legal com você”. Ela falou assim: “Eu também tenho arrependimento”. Eu falei: “Qual?”. “Em não ter te dado um tapa na cara”. Aí eu falei: “Olha, você perdeu a chance, porque se você bater agora, você vai estar batendo em um velho canceroso” (risos). Eu não sabia como... (tosse). Eu te juro, não é sexualidade, é uma doença que nem o álcool.
P/1 – Mas isso começou com você quando? A gente estava nas suas primeiras experiências?
R – Eu acho que começou na faculdade, assim, eu não lembro exatamente. Eu não tinha isso, mas eu me lembro que está associado à ejaculação precoce, você sente uma frustração onde você tenta curar essa frustração. Virou uma obsessão mesmo. Eu não tinha... Não sabia como tratar, o homem não é que nem a mulher, a mulher ela lê a revista Claudia, sei lá, outra revista, tem depoimentos, tipo: “Minha terrível vida sexual”, ela conta tudo ali, homem não tem, você já viu uma revista de homem? Tipo: “Ah, meu pau é pequeno, me sinto complexado”. Você já viu isso? Não tem. Então não tem uma comunidade masculina capaz de falar os seus problemas, só sei que quando eu me casei, eu tinha também. A gente casou em Brasília, né? Casou não, ficou morando em Brasília, né? E Brasília é outra cidade que é o mesmo estilo de relação.
P/1 – Com as mulheres, você diz?
R – Eu já tinha essa coisa em Brasília, morando em Brasília. É a pior parte da minha vida essa, não tem nada pior.
P/1 – Ter vivido isso, você diz?
R – Tantos anos de degradação, de mentira e não respeitar as pessoas. Eu acho o seguinte, quando eu morrer, Deus vai pegar uma tabuazinha assim: “Olha, Gilberto, na parte social 6, na parte de sexo e as mulheres 4, vai dar 5, você vai entrar raspando aqui no paraíso” (risos). Ah, e usava pensamentos religiosos cretinos para justificar. É o lado negro da minha vida. Negro mesmo. Você acordar de manhã com aquele cheiro de álcool.
P/1 – Por que aí você misturava o sexo com álcool?
R – Muito álcool. Por que? Porque o álcool mais o sexo tirava a ansiedade, pode ser por meia hora, tirava a ansiedade, você ficava sem nenhuma ansiedade, mas quando vinha o troco, era forte, porque você acordava de madrugada, né? O álcool faz isso, o álcool não te deixa dormir, isso já é conhecimento científico balizado, né? Não deixa dormir. Eu passei muito tempo vivendo a seguinte dicotomia: fazendo trabalhos sociais lindos, arrecadando dinheiro, criei várias ONG’s para defender a criança, defender Direitos Humanos e também aquela outra vida.
P/1 – Ao mesmo tempo você ficou vivendo essas duas coisas?
R – Eu achava absurdo.
P/1 – Você achava?
R – Achava. Eu sempre achei a monogamia um absurdo, acho que a monogamia não funciona em uma situação normal, né? Mas ser galinheiro, não.
P/1 – Então, pera aí, assim, seu casamento com a Âmbar não era um acordo monogâmico? Já tinha lá esse acordo?
R – Eu pensava que sim, mas depois eu descobri que não.
P/1 – Como assim?
R – Eu pensava que ela lidaria bem com isso, mas o erro foi meu, porque quando não tem isso, quando você não quer ser monogâmico, você tem que começar desde o começo, explicar, explicar, olha: “Não casarei se não for assim”. Eu acho que eu não expliquei. Mas aí sumiu. Sumiu com três coisas: Lexapro, terapia e a Ana.
P/1 – Aí você...
R – Não senti mais vontade, me completava tanto que eu parei. E agora com a doença, então, eu descobri o amor. Eu não sabia o que era amor de verdade, foi a grande descoberta da doença, foi que você pode amar profundamente uma pessoa. Você pode amar profundamente uma pessoa. Eu vi que o amor é construído com uma base em cumplicidade, eu nunca imaginei que eu fosse ter uma mulher do meu lado em uma situação como essa, nunca, nunca imaginei, nunca imaginei. Você não sabe o que é ter câncer, febre o tempo todo, calafrio, vômito, diarreia. É uma coisa. E ela estava ali mais engajada do que eu, porque tenho memória curta, a minha memória não funciona bem, ela sabe meus remédios todos, ela... Isso eu não posso falar, mas depois, passado eu falo. Ela ia ao médico ver o que ele estava dizendo. O que foi o amor? Foi descobrir o prazer de um toque, dormir abraçado, acordar com um sorriso. Eu não tinha mais isso, nem com ela. Por isso que eu digo que o câncer pode te ensinar o amor à vida, que a vida não te ensina. Naquela hora que você está assim [levanta os braços], a mão caindo, sabe? Tem a noção do que a vida tem que ser amada. Esse jardim aqui, por exemplo, ele é um poço de cheiros. Tem aquelas Helicônias lá. Tem... O Moro pediu demissão.
P/1 – O Moro pediu demissão?
R – São onze horas?
P/1 – Era agora?
P/2 – Meio dia, dez para meio dia.
R – Então, eu descobri o amor velho. Estou falando sério. Eu gostava da Ana, amava a Ana, mas é outra coisa, é outra coisa. É o amor em que é cúmplice em qualquer situação. E de noite, eu abraço ela assim e como eu tenho muito calafrio, ela me abraça, é uma coisa, é Deus te abraçando, sabe? A delicadeza com que ela tenta entender minha alimentação que fodeu, né? Você não tem fome nenhuma. Se você falar: “Gilberto, você vai passar três dias sem comer”. Eu agradeço, eu agradeço. Eu descobri o amor de um jeito que eu jamais imaginava. E outra coisa, eu estou broxa. Então o amor e o sexo separaram, eu estou 100% broxa, 100% broxa, faz nove meses que os remédios te tiram a ereção, mas não é que de vez em quando o teu pau sobe, não sobe nunca. Eu fiz um teste comigo que eu peguei o filme da Ana Maria Braga “Dona Flor e seus dois maridos”.
P/1 – Sônia Braga.
R – O que eu falei?
P/1 – Ana Maria Braga (risos). O oposto da Dona Flor, eu não quero ofender não, mas essa (risos).
R – Aí não sobe mesmo.
P/1 – Não vai subir nunca (risos).
R – Ana Maria Braga... Sônia Braga, é o filme que ela está mais gostosa, eu acho, é o “Dona Flor e seus dois maridos”. A Sônia era nosso padrão, para os jovenzinhos, puts, era a mulher brasileira na sua acepção mais perfeita. Aí eu vi e é como se eu tivesse vendo um documentário sobre as abelhas africanas no Zimbábue, não senti nada. E, justamente, não sentir nada significou ampliar a noção do amor, eu estou falando e estou parecendo um padre (risos). Estou parecendo um padre, mas é isso que eu sinto. E esse final, por que eu comecei daquele jeito? Olha, eu preciso falar 30 segundos, é porque não dá para entender essa visão de mundo sem entender esse meu fim. É possível falar uma coisa sem gravar?
P/2 – Depois a gente tira.
R – Não, eu quero que pare.
P/1 – Mas eu acho que a gente pode falar mais um pouco para o final da própria morte, mas eu queria falar um pouco agora do seu trabalho, das suas vivências mais importantes no trabalho, nas coisas que, como você foi entrando, vou retomar daqui e você foi dizendo “Cheguei em casa” quando entrou no jornalismo, né? Então você não precisa me descrever pontualmente, porque sei que isso tem documentado, mas um pouco desse seu processo, das suas principais motivações...
R – Eu te falei da pior parte da minha vida, né? Que era essa aqui. Mas agora eu te falo da melhor parte da minha vida que foi transformar o jornalismo em uma ação social de alto impacto. Ela operou basicamente em basicamente em dois eixos, o primeiro eixo a Folha, sem dúvida, que era muito influente e acho que ao mesmo tempo foi o Jornal do Brasil, mas muito menos. O que eu falo transformar? Porque tinha uma vida muito segura, tipo Jornal do Brasil que você cobria política, você tinha todas as fontes, você falava com o presidente, com o ministro, que era uma coisa meio manjada, assim. Mas era jornalista típico de Brasília com suas fontes, seus valores. Mas aí o que vem de importante é justamente as matérias que eu consigo fazer na Folha. Eu já tinha... Foi um jeito engraçado de fazer matéria, porque em uma delas, “A guerra dos meninos” que eu fiz com a Folha, mas eu tirei férias longas para o jornal não me incomodar, ou seja, eu não queria que o jornalismo incomodasse o jornalista. Aí saí um livro que realmente a Unicef me deu dinheiro, saí o livro que era inusitado no Brasil, no exterior, chamado “Guerra dos meninos”, ele documentava o assassinato de crianças no Brasil que não tinha nenhum documento. Esse livro eu tive que percorrer as periferias, percorrer os bairros, percorrer prisões e percorrer o Brasil, percorri umas dez cidades brasileiras para poder afirmar com toda a certeza que havia um extermínio sistemático no Brasil. Eu dei o nome das fontes, eu dei o nome dos assassinos. Antes desse livro sair, eu fiz a reportagem e teve impacto gigantesco, não só no Brasil, no mundo todo. Eu fui traduzido para o japonês, para o inglês, para o italiano, para o francês. Eu fui chamado para falar na Itália, falar nos Estados Unidos. Aí eu senti o impacto de um jornalismo que é comunitário, sabe? Que é voltado à comunidade, que não é voltado ao poder, isso é um choque terrível, né? Tremendo, né?
P/1 – Foi para você?
R – Essa percepção de que é esse jornalismo que agarra meu coração. Eu uma vez aprendi que a palavra vocação vem do latim “vocare”. Eu falei: “Gilberto, aqui está o teu chamamento, nada que você fez no passado, é apenas parte do chamamento”. Quando eu vi aquele livro lançado mundialmente, New York Times, The Washington Post, quando eu vi discussões sobre como acabar com isso no Congresso. O que era legal, é que eu já tinha uma notoriedade de repórter político e eu podia usar a minha coluna para promover esse material. Eu via todo mundo falando: “Que absurdo, tem que fazer alguma coisa”, aí criaram as CPI’s no Congresso, aquilo que era um assunto inexistente, virou um assunto existente, é muito forte isso, porque não passa, não vai embora. É um assunto que não vai embora, se é um assunto que passa a ser existente, ele passa a nunca mais sair das pautas. Logo depois desse assunto, eu tive matéria de mais repercussão, mas de não mais importância, não tanta importância. Praticamente, a gente ajudou a acabar com o Collor, né? E bem antes dele ser suspeito. Aí veio um outro desafio, eu ganhei uma verba de uma instituição importante americana chamada Fundação MacArthur, 150 mil dólares para fazer alguma coisa que eu achasse importante. Mas como recebi essa ligação no sábado, eu estava bêbado em Brasília, eu falei: “Olha, eu tenho um assunto, mas não é para eu fazer, é um assunto sobre exploração sexual de meninas”. “Olha, esse assunto é maravilhoso”. “Mas deixa eu descobrir uma mulher, vocês dão o dinheiro para ela fazer”. E nenhuma mulher teve coragem de ir. Coragem, vontade de entrar nesse assunto. Aí foi uma reportagem que durou um ano.
P/1 – E como foi? E como você começava? Me conta um pouco do trabalho em sim como foi.
R – Como foi? No caso dessas meninas, em alguns casos eu tinha que me fantasiar de médico, comerciante, qualquer coisa, se não eu... Você morre, porque elas são controladas por... Porque exploração sexual, quando você fala aqui em São Paulo, pode ser beijo, não, elas moravam em cárceres, prisões mesmo e entravam nas prisões.
P/1 – Em Brasília?
R – Interior da Amazônia, lugar que não dava para ir a pé, até para ir de barco eram três, quatro dias. Aí eu fui pegando vários desses lugares, a partir daí fui pegando depoimentos de outras meninas que já não estavam mais em prisão. Mas aí tive que percorrer também outras partes do nordeste, Rondônia, no Pará também, Belém. E era engraçado que o avião balançava muito, balançava mesmo, tanto que não tinha nem mais cinto de segurança. Eu falei para o piloto: “Ô, moço, diz uma coisa aqui, esse avião balança tanto, mas não tem nem cinto de segurança”. “Sabe o que é? A pessoa fica com tanto medo que agarra e quebra”. Ele desistiu de repor (risos). Aí eu tenho uma letra muito ruim, muito ruim, mas ali eu fazia uma letra bem caprichada, quase letra de moça, sabe? Eu falava assim: “Se esse avião cair ou qualquer coisa acontecer, vai dar para ler esse diário dessa reportagem”. Engraçado, que eu senti “Quando isso daqui sair, eu vou ser nome no mundo inteiro...”. Eu tinha aquela coisa do canalha, né? Jornalista. “... Eu vou ser nome no mundo inteiro”. Bem do canalha... Jornalista é formado assim, não é? Mas também quando sair, como anda esse negócio de meninas, de prostituição, América Latina, ia ter aquela reunião lá de 2002, quando teve a reunião do meio ambiente, o Brasil ia estar no meio, dito e feito, fez... Aí a primeira coisa que aconteceu foi que libertaram as meninas, a polícia. E os caras lá não tinham noção de que era errado, eles falavam: “Elas me devem esse dinheiro, eu dei casa, comida, me devem esse dinheiro”. E trouxe o segundo assunto para agenda, esse com mais “charme” jornalístico.
P/1 – Por quê?
R – Menina e sexo. Menina e sexo.
P/1 – E o que você sentiu? Você entrevistou as meninas? Você ia como cliente? Como você chegou nelas?
R – Eu ia como cliente, e, às vezes, eu ia como médico.
P/1 – Aí em que momento você dizia: “Eu não sou isso, eu quero te entrevistar”. Você não dizia nada? Você ia coletando?
R – Nada, nada, nada. Até foi engraçado porque eu tinha que devolver o dinheiro, eu fui o único caso de ter que devolver o dinheiro e na prestação eu coloquei que eu dava dinheiro para as meninas, os americanos acharam horroroso isso, eu falei: “Vem cá? Elas ganham com o tempo delas, eu estou tomando o tempo delas, por que eu não tenho que pagar?”. Achava óbvio e também achava que em vez de dar para uma fundação milionária, era dar para elas, achei a melhor função. Mas você sabe que você inventa um pouco na hora? Você vê qual o caminho, é muito sutil e você não consegue prever muito o que vai acontecer, então você vai tirando.
P/1 – Qual é a sua impressão, nessa época, com a menina, você está com a menina, o que você na conversa da vida o que você percebeu?
R – Ah, tudo. Uma visão terrível de marginalidade como você não imagina, que mistura doenças, mistura abandono, mistura uma violência cotidiana, mistura desestruturação familiar, é uma perversidade imensa, destruir às vezes a família abusando dela para se prostituir para trazer dinheiro para casa. É a ponta mais supurada do prazer. Eu nunca vi nada parecido. Quando eu sai dos meninos, quando eu sai das meninas, eu achava que o Brasil não ia dar certo, só por causa dessa visão. Mas por outro lado, eu não queria fazer um livro pessimista, eu não gosto de fazer coisa nada pessimista. Eu entrevistei muitas pessoas trabalhando com elas, muitas pessoas trabalhando, fazendo, com energias maravilhosas. Porque você... Tem até um ditado em hindu que é tão interessante que é aquela pessoa flor do pântano. Eu encontrei várias flores do pântano e eu descobri que as melhores pessoas estão nos piores lugares. Engraçado, né? Parece uma compensação biológica do lóbulo branco, né? Que tem que produzir anticorpos para o sangue. Mas é muito grave, porque também você tinha uma visão marginal do mundo, aquela conversa, apesar da distância social, me era normal. Eu conseguia entender o que elas sentiam. E incrível que eu consegui falar com elas, porque não é fácil. Eu falava com elas, olhava no olho, elas viam e batiam, viam que era verdade mesmo. As histórias mais incríveis do planeta, as histórias mais incríveis do planeta. Uma menina perguntou: “Vem cá, no céu tem pão?”. Uma outra falou assim para mim: “Ô, moço, a gente pode renascer? Eu posso morrer aqui e voltar?”. A incapacidade de lidar com a vida total mais, né? Isso era o tempo todo, um garoto falava assim: “Eu sou que nem um vento, nada me controla”. Como se a vida dele não tivesse... Se ouve coisas que um poeta não ouviria, não teria sacado. Quase muita coisa poética no meio do caminho. Mas é muita loucura, cara de trinta anos estuprando uma garota de dois e a mãe da garota aceitando. É assim, é assim, é assim. Aí o que acontece? O lado bom do Gilberto aparece, agora a minha missão é que isso incomode esses caras, prenda esses caras, o lado bom. O lado bom, o lado que fala assim: “Agora, Gilberto, não brinca com esse assunto, você vai ter que acabar com isso nem que você morra”. Você lida com esquadrões, né? Então tinha essa condição: nem que você morra, você vai ter que resolver isso. Resolvia em parte, uns eram presos e o que é mais importante é que se criaram CPI’s municipais, estaduais e federais, não é a melhor solução, demora, mas pelo menos o assunto não está apagado.
P/1 – Então você fez esse dos meninos, das meninas e dali, qual outra coisa que foi uma grande denúncia?
R – Dali, eu abri uma nova frente de denúncia, eu fiz um livro e vendeu um milhão de cópias, chamado “Cidadão de papel” que ensinava a perceber, teve esse livro desses casos, mas que ensinava as crianças a perceber o que é cidadania, inclusive, usando esses casos. Eu produzi vários livros didáticos para entrar na escola só com o tema cidadania e tiveram um sucesso extraordinário, extraordinário. Era uma nova frente pela escola, tinha a frente do poder, tinha a frente do poder judiciário, era missão, aí apareceu o Gilberto bom.
P/1 – E as coisas iam aparecendo de onde? Como você ia entendendo qual era o seu próximo passo?
R – Intuição. Eu não sou muito racional, não. Eu olho assim e falo: “Ah, é por aqui. Por aqui”. Não tinha medo de morrer, mas de morrer não tenho nem hoje. As pessoas perguntam: “Ah, Gilberto, você tem medo de morrer?”. “Não”. “Eu tenho medo de viver sem proposito”. Aí eu tenho medo, aí eu me pego, de ficar em uma cama e tal, aí eu me pego. Medo de morrer não, enfia um tubo lá e você nem sabe. Então se você olhar bem tem tudo uma coisa que fecha, tem a ansiedade, tem a necessidade de você lutar com a ansiedade se conectando com o que é o melhor do mundo, que é o lado ruim da ansiedade, que é aquele lado da sexualidade degenerada. Mas sempre, sempre, sempre uma noção de Deus estava do meu lado, sempre. Eu sou muito mais religioso do que aqueles urubus que estão na sinagoga, muito mais religioso, eu sinto Deus como se fosse um vapor, um vapor, você está assim, na sauna e você tem um vapor. Eu não sinto Deus como se fosse uma figura, até porque não é uma figura, isso é uma imbecilidade, um cara de barba branca onde você está. Ontem, me ligou uma pessoa muito admirável, o Nilton Bonder, é um rabino moderno, foi surfista, estudou em Nova York e eu o conheci em Nova York. Aí ele falou assim: “Olha, Gilberto, quando você está morrendo, você tem dois grupos que te acompanham, primeiro, são seus amigos, que depois de certo tempo fica esporádico porque todo mundo tem tarefas em casa, tarefas no trabalho, conflitos, tal. E o segundo grupo é o grupo dos familiares que vão acompanhado você até a sua morte”. “E qual é o terceiro grupo, que não é um grupo?”. Aí ele falou assim: “É o grupo do nome”.
P/1 – Do nome?
R – O nome que você fez durante sua existência, o teu corpo não vai embora, mas o teu nome vai... O teu corpo não vai para nenhum lugar, mas o teu nome vai, o teu nome é a tua marca. É o QR. Achei bem bonito, que o corpo vai para uma nova dimensão, aliás. Achei bem bonito isso. É possível, né?!ue a gente não seja só carne, né? O nome. Mas se não for só carne, essa ideia de que você vira um nome é muito bonita. É muito bonito.
P/1 – Gilberto, vamos falar ainda um pouquinho mais dos seus trabalhos? Me conta um pouco o que dá livros, livros, você também fez algumas ONG’s, associações.
R – Foi. Em primeiro lugar, quando eu voltei dessa coisa dos meninos, eu criei uma ONG que ficou bem grande, a Andi (Agência de Notícias dos Direitos da Infância), em que ela tinha como missão ensinar jornalistas a trabalhar a questão da criança e muita gente foi nesses encontros, gente importante, Carlos Castelo Branco. Se criou uma geração bem informada, aí como eu sempre faço, fui embora e criei uma experiência educacional, que é o Aprendiz, que transforma as escolas em extensões da cidade e a cidade extensão da escola. Que era para criar primeiro inclusão para as crianças mais pobres, transformar a cidade em um grande centro de criatividade e ensino mesmo. Então você vai, às vezes, estudar calor em Física, se você for nessa máquina daí você aprende como que o calor em Física funciona. Se você for em uma padaria fermentar o pão, você aprende várias coisas de Química, Biologia e também de calor. E deu certo também, foi replicado em vários bairros, várias cidades do Brasil, ganhou vários prêmios. E eu, como eu gosto de fazer, deu certo, eu vou embora.
P/1 – Então me conta um pouco essa sua relação com as ONG’s, qual é a sua energia, o que te move?
R – Então, o que eu faço é ser uma incubadora, eu pessoalmente, eu tenho horror a esse pessoal de ONG que personaliza, fica na frente, acho que não tem nada a ver. Aí eu ajudo a criar, depois que eu ajudei a criar, eu me pico, mas eu já aviso antes. Eu sempre apoiava também muitas ONG’s legais, sempre tinha um espaço na minha coluna para alguém legal fazer alguma coisa legal em nome do outro. Sempre, sempre, sempre. E eu sabia que quando eu fazia alguma matéria assim, a mídia ia atrás mais cedo ou mais tarde, que era a maior importância, então estava a mídia. E, às vezes, eu ajudava as ONG’s, assim, algumas a ganhar dinheiro, eu sou presidente da Orquestra Sinfônica de Heliópolis, esse me deu um trabalho. Nesse caso, era diferente, nesse caso era... Eu até brinco com eles: “Pô, vocês me dão mais trabalho do que a minha quimioterapia”. Aí foi uma pancada, porque ano passado, ano retrasado eu já ia fechar a orquestra. Aí fui lá na comunidade judaica, fiz lá a pajelança, me deram um pedacinho, depois eu falei: “Tá, tá”. Muito bem, a gente acabou com uma reserva de dois milhões e cem. Aí eu falei: “Pessoal, minha missão acabou com vocês, é isso, tem o maior maestro do Brasil, os maiores maestros do mundo, agora vou cuidar de outras coisas”. Aí veio o Corona Vírus. Aí desmontou tudo, tudo, tudo. Mas essa não vai acabar, porque orquestra sinfônica é uma maravilha, em Heliópolis, músicos maravilhosos, mil e quinhentas pessoas. Porque, geralmente, quando eu entro para uma ONG tem que ter uma narrativa que eu defina em um dia, um dia... Um minuto. Aí o meu outro projeto social, que é o Catraca que está fazendo 12 anos, que era criar uma página na internet que defendesse causas, conseguimos chegar a 20 milhões de leitores. Aí agora aconteceu o seguinte, vou contar isso porque... Aconteceu o seguinte, o Catraca tem uma reserva ótima ainda, porque eu sempre peço de oito meses, mas vai acabar já e se acabar, acabou dinheiro. Aí eu coloquei no papel quem me deve favor ou um favor, Denise Aguiar, Bradesco, Ana Lúcia Vilela, Itaú, assim, pessoas que não me devem, mas não vão deixar de dar dinheiro, Jayme Garfinkel, tenho um primo na Folha, resolvi, ajudei e tal, daqui deu um dinheiro bastante bom, bastante bom mesmo, que dá para a gente enfrentar até dezembro. Então, até meu filho falou assim: “Pai, pode desligar a chavinha porque já está bom aqui” e é isso. Mas eu sempre tive olho para pequenas iniciativas sociais, em economia, em meio ambiente, educação e saúde. Que nem vocês, eu sempre achei o trabalho do Museu da Pessoa simplesmente extraordinário, uma ideia única que não tem em nenhum lugar do mundo. Tem em um lugar do mundo? Eu não achei em nenhum lugar do mundo. Quando eu posso apresentar um doador para pessoa, quando o doador tem perfil, quando eu posso até ajudar ONG, eu tenho um nome bom. Quando eu falo nome é uma narrativa, porque sem narrativa você não consegue nada, pode tentar, você pode estar descobrindo a cura do câncer, mas sem uma narrativa, sem uma palavra. Eu estou assim, sempre vendo as ONG’s e tem tantas coisas legais no Brasil inteiro, tal. Isso era uma diversão para mim, sair, tinha repercussão, aí a mídia ia lá, a pessoa ficava... Já nem me lembro quantas, foram toneladas.
P/1 – Então, todas essas relações você fala delas com muito prazer, assim, em algum momento toda essa coisa do seu trabalho também foi um ônus?Oou isso sempre foi um lado luminoso da sua vida? Ônus como acabar o dinheiro, está pesado, eu vou ter que carregar ou você sempre levou isso de uma maneira...?
R – Nunca teve isso. A Andi, vivia, vivia, o Aprendiz a mesma coisa, o Aprendiz era uma coisa grande. Aprendiz aconteceu uma coisa interessante que ia acabar, eu te juro, eu estava quase rezando para não acabar.
P/1 – Você estava rezando para acabar?
R – Para não acabar, naquela época, eu já estava desligado, porque eu acho que se você quiser ter uma entidade forte, você tem que ter um grupo forte no poder dessa entidade, porque se essa pessoa morre, você acaba. A pior coisa que pode ter é falta de governança, porque acaba de não acabar. Ou então fica lá tipo Ayrton Senna, fica lá ela lá, já ninguém mais tem saco de ouvi-la, porque ela é individualista, não fala com ninguém, quando fala é para obter algum tipo de apoio. O que eu ia falar?
P/1 – Que uma época você estava rezando para não acabar.
R – Aí a situação estava delicadíssima, Natasha enlouquecida, aí me liga uma pessoa de Paris e fala assim, que me conhece: “Gilberto, a gente criou um projeto com o Catar, para fazer em várias partes do Brasil, inclusive, no Rio de Janeiro, que é levantar dinheiros para as escolas... ”. Não, “...Levantar dinheiro”. Não. “Esse dinheiro para que as crianças voltem para as escolas”. Só isso.
P/1 – Para as crianças voltem?
R – Escola. Eles analisaram em que se trabalha com divertimento, a capacidade de conversar com as crianças, tal. “Vocês aceitariam receber 25 milhões de dólares?”. Eu falei: “Po, eu rezei para o meu Deus e veio Maomé me ajudando” (risos). Allahu, Allahu Akbar, Allahu Akbar significa Deus é grande, Allahu Akbar. E isso está até hoje, e ontem eu soube que recebeu seis milhões e meio da Vale. Porque quando você tem um bom trabalho, é o caso de vocês, por exemplo, todo mundo respeita, todo mundo respeita. No caso de vocês, tem uma coisa mais legal ainda, que é vocês podem vender serviços que ajudem, é legal isso, muita gente não gosta, mas é legal isso. É isso.
P/1 – Eu queria falar um pouquinho de outro tipo de produção que você teve na vida que são filhos.
R – Filhos e netos.
P/1 – Vamos falar um pouco, assim, o que, por exemplo, a chegada dos seus filhos, como foi? O que você lembra desse momento?
R – Então, foi uma quebra total, você passa a ter uma outra responsabilidade.
P/1 – Você estava onde?
R – Brasília.
P/1 – Em Brasília.
R – E passa também a amar o mundo de outra forma. Mas nasceu Marcos e Gabriel. Eu acho que eu não fui um bom pai, está aí outro ponto que você pode... Porque, nessa época, eu estava no auge dessas loucuras de materiais investigativos, tinha lá uma relação, tinha carinho e tal. Eles nem... Quando eu falo isso para eles: “Pai, a gente não vê isso. Eu vejo a gente nos parquinhos, tal”. Mas eu fui, estava o tempo todo fora, na putaria, na bebida. Aliás, eu falei uma frase aqui que não é correta, eu falei que aquele momento foi o pior da minha vida, dentro desse momento, esse foi o pior.
P/1 – Esse do nascimento dos filhos?
R – Não, não, o nascimento eu fiquei muito feliz, de não ser um pai presente, a minha versão. Foi aí que eu comecei a mudar, porque eu falei assim: “Pô, Gilberto, que beleza, hein? Você quer educar o mundo e não consegue criar teus dois filhos”. Uma vez pediram para um dos filhos, o Marcos, desenhar a família, ele colocou o irmãozinho, o Gabriel, a Âmbar, ele e eu de costas no computador. Aí eu “Tá tudo errado”.
P/1 – Você viu o desenho?
R – Foi uma pancada do tamanho de um bonde. A coisa da paternidade cresceu muito aqui em São Paulo, já estava mais maduro, já estava mandando um bando de coisa tomar no cu, ela o lado negro, viu? Está ali, se colocar um quadrinho, no começo fui um péssimo pai. Não batia nem berrava, nem nada e tal.
P/1 – Quando você... Você me falou do seu pai, né? Que o seu pai era uma pessoa que berrava, que era uma pessoa...
R – Você está certa, eu reproduzia.
P/1 – Você acha? Me conta, assim, você pensou no seu pai ou você foi... O que...?
R – Eu não tinha um padrão de paternidade. Eu não tive uma experiência de pai, de pai afetuoso. Eu tive que construir esse padrão. Eu construí e o cume dele foi que eu virei um avô maravilhoso, que estou ensinando meu filho e com meu neto saindo, lendo. Eu acho que meu filho Marcos que se sofreu mais do que o Gabriel, ver isso, ver essa... E foi uma coisa engraçada porque eu resolvi criar um hobby, um hobby para unir a família, unir os três. E ao mesmo tempo dar dinheiro para os três, aí criamos o Catraca Livre, só esse objetivo.
P/1 – Que era você e os meninos?
R – Eu dava dinheiro, tinha mais uma jornalista. Era um hobby, hobby para falar das coisas que aconteciam na Vila Madalena, olha só? Que todos nós somos da Vila, eles gostam, escritores, tal. Aí o bicho cresceu, o Marcos ficou como presidente, já ganhando dinheiro. Gabriel foi embora, foi fazer samba, dentro do Catraca tinha uma coisa de samba. Mas aí foi quando o laço foi consertando.
P/1 – No trabalho?
R – Eu já dei a empresa para ele, né? Eles têm dinheiro o suficiente agora, né? Mas começou como um hobby, chegar lá perto deles e falar: “Olha, eu vou fazer uma coisa legal, vai dar um dinheiro”. “Quanto?”. “No começo vai vir quanto pra você, pra você, vai dar dois, três mil reais”. Aí foi um hobby, que agora é um hobby que vale 30 milhões de reais, que já é tudo deles. Eu já não tenho nada, acabou tudo, eu doei tudo que eu tinha. Não sobrou nada, nada, doei, testamento está doado tudo que eu tenho. É uma delícia, né? Porque você pode ir distribuir renda como se fosse um bilionário. Eu falei: “Não, a minha ex sogra é uma pessoa maravilhosa”. Você conhece? Não, né?
P/1 – Da Âmbar?
R – Não, a minha ex sogra Dona Maria. É uma pessoa maravilhosa, mãe da Âmbar.
P/1 – Mas, então, mãe da Âmbar, isso que eu te perguntei.
R – É. Uma pessoa maravilhosa, tal. Eu me lembro de uma babá dos meninos lá de... Aí eu me lembro de não sei o que, não sei o que, da empregada, jardineiro. A coisa que eu mais temia era ir embora e ficarem brigando por dinheiro.
P/1 – Isso, assim, foi agora? Depois que você ficou doente que você sentou para fazer esse testamento?
R – É. Eu fiz o testamento, e fui mudando, esperei para mudar para ver qual era melhor forma, mas já está pronto.
P/1 – Você conversa sobre isso com a Ana, com os meninos?
R – Com o Gabriel menos, porque ele fica muito sentido. Converso, por quê? Para não ter rolo depois, só por isso. Virar um Gugu aí da vida. Está tudo definido, tudo matemático. Aí foi para mãe, foi para irmã, tal, tal. Não que seja muito, mas é o que tem. Mas acho que é muito para eles.
P/1 – Gilberto, você estava falando um negócio, queria te fazer uma pergunta assim, o Bonder falou da coisa do nome, né? A gente falou de nome o tempo todo, que esse nome fica, qual o significado, essa sensação do que significa para você isso que ele disse do nome que fica? Qual sua sensação?
R – O nome fica além do corpo?
P/1 – É.
R – Que eu cumpri a minha missão. Só isso. Que eu fiz o que eu podia fazer para o mundo ser melhor. Um nome ligado a isso, ligado as grandes coisas que você acha que fez na vida. Se tiver vida após a morte, segundo ele, ele acha que tem, o nome vai estar lá, porque é o nome.
P/1 – Qual a diferença entre esse nome e aquele que você me falou aqui uma hora também que como jornalista você olhava e falava: “Nossa, esse livro vai vender o mundo inteiro”?
R – É contraditório, o que vale é a parte do outro lado, que eu falo assim: “Estou ajudando aqui essas meninas todas”. Porque o nome é quando você... O Einstein tem uma frase muito boa, ele acha que desperdiçou a vida quem a viveu e não compartilhou nada, não criou força para as pessoas. Sabe que é verdade? Se eu fosse pensar, mas o que eu fiz de relevante? Ia estar essas coisas que misturam trabalho com ação social, está lá primeiro, segundo, terceiro. Não está as grandes trepadas, não está as grandes viagens, não está Nova York, não está isso.
P/1 – Mas agora eu queria falar de Nova York, que você falou que tem dois lugares que você queria ir, né? Amazônia, que é também sua infância e o que foi Nova York? Que a gente passou por Nova York, o que representou? O que foi Nova York na sua vida? Me conta desse período.
R – Começa com uma história estranha. Quando eu era menino, devia ter 14, eu estava encantado pela Mônica, aí você vai achar que é mentira, mas não é, posso garantir que não é mentira. Entro em uma loja para comprar um calçado, o dono era português. Aí entrei nessa loja, achei o calçado que eu queria e quando eu fui pagar estava la no papelzinho como dono o nome do pai da Mônica, Alberto Nicolau da Costa, uma letrinha assim. Eu falei para o cara assim: “Que nome é esse?”. “É um senhor que já comprou aqui”. “Você podia me dar onde ele está?”. “Não, não posso, não posso, não posso”. “Deixa eu contar, eu sou apaixonado pela filha dele, a família é muito amiga nossa”. Aí ele deu. Eu liguei, estava no saguão, eu liguei e ela atendeu. Nós nos encontramos no saguão, você não sabe, é daquelas coisas que é ______ [02:09:44] total. Aí fomos lá comer um lanche, x-burguer, sei lá o que, depois ela ainda me convida para ir para Miami, que eu também já fui. Foi esse o meu primeiro approach profundo com Nova York. Mas Nova York tem o seguinte, Nova York tem uma coisa que eu amo que é a diversidade. É uma cidade que você pode ser qualquer coisa que você queira, e que você pode ser o melhor em qualquer área, na medicina, no teatro, na dança, é uma cidade da excelência. Nova York é implacável com quem não trabalha excelência. Então para mim, sempre foi encantador. O que é, eu sou um garoto com uma vocação marginal, eu estou em Nova York, aqui você pode ser qualquer coisa. As pessoas não ficam te olhando na rua, não ficam te olhando, você está, sempre lá eu andava só com uma calça jeans e ia, não ficam te olhando na rua. Depois, Nova York teve todas as mulheres importantes, a Âmbar foi morar lá comigo com os filhos, depois foi a Ana, as três mulheres. Mais forte a Âmbar porque a Âmbar adorou morar em Nova York, mas ela preferia viver no Brasil. Ela fez bem até, eu fiquei meio puto da vida, mas ela fez bem porque Nova York te vicia, de repente você não sai de lá, tantos teatros, tantos cinemas, tantos shows, tantos concertos, tantas palestras. E eu estava ligado a uma universidade lá, então isso te dá algum tipo de nome, né? Columbia. É uma cidade muito encantadora, foi tão encantadora que dali passou um tempo, eu fui para Harvard e Harvard foi sério, porque em Harvard eu criei a Catraca Livre e eu realmente me dedicava. Eu nunca me dediquei tanto a um foco só do que meu projeto com a Harvard, eu tinha um laboratório lindo lá, o Street, o canal o Street, Street, chamava só Street, que era na Harvard Square, que é lindo. A gente tinha um apartamento muito bom lá no lado, então eu, um mal aluno, consegui chegar em Harvard, né? Engraçado, né? Como a vida não é uma coisa direta, a vida é... E Harvard foi uma experiência que lá você viu o que é excelência, todos os cantos, todos os lugares, todas as horas, todas têm alguém pensando alguma coisa legal, alguém falando alguma coisa legal. Você pegava o dia a dia da universidade, você pegava o dia a dia das universidades e via. Eu fiz até uma brincadeira que um português da Business School, da escola de negócios topou, eu queria mostrar como você podia não comprar uma coisa de comida, indo só nas palestras, porque toda palestra tinha algum lanche. Esse meu amigo português ele fez um aplicativo igual o meu, de bairro e escola, se você acessasse o aplicativo você ia saber quantas palestras tinham naquele dia, e quantas comidas tinham, porque americano não para de comer, né? E ficou muito bom, é que não resolvi não levar para frente para não parecer um transgressor de ficar... Como que era o nome do slogan? Era “food to your brain” era o slogan, comida para o seu cérebro. O pessoal amou... Tá começando a morrer, você acha que eu já fui muito?
P/1 – Não, tá bom, eu ia fazer uma...
R – Pode fazer ainda.
P/1 – Tá bom, estou ouvindo bem, só não quero se você também está cansando.
R – Não, não estou. É que estou...
P/1 – Você quer água?
R – Já estou tomando aqui.
P/1 – Pega a garrafa, não pega o copo.
P/2 – Você tá com fome, Gilberto? Você tem fome?
R – Não, virei um indiano total.
P/2 – Você almoça, faz refeição?
R – Se não apanha, né? (risos)
P/1 – A Ana me mostrou uma foto que você pediu a ela em namoro em Nova York, então antes só da gente sair...
R – Então não vamos deixar coisas essenciais aparecerem.
P/1 – Como assim?
R – Não, vamos acabar antes de coisas essenciais aparecerem.
P/1 – Você quer dar um tempo e voltar?
R – Não, não.
P/2 – Eu estou à disposição também.
P/1 – Eu também.
P/2 – Se quiser voltar à tarde, dar um tempo.
R – Se for o caso, eu dou uma dentadinha.
P/1 – Não tem problema, viu, Gilberto?
R – Obrigado, viu?
P/2 – Não tem problema, não ache que a gente está se esticando.
R – Ele está irreconhecível.
P/1 – Ele o quê?
R – Irreconhecível. O que foi da Ana?
P/1 – Ela me mostrou uma foto, a gente estava falando de Nova York, desse período, falamos um pouco desse período da Âmbar, mas teve um lado, por algum motivo ela me mostrou uma foto e falou: “Aqui ela me pediu em namoro, em Nova York”.
R – Foi. Mas era namoro ainda, né? Porque ela estava casada e eu estava semicasado.
P/1 – Você quer contar sobre isso?
R – O que eu lembro era disso que a gente saiu de Nova York sabendo que ia ficar junto, mas que cada um ainda tinha uma vida semicasado, já desligados assim. Eu comprei uma casa aqui na Vila Madalena para os meninos, vendi tudo que eu tinha quase, quase. Fizemos lá a casa. Mas passou em um ano até a coisa se configurar, quem queria separar foi a Âmbar, né? Ninguém acredita nisso.
P/1 – Você não queria separar?
R – Homem que tem amante não separa. Eu nunca vi isso. Eu estava em uma situação que tinha a Ana e tinha a coisa do lar, dos filhos. Depois eu quis separar, estava tão baixo ali, ficou tão agressivo. Mas foi ali mesmo que eu pedi em namoro. Depois eu pedi em casamento em um hotel do Recife chamado Mar Grande. Aí foi. Aí a gente ficou quatro anos separados, ela lá em Salvador e eu aqui. Namorando? É, ela vinha para cá final de semana, eu ia lá. A filha dela era muito difícil, a Joana errava muito, isso lembrava meus pais, meu pai, que errava de berrar, de berrar, de berrar. Era uma loucura, eu via meu pai ali. Ela achava que berrando, eu ia desistir. Hoje é a menina mais maravilhosa do mundo, a Joana, mais maravilhosa do mundo.
P/1 – Então, esse momento foi um momento, de novo, complicado essa história de separação?
R – Muito complicado. Foi super complicado. A Ana encanou, a Âmbar encanou, até eu acho que prejudicou com os filhos também. Eu acho que se você quisesse resolver uma coisa, você nunca deve ser agressivo, você deve ser paciente, olha, isso daqui vai acabar mais cedo ou mais tarde, agora não reaja, porque se reagir. Hoje a Âmbar e a... A Âmbar frequenta minha casa, a mãe dela está no meu testamento, fica essa coisa de saber fazer, assim... Não entra para a porrada, porque não adianta, só os dois ficam feridos. Igual dizia meu bisavô: “Se alguém não pode ser seu amigo, nem deve ser seu inimigo”. Hoje está tudo ótimo, perfeito.
P/1 – Vamos falar um pouquinho, então, acho que tem uma fase nessa sua vida que é a descoberta do câncer e esse seu processo com o câncer, a sua doença, a sua transformação, a própria descoberta, me conta como foi? Em que momento da sua vida? O que aconteceu?
R – Foi uma coisa interessante, né? Uma vez eu fui carregar meu neto e não consegui, não consegui carregar. Aí eu comecei... Eu já andava muito de bicicleta, muito mesmo, eu andava, às vezes, três, quatro, cinco horas de bicicleta, mas faltava musculação, eu comecei a fazer musculação todo dia. Eu fiquei quase o tiozão, sabe? Aquele cara que... Embora eu não fizesse por isso, né? E a minha esposa... A minha... Tudo isso aqui já é efeito do câncer, tudo... A minha personal trainer, falou: “Gilberto, não é só para você ter força, é para você fazer exercícios para quando você ficar velho, você conseguir levantar da cadeira”. Aí eu fazia todo dia, mais a bicicleta. Você me olhava, eu estava no auge, forte, assim, você via estava. E foi nesse momento que eu soube do câncer, eu estava me sentindo melhor fisicamente na vida. Aí aconteceu o seguinte: eu tive um sonho de uma mulher vestida com roupas sóbrias e sombria, falando: “Gilberto, você está com câncer”. Mas foi tão forte, tão convincente, que eu falei: “Eu devo estar com câncer”. É como se seu corpo mandasse um aviso. Aí não achavam nada, fiz ultrassom, colonoscopia já tinha feito, tudo, a endoscopia. Aí os médicos olhavam tudo aquilo e falavam assim: “Você não tem nada. Você não tem nada”. “Como? Tem certeza?”. Aí o meu médico viajou, eu resolvi, como tinha tempo, ir em um gastro. Aí ele falou: “Você não tem nada”. Mas por sorte ele era oncologista de estômago. “Just in case, você vai lá no e faz uma tomo, não custa nada, assim você já se livra dessa preocupação”. Eu fui lá no Albert Einstein, aí no Albert Einstein, fiz a tomo, ele falou assim: “Olha, Gilberto, você tem que descer urgente lá no pronto socorro”. “Urgente, por quê?”. “Você está com...”. Como chama? Hepatite?
P/1 – Gordura no fígado?
R – Hepatite... [pensativo].
P/1 – Pancreatite.
R – Pancreatite. “Você deve estar com dores imensas aí”. Ai eu falei: “Como assim?”. “Porque pancreatite dá dores imensas”. Eu falei: “Mas pancreatite só dá em quem bebe e quem teve trauma na vesícula, não é meu caso, não vou tomar não, vou ligar para o meu médico”. Ai eu fui embora, tive a pachorra de ligar para o Wikipédia, estava lá: “Sobrevivência: um mês”, porque eu logo vi que era câncer de pâncreas, né? Então foram sustos atrás de sustos, assim.
P/1 – Quando você leu “sobrevivência um mês”, o que você sentiu?
R – Eu falei: “Estou fodido” (risos). Se não for um mês, é seis meses, no máximo seis meses.
P/1 – Mas o que te deu? A primeira vez que você viu a morte assim, né?
R – Eu não sou apavorado, eu fiquei realmente triste, mas eu não... Aí no dia seguinte eu fui operar, no dia seguinte. Aí surgiu a boa notícia: “Olha, foi localizado, a gente operou numa boa”, três semanas depois estava no fígado, depois foi: “Olha, tem um remédio revolucionário aqui para o fígado”, não era. “Olha, agora temos um outro para...”, também não era. Tudo só se fodendo. Aí foi para o fígado, depois foi para o pulmão. As pessoas em geral não sabem, mas o câncer é um só. Não tem câncer de fígado, o teu câncer é de pulmão que vai rumando, então eram muitas más notícias. E eu resolvi viver a vida, o que acontecer... Resolvi fazer um livro, como eu te falei: “Os últimos melhores dias da minha vida” porque eu estava feliz mesmo, né? Engraçado, né?
P/1 – Nesse momento, quando começou tudo isso você...?
R – Estava feliz, estava alegre. Hoje eu acordei e falei: “Eu estou em um grau de felicidade, eu não sei nem o porquê, com os meus filhos, com o Catraca”. O que me atrapalha muito é ler sobre o Brasil, aí me dói, me dói, me dá uma raiva mortal de ver esse pateta liderando um país com tanta patetice, isso até me dá força, sabe? Você sabe que ódio constrói mais do que a paz, porque o ódio o cara... Outra coisa que me dói é o Trump, falei: “Pô”. Mas eu já estava com surtos de felicidade que demoravam, às vezes, uma hora, como se eu tivesse tomado uma droga, um ópio, sem o ópio. E toda vez vinha a questão do nome, como a gente entendeu aqui, né? Eu não parei de trabalhar por questões sociais. Não parei um segundo, tanto para orquestra, como para a comunidade de Heliópolis, para comunidade de Heliópolis a gente conseguiu 40 mil cestas básicas, bastante isso, falando com Unilever, falando com Carrefour. É isso. Eu nem sei explicar isso, porque como eu sou ansioso, como é que explica? Que alguém que tem a história de ansiedade, quando tem uma razão objetiva, não tem ansiedade, o contrário. É um mistério isso para mim. Por que eu não estou ansioso agora? Ansioso não tem medo? Não, o ansioso está lá, se brinca, gozando do câncer. Assim, é eu vou ser mais feliz. Tem um ditado do Talmude que diz que a grande vingança é ser feliz. Acabou. Vai acabar? Então tá, não vou ficar desaproveitando esse momento sendo miserável emocional. A única coisa que eu tive preocupação foi com dor. Aí eu liguei para o meu médico, que eu fiz operação, ele falou assim: “Gilberto, não se preocupe, você não vai sentir nada de dor”. E eu vou te falar, e eu até passei a ter algum olhar diferente de ver tanto canceroso morrer, nascer, morrer e do jeito que eles morreram. Ele me explicou uma palavra que eu não conhecia, que tem a eutanásia que todo mundo conhece, que você vai lá e pede para morrer e que é proibido. Mas você tem a deustanásia, que quando você está morrendo, eles fazem a morte suave, você não sente nada. Ele falou a coisa que mais me intrigou: “Você sabe, Gilberto, eu não tenho interesse na velhice, eu não quero ser velho...”
P/1 – Ele te falou?
R – Aí eu falei, tem Fernanda Montenegro, Fernando Henrique Cardoso, tem tananã, eles são um em um milhão, velho criativo, são um em um milhão, o resto tudo sai fodido de lá já com Alzheimer, com demência. Eu tinha definido a vida em três fases: a primeira é quando você, a primeira e a última, é quando você morre, o oxigênio não vem na cabeça e você morreu, essa é a primeira e última. A segunda e a penúltima é quando você perde a capacidade de lidar com as coisas normais, de usar senha, ir no banco, comprar no supermercado, não ser engando e tal. Agora a terceira que é a mais importante é o que eu chamo da vida útil... Não, morte da vida influente, quando o que você fala e faz não tem mais significado para ninguém. Eu sempre falava isso, engraçado, é muito tempo, né? Então, para mim, o que está em discussão, assim, é a morte da vida influente. Não quero ficar decrépito brigando com as pernas, com o pau que não mija, deixa de mijar, o intestino. Hoje para eu levantar a Ana tem que me ajudar, é isso que eu quero? Não é isso que eu quero. Você pode achar que é um suicídio, mas não é um suicídio, é uma opção de um jeito de viver.
P/1 – O que você quer, independente do que vai acontecer, que isso realmente a gente não sabe, mas o que você quer?
R – O que eu quero não é possível.
P/1 – O que você quer?
R – Sumir o câncer e eu ficar como eu era antigamente, não é possível. E o que eu quero que se tiver um final agora, seja um final feliz, no sentido de não dor. Mas desejo agora, que quando acontecer o final, seja um final sem dor.
P/1 – Você que cria títulos, assim, obviamente mudou seu jeito de ver a vida.
R – Claro.
P/1 – Olhando a morte, né? Você consegue me resumir isso, o que mudou em seu cotidiano? Você já contou várias vezes, mas me resumir essa sua relação...
R – Eu vou te falar que a reação é essa: “Os melhores dias da minha vida”. Não é demagogia, poder ficar com a Ana, com os netos, com os netos já não dá mais, mas eu descobri tanta coisa legal que não custava nada, que não custava uma primeira classe para Nova York, ou segunda, ou terceira, que não custava nada. É muito legal. Que você está tomando o vento, sentir o vento no corpo, você toma um chuveiro, que você começa que ouvir trechos que você nunca mais ouvia de músicas clássicas, dos filmes, dos livros. Olha, é só quem vive consegue te falar isso, só quem está vivendo isso daqui consegue te falar. Porque a palavra canceroso as pessoas nem falam, elas têm medo de falar “Ah, você está com a doença, tal”, tem medo de falar. Eu descobri uma nova vida perdendo a vida.
P/1 – Gilberto, o que você quer falar mais?
R – Não consigo imaginar mais, só aquelas coisas que você não pegou, não foi? Olha.
P/2 – Não peguei.
R- Mas é importante, se você quiser... Nunca eu encontrei um momento tão propício, tão dramático para dar essa entrevista, porque, nesse momento, eu estou vivendo um câncer em estágio avançado, bem avançado e o que ele me fez e me faz e vai fazer enquanto eu existir é usufruir e repensar a vida. Tudo que eu passei na minha vida, desde que eu nasci, há 63 anos, foi com o olhar. Agora, esse olhar é diferente, olhar de quem reaprendeu a ver vida pela ideia da morte. E o que eu posso dizer para as pessoas é que não tenham medo, não tenham medo, porque você encontrar cenas e momentos de amor e de paixão. E quando você vir o pôr do sol, ele vai ser o pôr do sol mais lindo do mundo, quando você sentir o vento no rosto, vai ser o vento no rosto mais lindo do mundo, a vida passa a ter encantos que você passa a valorizar outras coisas. É como se você, de repente, fosse para um país que você não conhece pela primeira vez, tipo sul da França, você não sai indiferente do sul da França. É com isso que eu consigo hoje, falar o que foi a minha vida desde a infância já com a ótica do fim e com outra coisa, com a coragem de falar as coisas, você não tem mais consequências, você não tem consequências, vai acabar e não tem. Você fica meio sem filtro na língua, você fala. Você não tem coragem de falar das mulheres, da relação com os filhos, você não tem coragem... Você não tem medo de falar, na verdade.
P/1 – Sendo esse momento, que é um momento muito propício, o que, agora que a gente fez essa longa entrevista, o que você...?
R – Essa entrevista me ajudou a sistematizar essas coisas, porque quando você fala, você sistematiza com mais facilidade.
P/1 – O que é sistematizar as coisas, o que isso significa para você?
R – Significa organizar, de forma que fique a narrativa simples. Simples assim. Coisa mais importante do ser humano é a narrativa, quando ele perde a narrativa, ele perde a vida dele. A narrativa é seguir valores, seguir prioridades, é seguir o que você acha mais importante, é seguir sua religião ou não. Isso é narrativa, te ajuda a viver. Sem narrativa é um ator, no palco, sem saber o roteiro. Pronto? Para você foi melhor esse depoimento, não foi? Cadê a assinatura aqui?
P/3 – Eu, depois, a minha vida deu muitos giros, eu entrei em grupo que chama Poetas Ambulantes, Sarau do Binho, tudo isso, nem você sabe, eu descobri pelo Catraca Livre, sabia? Como eu cheguei nos saraus e tudo isso foi pelo Catraca Livre.
R – Uma coisa que a gente quer muito é que coisas desconhecidas, sejam conhecidas, sabe?
P/1 – É, que legal, eu não sabia que você tinha chegado nesses saraus por ele. Eu lembro de você usando muito. O Catraca Livre é genial, né?
R – Então, esse aqui é o maior exemplo do que eu sonho. Uma coisa em um sarau, na periferia e tal, o jovem vai lá e se apaixona por poesia.
P/1 – É lindo isso?
R – E ele está casado? Tá?
P/3 – Eu estou namorando.
R – Obrigado, viu?
P/3 – Posso te ler?
R – É claro, opa!
P/1 – Esse aqui do _____ [02:42:11]. Gilberto, alguém que hoje está desperto. E esse aqui: Gilberto Dimenstein, Eisenstein das causas, montador de sentidos, é como Frankenstein dos sustenidos que junta Heliópolis em uma orquestra e atravessa a porta da vida com uma narrativa mestra.
R – Você escreve tão rápido poesia, assim?
P/1 – É, ele dá download (risos).
R – Adorei, viu, obrigada? À tarde eu já tenho essa leitura.
P/1 – Cadê aquele do Museu que eu te trouxe também, que eu acho que tem muito a ver, que parece um pouco... Quase Canções, são histórias de vida em forma de música.
R – Agora aquele documentário que todo mundo fez. E você sabe que eu sou a pessoa para te criticar nesse aspecto, porque eu sempre levantei histórias de vida.
P/1 – Sim.
R – Então aquilo ali eu entendo e ficou muito bom. Muito bom.
[Parte 2]
R – E ela contou assim, que o câncer de fígado, quando está no fígado ele é o melhor câncer para morrer, porque dá essas endorfinas e você chega até ter alucinações deliciosas.
P/1 – Você estava doido para ter isso? (risos)
P/2 – Você está alucinando?
R – Não. Não, nem sei se eu quero, mas você rever seus parentes mortos, segundo ela. Você vê como há desigualdade, também eu não vou por causa da desigualdade não pegar um bom médico, né? Porque morre eu e não faço nenhum protesto. Eu acabei agora o processo, tal, e agora é o processo de morrer bem, né? É o processo de morrer bem. Pensei em uma coisa agora, espera aí. Se puder fazer você e Marcos um documentário sobre as pessoas que se despedem da vida, puta merda, esse... Você não acha, Lucas?
P/1 – Eu acho.
R – Já pode usar o meu, né?
P/2 – Bom
R – Você acha que é viável para tela?
P/2 – Eu acho que sim, acho que é um assunto que é comum a todo mundo, ainda tem maior...
R – Ninguém fala a respeito. E você tem hoje só aqui em São Paulo, 600 homecares.
P/1 – Como 600 homecares, o que quer dizer isso?
R – Homecares é uma coisa que...
P/1 – Eu sei o que é homecare, mas assim...
R – Então, mas tem uma abundância de depoimentos.
P/1 – Ah, tá.
R – E homecare quando é bom, esse que eu contratei aí é foda, porque eles têm tudo, colocam na cama, tem tudo, tudo, tudo. Você não precisa... Aí a mulher fala assim: “Gilberto, se você tiver com uma dor e me pedir uma solução, a solução tem que vir em 30 minutos... Não, tem que vir em 15 minutos no máximo, você não vai sentir nada mais”. Eu falei assim: “Vem cá? Cadê aquela coisa da morfina?”.
P/1 – Você já tomou morfina?
R – Não, ainda não. A morfina virou bandaid, um bandaid que você coloca assim, durante uma semana... Eu acho que essa coisa dá... Eu nunca vi um documentário sobre as pessoas se despedindo da vida.
P/3 – É, eu também não, e é bonito, assim.
P/2 – Eu sei que tem um na Netflix, mas eu não assisti, posso até ver o nome, eu salvei lá para ver, mas ainda não vi.
P/3 – Vocês já assistiram aquele “A partida”, japonês?
P/2 – Não.
P/1 – É muito bom.
P/3 – Mas aí é filme, não documentário.
P/1 – Gilberto, você leu o livro, agora você não quer ler, “A arte tibetana do viver e do morrer”? Você leu?
R – É um clássico isso.
P/1 – É, mas eu acho um puta...
P/3 – Você leu o meu livro?
R – Eu li dois trechos, bons. Muito bons. Eu te diria muito bons mesmo. E eu acho que você tem que entrar, misturar literatura com audiovisual. Eu acho, porque a linguagem do livro é muito limitada, e você tem mais talento para isso, eu acho, porque a linguagem do livro é muito limitada e você tem mais talento para isso. Eu acho, mas também...
P/3 – Ótimo conselho.
R – Mas também, sei lá. Você escreve com palavras novas, com uma vitalidade, é muito bom. Você sabe que tem um curso de Creative Writing lá em Nova York, né?
P/3 – Não.
R - Melhores professores, grandes escritores.
P/3 – Mas é uma faculdade?
R – É na New York University, você fala bem inglês, então...
P/3 – Falo mais ou menos.
R – Ah, então você não escreve, né?
P/3 – É, mas dá para aprender.
R – Uma coisa que me identifico em São Paulo, foi durante muito tempo a minha não identificação com São Paulo, eu me sentia marginalizado, a cidade que destruiu toda a minha cidade, o bonde foi embora. Eu morava ao lado do Parque Ibirapuera, foi embora, enfiaram lá o quartel, a Assembleia Legislativa, eles acabaram com o bonde, colocaram lá carros, acabaram com a marginal, não era, era um grande parque. Era uma cidade que estava sendo destruída, mas ninguém funcionava nessa cidade, as pessoas querem ir embora, a poluição. Eu tenho até uma impressão de que é um efeito do Rio Pinheiros, porque as pessoas, no começo, não vinham para ficar aqui, né? Ficavam os jesuítas, né? Mas as pessoas vinham lá da serra e pegavam o Tietê para pegar as riquezas do Paraná, da região do Paraná, então sempre assim. São Paulo era merda. E se você pensar hoje, também é um pouco assim, pouco não, muito, quando tem algum problema, as pessoas se metem no carro e vão lá para Ibiúna, Paraty, então a cidade não faz parte, é só você comparar aos cariocas, que em relação à cidade tem um amor, tem uma... E olha que o carioca para ter isso é uma sensação muito difícil. Aí aconteceu de eu chegar em Nova York no meio da década de 90 e Nova York tinha falido, a cidade, falido, não tinha mais dinheiro. E como Nova York é um símbolo democrata, os republicanos atrasaram o máximo. O próprio presidente falou: “Vocês se danem”, o Ford. Só que quando eu estou lá vendo isso em Nova York, com interesse muito em urbanismo, que eu sempre tive, sempre tive interesse em urbanismo, como funcionam as cidades, o combate à marginalidade. Quando eu estou vendo isso, vejo uma cidade reaparecer, como se fosse uma flor mesmo, reapareceu, como flores reaparecem. Aí voltou a ter todo uma articulação maravilhosa contra a violência, contra a sujeira, sentia, as pessoas começaram a voltar para morar em Nova York, quando eu cheguei lá as pessoas estavam indo embora. E eu como estava no Jornal Folha de São Paulo e ligado à Columbia, eu coloquei como um dos projetos, entender o que foi feito lá e saber o que eu podia aplicar quando voltasse para cá. Aí descobri que não era só polícia, descobri que não era só tecnologia para combater e descobri a melhor coisa, descobri que você tem violência quando você não tem capital social. Capital social é ligação que as pessoas têm, as pessoas com as instituições, as instituições com a família, é a igreja, é a sinagoga, é o templo. Então essa rede, assim. Só para dar um exemplo, eles estavam lutando contra um grupo de traficantes em um determinado bairro lá e não conseguiam, não conseguiam. A polícia sabia, mas não conseguia. Aí eles propuseram em silêncio que cada um colocasse na urna do templo o nome dos traficantes. Eles pegaram e a polícia acabou com aquele ponto. E contar que tinha todo um sistema tecnológico. Muito bem. Quando eu volto para o Brasil, eu voltei aficionado com essa coisa do capital social. E era uma coisa que me animava tanto porque dava para fazer. Então quando a gente veio morar aqui na Vila Madalena, virou perfeito porque era um bairro que tinha alguma coisa entrosando e a gente entrosou de vez. E a gente começou a trabalhar com os grafiteiros para que eles tivessem o direito de pintar na cidade. E era uma luta, né? Você imagina a luta que era. Mas a luta ainda foi maior quando a gente começou a desenhar um plano de ruas abertas e a primeira rua a ser aberta era a Paulista. Aí foi como se a gente quisesse derrubar as torres gêmeas, a população de lá... E aconteceu uma coisa estranha, o melhor argumento delas era que faltava os hospitais, os hospitais, que os hospitais, os hospitais disseram assim: “Não tem problema, dá para entrar por aqui, aqui”. E hoje a rua aberta na Paulista virou uma das coisas mais fulgurantes da cidade, se não for a coisa mais fulgurante, porque lá você tem todos os músicos e todos os tipos de cantores, você olha ali, você vê São Paulo, andando a pé, de forma civilizada, eu fico muito emocionado. Mas esse decreto ele foi montado aqui no meu escritório, o decreto da rua Medeiros de Albuquerque, porque a gente queria fazer um perfil que pudesse servir na cidade inteira, aí surgiram 36 ruas abertas, mas o mais importante foi a Paulista, que as pessoas queriam tirar no início, aí ficou difícil tirar, quando você faz uma coisa legal fica difícil tirar. O Dória prometeu deixar de um lado só, a direita prometeu acabar, hoje ninguém ousa fazer isso. O que tem por trás disso? Tem por trás disso que a cidade sempre foi e sempre será o encontro dos criativos, é como você ouvir falar um casal que tá com filho pequeno: “Ah, vamos morar lá em um condomínio em Jundiaí”. Deixa a criança crescer, se ela for criativa, ela não fica lá porque você não tem... É por isso que Londres, Nova York, Paris, Roma, Singapura, Tel Aviv, Chicago. É por isso que as pessoas vão para lá, então para mim foi uma viagem poder ajudar transformar São Paulo em uma cidade que as pessoas se reconheçam. A primeira ação foi o azulejo, azulejar com as crianças e promover a cultura do grafite como algo respeitável, então nós conseguimos autorizações para pintar. E aqueles meninos subiram a autoestima, a gente criou uma escola de grafite, deixava lá aqueles livros do Freud... Freud, que livro do Freud. Livros do Basquiat, livros do Caetano...
P/1 – Do Banksy?
R – Do Banksy também, mas os livros da arte negra. Do Picasso. E todo o muralismo do mexicano, isso para falar que era um ambiente assim, assim, não para você levar o cara para se influenciar. O que acabou acontecendo? Eles tiraram os pinceis, ou seja, não, diminuíram o spray, porque eles viram que estava muito limitado só fazer com spray, e começou a fazer com spray. E eu ficava vendo a cidade de São Paulo como uma metáfora do mundo hoje, né? A gente tentou fazer a região da Vila Madalena um exemplo. “Olha, a cidade pode ser assim, sem dinheiro público”. Aí que a gente criou o Parque da Vila, que era um lugar que você andava, assim, pela Vila Madalena e funcionou porque começou a virar vários negócios. Não sei depois do Corona Vírus, mas começou a funcionar vários lugares, várias lojinhas, crescendo e aquele baixo da vila, que pega o Beco do Batman ficou incrível. Então, eu quando voltei para cá, tive o seguinte: uma coluna da Folha para falar sobre cidade. E tinha uma coluna diária na CBN para falar sobre cidade e coisas legais sobre a cidade, porque coisa ruim até um verme acha ali andando. E foi encantador, porque por trás de cada grupo, por trás de cada grupo tinha uma coisa legal, impressionante quando você vai lá na área de cinema, de teatro, de música, de literatura, é como se fosse anti glóbulos, glóbulos brancos, assim, onde você ia na periferia as poesias do...
P/1 - Sérgio Vaz.
R – As poesias de Sérgio Vaz, pessoas criando, arquitetos, era quase uma revolução, assim, silenciosa do que deveria ter sido a cidade. Ela melhorou muito em alguns aspectos, por exemplo, a ciclovia não está perfeita, mas está melhor do que era antes, você tem mais praça, você tem mais parque, você tem mais parque, você tem... É que aí... Foi isso, mas o Bruno Covas segue também um pouco essa linha. Então essa ideia de transformar a cidade como parte do seu eu e usar a comunicação de rádio, de TV, TV não, TV menos, né? De rádio, de TV, é muito incrível, porque você fala de uma ONG, no dia seguinte a TV Globo está pautando. Você fala de um rapaz aqui da Vila Madalena que sai plantando plantas pelos muros dando nome de flores no cimento. Eu tinha uma fila de pessoas fazendo um teatrinho lá na Barra Funda, fazendo coisas de roupa. É enlouquecedor quando você olha por essa perspectiva, porque, na verdade, toda narrativa é uma questão de olhar, toda narrativa é uma questão de olhar. Não adianta você olhar uma cidade e não ter uma narrativa dela. Quando você vai a Barcelona tem uma narrativa forte a cidade, de resistência, de inteligência, Nova York também, obviamente, França também, Berlim também. Eu falei: São Paulo não tem nenhum símbolo, nenhum símbolo, eu tentei transformar São Paulo no símbolo do grafite, porque o muro foi inventado, por quê? Porque quando alguém inventou o muro, em algum momento da história da humanidade, eles inventaram o muro por causa do medo. Quanto mais medo em uma cidade, maior e mais fortes os muros. O que o grafiteiro faz? Ele transforma o muro em um ponto de arte e de união. É muito legal essa concepção, então falei: “Vamos transformar o grafite na marca registrada de São Paulo”, porque não tem nenhuma marca registrada. Não tem. Não dá para dizer que o MASP é marca registrada, embora seja um símbolo importante. Não é que nem em Sidney, que você vê a coisa subindo. Aí eu passei esse tempo todo trabalhando nesse esquema de dar força para essa simbologia, de pintar a cidade inteira, mas para pintar a cidade inteira, tinha que pintar mesmo, tinha Os Gêmeos, com Cobra, tinha que pintar mesmo. A gente viu a suavização da cidade lentamente, né? Com as coloridas. Até que o New York Times classificou São Paulo a capital mundial do grafite.
P/1 – Sim.
R – Que é uma coisa marginal também. Aí tinha rádio, tinha jornal, aí eu não tinha horário, o tempo todo municiando a cidade. Mas eu viajava muito para muitas cidades, tipo Nova York, Londres e toda vez que eu ia lá eu mostrava, fazia: “Olha, essa experiência aqui em Londres”. Começava desde o Tate Gallery, que reformou todo o... Tamis?
P/1 – Tâmisa.
R – Reformou todo o Tâmisa, aquele bando de lojinhas, teatros, casas de shows, tal, porque se você aperta, espreme as pessoas que vivem na cidade, sai muita criatividade.
P/1 – Gilberto, nesse momento você fez o Aprendiz, como que o Aprendiz lida com, além da sua coluna e do seu programa de rádio, é desse momento o Aprendiz também, né?
R – É mais cedo, o Aprendiz é de... 1995. E a gente ainda tinha um ponto mais restrito, que era um lugarzinho na Vila Madelena, que era um outro beco que a gente montou uma casa lá, já não está mais lá. Era incrível, né? Porque a gente criou uma escola na praça, já não está mais lá, porque você parece que você vai levantando e alguém lá de cima vai, a sensação que eu tenho é essa, você vai levantando... Eu até desisti uma hora, porque a gente ajudava os grafiteiros e eles todos fumam maconha e o pessoal do bairro nos acusavam de ter ligação com os grafiteiros ganhando dinheiro com a polícia. Aí eu falei: “Aí é demais, cuidem vocês disso”. A gente tinha que lidar com os traficantes, né? E a nossa técnica foi coloca-los na escola, colocamos todos na escola, demos escola para eles, então é isso. Toda circunstância da minha vida foi ligado a cidades, foi ligado muito, é ligado muito a Nova York, que eu sinto como minha cidade, foi ligado muito a Londres, que eu quase sinto como minha cidade. Minha porque eu me sinto... Sei lá.
P/1 – Então é o lugar que você se sente mais...
R – Pertencimento. Nova York com toda certeza, Nova York eu fiquei lá muito tempo, né?
P/1 – E como mudou sua relação com São Paulo?
R – Ah, hoje para mim, São Paulo é um videogame, eu estou brincando lá de melhorar a cidade, aí vem um cara atira, dá uma rasteira no cara, um videogame. A Ana chama isso de vídeo... Como que ela chama? Egotrip. Mas muitas coisas que eu trouxe para São Paulo, seja de Medelín, seja de Bogotá, os papagaios resolveram fazer parecido, mas sem a estrutura. Por exemplo, eu divulguei muito aquele bondinho de Medelín, que é uma coisa de muita visibilidade, né? Aí não tem estrutura, acabou o bondinho. Mas eu acho que São Paulo está tendo uma evolução, você vê, mesmo essa coisa do isolamento, São Paulo não foi o pior, São Paulo foi um dos melhores de respeito, né? Eu não sei, acho que é um jogo que eu vou lá e...
P/1 – Me explica um pouco essa sua relação de produzir, de criar as oportunidades e, às vezes, ver elas se...
R - Acabando?
P/1 – Se acabando, que São Paulo tem muito isso, a gente põe, põe fé, de repente vai gratuitamente.
R – Vai e você tem que passar para frente.
P/1 – Como você se sente nessa situação?
R – Mas, por exemplo, o Aprendiz está vivo até agora, que é transformar o espaço urbano em um espaço educativo, o Aprendiz está vivo e acaba de receber um grande empurrão da Vale do Rio Doce, um grande empurrão, porque o Aprendiz tem no Brasil inteiro hoje, diversos territórios, tal. Agora, é frustrante, é igual lavar um quarto com seus filhos e netos todos brincando juntos, você lava uma, no final do dia, você tem que lavar mais dez. E o que me dói é que as autoridades municipais não têm essa noção do estadismo urbano, sabe? Nova York você teve estadistas urbanos, tipo Bloomberg agora, estadistas urbanos, as pessoas que pensam a cidade em um mundo, eles ficam viajando o mundo, vendo possibilidades. Aqui não tem, o Dória entrou, eu fiz ele assinar uma carta que ele ia ficar, o cara que ele deixou tem câncer altamente avançado. Eu tenho dúvida que ele tenha capacidade de fazer campanha, porque ele pode a qualquer momento ficar como eu estou, você consegue me imaginar indo lá para Vila Alpina fazer reunião com sindicato de não sei o quê? Não consigo. Mas é um processo encantador, sabe? Essa coisa de interagir com a cidade, descobrir coisas legais e “Tá aqui, olha aqui esse grupo, olha essa pessoa”. Tem um rapaz aqui, puta que pariu, que fica plantando árvore nas praças, sozinho, a única coisa que ele fez, foi ensinar os caras dos bares a fazer com pó do café, a fazer adubo, todos fazem adubo. É bonito, né?
P/1 – Tem uma mulher, não que eu faça isso na entrevista, mas eu vou te dizer, tem uma mulher que você adoraria conhecer, uma japonesa chama (Eiko?), ela tem 60 e tantos anos, ela pega todo dia, ela é aposentada, um serrote e uma bolsa e conserta os parquinhos, lá na Vila Madalena, ela conserta.
R – Essas histórias fazem com que a gente não desista, porque os meios de comunicação, eles tendem, já melhorou até, eles tendem a mostrar as coisas ruins, né? Tendem. Eu acho que uma das coisas que eu mais fiz foi focar na imprensa, sobretudo a Folha, eu pensava: “Não é possível isso, jornalismo é só desgraça?”. Tá errado, até porque não é desgraça só, tem coisas lindas feitas por pessoas maravilhosas, você entra nos laboratórios das universidades, você encontra um bando de moleque fazendo coisas legais para o meio ambiente, para mobilidades, essas coisas todas. Tanto que eu pedi pra, se eu puder ser enterrado no único cemitério em São Paulo, só tem um, então pedi para ser enterrado lá. Acho que é exótico, né?
P/1 – Onde você vai pedir para ser enterrado?
R – É uma coisa diferente, o cemitério fica na Vila Mariana.
P/1 – Na Vila Mariana? É aquele cemitério antigo judaico?
R – [assente] Tinha que me sentir em casa na minha cidade. Você já foi lá? É mais perto para a família ir também. É isso, faltou mais alguma coisa? Marcos, você acha? Porque essa fase era importante.
P/1 – Faltou?
P/2 – Estou pensando aqui, fala Karen.
P/1 – Eu ia falar, ainda nessa parte mais profissional, falar um pouco dessa sua relação que você falou um pouco, mas podia falar mais, com o jornalismo, com a própria Folha, que foi um lugar muito...
R – Então, foi, mas aí foi uma coisa muito interessante, foi uma evolução, porque eu fiz aquelas reportagens sobre meninas escravizadas, depois meninos assassinados, aí me deu um chilique na Folha, “Po, Gilberto, você vai só relatar essa coisa”. Aí eu criei uma ONG chamada Andi, se expandiu até por várias partes do mundo, que era para treinar jornalistas a encarar essa questão e treinamos ótimos jornalistas. Então a agenda do jornal ganhou um ponto, porque não tinha, né? Ninguém falava nisso, ainda se falava em regime militar, anistia, quando começou, né? Começou bem. Não estava muito na agenda, não se percebia que matar criança, explorar crianças fazia parte dos direitos humanos. Mas aí a coisa foi grudando, a gente trabalhou muito próximo da Globo, muito próximo, a Globo foi uma grande parceira nossa. Aliás, eu não sei porque falam tão mal da Globo, porque é muito melhor que Record, que SBT, sempre apoiaram nossas campanhas. A Record que é um... SBT que é um lixo, é um lixo, ele se expõe da forma mais vil com Bolsonaro. A vida é de fases, transformou as TVs dele em um canal do Bolsonaro, muito bem. Mas a gente conseguiu também criar essa relação porque eu tive a sorte de ter todos os prêmios, daí significava que eu podia ser ouvido. Mas eu tive os prêmios naquele lado lá, muitos prêmios, que ganharam, foi matéria de política, Collor, isso me ajudou a mostrar que tem um outro lado de uma reportagem forte, que pode melhorar sua carreira. Você não exige que as pessoas pensem só nos outros, né? Ninguém faz isso. Eu sempre penso assim, se alguém falar: “Gilberto, tem um bilhão de chineses, nós vamos matar um bilhão de chineses, a gente só não mata se você deixar matar seu neto”. Foda-se um bilhão de chineses, eu duvido que alguém falasse outra coisa. Eu duvido que alguém falasse: “Não, não, não, eu entrego meu neto para...”. Ou mais “Minha filha, meu filho, olha, eles vão morrer, mas em compensação você vai carregar”. Quem faz isso somos nós, mas não com a vida dos outros, nosso interesse, né? Eu não sei se estou ficando louco, mas eu acho, ninguém faz. Agora assim: “Gilberto, vai morrer um bilhão de... O que você pode fazer?”. “Vamos lá, vamos fazer um grupo de jornalistas, vamos nos unir aos grupos da Ásia, eu acho isso”. Até porque essa questão de filantropia não é o que muita gente pensa. Filantropia é um prazer, é um significado da vida, é um significado belíssimo da vida, em que você vê vidas mudarem. Todo mundo que faz filantropia, sabe que ele está tendo prazer ao ganhar o significado ou até poder, ou até poder. Você está em uma comunidade, você é mais rico, você ajuda a construir cemitério para sinagoga, o diabo a quatro, é um poder. É isso pessoal, foi?
P/3 – Eu ia te perguntar qual foi sua relação com a periferia?
R – Periferia? Dois jeitos, uma ligação muito próxima com a comunidade de Heliópolis, fui nomeado embaixador lá e do ponto de vista concreto, sou presidente da orquestra sinfônica de Heliópolis.
P/3 – Mas como que você foi nomeado embaixador?
R – Ah, o pessoal é muito amigo meu, tal, aí eles falaram assim: “Ah, Gilberto, você quer ser embaixador aqui, também vai ser o Ruy Ohtake”. “Po, Claro”. Aí eu sempre consigo ou tento conseguir coisas para Heliópolis, sempre, sempre estou tentando cesta básica. Fiz a aliança deles com a Unilever. Então conheço algumas empresas que querem por marketing fazerem alguma ação, para o marketing, né? Também, os funcionários gostam, engraçado, né? Os funcionários gostam de se envolver em uma comunidade, ficam felizes, felizes mesmo. Aí teve a orquestra sinfônica de Heliópolis que essa sim me deu um trabalho, me dá um trabalho, eu infelizmente estou sem força para ser melhor. Estou com cada vez menos força para andar, como é que vou?
P/3 – Mas como você assumiu a orquestra?
R – A orquestra ia fechar, não tinha dinheiro, ia fechar entre janeiro e março do ano que vem. Aí durante um ano, eu peneirei dinheiro, falando com empresários, inventando ações de marketing, quando fechou ano a gente tinha dois mil e duzentos de reserva. E muitas promessas para esse ano. Uma loucura, né? Essa coisa que você falou de um segundo destrói. E também o Catraca que eu tenho que batalhar, né? O Catraca estava bem até a hora que deu esse Corona Vírus.
P/1 – Mas você não falou que conseguiu uma super doação, quer contar melhor isso?
R – É, então, consegui. Aí quando vi que o Catraca estava sem dinheiro, liguei para amigos do Bradesco, amigos do Itaú, amigos da Porto Seguro, amigos da Magazine Luiza e fui direito “Olha, estou sem força, preciso da ajuda de vocês” e nenhum recusou. E a gente conseguiu uma verba de um milhão e duzentos, que dá pelo menos para essa passagem dos três meses. Aí levante um milhão e duzentos para eles. Mas é uma situação muito especial, eu conheço as pessoas há anos, ajudei projetos deles há anos, viajei com eles. Eu nunca pedi nada para mim, pessoal, assim. Mas até para não levantar suspeita, eu divulguei no Facebook que eu próprio abri mão do meu dinheiro para manter o Catraca e publiquei o recibo. Sacanagem estar pedindo dinheiro para o outro, os caras querem saber se o dinheiro não vai para você.
P/3 – Eu ia te perguntar, você está das relações, assim, como funcionam, mas se teve algum causo, algum contato com alguma criança que te marcou, algum episódio.
R – Sabe o que me marcou? Um deles foi a Esmeralda, que era uma menina de rua, traficante, ela veio ficar com a gente para tirar o vício, está aí normalmente. E teve uma... É que são tantos casos, mas sempre foi atividade com criança e com comunicação, a pessoa era treinada a comunicação mais a educação, novas tecnologias, para ela... Olha, muitos estão bem aí, sabe? Eu achava que o elemento comunicação, você colocar um computador com uma pessoa, a internet, ia ser a gota d’água. Porque quando eu estava em Nova York, eu entrei em uma cadeia lá, os presos davam poesia, era incrível, como a poesia servia de... E eles fazendo poesia e eles ouvindo Shakespeare, eles ouvindo Shakespeare. Eu não entendo Shakespeare, começa daí. Então, eu descobri que tem alguns pontos que você agarra a pessoa, depois de muito tempo, depois talvez de anos, muita diferença. A Esmeralda escreveu um livro chamado: “Esmeralda, por que não dancei”. Ela conta toda a trajetória dela, toda trajetória do tráfico, das mortes que ela viu, hoje ela está com uns 30 anos, meu Deus do céu, 30 anos.
P/1 – Posso te fazer uma pergunta, que acho que é uma coisa sua agora, nesse momento, que você falou na outra entrevista, “A única coisa que me irrita muito é o Bolsonaro” tem uma situação, digamos, essa sensação de estar construindo sempre muita coisa e a gente entra em ventos de muita destruição. Eu queria tentasse falar assim, qual é a sua sensação, porque agora, hoje você falou “Agora estou cansado, não consigo andar até lá”. Está lidando com a morte iminente, o que são essas coisas tão bonitas e essa sensação que muitas vão se evaporando te dá, qual é a sua relação?
R – Dá uma sensação de Sísifo, Sísifo foi condenado a Deus, por Zeus a subir o ponto mais alto da montanha e empurrar uma pedra, empurrando uma pedra e quando a pedra está lá, ela começa a descer de novo. O Brasil me dá uma sensação de Sísifo, essa lenda de Sísifo, ele leva, porque ele foi condenado por mostrar o fogo aos homens, ele leva, coloca lá em cima e vem, e a existência dele se resumo a isso. É assim que eu me sinto um pouco de ver o quanto a coisa está sendo destruída, de avanços sociais, de tratamentos de saúde, de conceitos básicos de como você tem que ser tratado. O sujeito vai em uma comemoração, pega na mão das pessoas. O presidente, antes de mais nada, é um formador de opinião, acabou aquela história do presidente que vai lá na obra, ele é um formador de opinião. E o Bolsonaro é bom formador de opinião, como que depois desse rolo todo, ainda tem 30% de apoio? Como? 30%. Onde está esses 30%? Não deveria ter isso, ou seja, tem uma classe média poderosa, ignorante no poder. Você viu quando ele dá entrevista? Com camisetinha de futebol. Camisetinha, o que mais... Aquela bermuda que vem até aqui. É, foi uma praga que está acontecendo, é uma praga, realmente, é uma praga.
P/1 – Isso sim, mas isso te dá: “Po, fiz o que pude?”. O que você sente com isso?
R – Eu me sinto, nesse caso, assim, eu me sinto meio fracassado.
P/1 – Se sente?
R – Porque eu tive várias porradas e a maior delas nem foi o Bolsonaro, foi o Trump, porque o Trump faz influências mundiais. Você viu que o Trump recentemente recomendou, diz ele, de forma sarcástica, recomendou que as pessoas tomassem desinfetante? Muita gente tomou desinfetante. Como um presidente fala uma coisa como essa? Se colocou a mitomania no ponto mais grave que a humanidade já viu, de mentir, de mentir, de mentir. Eu não queria deixar o mundo assim, não. Não queria, não. Porque ficou muito feio, ficou muito feio. É isso.
P/3 – Eu queria te fazer só mais uma pergunta, tem um filme japonês que chama “Depois da vida”, aí a pessoa depois que passa pela vida, ela leva só uma memória que fica acontecendo eternamente com ela, eu queria te perguntar, se você pudesse escolher uma memória dessa vida para levar, qual seria?
R – Foi a Bolsa-Escola, Bolsa-Escola, porque, eu cheguei a contar, não sei, a coisa mais poderosa que eu fiz na vida foi ajudar (fiabilizar?) a Bolsa-Escola. Essa ideia começou na periferia, aí eu fui lá na Unicef (Onu), porque o Cristovam é a pessoa mais legal do mundo, mas é meio... Em inglês chama “space out”, fora de... E aí eu levei, ninguém se falava nisso, eu levei lá a ideia para Unesco e para Unicef. Eu falei: “O pessoal aqui tem uma ideia imbatível, posso garantir para vocês, imbatível, ela é totalmente produtiva, totalmente sustentável, tal”. Aí o Cristovam já tinha assumido como uma coisa poderosa, ele não tinha nem percebi que a... Aí eu pedi para o pessoal da Unesco e da Unicef que fizesse uma avaliação de impacto e espalhasse no mundo. Aí foi para Ásia, foi para Bangladesh. O que eu não esperava é que um dia eu estava no café da manhã, lá na ______ [49:45 parte dois], eu vi uma matéria de duas páginas no New York Times, elogiando essa como uma decisão planetária, que estava indo para o México e tal, e que Nova York já tinha criado um programa chamado possibilidade para pegar as pessoas mais pobres. Eu acho que essa imagem é que o me dá mais, a ideia da Bolsa-Escola depois virou Bolsa-Família, eu nunca apareci, nem fiz questão de aparecer. Mas depois de certo tempo, saíram milhões e milhões de pessoas usando o Bolsa-Escola na África, na Índia, espalhou em tudo quanto é quanto. Eu me sinto feliz por ser ali exatamente o que eu sou: fazendo da comunicação uma forma de enriquecer as pessoas. E porquê dessa vez teve muito impacto, maioria das vezes tem impacto local, outras vezes tem impacto, sei lá, municipal, assim, que pega.
P/3 – Mas o que é o Bolsa-Escola, eu não entendi muito bem o que é.
R – Então, é assim, a gente teve a ideia de fazer o seguinte projeto: se você deixar seu filho na escola, você recebe uma quantia, levou o nome de Bolsa-Escola. Aí essa quantia teve impacto enorme na vida escolar das crianças, porque a mãe deixava o filho na escola e era favorecida por um dinheiro. A ideia foi considerada a ideia mais poderosa socialmente no Brasil pelo MIT, que tem um sistema de filtros. Aí o Antônio Carlos Magalhães, que era um político, ele encheu essa bolsa com mais dois bilhões. Aí veio o Bolsonaro, e colocou o décimo do Bolsa-Escola. Então se eu tivesse que ter uma memória sempre do empoderamento que um indivíduo tem e pode ajudar era essa, porque o resto é meio vaidade também. Você faz sucesso com os coleguinhas. Mas isso foi um ponto... E sabe que só foi resolvido, divulgado agora, uns três, quatro anos, porque o Cristovam fez um livro e citou esse episódio, Cristovam Buarque citou o episódio de como eu entrei e tal. Mas não importa, importa que eu usei o processo comunicativo para... E essa é a minha definição como vida, essa é a minha definição. É solidariedade? Um pouquinho. É filantropia? Um pouquinho. O que é? É o prazer de ver o mundo ser melhor. O que é? É o prazer. Eu estaria mentindo se falasse: “Nossa, me deu tanto trabalho, não sei o quê, não aguento mais”. Não, eu nunca deixei de aguentar e o que sustenta tudo isso é o prazer. É engraçado que as pessoas não veem isso, até elas perceberem como que a Bolsa-Escola, como a filantropia dá prazer para uma pessoa, ela vê vidas renascendo, vê vidas, muita gente banca hospitais, você chega lá e fala assim: “Olha que maravilhosa isso”. É assim. Eu tenho horror a esse heroísmo da filantropia porque eu acho que é mentira: “Nossa, estou sofrendo, não sei o quê”. E dá dinheiro, dá dinheiro, mas é que tem muito, não estou condenando, eles dão, tem pessoas que dão muito dinheiro, o que é muito legal, mas eles têm muito. Não vai faltar Corn Flakes no dia seguinte, no café da manhã. É claro que esse tipo de busca de prazer é o máximo, né? Porque você faz a vida. Tem uma história tão maravilhosa, eu estava para ir embora de Nova York, naquela época, eu bebia todo dia, todo santo dia era um peixe com vinho branco, a garrafa inteira. Aí uma amiga minha falou assim: “Você vai muito no Metropolitan?”, um museu maravilhoso, tal. “Vou, claro. Sempre, gosto dos impressionistas, tal”. “E você já viu as flores?”. “Claro que eu lembro” tem um vaso chinês, flores exuberantes do México, do Afeganistão, é uma coisa de louco aquilo ali. “E você sabe a história?”. Aí ela me fez suspense, eu falei: “Não, não sei a história.”. “Vai lá, atravessa a rua aqui e vai lá”. E era uma mulher muito rica, muito rica, muito rica, que deixou um endowment, um fundo para todo dia, toda semana trocar as flores do Metropolitan. Então essa mulher vai sobreviver infinitamente na forma de flores do Metropolitan, pode ter um jeito melhor de morrer? Toda vez que alguém entra lá, vai lidar com a vida dela. Você nem sabe, mas ela está lá com as flores. O chinês tem uma definição mais próxima disso, o chinês diz que se você deixa alguém acender a vela dele na sua, ninguém perde luz e fica todo mundo ainda mais iluminado, é muito legal.
P/2 – Pegar dessa linha, assim, você entendeu, de tudo que você contou, muito o poder transformador e sensibilizador da arte, da cultura, como que isso chegou para você, assim, você lembra quando foi o primeiro contato, o primeiro impacto com literatura, pintura, cinema?
R – Eu sei exatamente. Eu sei exatamente sabe por quê? A influência vem da Bahia, eu fui discípulo do Cesar ____ [57:50 parte 2], que criou uma série de programas para jovens, ele usava muita música, muita moda, muito tudo isso. E os meninos sentiam um prazer de ser bonito, cantar, era incrível e os meninos, muito deixavam a marginalidade, então foi a Bahia, foi esse caso, inserido naquela Salvador em que a arte está na rua. Aí depois eu fui morar em Nova York e esse tema se tornou recorrente para mim, quem são as pessoas que... Ah, pra você imaginar, tem meninos de periferia que ficam fazendo curso lá no Lincoln Center, é massa, né? Melhor escola do mundo. Outros fazem curso só em ópera, aí um vai preparar o pau do estágio, outro vai preparar o roteiro.
P/2 – Agora, eu queria saber de você, quando isso pegou para você? Antes de você ver nos outros, quando você viu em você?
R – Essa coisa da arte?
P/2 – É.
R – Acho que eu vi de fato, quando eu vou para Nova York, porque ali mostrou a efetividade do uso da cultura, da comunicação e da arte para pegar meninos ainda pequenos e incluí-los na sociedade. Você vê, tem um projeto do Wynton Marsalis, que é o educador máximo, o pai dele morreu, então hoje ele é o educador máximo, ele pega meninos negros pela periferia e fica conversando com eles. Isso que eu chamo de glóbulos brancos da vida. Agora, tem pessoas muito maiores. Eu tenho alguns exemplos no Brasil que são incríveis, esse é um deles, para mim, outro grande exemplo é o Sebastião Salgado, você sabe que toda vez que eu estou metido a besta, achando que eu sou ótimo, tal, eu penso no Sebastião Salgado e volto para o meu lugar de não ótimo, de não excelente pelo trabalho que ele faz. O que ele fez? Além disso, não se vocês sabem isso, ele ainda comprou terrenos no Vale, extraordinário, né? O cara que é um alto profissional. Não tem muito... Você sabe que nessa hora que eu estou no fim, o médico já disse que é pouquinho tempo, eu tive que fazer testamento. Chamei todo mundo aqui, tudo certo. Eu não sei como tem briga, entendeu? Se matam por testamento. Eu acho uma ofensa com o cara que vai morrer, acho uma ofensa. Na minha família nunca teve isso, meu pai morreu e todo dinheiro um irmão sozinho, sem falar com a gente, acertou, um irmão, eu nem sabia. O livro meu vai chamar: “Os melhores últimos minutos da minha vida”. Mudei, porque pensei que ia mais tempo, mas eu estou bem de humor.
P/1 – Você continua acordando, semana passada você disse para mim “estou acordando iluminado”...
R – Em fases de encantamento. Não sei como acontece isso.
P/1 – Então me explica essa sensação, é uma sensação muito importante que você explique, para você e para os outros.
R – Eu não sei. Eu te juro que eu não... Porque a tendência natural era você estar batendo a cabeça na parede, mas a minha tendência natural foi mostrar que eu tinha uma nova vida que era tão interessante quanto ou até mais interessante. Nunca ninguém me falou assim: “Para de fazer isso”. Estou me sentindo em uma liberdade, eu vou embora, mas vou para, talvez, uma dimensão que eu não conheça. Eu tenho um lado meu que é bem espiritual, né? Então é isso... Essa é a coisa mais estranha, de repente você está sentindo um encantamento sem nada, sem ouvir uma música, sem ler um livro, sem nada. Mas é um encantamento tão gigantesco, vai subindo, vai subindo, assim, parece como se eu estivesse ouvindo o quarto movimento da nona sinfonia de Beethoven, sabe aquele que ele acaba com a orquestra, e tal? É isso. Mas foi nesse momento em que os médicos disseram... Que eu comecei a fazer trabalho paliativo, né? Eu perguntei para a enfermeira chefe: “Eu só quero saber de uma coisa, vai doer?”. Ela falou: “Não, não vai doer nada, quando você menos esperar tem morfina no seu corpo dando prazer para ele”. As pessoas têm pavor da morte porque acham que vai doer, né? Muitas têm.
P/1 – Não sei. Você acha que, doer é uma parte, né? Você acha que pavor da morte, você tinha pavor da morte antes de ficar doente?
R – Não tinha, não tenho, resolvi aproveitar a vida, resolvi aproveitar a morte como um estimulo a minha melhor parte da vida. Eu acho que todo devia ser assim, todo mundo está assim para morrer, devia falar assim: “Olha, tem uma nova vida ai que pode demorar seis, sete, oito meses, transformar ela em uma coisa legal”, porque o que podia dar medo era a dor, né? Eles não deixam mais sentir dor, eles te montam um esquema inteiro que te mandam uma enfermeira aqui ou então te mandam um remédio.
P/3 — Queria fazer outra pergunta, você disse que é muito bom de dar títulos, né? Qual título você daria para a sua vida?
R – Dei título de livro, que não é o da minha vida, né?
P/3 – É, o título da sua vida.
R – Qual? Como eu daria? Eu daria um título em latim 'Sic Transit Gloria Mundi' significa “A glória do mundo é efêmera”, para quem fez sucesso em alguma área, as pessoas entendem, você está lá na Folha, não sei o quê, não sei o quê, agora você não tem mais nada. Você vai indo sem arrependimento de sucesso. “Sic Transit Gloria Mundi”, que é um jeito de morrer que é... Você tem que ser... Olha, se você envelhece sem essas noções, puts, é um... Eu me lembro que toda vez que eu vejo esses caras de sessenta, cinquenta, gordos com aquela capa preta, aquela moto e rabo de cavalo, eu falo assim: “Se você me vir assim, você me interna”, porque a coisa mais terrível que você pode ter é ficar lutando contra a velhice, você luta contra a velhice, você não usufrui a vida. Tem pessoas que é natural, o Fernando Henrique, a Fernanda Montenegro, o Niemeyer que já se foi, pessoas naturais, para mim não é natural. E uma das ilusões das pessoas é a celebridade, viu? Ser conhecido. A celebridade talvez seja a coisa que mais vicie em um ser humano, ele deixa filho, deixa mulher, deixa tudo. E a celebridade ela é insuportável de perto. Pega um cantor de sertanejo ou um político, o próprio Bolsonaro é celebridade, que não sabe lidar com a celebridade, ele não sabe lidar, essas coisas que ele faz mostra que ele quer aparecer, quer se afirmar. É isso pessoal, ajudou essa daqui.
P/1 – Sim. Gilberto, vou te pedir um favor, você pode?
R – Posso.
P/1 – Se você quiser, você falou uma coisa muito bonita para mim no telefone, assim, do depoimento ter sido profundo, então não é uma coisa por mim, é uma coisa pelo Museu.
R – Ta bom.
P/1 – Então, queria que você falasse um pouco disso, para o Museu mesmo. O que você acha que isso significa?
R – Pode deixar. O Museu da Pessoa, do qual eu tive o prazer e a honra de ser entrevistado, ele produz sem nenhum exagero os depoimentos mais profundos, porque você não senta nessa cadeira e fica meia hora, você vai falando, falando, falando. O Museu da Pessoa é quase que um Museu das almas, não existe assim no Brasil, acho que em nenhum lugar do mundo, um museu dedicado a colher depoimentos de pessoas famosas, de pessoas invisíveis. É tão animadora essa experiência que eu acho que deveria ter programas nas escolas estaduais, municipais, levando alguns desses depoimentos para serem ouvidos porque são pessoas que tem coisas muito legais para falar, tanto boas, como ruins. Então, puts, eu sou fã e eu falo isso sendo jornalista, porque o jornalista podia ser crítico em relação às entrevistas, né? Podia achar que está ruim, podia achar que é supérfluo, não, não, é uma coisa... Eu digo que é uma forma revolucionária do uso da comunicação para descoberta de como pensa e como age o brasileiro.
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