P/1 – Primeiro, Aristides, eu vou pedir pra você falar pra gente o seu nome completo, a data e o local de nascimento.
R – Meu nome completo seria Aristides Teodoro Palmeira da Silva, o meu pai eliminou Palmeira e eu faço questão de tirar o Silva, porque eu não sou descendente de presidente, parente de presidente.
P/1 – Agora data e local de nascimento.
R – Vinte e sete de novembro de 1937, em Utinga, que é uma pequena cidadinha no interior da Bahia, no meio, no núcleo do estado, fica ali na Chapada Diamantina baiana, que diz que é uma das regiões mais bonitas do mundo. Eu vim de lá molecão e praticamente não lembro quase, eu lembro do rio, eu lembro de alguma coisa, mas eu me criei aqui na região do ABC paulista, eu tenho 60 e poucos anos aqui no ABC e nunca mais voltei à minha terra.
P/1 – Agora o nome completo do seu pai e da sua mãe e, se o senhor souber, também o local e a data de nascimento deles.
R – Meu pai chamava-se Cosme Teodoro Palmeira da Silva e nasceu numa região que chamava-se Morro do Chapéu, também na Chapada Diamantina baiana, que é um lugar, dizem, eu não cheguei a conhecer, que parecia uma coisa suíça, diz que é muito frio, é uma região de pé de serra, frio, muito frio, muito frio mesmo. E minha mãe nasceu em Utinga, onde eu nasci também. O meu pai é descendente de portugueses, meu pai inclusive era branco, e minha mãe filha de índio e negros, que é aquilo que você viu lá, minha mãe era uma indiona.
P/1 – O senhor nunca voltou pra Utinga depois?
R – Não, nunca voltei, nunca voltei.
P/1 – Com quantos anos o senhor saiu de lá?
R – Eu saí de lá nos anos 50 e cheguei aqui, meu pai comprou uma chacrinha em Mauá, Mauá pertencia a Santo André na época, aquilo tudo era mato e não valia nada, o meu pai comprou porque nós morávamos no Ipiranga e uma renca de filhos, e meu pai não podia pagar o aluguel, então era pedreiro, comprou aquele pedaço de terra e nós fomos morar em Mauá, que Mauá era um sertãozão na época. Acostumei na cidade, gostei da cidade etc., hoje gosto desesperadamente da região.
P/1 – O senhor falou que o seu pai era pedreiro, né?
R – Pedreiro.
P/1 – Eu queria saber o que o seu pai e a sua mãe faziam profissionalmente.
R – Meu pai, como eu já falei, era pedreiro, e minha mãe dona de casa, uma grande mulher e o meu pai também um grande homem, enérgico, imensamente enérgico, mas um grande homem também, dentro da sua esfera um grande homem.
P/1 – Como é que era o jeito deles, a personalidade?
R – Rude, rude, rude, imensamente rude, era um sujeito, que ele estava conversando, vamos que, num caso assim, você passasse ali, ele bastava olhar pra você, você sabia o que ele queria, mas... E eu não pude estudar, porque na época Mauá pertencia a Santo André, como eu estou lhe falando, era um sertão, não tinha escola, não tinha nada, eu comecei a trabalhar com nove anos como office boy de um jornal. E foi aí que eu me tornei jornalista, eu era muito feio, como sou até hoje, e tinham três office boys, eu magrinho, feio, uma cara de faminto, nordestino, e dois bonitos, os dois bonitos saíam pra rua pra entregar coisa e eu lavava banheiro, etc. Mas aproveitei, como todos os males vem um bem, na época eu lia, tinha um jornalista, um tal de Filadelfo, que eu gostava imensamente dos artigos do Filadelfo, e eu admirava aquilo e queria ser escritor, queria ser jornalista, mas um cara que não tinha estudo nenhum, praticamente, então não tinha possibilidade. Mas meu pai era um homem culto e meu pai lia muito, eu lia aqueles livros do meu pai e na época teve um cidadão que abriu uma ficha pra mim aqui na Biblioteca Mário de Andrade, eu era moleque, não podia pegar, eu pegar uns. Até que peguei um livro do Mário de Andrade, chama-se Macunaíma, e o livro é cheio de palavras exóticas, palavras estranhas, e eu risquei aquilo com lápis, aquelas palavras estranhas, quando eu fui devolver o livro, o rapaz que recebeu o livro abriu o livro e não gostou, porque eu risquei o livro. Me levou a um cidadão superior a ele, lá em cima, o cara olhou, disse: “É, ele não danificou o livro, só fez isso?”, “Só”, “Empreste outro livro pra ele, o Voltaire riscava livro, Rui Barbosa riscava livro”, disse pra ele, ele não gostou. Saiu daquela porta, entrou em outra porta e me apresentou uma senhora, e a senhora me deu uma esculhambação terrível: “Casse a ficha dele”, então cassaram minha ficha e eu fiquei sem ler, fiquei sem ler. Na Biblioteca de Santo André tinha uma senhora, chamava-se Nair Lacerda, que é uma escritora famosa, ela dirigia a Biblioteca de Santo André, dirigia a biblioteca, eu ia e lia e devolvia o livro. Até que um dia ela cansou daquilo, chegou: “Por que você não leva o livro?”, eu digo: “Eu não posso levar o livro porque eu não sou daqui, eu moro em Mauá”, no outro dia ela tornou a fazer a mesma pergunta, eu tornei a dizer a mesma coisa, aí ela abriu uma exceção pra mim. Abriu uma exceção e passou a me emprestar livros, me emprestou dois livros de primeira, a primeira vez, e tenho uma consideração imensa por essa figura, escrevo muito sobre ela, e que onde ela estiver que a terra lhe seja leve.
P/1 – Como é que o senhor se alfabetizou, Aristides?
R – Lendo, lendo, só lendo, eu não tenho alfabetização nenhuma escolástica, pra dizer que eu não conheço escola, eu faço palestras em faculdades, em escolas etc., mas eu só li. E foi bom esse negócio da Mário de Andrade, porque me forçou a comprar livros, vocês são novos, não lembram disso, ali na Praça da Sé, junto da igreja, tinha uma livraria, chamava-se Gazeau, era um francês, e tinha um dos maiores sebos de São Paulo. Nós trabalhávamos a semana toda e aos sábados íamos no Gazeau comprar uns livrinhos que o Mário Graciotti publicava no passado, chamava-se Clube do Livro, e nós comprávamos aqueles livrinhos ruins. O Gazeau passou a gostar tanto de mim que, o meu dinheiro era curto, eu comprava esse livro e ficava doido por esse outro, e ele dizia: “Leve, meu filho, e a semana que vem você me paga”, na época o fio de barba era alguma coisa, e eu comprava, pagava este e a semana que vem eu ia novamente e pagava o que eu levei fiado. Então foi assim que eu comecei fazer, tem males que vêm pra bem, foi muito bom a Mário de Andrade ter me cortado, porque assim eu passei a comprar livros. Do meio pro fim eu me tornei jornalista e passei a criticar livros, passei a criticar livros, que faço isso até hoje, e é onde passei a publicar meus livros com resenhas, eu estou num jornal há 30 anos, essa revista, inclusive escrevo pra essa revista, aqui, por exemplo, tem um artigo meu sobre Louis Armstrong, essa outra aqui. Eu conheci o Jorge Amado, conheci e nos tornamos, não quero dizer que fui amigo de Jorge Amado, não, o ano passado, por ocasião dos cem anos do Jorge, o Museu de Mauá fez uma homenagem ao Jorge Amado e expôs 19 autógrafos e cartas que o Jorge mandou pra mim. E aqui, nesse aqui, uma capa feita pela Neli, aquela menina que você viu lá, e tem meu nome aqui, eu disse, na minha frase dizia: “Ler Jorge Amado é progredir” e aqui eles colocaram e colocaram Aristides Teodoro, que é esse artigo aqui, daqui até aqui eles falam do Jorge e daqui pra lá é um artigo meu sobre o Jorge Amado, que está publicado também nisto aqui. Esse livro foi eu e a Iracema que organizamos pra uma editora de Mauá e tem dois artigos meus aqui, que aqui que eu te falei, quando eu publiquei isto, eu mandei o recorte pra editora no Rio de Janeiro, esse artigo aqui é meu e mais um aqui. Mandei um do Bárbaro de Jorge Amado, isso aqui, pra editora no Rio e a editora mandou pra ele, estava em Paris, e ele mandou uma carta pra mim, essa carta eu dei ao museu e desapareceu, mandou uma carta e diz assim, que o meu texto foi um dos melhores textos que publicaram sobre a obra dele no Brasil. Mas é mentira, porque ele só sabia elogiar, como ele só sabia elogiar, é totalmente mentira, que grandes críticos escreveram sobre ele.
P/1 – Foi assim que o senhor começou a se corresponder com o Jorge Amado?
R – Foi, foi assim.
P/1 – Foi a partir da publicação desse artigo.
R – Não, foi antes do artigo.
P/1 – Então me conta um pouco essa história, como é que o senhor conheceu o Jorge Amado?
R – Eu sempre escrevi e uma vez eu publiquei um texto de sertão, um continho sobre sertão, e mandei pra ele, eu li toda a obra dele e tenho toda obra dele, mandei pra ele e ele mandou este livro pra mim, dedicado, diz assim: “Para Aristides Teodoro”, eu sou péssimo pra ler letra manual: “Agradecendo o envio dos contos e desejando-lhe sucesso, Jorge Amado, Salvador, 1971, li os contos, você tem jeito, o que precisa é trabalhar com dedicação”. Foi através disso, e ele de uma bondade extrema, ele publicava a capa do último livro que ele publicou, ele publicava num cartão de natal e me mandava aqueles cartões de natal, de vez em quando eu mandava um troço pra ele, ele me mandava uma carta. Só que eu peguei tudo isso e doei ao Museu de Mauá e simplesmente desapareceu de lá, eu tenho só os livros autografados, tenho 19 livros autografados por ele, que foram expostos durante um mês do Museu de Mauá. E fiz também uma palestra sobre ele num ginásio de Santo André, fiquei chocado, num ginásio de elite, e quando eu cheguei as paredes estavam forradas por fotografias minhas e das capas dos livros de Jorge Amado, está até aqui as fotos, está por aqui as fotos. Foi assim que eu conheci o Jorge Amado.
P/1 – Esses contos que o senhor mandou pro Jorge Amado foram os primeiros contos que o senhor escreveu?
R – Sim, foram um dos primeiros contos que eu escrevi.
P/1 – Era um livro ou era um conto?
R – Não, era um conto publicado em jornal, menina.
P/1 – Qual que era o conto?
R – Eu não lembro, os contos eu não lembro, qual foi, meus contos são muito parecidos, eu não lembro, está publicado por aqui, que eu escrevo muito sobre esse tema de cangaceiro, sertão etc. É uma cidade imaginária, a cidade chama-se Curiapeba, isso não existe, isso é minha cidade lá e um pouco de Mauá, como eu vi Mauá nascer, eu fundi uma coisa com outra e aqui tão os políticos desonestos, os safados, os cangaceiros etc. e gente boa também.
P/1 – Deixa eu voltar um pouquinho, Seu Aristides, pra sua infância, eu queria saber se o senhor tem irmãos, qual que é o nome dos seus irmãos?
R – Tenho, tenho alguns irmãos, eu tenho, o segundo abaixo de mim chama-se, chamava-se Adelina, que eu dei o nome lá, eu esqueço muito, Adelina Teodoro Martins, o outro chamava-se, meu pai lia muito, chamava-se Sigismundo Teodoro da Silva, esse Sigismundo veio do Freud, Sigmund Freud, veio esse. Depois veio o outro, chama-se Otocar, que também era um filósofo, parece que grego, um negócio assim, moderno, depois veio outro que chama-se Juvenal, esse Juvenal é professor da Universidade da Bahia e só, e outro, tem uma menina também, que chama-se Jacinta, é isso, meus irmãos são isso aí.
P/1 – O senhor se lembra dessa viagem de Utinga pra Mauá?
R – Muito, muito, muito.
P/1 – Como é que foi essa viagem? Conta pra gente.
R – Menina, foi num daqueles, nos anos 50, nós levamos 15 dias pra vir de Utinga até São Paulo, até que a minha terra não é terra de seca, não é, nós viemos de pau de arara até uma cidade na Bahia, chama-se Rui Barbosa. E de Rui Barbosa, quando eu vi um trem pela primeira vez, nós tomamos um trem, que era aqueles trem ronceiro, tardio etc. etc., 15 dias, o trem quebrava e a gente ficava no meio da estrada, sofrimento terrível nesses Brasis brasileiros.
P/1 – Quando o senhor chegou em Mauá como é que era Mauá, qual era a diferença de Utinga? O senhor se lembra qual foi a impressão que o senhor teve da cidade?
R – Nós viemos primeiro, nós tínhamos parentes na Vila Carioca, conhece a Vila Carioca, aqui no Ipiranga? Nós viemos pra ali, aquilo era um barro preto, terrível, tinha poucas casas e era um barro tremendo, nós moramos ali um certo tempo e não dava pra pagar, era um cortiço e não dava pra pagar, o meu pai só trabalhava, só o meu pai trabalhava. E o meu pai tomava o trem pra vir trabalhar, um dia deram-lhe um folheto que vendia terra em Mauá, e Mauá fica pra lá um pouco, fica no ABC, ele pegou, e aquelas terras eram quase doadas, porque não valia nada, era mato tudo aquilo e o cara vendia as terras, 600 metros de terra, e dava tijolos, porta, uma janela, pra aquilo povoar. E meu pai arriscou, como maluco, não dava pra pagar o troço aí, e comprou e fez uma casinha lá, e nós fomos pra lá, morando no mato, era de tal maneira, que eu posso dizer como era o sertão, que o velho passou a criar porcos, eram 600 metros de terra, e os porcos dormiam, assim, no pé da parede, aquilo tudo era mato, e a onça, quando tinha fome, ia pegar um porco ali, pra você ver o que era. Nós fomos desbravador daquela cidade, eu vi a cidade nascer, como eu vi a cidade nascer, a minha ficção é baseada em cima de uma cidade nascendo, a cidade nasceu e proliferou, é tanto que, modéstia à parte, mas minha ficção é muito elogiada.
P/1 – Como é que era a casa do senhor, essa casa que o pai do senhor construiu em Mauá?
R – Era uma casa de tijolo, tijolinho, aquele tijolinho a vista, ruim, casa de pobre, mas como ele era pedreiro, ele levantou a casa, levantou a casa, o cimentado era tijolo também, coberta de telhas, um frio desgraçado, porque a barragem é muito fria, no pé da serra, é muito fria, foi isso.
P/1 – E as brincadeiras quando o senhor era criança?
R – Eu não brinquei, menina, eu não fiz brincadeira, eu não tive infância. O Papini, que foi um grande escritor italiano, doido, foi um miserável, quase igual a mim, ele foi pior, porque ele foi mendigo, eu nunca fui, eu sempre trabalhei, ele tem um livro, chama-se L´Uomo Finito, O Homem Finito, e ele diz assim: “Nunca tive infância”. E eu digo a mesma coisa, eu nunca tive infância.
P/1 – Nem com os seus irmãos, não tinha nenhum momento de brincadeira?
R – Não, não de maneira nenhuma, trabalhávamos.
P/1 – Desde que idade o senhor trabalhava?
R – Eu comecei a trabalhar com nove anos, com nove anos.
P/1 – O senhor mencionou que esse gosto pelos livros veio do seu pai, provavelmente, que era um homem que lia muito.
R – Veio do meu pai, meu pai lia muito, meu pai era um homem culto, cultíssimo.
P/1 – O senhor se lembra, assim, do primeiro livro que o senhor leu ou do primeiro livro que tenha marcado mais?
R – Lembro, meu pai me deu um livro, chamava-se O Galo de Quatro Pernas, era um livro infantil e meu pai deu um para mim e um para minha irmã, eu não lembro o nome do escritor, era um escritor italiano, não lembro. E depois meu pai nos presenteou com Monteiro Lobato, tenho paixão por Monteiro Lobato e leio até hoje, tem um livro dele que eu acho que eu já li umas 20 vezes, chama-se O Saci, grande escritor da minha vida, o Monteiro Lobato. E aí li Bilac também na época, que tinha aqueles livros infantis, o Viriato Correa, eu li muito essa gente aí e peguei o gosto por livros, por comprar livros, comprar livros, comprar livros. É tanto que eu recebia o pagamento, dava o que precisava em casa e o resto, não me interessava se comprava uma camisa, eu sempre gostei de andar limpo, porque a minha mãe, a gente não tinha muito roupa, mas minha mãe fazia questão de eu andar limpo, sapato engraxado etc., e o resto eu ia no Gazeau comprar livro, começou assim.
P/1 – Esse primeiro trabalho do senhor, com nove anos, qual que foi, como é que o senhor encontrou esse trabalho? Conta um pouco pra gente.
R – Esse trabalho, menina, eu tinha um amigo e o amigo trabalhava em jornal e o amigo é que me levou, chamava-se Filadelfo, que me levou e me apresentou na redação, foi por aí, assim, mais ou menos, que eu comecei a trabalhar.
P/1 – Qual que era o jornal?
R – Chamava-se Gazeta do ABC, Gazeta do ABC.
P/1 – E aí como é que era o trabalho nesse jornal, o que o senhor fazia?
R – Ô, menina, a coisa mais rudimentar eu fazia, eu entrei lá como office boy, mas é como eu te falei, como eu era feio, saía os bonitos, eu lavei banheiro, eu fazia maços de jornais e amarrava maços de jornais, trabalho praticamente braçal.
P/1 – Quanto tempo o senhor ficou?
R – Eu trabalhei pouco tempo aí, menina, daí eu saí, me arrumaram outro emprego numa fábrica no Ipiranga, ali perto da Presidente Wilson, e eu trabalhei um certo tempo na Presidente Wilson. E do jornal, um desses amigos nossos criou uma coluna num jornal de Santo André, depois que eu saí do jornal, chamava-se A Baronesa, uma coluna, e nós tínhamos um grupo de poetas, que esse grupo, nós fomos os primeiros elementos a criar grupos de poetas na região, isso foi nos anos 60, antes da ditadura um pouquinho, 58 mais ou menos. Nós criamos um grupo de poetas, chamava-se Colégio Brasileiro de Poetas, dez sujeitos, dez elementos, a Iracema faz parte, desses elementos nós publicamos três antologias. A primeira chamava-se Dez Poetas em Busca de Um Leitor, que é baseado numa peça do Pirandello, depois publicamos outro que chamava-se Revoada de Pássaros Negros e terminou com outra antologia, o Útero da América. Durou 20 anos o grupo, depois de 20 anos o grupo cresceu muito, eram dez, como eu já falei pra menina lá também, a Laura, depois que cresceu, 60 pessoas, aqueles últimos que entraram no grupo, tinha alguns sujeitos ricos, e aquilo era novidade, todo mundo queria ver o seu nome em letra forma. Aqueles elementos entraram no grupo, muitos deles não sabiam ler, não sabiam gramática, mas tinha dinheiro, e eu corrigi uma vez um, nós estávamos publicando uma antologia e eu corrigi a gramática de um desses elementos. Quando corrigi o cara virou um bicho, virou e moveu um processo contra mim, eu recebi duas cartas do advogado dizendo que se eu não comparecesse lá, poderia acontecer coisas drásticas comigo, aí eu fiquei desgostoso com aquilo e deixei de ir ao grupo e o grupo faliu. Faliu e nós passamos a trabalhar por conta própria, vamos se dizer, a Iracema e os outros dispersaram. Surgiram outros grupos no ABC na época, mas elementos que tinham mais arrogância do que literatura, também a gente não ficou, e ultimamente é que nós nos unimos a um grupo de Santo André, que ajudamos a fundar, e outro de São Caetano, funciona muito bem, esses grupos funcionam muito bem até hoje.
P/1 – Quais são esses grupos?
R – Um chama-se, é que eu precisava da Iracema, que eu esqueço o nome da coisa.
P/1 – Não tem problema, se o senhor não se lembrar, não tem problema nenhum.
R – Um chama-se Academia, que o Academia, isso é ridículo, Academia de Letras do ABC, um, e o outro chama-se Quatro Dedos de Prosa, que é o de Santo André.
P/1 – Esse grupo anterior que o senhor mencionou, que durou dez anos antes de se desfazer, qual que era o nome desse grupo?
R – Durou 20 anos, Colégio Brasileiro de Poetas, eu tenho até algumas fotos aqui.
P/1 – Com que idade, que idade o senhor tinha quando esse grupo começou, Seu Aristides?
R – Ô, menina, eu já te falei desde lá que em questão de data eu sou ridículo.
P/1 – Nem mais ou menos, se o senhor estava no começo da juventude?
R – Quando começou, quando o grupo surgiu, foram os anos 50 e pouco, que na ditadura, naquele período da ditadura nós nos reuníamos num bar que tem lá, que chamava-se Bar do Hugo, e nós tínhamos quase que cadeira cativa, nós íamos todo domingo no bar bater papo, mas falava quase que em off, porque não podia falar, era ditadura. Eu mesmo tenho dois amigos mortos, este aqui, por exemplo, esse é do grupo, era dos dez poetas, esse cara é um dos grandes poetas brasileiros, chama-se Castelo Hansen, é descendente de poloneses, e tem um irmão dele que é uma espécie de bandeira de guerra aí dos comunistas, porque a polícia matou o cara. E esse aqui, pegaram ele e prenderam aqui no DOPS, em São Paulo, e ele teve uns dois, quase dois anos desaparecido, quando apareceu diz que ficou numa lama, dentro de uma lama que dava até aqui, tinha umas frieiras nos pés e saiu diabético de lá. Mas eu, por exemplo, eu me cuido, cuido, eu como o que os outros mandam, não faço extravagância, e ele não se cuidou, ele bebia tudo e comia tudo, comia tudo, amputaram, nasceu uma espinha no pé, amputaram o dedo, mais, mais, até a canela, e está cego hoje e rebelde, come tudo, é um que morre logo, logo. Essa turma, esse é o que moveu processo contra mim, esse é que moveu processo contra, porque eu corrigi uns erros, não vou citar o nome.
P/1 – Quando é que o senhor começou a escrever, Seu Aristides? Como é que veio a vontade, qual foi, como é que o senhor começou?
R – Nesse grupo que eu te falei, essa turminha aqui, dessa coluna que chamava-se A Baronesa, era uma coluna que nós começamos a fazer a quatro mãos, a seis mãos, a oito mãos, a dez mãos, porque todo mundo dava um palpite, nós fazíamos quase que naquele bar do Hugo, era quase que feito ali, e publicava e nós ficávamos delirando quando víamos nossos nomes publicados. E daí começamos a escrever e que surgiu o Colégio Brasileiro de Poetas, foi necessidade, quase, de transvazar aquilo que nós tínhamos dentro de nós.
P/1 – Nesse período de 20 anos do colégio, o senhor trabalhava com o que, assim, pra ganhar a vida, tinha algum trabalho paralelo?
R – Tinha, menina, daí dessa fábrica que eu estou te falando, o meu pai era pedreiro, e como meu pai construiu, eu trabalhei de pedreiro, eu trabalhei em fábrica, eu trabalhei em uma série de coisas. Até que uma vez, como eu já, eu vinha trabalhando em jornais, publicando em jornal, uma vez eu cheguei num jornal onde eu colaborava, no jornal, e o dono gostava muito dos meus textos, me elogiava: “Você escreve muito bem, menino” e coisa, eu estava lá já há um certo tempo. E um dia eu cheguei eu ele falou: “Teodoro, você caiu do céu”, eu digo: “Por quê?”, “Porque o Carlos morreu”, que era um redator do jornal: “E eu quero você aqui”, “Mas, Severino, eu não sou jornalista”, “Não me interessa, você não é jornalista, mas sabe escrever”. Então aí é que eu comecei no jornal como profissional e ganhando, aí que deu, que eu entrei no jornal ganhando dinheiro. E faço uma coluna na Voz de Mauá há 30 anos, nessa revista que eu estou lhe mostrando aqui, eu faço essa coluna há 30 anos, eu gosto de escrever muito sobre personalidades, o Ary Barroso, esse aqui é um artigo sobre Ary Barroso, e que isso eu transplanto pra esses jornais já, pra este livro. Este livro aqui, por exemplo, tem artigo sobre, não vou mostrar todos, Jorge Amado, Euclides da Cunha, Gilberto Freyre, vários escritores do Brasil.
P/1 – Esse primeiro jornal que o senhor começou a trabalhar, assim, como jornalista mesmo, qual que era?
R – Chamava-se Gazeta do..., que isso aí nós fazíamos uma coluna de várias mãos, Gazeta do ABC.
P/1 – Mas não a Gazeta, esse que o senhor foi contratado mesmo, pra substituir o jornalista que tinha morrido?
R – Chama-se Jornal da Manhã, fica aqui na Avenida Ipiranga, aqui no início da Avenida Ipiranga, existe até hoje o jornal.
P/1 – O senhor não se lembra que idade também o senhor tinha quando começou a trabalhar ali?
R – Não, não, isso aí não me lembro, a idade não me lembro, eu em data sou negativo.
P/1 – E quanto tempo o senhor ficou nesse jornal?
R – Nesse jornal, menina, eu fiquei uns oito anos mais ou menos, nesse jornal aí, que é onde, quando eu saí de lá, eu aposentei quando eu saí de lá, eles informatizaram, quando começaram a informatizar o jornal, ele não precisava daquele monte de gente. E a dona até me elogiava imensamente, dizia que eu era um dos mais mais de lá, não era, que não sou melhor do que ninguém, eu nunca gostei desse título de ser melhor do que ninguém, não sou melhor do que ninguém. Tinha uma coisa que os outros não faziam, os outros eram preguiçosos, era pra entrar dez horas, eles entravam dez e meia, 11 horas, era pra sair cinco, eles saiam quatro e meia, e eu chegava britanicamente no horário, cumpria o meu horário, se precisasse de mim, eu fazia, e queria fazer o meu o melhor possível. Menina, que ciumeira desgraçada, que coisa, que coisa, que coisa.
P/1 – Que tipo de matéria o senhor fazia pra esse jornal?
R – Tudo, tudo, que o jornal era um jornal pequeno, eu fazia três artigos por dia, eu fazia um que chamava-se Minhocão, que era futrica, política, política não, eu gostava muito, sempre gostei muito de artes, de literatura, poetas, pintores, cantores, eu falava ali. E como eles compravam a matéria do Estadão, do Globo etc., aquilo chama-se cozinhar matéria, eu cozinhava uma matéria sobre economia, que não manjo nada de economia, era mais ou menos isso que eu fazia.
P/1 – Quando foi que você publicou seu primeiro livro, Aristides?
R – Não sei, meu primeiro livro.
P/1 – Mas qual que foi, o senhor se lembra qual?
R – Eu detesto o livro, o livro chama-se Dandaluanda, só é bonito o título, e era um livrinho de poesias medíocre, medíocre, medíocre ao extremo, é tanto que eu não quero ver aquilo jamais publicado, reeditado. Depois eu publiquei outro, que chamava-se Colégio Brasileiro de Poetas, Seus Fundadores, Associados e Outros Escritores da Cidade, esse aí foi patrocinado pela Prefeitura de Mauá. E daí vieram outros livros, que eu tenho 16 livros, 15 publicados e este aqui.
P/1 – Qual que é o título dele?
R – Chama-se “América Latina, Por Favor, Um Minuto de Silêncio, Morreu Carlos Fuentes”, que o Carlos Fuentes é um escritor mexicano que morreu, tem uns três anos que morreu, e eu fiz um artigo e publiquei, é um artigo, são esses artigos literários, e quis dar o nome dele, porque eu gostava muito dele. E aqui tem um que pretendo publicar até o fim desse ano, que chama-se “Deus, Uma Caipora Prenha e Um Diabo Caolho Num Dia de Feira em Curiapeba”, esses são aqueles contos de Curiapeba, mais ou menos.
P/1 – O senhor foi casado?
R – Não, solteiro.
P/1 – Em algum momento teve algum relacionamento, um grande amor?
R – Vários, vários.
P/1 – Mas alguém em especial?
R – Vários, vários. E não me casei, menina, por achar que era melhor ficar solteiro, eu tive, eu conheci uma moça num restaurante, conheci, coisa, quis ir na minha casa, foi, quando eu cheguei, que meti a chave na porta, que a menina olhou, que viu a casa cheia de livros, eu só tenho livros e discos, cheia de livros, ela olhou assim, e aí é que eu percebi com quem estava falando, até aí, que eu sou um ingênuo. A menina disse assim, ela é do Rio Grande do Sul e disse: “Por que você não vende tudo isso pra um ferro velho?”, e aí morreu ali, então eu achei que era melhor ficar sozinho (risos).
P/1 – Quando que começou a Toca Filosófica? Conta a história pra gente desse espaço, que é a sua casa.
R – Eu sou filho de protestantes, meus pais eram da Assembleia de Deus, e meu pai era um homem culto, mas depois que se tornou protestante, que encontrou, aí é uma zombaria agora aí, que encontrou com Jesus na Estrada de Emaús, que Emaús tem na Bíblia, meu pai involuiu, por incrível que possa parecer. Meu pai era um homem culto, meu pai involui, meu pai só sabia falar de Bíblia e nada mais, como os meus livros era dentro da casa nossa, que ele já tinha, a casa tinha crescido, mas ele não queria, porque era um filho desviado, era a ovelha desviada, que só lia hereges etc., ele não queria nada com a Bíblia, eu detestava aqueles sermões dele, eu detestava. Então ele fez uma casinha pra mim no fundo da casa pra tirar o herege de dentro de casa e colocar lá, como o troço era um negócio insalubre etc., e lá eu dormia e lia etc., eu coloquei, isso é pejorativo, toca é um buraco, não é, não? Toca Filosófica, só que aí eu gostei do nome e parece que caiu no gosto dos que me conheciam, eu comprei uma casa, que é onde eu moro hoje, e coloquei o nome de Toca Filosófica.
P/1 – A sua casa, além de ter todo esse seu acervo, que é um acervo grande, qual que é o tamanho, o senhor sabe, tem contabilizado?
R – Não, é uma casa grande, eu moro nos fundos, eu já comprei assim, quando eu comprei, é um elemento que ia de São Caetano, que comprou a casa em Mauá, não gostou da casa porque ele não acostumou, Mauá era uma cloaca na época e São Caetano era bem melhor, então ele vendeu aquilo a preço de banana, eu comprei uma casa a preço de banana. Comprei e fiz mais uma casa na frente, eu fiz, tinha uma casa de aluguel na frente, é tanto que praticamente são duas casas, no fundo eu moro, porque é sossegado, e alugo uma casa na frente. Veio a Toca Filosófica e gostei do Toca Filosófica, continua, é tanto que ali pra mim é um pedaço do inferno, porque eu não gosto do céu, eu gosto do inferno, mas é entre aspas. Eu tenho hortas, como sou diabético, eu como muita verdura, eu planto toda a minha verdura, eu planto lá, tem um pé de maracujá que nasceu embaixo e eu levei ele até em cima da laje e ele cobre toda a laje, em cima de um estaleiro, dá uma safra por ano de 500, 500 e poucos maracujás, e eu não como um porque eu sou diabético, dou tudo aquilo, desse maracujá amarelo.
P/1 – E além de ter o seu acervo na Toca Filosófica, o senhor recebe gente também, faz reuniões literárias, tem alguma coisa assim?
R – Pouquíssima gente. Uma vez a Iracema fez uma festa lá por ocasião do meu aniversário, 27 de novembro, e convidou um cidadão que era um jornalista, um tal de, eu não vou citar o nome, porque, eu não vou citar o nome, convidou, não convidou, ela encontrou com ele no centro e disse: “Vai ter uma festinha na casa do Teodoro à noite” e ele foi sem ser chamado. Foi, levou uma turminha brava, que eu consegui contar que me faltaram, quando eu preciso de um livro, vou lá e não achar, 19 livros roubados, é tanto que eu não, só levo lá quem eu quero. Tem um muro imenso na frente, só entra quem eu quero e não, levo pouca gente, levo pouca, tem pessoas que repreendem: “Ah, você podia me emprestar isso”, “Não, emprestar não, eu tenho pra meu uso”.
P/1 – Conta um pouco a história d’Os Sertões, por que o senhor tem tantas edições, qual a sua relação com Os Sertões e com Euclides da Cunha?
R – Menina, o Euclides da Cunha, eu escrevo sobre a mesma região do Euclides da Cunha, meu irmão entrou na USP e quando entrou na USP fizeram ler Os Sertões, eu tinha Os Sertões, mas não lia, é um livro terrível. O Joaquim Nabuco chegou a dizer assim, que é um livro escrito com cipó, tem uma linguagem, por exemplo, começa assim: “O Planalto Central do Brasil desce” e ele descreve toda essa cordilheira nossa, essa serra etc., e por aí afora, e tem uma linguagem de cacete, uma linguagem seca. E meu irmão foi obrigado a ler, disse: “O livro é belo, mano, lê o livro” e eu peguei o livro pra ler, não consegui ler, ele disse: “Tenta novamente”, eu tentei, não consegui ler o livro, até que tentei pela terceira vez, o livro de uma beleza extrema, li. Assim que terminei, eu voltei, reli, e aí me apaixonei de tal maneira que passei a comprar os que encontrava, cheguei a possuir a sétima edição, que ele pegou e raspou a primeira edição, ele raspou 18 erros, 80 erros de canivete, que o Euclides era um torturado, tinha os erros e ele raspou de canivete e emendou, aquela primeira edição só o Mindlin parece que tinha uma, que custa uma fortuna. E fui me apaixonando de tal maneira que eu tinha uma prateleira sobre Euclides da Cunha, modéstia à parte, conheço muito bem Euclides e “Os Sertões”, e tive a satisfação, porque a minha capista, ela está fazendo Letras aqui na UniABC, e a semana passada eles fizeram um trabalho na faculdade em cima desse texto meu. Os que não leram “Os Sertões” fizeram do mesmo um livro difícil, porque isso aqui eu dou mais ou menos o modo como ler Os Sertões, é um livro ruim de ler, mas o cara que pega a última parte, A Luta, e lê A Luta, são 40 páginas mais ou menos, ele não deixa Os Sertões mais nunca, um livro bárbaro, um livro extraordinário.
P/1 – E além d’Os Sertões, no seu acervo tem outros livros assim, que o senhor tenha uma história, que sejam especiais pro senhor?
R – Tem, mas são tantos, menina, o Gilberto Freyre, eu tenho uma paixão pelo Gilberto Freire, o Casa Grande e Senzala. E a semana passada eu li um livro do Carybé, que é aquele pintor até que foi exposto aqui em São Paulo, eu vi a pintura, e o Carybé é um livro que ele fala da Bahia, que eu sou baiano, mas não tinha aquela visão da Bahia, uma que eu não conheço, Salvador não conheço, e ele fala do baiano. Ele chega a dizer que ele é um apaixonado pelo Brasil, que ele é argentino, mas morou no mundo todo, na França, morou em Nova Iorque, morou em Londres, e ele fala do Brasil, ele nos coloca como gente, que parece que nós somos um dos maiores povos desse planeta, e não somos, a paixão do cara pelo Brasil.
P/1 – E o seu acervo de pinturas, conta um pouco a história do acervo, como é que começou a formar?
R – Eu sou amigo desse pintor que você viu, o Amaury, que eu falei que é morto, e o Amaury ia pintar na minha casa, ia pintar na minha casa, chegava e trabalhava a noite todinha. Eu dizia: “Amaury, vamos jantar”, “Não, não quero jantar, não”, “Amaury, quer beber um pouco de vinho?”, eu não bebo, mas tenho: “Não, também não quero”, e o cara trabalhava a noite todinha, menina, como um doido, quase que em transe, quase que em transe. Ele pegava, é uma família rica, e ele comprava aqueles tubos de tintas importada, e gungunava, como diria a minha mãe, ele pegava a tinta, destampava assim, colocava aquele monte de tinta em cima de uma mesinha assim e fazia: “Hum, hum, hum, hum”, a noite todinha. E um desses quadros, a Cidade de São Bernardo criou uma Pinacoteca com pintores paulistas, e ela comprou trabalhos pra a Pinacoteca de pintores de todo Estado de São Paulo, e dele comprou dois, duas telas, uma pintada em minha casa, que chama-se Aguada. E ele me deu tudo isso, que ele era casado e a mulher não gostava do trabalho dele, não gostava, uma megera domada. Ele pintava o trabalho ou iniciava pintar o trabalho, e ele tinha uma fábrica de portões, aqueles portões automáticos, ele não vivia só de pintura, não, ele ia pra fábrica, quando chegava, estava no cavalete, ela pegava o negócio, enrolava e jogava na lata de lixo, o lixeiro levava. Aí separaram, ela largou ele, largou e ele morreu por isso, morreu, passou a beber, deixou de trabalhar, aí morreu por isso aí. Ele me deu, eu tenho dele 25 quadros, dele, e aí passei a comprar outros quadros de pintores baratos, todos pintores baratos, só que tem um Volpi, e tenho o Volpi sabe por quê? Porque eu era amigo de um marchand e o marchand me vendeu um Manezinho Araújo, sabe quem é Manezinho Araújo? É pintor nordestino, não é um grande pintor, é um pintor médio e ele pintava feiras, não pintou muito, e eu comprei um quadro de feira grande do Zaca, que era o marchand, e o Zaca me vendeu aquele quadro a preço de banana. E teve um cidadão, que é um político do PT, eu não vou dizer o nome, não vou dizer o nome, esse cara é um homem rico e ele tinha vários quadros, ele me levou na casa dele, eu fiquei boquiaberto. Só que eu não gosto dos quadros dele, que é aqueles cusquenho, aqueles quadros tipo peruano, é um tipo de pintura peruana, chama cusquenho, é quase tudo religioso e marrom, cinzento, eu não gosto daquilo. Mas ele tinha três Volpi, tinha três Volpi, pequeno, bandeirinhas e ele ficou doido pra comprar o meu, o Manezinho Araújo, eu disse: “Seu fulano, eu não quero vender” e ele insistiu, até disse: “Você precisa de dinheiro, rapaz”, um dia falou, me jogou assim na cara. Eu digo: “Seu fulano, eu preciso, não concordo com o senhor, o dinheiro não é tudo na minha vida, mas eu já comi hoje, seu fulano, essa cara de faminto é que eu sou diabético, eu já comi hoje, não quero vender, não, não quero vender o quadro, não”, ele insistiu, também não. Aí, como eu tinha ido na casa dele, eu joguei, eu digo: “O senhor tem três Volpi, eu troco”, ah, ele quase me bate: “Quanto é que vale?”, não vou dizer o que ele disse: “Essa, quanto é que vale isso? E o meu vale x”, “O seu vale x, mas é seu, e eu não quero vender o meu”. Então ele propôs: “Qual que você queria?”, eu digo: “Eu quero aquele mais bonito que tem lá”, trocou, trocou, é tanto que eu tenho um Volpi, jamais poderia comprar um Volpi, mas tenho um Volpi graças a isso (risos).
P/1 – Desses encontros que o senhor teve, assim, com escritores, teve o Jorge Amado, que você tinha uma correspondência, o Suassuna, que o senhor me mostrou a foto, eu queria que o senhor dissesse assim, qual que foi o momento, se teve um momento especial.
R – Mágico.
P/1 – Importante.
R – Menina, todos os dois são fantásticos, o Gilberto Freye, um monstro, eu vi na Mário de Andrade o Gilberto e foram três monstros que falaram numa palestra lá, Gilberto Freire, o gauchinho lá, o Suassuna e o Josué Montello, uma noite estupenda e eu vi o Gilberto lá e escrevi pra ele, escrevi pra ele e ele me mandou o Casa Grande e Senzala autografado. Teve essa exposição dele aqui na América Latina e eu fui ver a exposição, me faltam cinco livros dos 80 livros que o Gilberto lançou, me falta 5 livros, muitos deles eu tenho autografados. Aí são outros 500, que o autografado, ele só autografou um pra mim, mas eu sou um grande, hoje nem tanto, visitador de sebos, e eu encontrava muitos deles eu comprava o autógrafo no sebo e o cara não percebia o que estava vendendo, só quando eles te conhecem e vê o fraco que você quer, aquilo você compra: “Quem é que chegou lá?”, “Fulano de tal”, e o livro vale cinco reais, ele marca dez na tua cara. Então é, um sebo é pra quem tem dinheiro, mas como eu não tenho vício nenhum, o que ganhava já estava empregado quase tudo em livros. Onde tem um autógrafo do Silvio Romero, que foi um dos grandes, foi amigo do Castro Alves, só que o autógrafo não é tão velho, o autógrafo é 1905, eu tenho um autógrafo do Silvio Romero. Tenho do Mário de Andrade, tenho autógrafo do José Lins do Rego, não tenho do Machado de Assis e não gosto, não gosto do Machado de Assis, então eu tenho vários autógrafos, Chico Anysio. Eu tenho, é como eu estava falando pra Laura, eu gostaria que alguém fizesse uma reportagem sobre a minha casa, sobre os autógrafos, tenho de Elizete Cardoso, que eu tenho discos, eu tenho mil discos, tenho um disco dela, que ela teve no Japão, autografado também por Elisete Cardoso.
P/1 – Por que o senhor não gosta do Machado de Assis?
R – Porque eu acho, eu não sei porque e sei, se eu escrevo um conto e coloco 14 preposições, duas, três, você como professora me repreenda agora, por que tanto que, por que tanta preposição? Eu não posso, mas Machado pode, você lê um livro do Machado de Assis e você conta 40 preposições por página, que, que, que, que, que, isso quando ele não repete o e também, pra mim não é um grande escritor. E o Sílvio Romero dizia assim, que o Sílvio é um dos maiores críticos contra ele, o Sílvio dizia assim: “O Machado”, que ele era gago: “O Machado de Assis gagueja na palavra escrita e gagueja na palavra falada”, mas tem os admiradores, que leram, os admiradores do Machado não leram (risos).
P/1 – E o seu encontro com o Suassuna, como é que foi?
R – Menina, o Suassuna foi um delírio, o Suassuna, nós temos um grande Secretário de Cultura no ABC, talvez um dos melhores das sete cidades, um tal de Salles, esse cara foi candidato a prefeito, perdeu, candidato a deputado, perdeu. E como o PT é que ganhou lá, mas o PT sozinho não ganhava, e como ele perdeu, foi obrigado a fazer união lá, e o PT ofereceu: “Que cargo você quer pra você ficar aqui comigo?”, era preciso negociar, ele disse: “Eu quero a Secretaria de Cultura” e doaram a Secretaria de Cultura pro cara. Ele pintou as casas de cultura na cidade, estimulou a cultura, que esses recitais que nós fazemos lá foi ele que fez, e levou o Ariano Suassuna pra fazer uma palestra no teatro, e o Ariano foi e fez uma palestra, cabe 700 pessoas no teatro, tinha gente encostada nas paredes. O povo gritava, chorava, delirava, falava o nome do cara, uma coisa terrível, e ele levantava e fazia assim com os braços, podre, podre, o velho tava, tanto é que morreu um dia desses aí, as mãos todas, podre, mas eu nunca vi tanto dinamismo naquele tipo e foi aí que o Suassuna me ganhou. Pra mim um dos maiores oradores que eu já, e olha que eu tenho visto bons oradores por aí a fora, eu só ando, depois que eu aposentei eu só faço isso, eu viajo. Fui no Rio de Janeiro, fomos a Brodowski ver o Portinari, o grande Portinari, eu só faço, ultimamente só ando atrás de cultura, me digo assim, um caixeiro viajante da cultura, só faço isso, faço palestras em escolas, pago. Esse Secretário de Cultura de Santo André, ninguém faz isso, ele nos paga pra gente fazer palestra em escola, você faz a palestra hoje, ele te paga amanhã.
P/1 – Sobre o que são essas palestras?
R – Só falo de literatura, eu não sei falar de futebol, eu não sei falar de mulher, gosto de mulher imensamente, mas mulher geralmente você fala com qualquer um, você fala aí, homem só fala de mulher baixamente e isso não me interessa. Então eu só sei falar de cultura, pintura e política, política eu gosto imensamente, falar mal, não sou filiado a nenhum partido, já fui comunista, não sou, tenho pavor, pavor de qualquer partido de esquerda. Quando o cara vem pregando futilidade, consertador do mundo, eu digo: “Você é um mentiroso”, é tanto que detesto as esquerdas, mas gosto de falar de política, e falar e escrever, falar e escrever.
P/1 – Por que o senhor detesta as esquerdas, se já foi do Partido Comunista?
R – Porque eu fui expulso do partidão, menina, eu fui expulso do partidão, era o PCzão na época, isso no período da ditadura, era pra estar morto hoje, como prenderam esses aqui. E eu pertencia ao Partidão e o Partidão, nós íamos pichar muro aqui na Baixada do Glicério, saía de Mauá pra fazer isso aqui embaixo, aqui, à noite, e fazíamos aquele trabalho, fazíamos aquele trabalho, e eu sempre fui um covarde. Eu achava que, o que eles falavam pra mim não me convencia, eu falava com um sujeito, nós estamos aqui num diálogo, lá não tinha diálogo, lá tinha monólogo. Tinha um tal de Carlos e uma Mariana, que eram os chefões ali, e reuníamos hoje na sua casa, amanhã na casa dele, aí depois na casa dela lá, falavam os dois caras. Eu não podia dizer nada, nem eu nem os outros, e eles nos davam ordens: “Camarada, amanhã você vai pichar o muro de tal”, “Mas eu não posso subir lá”, “Não me interessa, o partido mandou, camarada”. E eu fui me indispondo com aquele gente: “Pô, eu não posso falar nada, esses sujeitos falam e não me convence o que eles falam”. E eu estava desempregado, eles arrumaram um emprego pra mim na época, disse: “São duas salas contiguas, comunista não precisa ganhar dinheiro, mas você vai ganhar dinheiro como água”, eu não vi a sala: “Você vai ganhar dinheiro como água”, eu digo: “Mas só que nessa sala que você vai ter o”, o processo, que eu não sei nem o que era, numa sala, eram duas salas contiguas e numa sala eles colocariam aparelhos pra imprimir panfletos subversivos. Eu não quis: “Você não quer”, digo: “Não”, “Mas você não se manda, quem manda aqui é o partido”, eu digo: “Mas eu não quero”. E outras vezes, eu não vou contar o negócio, é melhor parar por aqui, porque outras vezes eles quiseram fazer um troço lá em Mauá e eu não quis, como eu não quis, eles disseram pra mim assim: “Nós não queremos você no partido”, então me expulsaram a toque de caixa. E daí eu passei a ver o procedimento de outros políticos mais brandos do que eles, mais de esquerda, cada um mais canalha do que outro, pra mim não me interessa.
P/1 – Por que o senhor se filiou ao partido, o senhor lembra?
R – Lembro.
P/1 – Como é que foi? Por que o senhor tomou essa decisão?
R – Nós éramos, no período do Colégio Brasileiro de Poetas tinha a ditadura e todo mundo estava cansado da ditadura, a ditadura tinha um zíper daqui a aqui, você não podia falar, dois homens não podiam falar na rua. Vocês não lembram porque vocês eram, não tinham nascido. E a única alternativa era o comunismo, o comunismo pregava uma doutrina fantástica verbalmente e nós todos fomos mordidos pelo verme do comunismo, é aí que eu me tornei comunista, mas sempre um sujeito covarde, porque eu não cria naquelas baboseiras que ele pregava, não cria naquilo, e tenho dois ou três amigos mortos na ditadura.
P/1 – O senhor se lembra do, no golpe de 64, o senhor se lembra como é que foi?
R – Lembro, lembro, São Paulo, menina, era quase isso que vemos hoje aqui, era bem pior, aquelas passeatas, aquelas coisas, aquela coisa era tremenda e eu fazia parte, vinha ver aqui, vinha e não gostava, mas vinha, e eles caminhavam e marchavam por aí a fora e gritavam: “Família com Deus”, aquela coisa toda. Até que os milicos, quando o Jango caiu, quando o Jânio renunciou, eles não deixaram o Jango, o Jango tomou posse, mas um governo molóide, e o Mourão Filho disse: “Eu acho que eu quero ser dono daquela cadeira lá” e veio e sentou e deu o golpe.
P/1 – O senhor se lembra como é que recebeu a notícia, como é que foi isso nos meios de comunicação, entre os amigos?
R – Lembro, lembro, nós tremíamos de medo, menina, tremíamos de medo na época. Uma que Mauá, como era esconderijo de comunista, esse irmão do Betinho, o Betinho escondeu-se em Mauá, morreram muitos elementos em Mauá, onde, o irmão desse que eu te mostrei aqui é um que foi morto, o Olavo, vieram encontrar o corpo agora, no Governo Fernando Henrique é que encontraram, parece que em Caieira.
P/1 – Durante esse período da sua militância no Partido Comunista, o senhor viveu alguma situação assim, delicada, mais difícil?
R – Uma só, quando mataram um desses elementos lá, que aquilo, quando o cara, o desgraçado que cai lá, ele deda até a mãe, e não sei porque, menina, falaram de mim, eu suponho, que eu não sei de nada. Um dia eu estava em casa, dormindo, umas duas horas ou mais, bateram na porta, como eu lhe falei que minha casa era no fundo lá, o meu pai fez uma casa: “Seu Aristides Teodoro, Seu Aristides Teodoro”, tornou a bater: “É a polícia, abre a porta ou arrebentamos” e eu estou morto, e abri a porta. Abri a porta, eles entraram, cheio de livros, quatro sujeitos, quase dois metros de altura cada, e um foi, eu tinha, tinha entrado aqui no Brasil uma biografia apócrifa do Kruschev, que é aquele caso que não é bem, e eles chegaram de cara, de cara um grandalhão olhou assim, disse: “Por que aquela biografia do Kruschev ali?”. Eu peguei o livro e disse: “O senhor é um homem inteligente, o senhor sabe perfeitamente que isso é apócrifo, não?”, ele olhou pra mim assim, não rio, bateu no meu ombro e disse: “Você é um bom menino” e me largou. Foi o único vexame que eu passei com essa gente, foi isso, mas eu tenho três amigos mortos, só que eram comunistas, esses eram comunistas mesmo, que eu acho um herói, um quase herói, achava que não, que tinha de mostrar que o comunismo é isso, que vai pra praça, é como arregaçar a camisa e dizer pro general: “Atire” e o general atirou.
P/1 – Eu queria que o senhor falasse um pouquinho pra gente da sua obra, assim, como é que, o senhor falou que são 16 livros já, né, mas, assim, sobre o que o senhor escreve, que tipo, se é só prosa, se tem poesia, o senhor falou que o primeiro livro era um livro de poema, né?
R – É, o primeiro é um livro de poema, chama-se Dandaluanda, é um livro ridículo, abaixo da desmoralização, segundo veio esse, que é um livro que eu historio, faço um levantamento do Colégio Brasileiro de Poetas, como começou, como terminou etc., e a proliferação dele na região. Depois desse aí o que é que eu publiquei? Eu publiquei este livro aqui, o Cangaceiro e Outras Histórias de Curiapeba, que é onde eu conto a história da cidade, com mapa e tudo, como eu já mostrei, o mapa é esse. Depois deste, é este livro aqui, é um livro de poesia, é um livro rebelde, a minha literatura é uma literatura extremamente rebelde, é um livro rebelde, é um livro de poemas, onde tá a minha rebeldia, a minha, eu tenho pavor a hipocrisia humana e o meu foco é justamente contra a hipocrisia, que eu via, eu bebi aquilo dos meus pais, um Deus canalha, então é isto aqui, um livro contra isso.
P/1 – Quando o senhor fala rebeldia, que tipo de rebeldia?
R – É uma rebeldia mesmo, contra a hipocrisia, por exemplo, o comunismo prega uma coisa e aquilo é mentira, o religioso te prega um céu, um céu ridículo, minha literatura é isso, literatura de porrada, vamos se dizer. Por exemplo, esse Lula, eu fiz três reportagens com esse cara, terríveis, terríveis, terríveis, e publiquei, porque o jornal que eu trabalhava era um jornal anti. Eu acompanhei ele pra fazer uma reportagem uma vez, da Praça da República até a Sé, e vi três discursos dele e meus textos são baseados em cima disso. Agora, na queda do Zé Dirceu etc., eu fiz textos terríveis, hoje mandei um pro Zé Paulo, que ele leu lá e elogiou imensamente, na Bandeirantes, na Bandeirantes. Então minha literatura é uma literatura mais ou menos assim, uma literatura que tem quem deteste e tem uns que elogiam.
P/1 – Esse livro de poemas que o senhor mostrou pra gente agora, quem é Ruth?
R – Ruth não existe, ele chamava, é um poema surrealista. Meu pai contava uma história, que era um protestante e um bom pregador, que houve um dia escuro em Londres e nesse dia escuro, que nesse dia o sol se pôs ao meio-dia, Londres se tornou escura ao meio-dia, e um velho senador britânico disse assim: “Eu quero que Deus me pegue na minha mesa de trabalho, que tragam velas, que alumiem isso aqui com velas, eu quero que Deus me pegue aqui, trabalhando”. E o meu pai contava isso e eu fiz um poema que chamava-se Poeminha Surrealista, surrealista, Poeminha Surrealista, e mostrei a um professor, que era um comuna, mas, como eu larguei o partido, ele se tornou meu inimigo figadal, mas ele corrigia, era um grande gramático. E eu digo: “Professor fulano, dá uma olhadinha no meu poema, por favor”, ele olhou e me deu no dia seguinte e disse, ele falava assim: “Isso é uma merda, isso não vale nada, é uma merda, de surrealismo não tem nada”. Eu fiquei p. com aquilo, aquilo, eu fiquei um ano castrado, menina, um ano, porque ele me desmoralizou, me colocou lá em cima: “Você jamais será um escritor, isso não vale nada”. Eu peguei, aí mudei, invés de Poeminha Surrealista, eu coloquei Poeminha Sem Realismo Para Ruth, embora o poema seja surrealista, aí que aparece a Ruth, a Ruth não é ninguém. E eu fiquei um ano castrado, no fim do ano houve um concurso e eu coloquei o poema e ganhei em primeiro lugar, então (risos).
P/1 – A Ruth não é ninguém, mas por que esse nome, tem alguma razão de ser esse nome?
R – Não, não tem, não tem nenhuma razão, nenhuma razão.
P/1 – Tá bom, pode continuar falando.
R – Esse aqui é outro poema maluco, é um poema que chama-se Gargalhada na Catedral, e o Gargalhada na Catedral já está dizendo tudo o que é, é um livro contra a hipocrisia, me sinto satisfeito. Este aqui, Trinta Poemas de Amor Para a Mulher Azul, que é essa Neli que faz as capas, eu encontrei essa menina num curso de literatura em Santo André, uma figura fantástica, foi uma das maiores figuras que eu conheci na minha vida. Então eu fiz esse poema pra ela o desenho praticamente, é dela, é um, por exemplo, Fernando Jorge disse, sabe quem é o Fernando Jorge, né? É outro meu grande amigo, esse texto aqui é do Fernando Jorge, esse é um que, quando eu trabalhava num jornal aí, ele está aposentado, uma cultura assombrosa, violento, agressivo, imensamente agressivo, e a gente encontrava à noite aí, ele gostava de caminhar, magrinho. Eu saía cansado do serviço, saía e encontrava com ele numa livraria lá: “O que você tá fazendo?”, “Eu vou pra casa”, “Que casa nada, rapaz, vamos caminhar” e nós saímos daí até a Lapa a pé, a pé, batendo papo, batendo papo, uma grande figura esse Fernando Jorge, uma grande, um grande sujeito, um grande escritor, um agressivo pra chuchu e geralmente combativo, pra mim um dos grandes escritores modernos brasileiros. E me sinto feliz imensamente, porque poucos sujeitos em vida tem uma biografia, eu tenho, que foi Iracema que fez essa biografia, e eu me sinto muito honrado em ter isso aqui. E vem este, que é uma continuação, que é o Vaqueiro Bendengó e Outras Histórias de Curiapeba, que eu coloco o início da cidade, como nasceu a cidade, o mapa etc., até nossos dias. É tanto, meninos, que minha literatura é uma literatura cheia de grandes canalhas e os grandes canalhas, eu não publico, não escrevo sobre hoje, não, hoje não me interessa, minha literatura vem no máximo, no máximo até Juscelino, que eu não cito, mas eu cito alguns episódios que houveram no período Juscelino e então você percebe que você está no período Juscelino, o hoje não interessa, pra mim não interessa o hoje. Mas se você ver, você vê todos esses caras que estão por aí, você vê, eu pego o cara aqui, o cara não pode nem me processar, porque eu pego o cara aqui e coloco no século XVI, no século XVIII, minha literatura é uma literatura que está por aí, é tanto que o cara não tem nem direito de me processar. Tem uma cidadã aí da região que ela sabe que é ela, dizem, é minha inimiga, dizem que fica p. comigo, mas não pode fazer nada, porque eu coloco, eu coloco assim, as pessoas que eu acho que são boas pessoas eu coloco em modos agradáveis, mas os meus inimigos eu coloco nos piores momentos, é por aí que eu coloco.
P/1 – Por que a figura do cangaceiro e do vaqueiro, Aristides?
R – Porque o meu pai, meu pai morreu com 98 anos, e meu pai era um grande contador, eu sou, eu reconto o que o meu pai contava. Eu lhe falei que nós tínhamos uma chacrinha lá e tinha muita lenha, o meu pai chegava do serviço e tinha lenha, ele acendia um fogo no meio do terreno e contava história. Meu pai conheceu Lampião, meu pai viu Corisco morto, meu pai viu isso, e meu pai era um grande contador de estórias nordestinas, estória com e, nordestina, um sotaque carregado de nordestino, e o velho sentava e contava aquilo, nós ficávamos com tanto medo que tínhamos medo de ir dentro de casa beber água, as histórias que o meu pai. Então aquilo que o meu pai contava eu reconto, eu reconto ao meu modo, crio os personagens etc. etc.
P/1 – Você lembra de alguma dessas histórias, assim, curta, que você conseguiria contar pra gente agora?
R – Lembro, mas aí já é uma piada. Curiapeba, como eu já falei, é uma cidade progressista da Bahia e cheia de valentões etc., aqueles caras do ouro etc. etc., certo dia tinha um sujeito num bar bebendo, bebendo cachaça. E chega um caipira, meus personagens são esse tipo de gente, chega um caipira mineiro, de chapelão de massa, espora, você não sabe o que é, talvez não saiba.
P/1 – Sei, sei.
R – Sabe o que é? Esporas de rosetas chilenas, com uma mula, revolvão no quarto e ele chega na beira do bar e é mineiro e ele diz assim pro dono do bar: “Ô, moço, dá um copinho de leite pr’eu”, o cara põe o leite e quando ele começa a beber o leite, ele começa a beber o leite. Só que isso é uma piada, começa a beber o leite, chega um valentão e bate no ombro dele: “Ô, caipira, nós aqui de Curiapeba não gostamos de homem que bebe leite, não”, e ele sem franzir um músculo da face, apalpa o revólver debaixo da camisona e olha pra cara dele e diz: “Uai, e nós lá em Minas Gerais não gostamos de homem é de jeito nenhum, sô” (risos).
P/1 – Essa é uma piada que o seu pai contava?
R – É, é uma piada que o meu pai contava, mas é uma piada, você vê que o negócio é só o copinho de leite, é só isso, até que o copinho de leite, quem criou a palavra fui eu. E eu recrio em cima daquilo, não é desdouro nenhum, eu recrio o conto em cima de, ontem mesmo um amigo me contou uma piada, que é uma de caipira também, e eu vou escrever, vou escrever, talvez fim de semana eu escreva o conto em cima da piada.
P/1 – Eu fiquei curiosa, você falou que o seu pai em algum momento se converteu, né, se tornou evangélico e deixou de ler inclusive, você sabe o que aconteceu, qual foi a causa dessa conversão?
R – Sei, meu pai, embora seja um homem culto, era um homem de memória fraca, eu descrevo isso aqui, meu pai deixou-se levar por um sujeito analfabeto total, analfabeto, mas que pregava um Cristo terrível, um Cristo violento, um Cristo que pegava você aqui e levava com a cadeira e tudo pro céu, e o meu pai deixou-se levar pela baboseira desse idiota, deixou e se tornou um idiota igual. Meu pai era um homem fanático, de um fanatismo tão extremo, por exemplo, eu vou contar um caso pra mostrar o fanatismo do cara, ele tinha aquele terrenão imenso lá, nós oito filhos, minha primeira, minha irmã casou e quis construir no terreno, porque tinha terreno de sobra, ele não aceitou: “Não, eu tenho outro plano pra esse terreno aí, não quero que você construa aí”, minha irmã foi, comprou uma casa. Outro irmão meu, que é o Sigismundo, um sujeito fantástico, uma das grandes figuras que eu conheço no mundo, esse cara e minha mãe, um grande sujeito, casou, quis construir, ele não deixou. Até que um dia chega um sujeito de gravata etc., bonitão, e estica uma linha lá, um prego, bate um prego lá e outro lá e divide o terreno no meio, e meu irmão diz: “O que é que o senhor vai fazer aí?”, “Eu vou fazer uma igreja pro Senhor Jesus, que seu pai”, “Meu pai lhe deu isso aí?”, “Deu e eu vou construir”, disse: “Ah, não constrói, não, não constrói de maneira nenhuma, nós somos oito filhos, meu pai não deixou nenhum construir aqui, e o senhor vai construir uma igreja aqui? Não”. Aí o velho ficou p. da vida, vendeu o terreno e foi embora pro Nordeste e eu disse a ele, disse isso a ele, quando ele saiu, quando ele saiu, eu disse: “Pode ir, se você for e der certo lá, tudo bem, e se não for, não me procure, que eu não sou seu filho”. Então esse aí o meu pai.
P/1 – E ele foi embora mesmo?
R – Foi, foi embora, foi embora.
P/1 – Pra onde que ele foi?
R – Foi pra Sergipe, nós somos da Bahia, mas ele comprou uma fazendinha em Sergipe, ele vendeu aí, comprou lá, ainda bem que deu certo, viveu 98 anos, deitou e morreu, deitou e morreu, porque casou-se pela segunda vez, tem um filho com essa segunda mulher, que é advogado hoje, deitou e morreu.
P/1 – Você voltou a ver seu pai depois que ele foi pra Sergipe?
R – Não, não, nem queria voltar, minha mãe, eu sofri desesperadamente quando minha mãe morreu, até que hoje não gosto nem de falar dela, não gosto de falar, gostava, foi uma das maiores figuras que eu vi na minha vida. Três, eu conheci três grandes figuras, minha mãe, em primeiro lugar, meu irmão, esse Sigismundo que eu estou falando, um sujeito fantástico, e essa Neli, que faz as capas dos meus livros.
P/1 – Eu ia te perguntar como é que era a sua mãe, mas o senhor não quer falar sobre o assunto, o senhor descreveu bastante o seu pai, mas não falou muito da sua mãe, como você tá falando que ela é uma grande figura, eu queria saber um pouco como é que ela era como pessoa.
R – Era uma pessoa dócil, menina, analfabeta, minha mãe era analfabeta, que eu não sei porque, nunca vi brigar, nunca vi. Você chegava, o meu pai falava alto, você percebe isso aí, que eu também falo alto, e meu pai falava alto, nós chegávamos e a casa era no fundo do terreno, e tava aquele barulho dentro de casa: “A casa tá cheia de gente, dos protestantes, dos irmãos”, quando chegava era ele e ela, ela sentada numa cadeira e ele na outra cadeira e ele contando casos, alto, e ela falava pouco, mas ouvia. Saíam como aqueles personagens do Chico Anysio, o meu pai lá na rua e minha mãe aqui, mas se gostavam, menina, se gostavam, ninguém tem nada a ver um com o outro, e minha mãe, que doce que era a minha mãe. O meu pai pregava uma Bíblia terrível, você era obrigado, se fosse por ele, ler a Bíblia três vezes por dia e ouvir, e minha mãe não, minha mãe, malandra, ela sabia que eu não gostava da leitura da Bíblia, ela dizia assim: “Ô, meu filho, leia pra mim hoje o Saint-Exupéry, O Pequeno Príncipe”, e eu li O Pequeno Príncipe cem vezes pra ela, figurado: “Leia o Exupéry”, eu lia o Exupéry pra ela. Amanhã: “Leia O Velho e o Mar”, eu lia O Velho e o Mar pra ela, e ia assim, veja lá onde é que a velha ia me levando, no terceiro dia eu lia outro, até que chegava uma hora que ela dizia: “Leia um capítulo da Bíblia” e eu era obrigado a ler (risos), eu era obrigado a ler, porque a velha era malandra (risos). Uma pessoa fantástica, uma grande cozinheira, limpíssima, ela queria que nós andássemos, pobre, nós éramos pobres, mas a roupa brilhando, o sapato brilhando, hoje eu engraxava o sapato, amanhã o outro engraxava, aí depois o outro engraxava, hoje eu limpava a casa, amanhã o outro, aí depois o outro, era assim, minha mãe era uma grande figura, uma grande figura!
P/1 – Como é que eram as refeições na sua casa? Você falou que ela era uma grande cozinheira, né?
R – Era.
P/1 – O que vocês comiam, como é que era o momento das refeições?
R – Eles eram, minha mãe fez um curso de culinária naquela, na igreja adventista, e eles são rigorosos em cozinha, então nós plantávamos, nós tínhamos banana, o meu pai plantava banana, tinha cacho de banana com cem bananas, cem bananas, cem, banana, batata, couve. Então a minha mãe era uma grande cozinheira na base quase que vegetariana, porque meu pai ficou sem comer carne durante 60 anos, que é por isso que ele dizia assim, que primeiro Deus, Deus o ajudou e a comida que ele comia, ele comia vegetal, carne lá em casa era muito racionada. Comíamos frango, nem todos, o meu pai não comia frango, mas nós criávamos galinha, ovo, isso aí nós comia, peixe, nossa comida era isso, muita verdura, muita verdura. Que o caso meu, diabético, lutando desesperadamente pra sobreviver, pra viver em cima de uma doença terrível, eu agradeço o que eu comi e o que vivi com a minha mãe, eu não aprendi a fumar, não aprendi a beber, nada disso. Eu tive uma vida, como é que eu posso dizer isso? Saudável, regrada.
P/1 – Por que o seu pai parou de comer carne?
R – Porque era fanático (risos).
P/1 – Mas era uma determinação da igreja isso?
R – Não, a igreja comia tudo, a igreja dele comia tudo, mas ele achou um dia que não devia matar um animal pra comer e que ele não devia comer o ovo, porque o ovo tem vida, e que ele não devia beber o leite, porque o leite tem vida. Então minha mãe fazia leite de soja, minha mãe fazia leite de soja, muito bom, eu uso até hoje, eu faço leite de soja, isso eu aprendi com a minha mãe. Por exemplo, minha mãe era uma grande cozinheira, ela fazia uma berinjela ao forno, que eu tenho, sinto até hoje o cheiro, que isso foi há 50 anos, quase, atrás, eu sinto o cheiro até hoje.
P/1 – Ela morreu jovem, foi isso?
R – Morreu, morreu jovem, minha mãe morreu com 70 anos, 70 anos, mas um filho atrás do outro, minha bisavó, por exemplo, morreu com 50 e poucos anos, teve 22 filhos, descrevo aqui nos meus contos, está lá, a minha bisavó, onde tem um episódio com um tio meu, está aqui também. Praticamente, menina, o que eu conto, eu já lhe falei que eu reconto o que o meu pai contava, e o meu pai contava isso, o meu pai contava era a história da família, garimpos, que ele trabalhou em garimpos lá na Chapada Diamantina, valentia, vaqueiros, você perguntou do vaqueiro, ele foi vaqueiro. Eu conto o que ele me contava, é tanto que eu não conheço o Nordeste e nem a Chapada Diamantina, mas eu leio tudo, sou muito bem documentado do que digo, eu leio tudo o que acontece na minha região na Chapada Diamantina e conheço sem conhecer, conheço os garimpos, como é que se processava o diamante, o ouro. Na semana passada eu comprei uma revista, essa revista da Abril, chama-se Ciência, e mostra que aquilo lá é tombado pelo governo, mas não temos governo, e que aquilo o fogo destrói, onde fala que tem uns tipos de plantas e animais, tem um beija-flor que só tem lá, aqui desaparece, tem umas plantas que só tem lá, desaparece.
P/1 – A sua família ouvia música, Aristides, vocês ouviam música quando vocês eram jovens, crianças?
R – Sim.
P/1 – O seu pai e sua mãe tinham o hábito de escutar?
R – Tinha, você não lembra, você, não é do seu tempo, tinha um grande radialista paulista, chamava-se Moraes Sarmento, um grande, um tipo de um Zé Paulo, tão chato quanto Zé Paulo, que o Zé Paulo também é um grande, um grande radialista, eu gosto justamente daquele carrancismo dele, que ele é duro quando tem que dizer, ele diz o que quer, e o outro também era, e ele tocava, tocava música, essa boa música brasileira, e elogiava, e minha mãe ouvia aquilo. Minha mãe lavava a roupa, fazia comida ouvindo Moraes Sarmento, que era de manhã, depois veio o Vicente Leporace, que é desse programa do Zé Paulo, um velho chato pra burro, eu gostava do velho. E ele tocava tudo que entrava de fora, onde o Beatles, quando apareceu, ele tocava, tocava um trechinho, ele dizia: “Que prêmio vou dar a isso aqui”, quebrava o disco: “Isso é Os Beatles, Os Beatles. Que prêmio eu vou dar a eles? Uma vareta de guarda-chuva” (risos).
P/1 – Quais eram as canções que sua mãe escutava?
R – Era Nelson Gonçalves, eu não lembro as canções, eu não lembro. Tem uma que ela cantava, que é uma canção bem primitiva, isso eu nunca vi ninguém cantar, que diz assim: “Quebra, quebra guabiroba, quero ver quebrar, quebra lá que eu quebro cá, quero ver quebrar”. E tinha outra que ela cantava, isso é lá do sertão, tinha outra que ela cantava, assim, essa é conhecida, isso é folclore português, eu nunca vi gravado, mas eu sei que é folclore português, diz assim: “Eu fui ao Tororó beber água, não achei, encontrei moça bonita que no Tororó deixei”, isso é uma música do folclore baiano, mas é portuguesa, é uma música portuguesa.
P/1 – E ela cantava também?
R – Cantava, tinha uma, ela era fanhosa e cantava, mas tinha uma voz bonita, uma voz bonita, e cantava muito música de igreja, por exemplo, tem uma que, eu detesto igreja, mas tem uma que eu não gosto de ver, de ouvir, ver não, de ouvir. Vocês viram Titanic?
P/1 – Sim.
R – Quando o Titanic está quase afundando, o povo levanta e canta em coro, não lembro, me fugiu, que é uma música religiosa, coloco nos meus contos, que ela cantava, e eu coloco uma crente lá cantando a música. É porque, embora que a música é bonita, mas como eu detesto qualquer coisa que tem conotação religiosa, mas a conotação que eu vejo me satisfaz, porque quem cantava era ela, então essa me satisfaz, eu gosto, essa eu gosto.
P/1 – Isso tem no filme, essa cena que você descreveu?
R – Tem.
P/1 – Eu não me lembro também da canção.
R – Quando o navio vai quase pra afundar, ele desce assim, não é, não? O povo sobe pra aqui e cantam em coro, em coro, porque aquele povo todo era protestante, o povo canta.
P/1 – Eu queria que o senhor falasse um pouquinho agora do seu irmão, esse que o senhor falou que era uma figura também.
R – Esse é um malandro, é casado, ele é casado e bem casado, e um filho dele trabalha na Globo, um filho dele, e uma menina, é uma professora de Inglês bem casada, malandro, menina, malandro, malandro, no bom sentido, malandro no bom sentido. É protestante, bem casado, e a mulher, quando ele casou, era magrinha, a mulher era magrinha, bonita etc., e a mulher engordou, está grandona assim, e ele diz assim: “Eu nunca precisei de outra mulher, minha mulher é a mulher mais bonita do planeta”, veja só. E ele olha pra você, ele diz uma besteirinha, uma besteirinha, você ri de esborrachar, eu não sei como é que o sujeito tem um humor tão à flor da pele como aquele cara tem, os outros nem tanto, os outros nem tanto, mas esse, esse...
P/1 – Esse é o Sigismundo, é esse?
R – Sigismundo, esse é o Sigismundo, dizem que parece muito comigo, tem a mesma altura, careca, fala, só que fala agitado, é mais agitado do que eu ainda.
P/1 – Eu vou encaminhar agora pras nossas perguntas finais, mas antes eu quero saber se tem alguma coisa que a gente não tenha perguntado e você gostaria de deixar registrado.
R – Não, eu acho uma excelente, um excelente bate papo. Não falamos muito de música, a minha paixão é música, e Teresa da Praia do Tom é uma música extraordinária, só que, eu posso acrescentar um pouquinho mais?
P/1 – Claro, o que quiser, fique à vontade.
R – Música, o Ary Barroso é uma das minhas paixões, e o Luiz Gonzaga, o Luiz Gonzaga que conheci e fiz um trabalho sobre ele, e o jazz, eu não sei porque eu tenho uma paixão também pelo jazz, o bom jazz, eu gosto do jazz desde os primitivos americanos, o lá da roça etc., até o Chick Corea, eu já não gosto, eu não engulo bem o Chick Corea, mas até ele eu ainda mastigo. E essa modernagem, porque eu acho que música precisa ter letra, melodia, ritmo, quando o cara pega um microfone, põe dentro da boca e canta, que você não entende o que o cara tá dizendo, isso não é música, isso é barulho, como dizia o Vicente Leporace. O Luiz Gonzaga é uma das minhas paixões por cantar justamente aquilo que é o sofrimento da minha gente, como é esse artigo que eu fiz sobre ele, que eu mostrei a vocês aí, acho que eu não mostrei, mostrei, sobre ele, eu digo justamente isso, e desmoralizo, enquanto Luiz Gonzaga canta Asa Branca pedindo clemência a um Deus que não existe e aos políticos sacanas da época, eu não estou falando do momento, tem o Zé Dirceu, tem o Zé Genoíno, tem outros e outros ladrões por aí se locupletando do dinheiro público, é isso, é por aí mais ou menos. A música é uma das minhas paixões, a boa música.
P/1 – O senhor falou que queria declamar um poema, né?
R – Queria.
P/1 – Eu tenho duas perguntas finais, mas o senhor pode declamar antes de eu fazer as últimas duas perguntas.
R – Posso declamar antes?
P/1 – Pode, pode declamar antes.
R – Eu poderia, vocês permitem, só que são cinco minutos, eu acho que é muito.
P/1 – Pode ficar à vontade.
R – Que eu queria declamar justamente o Poeminha Sem Realismo Para Ruth.
P/1 – Pode declamar.
R – Então, como eu já falei, o poema é um poema surrealista e o poema vem porque tudo se pôs, o sol se pôs ao meio dia e é o mote, isso é o mote do poema, é um poema, você me perdoe um pouco, culto, é um poema cheio de filosofia, de mitologia, de literatura, de uma série de coisas, é um poema culto. Então chama-se assim Poeminha Sem Realismo Para Ruth:
Pois é, RUTH:
naquela noite aziaga
o camarada Lincoln, com sua figura esquálida,
não cantou La Marseillaise,
nem mon petit Proust
degustou sua última madeleine;
também padre Alfredo não rezou a missa das seis,
tudo porque o sol se pôs ao meio-dia.
A terra não girou sobre seu eixo,
as aves aquáticas foram para o poleiro mais cedo,
os cavalos dispararam nas pradarias do espaço
e Balzac não pontuou sua última produção,
tudo porque o sol se pôs ao meio-dia.
O leiteiro de Minas não vendeu seu leite,
o sabiá de Gonçalves Dias não gorjeou na palmeira,
o gago Machado de Assis não teve ataque de epilepsia,
nem Edgar Allan Poe tomou seu pileque noturno;
o asqueroso corvo não repetiu seu never more, never more,
tudo porque o sol se pôs ao meio-dia.
O Cristo, no Corcovado,
com suas axilas fartas de desodorante barato,
gemeu e peidou: " fium!...”
Perfumando as tetas poluídas da " Garota de Ipanema ",
tudo porque o sol se pôs ao meio-dia.
Euclides não havia parido seu " livro vingador " ,
Verlaine não beijou naquela noite a boca fétida
de Rimbaud,
Dostoiévski tremia de frio na cadeia;
as ondas oceânicas bêbadas de fúria e caos
lambiam as nádegas rosadas e pedregosas de Olinda,
tudo porque o sol se pôs ao meio-dia.
RUTH, a coisa foi tenebrosa:
o oceano nada pacífico
vomitou seu cardume de baleias na praia;
a lua triste, penumbrosa,
não derramou seu mênstruo de luz aquosa,
tudo porque o sol se pôs ao meio-dia.
Castro Alves não palitou seu dente de ouro,
Tobias Barreto não vociferou seu último desaforo em alemão;
Nietzsche não invocou naquela noite seu Zaratustra
e Hitler no íntimo do seu ventre de abutre
já comandava a sua Gestapo sanguinária.
tudo porque o sol se pôs ao meio-dia.
O conde de Tolstoi mergulhava em densas trevas,
Van Gogh planejava decepar a orelha esquerda
e se lavar em amarelo " excremencia ";
as nuvens celestes se tornaram negras, negras,
e Virgulino Ferreira da Silva, o Lampião,
ainda não tinha o olho direito vazado,
tudo porque o sol se pôs ao meio-dia.
Naquela noite tenebrosa,
escura, macabra, relampejante,
Rimbaud, que ainda era imberbe e infante,
não havia pensado "Une Saison en Enfer";
o anguloso Dante não havia deflorado Beatriz,
Pitágoras, o filósofo grego,
não havia inventado a tabuada de multiplicar,
tudo porque o sol se pôs ao meio-dia.
Sir Gilberto Freyre nem pensava escrever " Casa-Grande & Senzala ";
Mussolini, com seu queixo de quadrúpede,
ainda não tinha feito sua pose de arromba,
nem o Titanic havia boiado na baía da Guanabara,
tudo porque o sol se pôs ao meio-dia.
O ritmo do JAZZ não balançava el mundo;
Beethoven, no Largo da Carioca, dançava carnaval,
fumava maconha e compunha " A Pastoral ".
Estou em dúvida: não sei se Camões já existia,
mas seu Cabral já havia gritado: "terra à vista!..”
Bocage não havia escrito seu primeiro poema pornô.
A Planície Amazônica já estava sendo amalgamada
e conspurcada para ser vendida aos mercados mundiais,
tudo porque o sol se pôs ao meio-dia.
P/1 – Ótimo.
R – Faça as perguntas.
P/1 – Muito obrigado. Eu vou fazer as duas perguntas finais. Quais são seus sonhos hoje?
R – Menina, o meu sonho é viver, eu já até marquei o dia da minha morte, eu quero morrer no dia 27 de novembro de 2037, as horas que os relógios, o relógio bater, eu não sei o horário que nasci, meia-noite posso apagar. E quero produzir, eu sou um sujeito que vive de bem com a vida, quero produzir até lá, quero escrever, eu estou com, lhe falei, com esse livro que vai ser publicado, já ganhei, será publicado, até o fim do ano está publicado, será o meu 16º livro. Tenho cinco inéditos, fora aquela tamboeira, que eu posso catar todo, eu tenho mais de quatro mil trabalhos publicados, posso fazer vários livros aí, como Jabor tem feito por aí a fora. E tenho um prazer imenso em falar, eu só falo de literatura, falar de literatura, andar com bons amigos, meu grande amigo é a Neli, nós andamos o dia todinho falando de arte, comendo por aqui, aqui, acolá, andando, vendo pintura, que é por isso que eu quero saber onde que fica a casa do Aldemir Martins, que fica por aqui, em Pinheiros. Você não conhece, né?
P/1 – Não, eu não sei, alguém sabe? Eu não conheço, não deve ser difícil de achar, não, a gente procura depois.
R – Então essa é uma das minhas satisfações. Quando, hoje, por exemplo, eu canso de dizer assim, quando eu tenho um grande dia na vida, e sempre isso acontece, sempre, eu digo assim: “Hoje eu estou cardíaco”, não sou cardíaco, hoje eu estou cardíaco, porque diz que o cara cardíaco o coração cresce, que fica imensamente grande, e quando eu tenho grandes momentos como esses aqui, eu tenho isso até com uma certa facilidade, eu fico mais do que satisfeito. Eu sei disso, eu tenho muitas amigas mulheres, eu tenho mais amigas, não que eu faça seleção, não, e às vezes penso de mim pra mim mesmo, eu me reconheço um sujeito feio, sem dente. O sem dente não é porque eu não posso pôr um dente, é porque eu estuo fazendo um tratamento dentário há três anos e, como eu sou diabético, eu vou lá e eles medem o diabetes, medem o diabetes, está 200, não dá pra incrustar um dente, só que a semana passada colocaram um, colocaram um e eu vou segunda-feira, eu acho que colocam mais um. E estou cheio de mulher, não estou dizendo que a mulher tem interesse em mim, veja o que eu estou dizendo, estou cheio de mulher bonita: “Teodoro”, não, hoje, você pensa na mulher por um motivo, eu penso de outro e gosto de balada, também mulher burra não gosta de mim, eu não tenho culpa.
P/1 – Por fim, como é que foi contar a sua história, Aristides como é que foi dar o seu depoimento aqui pra gente?
R – Fantástico, eu não quero dizer que foi um dos melhores momentos da minha vida, não foi, tenho tido, eu tenho tido bons momentos na vida, mas, menina, eu incluo entre um dos grandes momentos da minha vida. E aquilo que eu gosto muito eu gosto de chamar de docinho de coco baiano, essa tarde foi uma tarde com sabor de docinho de coco baiano. Ao Seu Caio Prado Júnior, a você, Tereza da Praia, e a Laura, Laura, tem uma música também que tem o teu nome, que é do, tem, tem, tem, eu esqueci o nome do compositor.
P/1 – Eu quero agradecer então, a gente encerra por aqui, muito obrigada.
R – E o que é que achou?
P/1 – Achei ótimo.
FINAL DA ENTREVISTA
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