Ao final da tarde, adormeço. Estou em um estado entre o sono e a vigília e sonho que um paciente tinha precisado interromper a sessão anterior na metade e me ligara em um horário diferente. A ligação interrompera o meu sono. Atendo, mas não estou completamente acordada e ele me mostra um vídeo. Não estou no meu quarto, estou na sala e minha família passa atrás de mim. Tenho uma série de pensamentos, entre os quais: isso não é real, é um sonho; e, se isso é real, preciso desligar e acordar o suficiente para atender. Desligo e passo o resto do sonho tentando acordar, na angústia de não conseguir ficar desperta, mas, também, pensando que aquilo não tinha realmente acontecido, não precisava me preocupar.
Que associações você faz entre seu sonho e o momento de pandemia?
Desse recorte, duas associações se sobressaltam: a relação de intimidade que a casa implica; e a dúvida sobre a realidade do acontecimento. A intimidade aparece dos dois lados da tela: nos óculos que nunca vi uma paciente usar, no irmão de uma paciente que adentra o quarto embrulhado em uma toalha, em um paciente que me apresenta sua residência, incluindo o gato; e na parede atrás de mim, com uma prateleira e alguns livros, cuja existência foi notada e verbalizada por um paciente, levantando hipóteses sobre se eu tinha comprado ou mandado fazer. A intimidade se apresenta no aparelho que usamos, nos fones que portamos, na qualidade da imagem e do som. Ela se imiscui na medida em que o lugar em que trabalho é o mesmo em que durmo. A separação é o enquadre da tela. Em uma parede, atendo, em outra, descanso e sonho. No sonho, não estou no meu quarto, estou na sala, o que, ironicamente, apresenta ainda mais a intimidade da casa. Na sala, minha família caminha e fala. Meu estranho familiar existe e invade os contornos da tela. Quanto à dúvida sobre a realidade do acontecimento, me ocorre um evento do início da pandemia. Já com medo de chegar perto de outras...
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Ao final da tarde, adormeço. Estou em um estado entre o sono e a vigília e sonho que um paciente tinha precisado interromper a sessão anterior na metade e me ligara em um horário diferente. A ligação interrompera o meu sono. Atendo, mas não estou completamente acordada e ele me mostra um vídeo. Não estou no meu quarto, estou na sala e minha família passa atrás de mim. Tenho uma série de pensamentos, entre os quais: isso não é real, é um sonho; e, se isso é real, preciso desligar e acordar o suficiente para atender. Desligo e passo o resto do sonho tentando acordar, na angústia de não conseguir ficar desperta, mas, também, pensando que aquilo não tinha realmente acontecido, não precisava me preocupar.
Que associações você faz entre seu sonho e o momento de pandemia?
Desse recorte, duas associações se sobressaltam: a relação de intimidade que a casa implica; e a dúvida sobre a realidade do acontecimento. A intimidade aparece dos dois lados da tela: nos óculos que nunca vi uma paciente usar, no irmão de uma paciente que adentra o quarto embrulhado em uma toalha, em um paciente que me apresenta sua residência, incluindo o gato; e na parede atrás de mim, com uma prateleira e alguns livros, cuja existência foi notada e verbalizada por um paciente, levantando hipóteses sobre se eu tinha comprado ou mandado fazer. A intimidade se apresenta no aparelho que usamos, nos fones que portamos, na qualidade da imagem e do som. Ela se imiscui na medida em que o lugar em que trabalho é o mesmo em que durmo. A separação é o enquadre da tela. Em uma parede, atendo, em outra, descanso e sonho. No sonho, não estou no meu quarto, estou na sala, o que, ironicamente, apresenta ainda mais a intimidade da casa. Na sala, minha família caminha e fala. Meu estranho familiar existe e invade os contornos da tela. Quanto à dúvida sobre a realidade do acontecimento, me ocorre um evento do início da pandemia. Já com medo de chegar perto de outras pessoas no mercado, mas constatando a inevitabilidade da aproximação nos estreitos corredores, paro um pouco distante da fila dos salgados, aguardando meu namorado. Me distraio, olho para o lado e, quando meu olhar retorna, meu namorado sumiu. Procuro-o entre as estantes, aguardo esperando que volte. Sinto que passaram-se minutos, minutos inexplicáveis. Me vem à mente um plot de filme: ele sumira, nunca mais o encontraria. Voltaria para casa e, ao contar seu desaparecimento à minha família, ouviria como resposta “De quem você está falando? Não conheço ninguém com esse nome”. Como se nunca tivesse existido. Como se uma parte da realidade fosse tirada de mim. Ele tinha ido pegar detergente.
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