Projeto Medley
Depoimento de Naira Rodrigues
Entrevistada por Luiza Gallo
São Paulo
Realização Museu da Pessoa
Transcrito por Camila Inês Schmitt Rossi
[00:00:01]
P/1 – Eu queria que você começasse se apresentando, dizendo seu nome completo, data e local de nascimento.
[00:00:07]
R – O meu nome é Naira Rodrigues Gaspar, eu nasci no dia 30 de dezembro de 1969, o ano do festival de Woodstock, o ano que os homens pisaram na lua, e nasci na cidade de Santos. E eu vou tomar a liberdade de me auto descrever porque como imagem vai ser veiculada posteriormente pra que todas as pessoas tenham acesso a essa imagem... então, eu sou uma mulher, branca, de cabelo claro, to com o cabelo preso num rabo de cavalo, estou sentada, to com um vestido preto com bolinhas brancas de manga curta, to usando um brinco de argola de coração prateado, com batom vermelho e estou sentada na bancada do meu quarto aqui em Santos.
[00:01:19]
P/1 – E quais são os nomes dos seus pais?
[00:01:21]
R – Minha mãe se chama Nair e o meu pai que já falecido, chama-se Arnaldo.
[00:01:29]
P/1 – Você sabe quais são as atividades deles?
[00:01:31]
R – Minha mãe foi professora, ela é aposentada, tem 80 anos de idade, e o meu pai foi operário da indústria petroquímica, ele já é falecido.
[00:01:45]
P/1 – E você tem irmãos?
[00:01:47]
R – Tenho um irmão.
[00:01:50]
P/1 – Como que é a relação de vocês?
[00:01:53]
R – Nós somos extremamente grudados, meu irmão é mais velho, tem 57 anos, o nome dele é Marcos Vinícius e ele é meu ídolo (risos)! Nós somos bastante próximos.
[00:02:11]
P/1 – E ele é mais velho?
[00:02:13]
R – Mais velho, ele tem 57 anos, eu tenho 50.
[00:02:19]
P/1 – E quais eram os principais costumes da sua família?
[00:02:24]
R – Bom, a minha família é de descendência, né, espanhola e portuguesa.
Sempre os nossos hábitos, as nossas relações sempre foram permeadas pela comida, então sempre em volta de uma mesa de comida. Meus avós que eram espanhóis, meus avós maternos, meu avô José e minha avó Raquel, sempre proporcionaram pra gente esses espaços, né, e meu pai também gostava muito de cozinhar, então, sempre estávamos reunidos em eventos, qualquer situação, até hoje a nossa família em qualquer situação se reúne em volta de uma mesa de comida sempre feita por alguém da nossa família, né. Hoje o cozinheiro da família é o meu irmão, mas anteriormente foi o meu avô, antes disso minha avó, meu pai e enfim... Sempre, foram as coisas que eu lembro e também as nossas idas à praia, sempre foram... nossa família sempre foi muito pequena, né, e uma família muito unida. Mas sempre em volta de uma boa mesa de comida.
[00:03:42]
P/1 – Tem algum prato que você específico que você lembra quando pensa neles?
[00:03:51]
R – Tem um bolo que a minha vó fazia, que a gente apelida, né, do bolo da vovó, que era um bolo de chocolate com cobertura de chantilly, e recheio de chantilly ou com pêssego ou com morangos que foi o bolo de quase todos aniversário e que só minha vó sabia fazer e depois a mãe aprendeu e minha mãe faz hoje. E é um bolo que todos os anos, pelo menos no fim do ano... é um bolo do final do ano, né?! Porque meu irmão faz aniversário em novembro, eu faço em dezembro, e a gente sempre no final do ano tem o bolo da vovó. E quando eu era menor, mais nova, era a caranguejada também do meu aniversário, que eu adoro caranguejo então a gente sempre... Agora, a minha avó era uma grande cozinheira, então sempre tinha o frango assado, a lasanha, a macarronada, a maionese, enfim, os cozidos.
[00:04:49]
P/1 – Uau! Deu até agua na boca aqui.
[00:05:02]
R – (risos) Mas esse bolo é fenomenal, uma delícia!
[00:05:06]
P/1 – E Naira, como era a casa da sua infância?
[00:05:13]
R – Gente, a casa da minha infância era uma casa que ficava na rua Alagoas, que é uma rua aqui de Santos, no bairro do Gonzaga. Rua Alagoas, número 29. Que é a casa com a qual eu sonho até hoje, e eu gostaria muito de voltar a morar lá. Era uma casa geminada, um sobrado, então no térreo tinha uma garagem com dois quartinhos, ali, que é a garagem que a gente fazia os bailinhos, que a gente brincava, onde ficava a gaiola do hamster, e que geralmente o hamster se jogava da gaiola depois morria tudo, enfim... E aí, no andar de cima, né, o primeiro andar, a gente subia por uma escada, assim, do lado de fora na frente, tinha uma varanda na frente, tinha uma sala de estar, tinha uma outra saleta, tinha uma sala de jantar, a cozinha, a copa e em cima tinham os quartos e o banheiro. E foi nessa casa que a gente foi criado, as melhores lembranças da minha infância estão nessa casa. E a gente brincava na rua e pulava muro e é a casa da Rua Alagoas.
[00:06:37]
P/1 – E como que era um pouco, assim, essa rua? Que brincadeiras você gostava?
[00:06:39]
R – Então, eu gostava muito de brincar de ‘polícia e ladrão’ – geralmente eu queria ser sempre a chefe dos ladrões –, de ‘seu reizinho mandou’ e eu gostava de ser sempre o reizinho. Mas aí quando os meninos iam jogar futebol, as vezes a gente pedia para jogar junto, a gente fechava a rua, sabe. De bicicleta, pega-pega de bicicleta. Também tinha os momentos de brincadeira, né, de boneca de papel, na minha época tinha umas revistas que vendiam na banca, que tinham as “bonecas de papel” que você destacava as bonecas e as roupinhas, e aí a gente ia trocando as roupinhas e montando, e eu gostava muito de brincar daquilo. Brincava de pega-pega, esconde-esconde, essas eram as brincadeiras, assim, empinar pipa na praia de vez em quando...
[00:07:40]
P/1 – E você lembra de alguma história marcante dessa época?
[00:07:46]
R – Eu lembro d’eu aprendendo a andar de bicicleta, bem pequena, eu aprendendo a andar de bicicleta, e era um amiguinho meu da rua que tava me ensinando, só que eu não sabia fazer curva ainda, aí eu fui fazer a curva e caí numa poça d’agua, fiquei muito brava, chorei muito, fiquei com muita raiva. E eu lembro duma história que é interessante, assim, não foi um evento em especial, mas eu lembro duma história de eu ter achado um pneu, desses de caminhão, sabe, em entulho de construção, eu e esse meu amigo, que era um menino que eu brincava muito, Betinho, e a gente achou um pneu de caminhão num entulho de obra e a gente brigou por conta do pneu, que eu queria o pneu pra mim, o pneu acho que tava guardado na casa dele, e aí eu queria o pneu pra mim e ele queria o pneu para ele, puxava o pneu pra cá, pra cá, eu nem lembro mais o que aconteceu depois, eu sei que a gente brigou por causa do pneu. E nessa época, isso era década de 70, aqui em Santos, tinha um personagem, uma personagem, que era fascinante, que eu adorava, que era o Dudu do Gonzaga. Na verdade, na época eu não tinha a menor noção de quem era o Dudu do Gonzaga, mas era um homem que passava sempre na rua, com aqueles cabelos compridos sempre presos, rebolando, com aquelas roupas justas, que ia para a praia, e aí punha uma sunga super justinha, uma blusa coladinha, uma bolsa a tira colo e passava causando, e era o Dudu do Gonzaga, e que na verdade, hoje a gente... né, o Dudu do Gonzaga tem até uma cerveja, uma marca de cerveja aqui em Santos com esse nome, e eu era fascinada pelo Dudu do Gonzaga. Quando eu via aquela criatura passando, por que era uma coisa muito andrógena e as vezes a molecada xingava, ele sofreu muito preconceito, né, e a molecada xingava e eu ficava assim atrás do muro, olhando pelos vãos do muro assim de casa, olhando o Dudu do Gonzaga passar rebolando, era uma coisa glamorosa, com tamancos enormes... Então hoje, talvez o Dudu do Gonzaga seria uma mulher trans, né, que ele tinha uma identidade de gênero bem feminina, era uma pessoa...figuraça. E é uma coisa que eu lembro muito claramente, né, a imagem do Dudu do Gonzaga passando na nossa rua, que era o caminho que ele fazia pra ir pra a praia. Essas cenas são muito da infância. E dos bailinhos que o meu irmão dava na garagem de casa, que eu nunca podia entrar porque eu tinha sete anos idade, ele já tinha quatorze e eu era a irmã mais nova pentelha, e eu ficava na porta do bailinho sempre com aquela cara horrorosa, meio chorando e aí sempre tinha um amigo dele, lindo e maravilhoso que aí virava meu príncipe, né, que vinha me buscar e até dançava comigo no bailinho pra eu ficar um pouco mais feliz (risos), pra fazer a irmãzinha mais feliz, mas ele ficava bravo, não queria que eu ficasse nos bailinhos dos adolescentes, obvio, nenhum adolescente ia gostar da irmã de sete anos lá. Então amanheciam muitos bailinhos na garagem de casa, eles pintavam as lâmpadas de vermelho, de preto... E as brincadeiras na rede, a gente deitava na rede, eu me embrulhava na rede e ficava girando na rede, até um dia que eu caí – várias vezes eu caí – e bati a cabeça no chão. Mas era isso, são essas coisas da infância que eu me lembro da Rua Alagoas.
[00:11:54]
P/1 – E nessa época você pensava no que você queria ser quando crescesse, no que você queria trabalhar?
[00:12:03]
R – Não, não existia isso, não existia. Era uma infância, infância mesmo, né. Nessa época na década de 70, foi quando foi diagnosticado que eu tinha retinose pigmentar, eu tinha seis anos de idade, eu estudava numa escola de educação infantil perto de casa, uma escola pública. E aí foi feito um exame, dessas campanhas de prevenção, né, de saúde ocular na escola, e viram que eu tinha alguma dificuldade, foi aí que os meus pais me levaram no oftalmologista e ele falou que eu tinha uma doença muito rara na época, que se chamava retinose pigmentar, e que eu ia ficar cega um dia, e que era melhor eles me colocarem no internato pra pessoas cegas, aqui em Santos tinha um internato na época, pra moças cegas, inclusive o nome é Lar das Moças Cegas até hoje, e que me levassem pra lá, que eu ia ficar cega um dia, então que era melhor eu já ir me acostumando com essa vida. Meu pai brigou com o médico, minha mãe ficou arrasada, foi sempre uma tortura pra eles, né, e a partir daí eu passei um pouco a ser uma menina muito blindada de tudo, cuidada, eu era a única neta mulher também, então sempre bem minada. Eu pensava em querer alguma coisa, queria comer alguma coisa e aí a minha vó já fazia, já trazia, era sempre assim. E eu lembro da minha infância que era só o aqui e agora, né. Talvez essa tenha sido a única fase da minha vida que eu vivi o presente intensamente. Foi na infância.
[00:14:01]
P/1 – E como foi quando você foi diagnosticada? Você tava junto quando o médico contou?
[00:14:09]
R – Então, eu não tenho uma memória clara disso porque os meus pais nunca conversaram comigo sobre isso, acho que eles foram tentando administrar a situação porque eu sempre usei óculos, porque eu tinha hipermetropia, então, assim, nunca teve uma conversa. Logo depois eu fui estudar no colégio São José que era um colégio de freiras daqui de Santos, só de meninas, um colégio elitizado, tal. E minha mãe adorava, era na moda, aqueles óculos de armação de plástico coloridos, era azul turquesa, cor-de-rosa, vermelha, eu odiava tudo aquilo, mas a minha mãe insistia e eu usava aqueles óculos horrorosos, horrorosos horrorosos. Quando eu fui chegando na adolescência eu fui evitando usar esse tipo de óculos, que eu odiava aquilo. E nunca isso foi conversado, né, então foi sempre muito velado, só na adolescência que foi meio que... eu fui meio que compreendendo um pouco melhor, tendo contato com essa situação, né, mas antes disso não, eu não sofri esse impacto na infância. Quem sofreu todo o impacto foram minha mãe e meu pai, meus avós e meu irmão.
[00:15:44]
P/1 – E quais lembranças você tem da sua primeira escola?
[00:15:49]
R – Da minha primeira escola? Ah era... chamava-se Leonor Mendes de Barros, era uma escola pública aqui de Santos de educação infantil. Eu amava, tinha uma casinha de boneca que eu amava, tinha um tanque de areia que eu adorava brincar no tanque de areia, o parquinho tinha um bonde, tinha um gira-gira e tinha uma... a gente chamava de gaiola, que era uma gaiola mesmo, que você ia escalando por fora e depois tinha um cano dentro que você escorregava, lá de cima pra baixo, era uma delícia. Eu adorava aquela escola. A piscina, tinha piscina, eu adorava aquela piscina, adorava ir na piscina com chuva, quando tava chuviscando as vezes a professora levava a gente pra a piscina e eu adorava. Aquela escola tenho, nossa, grandes lembranças, da gente pintando com spray as cascas das cigarras que elas abandonam, né, as cascas, e a gente ia buscando no mato casca de cigarra, o corpinho, a carcaça da cigarra e aí a gente pintava com spray dourado e prateado pra colar nos vidros. As janelas da escola, das salas, de um lado das salas tinha uma porta grande que dava prum jardim, do outro lado eram vários janelões, vidro, né, porque não abria, era pro corredor interno da escola, e aí esses vidros eram todos pintados, as professoras pintavam e a gente ficava pintando as carcaças das cigarras com spray dourado e prateado pra colar nos vidros, pra enfeitar árvore de natal, eu lembro do Papai Noel que eu dei a chupeta pra ele quando eu tinha 6 anos, 5 anos. E foi muito bom, aquela escola era maravilhosa.
[00:17:51]
P/1 – E você ficou nessa escola até quantos anos?
[00:17:56]
R – Até eu ir com sete anos pro primeiro ano, primeira série, porque na época a gente ia pra primeira série mesmo com sete anos. Então, acho que eu fiquei dos três ou quatro anos até os sete. Aí com sete anos eu fui pra essa escola que era o Colégio São José, porque a escola que eu estudava era só educação infantil mesmo, e a primeira série numa escola de freiras, particular que era o colégio São José.
[00:18:21]
P/1 – E como foi nesse colégio?
(pausa técnica)
Queria que você me contasse um pouquinho como é que foi nessa segunda escola.
[00:18:57]
R - Ah, o colégio São José era um colégio de freiras, era um colégio bastante elitizado, só as meninas mais ricas da cidade estudaram lá, foi meio uma reprodução de padrão, porque a minha mãe também estudou numa escola de freiras bastante elitizada aqui de Santos, da época dela, né, que era o Coração de Maria, e aí, fazia-se todo sacrifício, as famílias de classe média faziam todo sacrifício possível pra matricular suas filhas nessas escolas. Eu não tenho assim, memória muito importante de lá, eu lembro da primeira professora, que era... a gente chamava as professoras lá de mestras, né, a mestra Mercedes, mas eu lembro assim, pouquíssimo, não lembro de ter amigas da primeira à quarta série, não tinha, assim, muito amigos, amigas, né. Não tenho lembranças importantes até a quarta, quinta série. Na quinta série eu já tava na pré-adolescência, eu lembro muito de uma freira, chamava irmã Rosailda, bem baixinha, e ela era muito brava comigo, ela era professora de história (acho que era história) e religião, ou era matemática... nem sei do que ela era professora, mas eram duas matérias que ela dava. E ela era muito brava, muito brava. Então se eu não fazia lição, ela me deixava de castigo na hora do recreio... e eu, por incrível que pareça, eu era mais alta que ela já com 11 anos e aí ela ia me dar bronca, ela “abaixa esse olho, menina! Não me olha de cima pra baixo”, mas não tinha muito como porque ela era mais baixa que eu (risos). Mas eu direto eu ficava de castigo na hora do recreio. Assim, eu não era o top de linha da escola, tinha as meninas ricas e a gente que era mais... não tinha a condição econômica, mas na época era muito natural, né, as famílias matricularem as filhas. Eu estudei nesse colégio e o meu irmão estudou no colégio Marista aqui de Santos também, né, que eram os colégios de elite da época, da década de 70. Depois, eu tenho mais recordações da sétima e oitava série no São José, que aí eu já era adolescente, já tinha mais amigas, e aí eu tenho algumas amigas hoje que vieram daquela época, duas ou três, mas nada muito... Odiava meu professor de matemática, ele era horroroso, ele dava 200 exercícios pra gente fazer no final de semana em casa, e eu copiava respostas todas do livro e colocava lá, e queria que ele se danasse porque eu odiava ele. Fazia muitos mapas, minha mãe que fazia pra mim, porque eu também não suportava fazer mapa, nem sabia e eu já também tinha uma dificuldade de enxergar, e tal, minha mãe que fazia os mapas pra mim, eu só pintava e colocava as legendas. Mas essa professora de geografia, nessa época, era uma professora ótima, aprendi muito de geografia e de história com ela. E aí depois eu saí dessa escola, fui pro Ensino Médio, aí já fui pra outra escola. Mas o São José não foi uma escola que eu tenho grandes recordações, né, tão afetivas assim, como na escola de educação infantil.
[00:22:45]
P/1 – E nessa terceira escola, como foi?
[00:22:51]
R – Então, aí no ensino médio eu fui estudar numa escola chamada Luiz de Camões, que era um colégio misto, pequeno em Santos, e aí já era 1985, já tava muita coisa mudando, eu já era meio transgressora, dark, meio assim, sabe, tinha umas... estudava na mesma classe do meu primo, a gente brigava muito porque ele era mó folgado, né, e eu tinha vindo de uma escola que era toda rígida, toda certinha. Era uma escola mista, então foi ótimo. O meu primeiro ano do ensino médio foi uma delícia. Primeiro que a escola era bem mais flexível, né, em termos de conteúdo, então eu arrebentava nas notas, né, tirava só notão, dava cola pra todo mundo, fazia a prova do outro, tinha também gente que fazia a minha, sabe, de inglês então, minha amiga que fazia inglês fora ela fazia a prova da classe inteira. Aprendi a ‘bulá’ aula, no primeiro ano do ensino médio, comecei a ir para bailinho, então o primeiro ano do ensino médio foi uma delícia, assim, que era... foi quando eu descobri a adolescência, né. E depois eu mudei de escola novamente porque aí eu fui fazer magistério, eu queria ser professora, aí eu fui para o Coração de Maria, que era uma outra escola, que também era de freira, mas ela tinha curso de magistério, que era o curso de formação de professores na época. Mas aí eu já comecei a ter uma perda visual, já estava com baixa visão, mas mesmo assim eu andava de bicicleta pra cima e para baixo. Aí reprovei nesse ano e aí eu fui pruma outra escola depois pra fazer o segundo ano do ensino médio de novo, que aí eu desisti de fazer magistério, e aí eu fui pruma outra escola chamada Colégio Lusíada, que era uma escola pequena na época também, mas era um boa escola, hoje ela é só uma escola de projeto mesmo, que atende alunos de escola pública, tem um processo seletivo, tal, é uma Fundação. Mas época foi bem bacana, tinha muitos amigos, muitos não porque na minha classe tinha 15 pessoas, né, mas por aí. E aí foi legal. Só que aí eu tive que começar a assumir e a entender a perda visual nessa época, porque eu fiquei cega com 19 anos, nessa época eu tinha 17. E foi quando eu perdi a minha vó, minha vó Raquel, que faleceu em 1988, que foi uma perda terrível, nessa época meus pais já eram separados, então morávamos eu, minha mãe, meu irmão e meus avós, e aí minha avó se foi e foi bem difícil para mim. Mas o ensino médio, assim, a escola tinha menos importância em termos acadêmicos e mais importância mesmo por conta das relações. E foi nessa época que eu comecei a me interessar pelo campo do Direito. Eu queria fazer faculdade de direito na verdade, fui parar na Fonoaudiologia, né, mas... quase ali.
[00:26:30]
P/1 – E Naira, como que foi esse período para você, assim, se readaptar... Você chegou a aprender braile?
[00:26:42]
R – Então, nesse período que eu to te falando, que foi mais ou menos dos 16 até os 19 anos, eu tava tentando entender. Isso é uma questão muito inconsciente né, hoje, olhando para trás da história, tudo o que eu vivi, eu penso que nesse momento talvez eu estivesse tentando entender, eu tava tentando testar também, né, esconder, negar, tinha muito uma negação disso. Então eu saía de bicicleta, eu tinha uma Barraforte, que hoje é uma bicicleta de trabalhador, mas antes os meninos, boyzinhos todos tinham, Barraforte ou Caloy 10. E eu tinha uma Barraforte, embora as meninas tivessem só a Ceci’s, que era as bicicletas da cestinha, e tal, eu tinha uma Barraforte. E eu saía de bicicleta, a gente frequentava muito a praia a noite, e assim, eu voltava e não enxergava quase nada, mas eu vinha pedalando seguindo a iluminação da rua, assim, sabe, a iluminação no chão vai fazendo um trilho, né, e aí eu ia seguindo aquela iluminação até chegar em casa. E aí, só em 1989 eu fui fazer alguma coisa, assim, porque daí eu já não enxergava mais nada mesmo, foi um ano que eu parei de estudar porque eu já tinha acabado o ensino médio, eu parei de estudar, né, esse ano eu não estudei. Mentira, em 89 eu cheguei a fazer, prestar o vestibular para Direito, mas assim, eu não sabia braile e eu não enxergava pra ler, então eu fiz com ‘ledor’, e o cara que leu a prova pra mim não sabia nem ler direito, e principalmente em inglês e eu acabei zerando na prova de inglês e não passei, porque não podia zerar em prova nenhuma.
E aí que eu fui fazer reabilitação. Num primeiro momento, eu fui pra essa instituição que chama Lar das Moças Cegas, que era um internato, nessa época eles já tavam se abrindo e passando pra atendimentos meio ambulatoriais externos e eu fui fazer a reabilitação lá, mas eu achava aquilo tudo muito estranho, porque tinha meninas da minha idade ou até mais velhas que eu que viviam confinadas lá, né, era muito estranho aquilo pra mim. E fui para lá, só que eu não aceitava muito as regras e limites, eu não podia aprender braile porque eu tinha um resíduo visual, então eles não queriam me ensinar o braile, e aí eu tive que aprender braile escondido, umas meninas lá começaram a me ensinar. Aí a professora de braile descobriu e falou “não, então você vai pra sala de braile”. Foi aí que eu comecei a usar a bengala, guia, né. E nessa época foi o ano da primeira eleição direta, né, do pós-ditadura militar, já havia tido uma eleição indireta, né, que foi quando o Tancredo eleito, e agora em 89 era a primeira eleição direta para presidente da república, e eu fazia campanha pro Lula, enlouquecidamente, e como eu incomodava muito dentro da instituição, eles me convidaram pra participar de algumas reuniões que tavam acontecendo. Santos já era uma administração do partido dos trabalhadores e eles me convidaram pra fazer parte de umas reuniões que tavam tendo, eles nem sabiam direito do que era e eu comecei a ir, que era um pouco para me tirar, né, de dentro da instituição. E aí foi a minha grande sorte porque era uma reunião de movimento sociais, pessoas da militância, de uma militância principalmente de esquerda, né, que tava discutindo a criação do Conselho de Direitos da Pessoa com Deficiência aqui em Santos. E foi aí que eu fui me reabilitando de fato, eu falo que eu me constitui como pessoa com deficiência, na mão do movimento social, né, neste momento. E aí foi isso, aí é vida que segue, né, depois eu desisti da faculdade de direito e fui fazer fonoaudiologia.
[00:31:30]
P/1 – Voltando só um pouquinho, eu queria saber como era o seu dia-a-dia nessa instituição de reabilitação.
[00:31:46]
R – Então, eu ia para lá, eu não lembro se eu ia todos os dias ou ia algumas vezes por semana, e aí eu tinha atividades, né, tinha algumas atividades que a gente era obrigada a fazer, então por exemplo, eu era obrigada a cantar no coral. E era obrigada a fazer artes manuais, a oficina de artes. São as duas coisas que eu era obrigada a fazer. Eu não sei cantar, então eu ia lá só zoar no coral, e a gente era obrigadas a se apresentar no coral e aí tinham as minhas amigas que eram cantoras, que eu fiquei amiga delas lá, e eu falava para elas “meu, você fica apertando o meu braço, se tu ver que eu desafinei, tu aperta o meu braço, porque aí eu paro de cantar e só mecho a boca.” E era isso que acontecia, eu saía com o braço até vermelho, né, ridículo. E cada dia tinha uma atividade, então um dia tinha atividade de coral, braile, e locomoção que chamava – que é orientação e mobilidade, né – outro dia tinha psicólogo, tinha oficina e aí cada dia tinha uma atividade, assim, e a gente ficava nos espaços comuns de convivência, circulava pela casa, era uma casa uma casa grande, né, agora virou um prédio, um lugar enorme. Mas antes era uma casa bem grande e a gente fazia algumas coisas lá. Eu não ficava tanto lá dentro, eu ia, fazia as atividades e vinha embora. Tinha um pessoal que tocava, tinha uma biblioteca, às vezes, quando eu aprendi braile eu pegava alguns livros de lá, mas assim, não era nada... eu as vezes eu me escondia no quarto, porque no último andar eram os quartos, né, pra gente contar fofoca, conversar, a gente se escondia lá pra ficar conversando. E aí eu comecei a questionar muito a coisa da, principalmente nesse ano da eleição, que eu vi o presidente da instituição chamar as meninas que moravam lá, que ainda eram internas, pra falar pra elas que elas tinha que votar em determinado candidato que ele ajudaria a instituição, que se ele não ganhasse, se elas não votassem nele e se ele não ganhasse, elas iam ter que morar na rua porque não tinham onde morar. E aí eu fiz um escândalo, denunciei, falei que o cara era criminoso, e aí assim, eles tentavam abreviar ao máximo a minha estada lá, né. Aí a gente criou tipo um grupo gestor, que a gente chamava de grêmio escolar, porque aquilo era uma escola especial, mas era um grupo de alunos que fazia jornal pra contar notícias, pra contar coisas, levar informação, o jornal era em braile, a gente fazia alguns bazares, então assim, vendia coisas, algumas meninas cozinhavam, então a gente fazia brigadeiro, bolo, qualquer coisa, porque aí esse dinheiro que era arrecadado era revertido em coisas pra as meninas internas, porque assim, shampoo, roupa, produto de higiene, era tudo que era doação. Então, elas não podiam nem escolher o que elas iam usar, né, e aí a gente começou a fazer isso, dar o dinheiro pra elas, pra elas poderem gerenciar o que elas queriam comprar, o que elas iam usar. Só que aí a direção da instituição começou a censurar um pouco o jornal, ela queria ler o jornal, a diretora lia em braile, ela queria ler sempre tudo que a gente fazia, e ela cortava muita coisa, vetava muita coisa e aí eu comecei a colar adesivo, porque era o segundo turno (teve segundo turno na eleição de 89? Acho que teve, que era o Lula e Collor), e aí eu comecei a colar adesivo do Lula em todas as portas, justamente pra infernizar a vida deles, né, e a mulher andava atrás de mim tirando os adesivos, brigando...era muito engraçado.
[00:36:28]
P/1 – E como foi quando você foi participar dessas reuniões do movimento?
[00:36:37]
R – Foi muito legal, porque eu me sentia super em casa, super dentro daquilo. E aí eu comecei a ficar mais no CONDEF, nessas reuniões, do que em outros lugares, no ano seguinte eu prestei vestibular para fonoaudiologia, entrei na faculdade, continuei na militância. E aí foi quando foi criado aqui em Santos o Centro de Reabilitação Profissional, primeiro serviço de reabilitação municipal, foi em 1990. Santos, nessa época teve muita relevância no cenário nacional por conta do fechamento da casa de saúde Anchieta que era um hospício, então a reforma psiquiátrica foi consolidada, né, a partir de Santos. Eles fecharam escola especial, eles começaram a mudar todos os cenários e espaços segregadores em Santos. E foi criado o Centro de Reabilitação Profissional, que era um espaço enorme do INSS, na época foi uma parceria entre o município e o governo federal, e lá funcionava o projeto Tan-tan que era da galera da saúde mental, a reabilitação física e a reabilitação profissional do INSS. E o conselho de direitos da pessoa com deficiência também seria instalado lá. Então a gente frequentava lá muito, eu falo que eu me reabilitei ali, naquele espaço, me reabilitei como cidadã, né, como sujeito de direitos, como mulher, e aí era só alegria. Santos tava numa efervescência democrática, e a gente tinha as conferências municipais, então eram conferencias de assistência social, saúde, meio ambiente, cultura, tudo, conferência... participação popular era assim de orçamento, tudo que você pode imaginar era debatido com a sociedade. E eu tava lá em todas, eu ganhei uma máquina de escrever em braile nessa época, e lá ia eu com a minha máquina de escrever em braile, não tinha computador, magina, para escrever em braile as propostas das conferências pras pessoas cegas no dia seguinte, nas plenárias poderem votar, discutir. Então foi muito lindo, muito rico o que aconteceu ali naquele momento.
[00:39:18]
P/1 – Você comentou que um pouco mais nova ainda você tava num processo de negação, né? Foi nesse momento que você entendeu que é isso, “agora vou ter que me reinventar”. E como foi? Eu achei muito interessante, você começou a se reabilitar como cidadã, como mulher, né, como foi isso? Mudou a chavinha?
[00:39:45]
R – Eu acho que, é tão interessante isso né, é como se fosse uma coisa que vai... como se você tá sob ameaça a vida inteira, um longo período da sua vida você tá sob ameaça de algo, você não sabe o que te espera, aí quando a coisa acontece ‘pim’: acabou, não tem mais ameaça, é aquilo, é real, e a realidade não era tão dura assim. Eu não consegui perceber a dureza, talvez porque eu tava tão fascinada com outras coisas, essa coisa da política, da participação na política, pra mim era fantástico, né, e eu conheci pessoas incríveis e me abriu outro mundo. Só que, assim, no primeiro momento é isso, quando eu aprendi a andar com a bengala, a bengala-guia tem um elástico dentro, quantas vezes eu quebrava o elástico pra pedir para alguém ir me buscar, meu irmão coitado, ia me buscar toda hora, porque eu quebrava o elástico, pra não sair na rua porque eu não queria encontrar ninguém, né. Porque quantas vezes eu saía na rua, encontrava alguém, a pessoa vinha “Naira! É você? O que que aconteceu?”, e eu falava “Não, não sou Naira, não, sou outra pessoa” (risos). Bem louca, porque eu não queria encontrar as pessoas, então é como se eu tivesse mergulhado num outro mundo, num mundo onde eu me descobri mesmo. Nossa, acho que esse início da década de 90 pra mim foi fascinante, aprendi tanta coisa, tanta coisa, tanta coisa. Eu tava em todos os espaços, era muito bom.
[00:41:37]
P/1 – E como surgiu o interesse por fonoaudiologia?
[00:41:44]
R – Olha, foi um interesse que não surgiu, na verdade. Eu não tinha passado no vestibular pra Direito, e aí eu falei “ai, não sei, não vou passar em Direito...”, e Direito assim, na época, seria bastante difícil, porque não tinha acessibilidade nenhuma. Aí uma amiga minha tava fazendo fono, “Naira, adorei! Acho que é a sua cara, porque a gente se comunica, trabalha com a linguagem, com a fala”, eu falei “acho que vou fazer isso aí”. Porque, assim, tinha meio que uma sina, né, pessoa cega tinha que fazer ou pedagogia ou serviço social, “eu não quero fazer nada disso”, aí eu fui fazer a tal da fonoaudiologia. Mas eu to falando de 1990, em 1990 a gente não tinha uma lei sequer pra garantir nada, então pra eu prestar o vestibular eu já tive que pegar o laudo médico, um relatório médico dizendo que eu tava apta, que eu era cega, que precisava de prova adaptada, mas que eu podia fazer a prova, tal, tava apta, não tinha nenhuma restrição, registrar firma, sabe, quando registra em cartório, lá, e levar pra poder fazer a matrícula no vestibular, a inscrição no vestibular. Aí quando eu fiz a inscrição no vestibular pra fonoaudiologia, a diretora do curso, da escola, da faculdade me chamou dizendo que por eu ser cega eu não ia poder fazer, que eu era linda, que eu era inteligente. Aí eu já fiquei muito brava com ela, porque ela nunca tinha me visto, como é que ela fala que eu era inteligente, né, aí eu falei “olha, a senhora não me conhece, a senhora não sabe quem eu sou, e a senhora não tem o direito de falar que eu não posso alguma coisa”. Aí eu fui, fiz. Na época, até foi uma época que eu inventei de vender sanduiche natural na praia com uma amiga, a gente fazia os sanduiches e vendia. E aí eu passei no vestibular. A minha redação teve a melhor nota na época do vestibular, uma época em que a fonoaudiologia era muito concorrida, eram 80 vagas para 500 pessoas prestando o vestibular. Hoje se você tem 80 vagas, você não consegue preencher nem 10, né, na fono, na época preenchia, e tinha lista de espera, tal. E aí fui, fiz a matricula, fiquei bem feliz, e eu fui descobrindo a fonoaudiologia. Hoje eu tenho uma visão da fonoaudiologia que me encanta muito mais do que eu tinha há 30 anos atrás.
[00:44:32]
P/1 – E como foi essa experiência na faculdade? Quais eram as dificuldades? O que mais você fazia no seu tempo livre?
[00:44:45]
R – Ah, era muito bom né, faculdade, eu vou te falar (risos), queria ter 20 anos para fazer faculdade de novo, era muito bom. Da faculdade é que eu tenho as minhas melhores amigas, que acho que eu já tava fortalecida, sabe, então assim, tinha briga pra caramba, professor que achava que eu não podia ser fono e não queria adaptar nada para mim, era briga, era um saco, mas tinha professor também que dava muita força. Então, assim, eu tive professores muito parceiros, no primeiro ano então. E aí eu comecei a conhecer gente muito bacana, né, tenho amigos, assim, que são da vida, que eu fiz na faculdade. A aula começava às cinco da tarde e ia até às dez e meia da noite. Então de dia eu ia pra a militância, eu ia pro conselho, eu ia fazer passeata, sei lá, de dia era isso que eu fazia. Eu tinha as minhas amigas que liam para mim, então elas liam, eu tinha um gravadorzinho pequeno, eram aquelas fitinhas pequenininhas da época, e aí elas gravavam tudo que era escrito, texto, tudo isso elas gravavam, e eu ficava escutando, passava pra o braile, minha mãe lia meus livros, eu comprava os livros, a minha mãe gravava para mim. Eu tinha um amigo, o Luciano que era da militância, amigo cadeirante, que na época foi uma das primeiras pessoas que eu conheci na história do conselho, ele vinha aqui pra casa, aí ele ficava lendo e eu ficava transcrevendo pro braile as coisas, eu falo para ele que tanto ele como a minha mãe se formaram fonoaudiólogos comigo. Então eu tive muitos amigos, acho que foi um momento que eu tive muitos amigos. Aí eu comecei a namorar com um cara muito legal, assim, foi uma pessoa importante na minha vida, e que também me dava muita força, tava muito junto, torcendo, me apoiava muito, e eu sempre fui muito baladeira, né, então fim de semana, sexta-feira saía da faculdade direito para a night, e era praia...foi muito bom. E aí eu fui convidada a me retirar da instituição de reabilitação porque aí eu já estava causando de mais, né, já questionava demais, queria que a instituição abrisse as contas, né, como era uma instituição filantrópica e vivia de dinheiro público, a gente fazia um movimento pra que eles abrissem as contas... onde gastavam o dinheiro, e aí eles me convidaram que me retirasse da instituição.
[00:47:52]
P/1 – Tão importante essa rede de apoio né?!
[00:47:56]
R – Nossa, é! Isso, eu vou te falar que, é assim, hoje eu trabalho com criança, com adolescente, e quando a gente vê que o adolescente, principalmente o adolescente, não tem rede de apoio, a chances desse menino virar o jogo é muito menor, muito menor. É fundamental você ter pessoas, né, pessoas que acreditem em você, que estão junto, nossa, na faculdade, assim, foi a primeira vez que eu tive uma rede de apoio muito forte. Sempre ficava muito por conta da minha família, sabe, sempre, sempre minha família que cuidava, minha família que fazia, que corria atrás. Nessa época da faculdade, era muito os meus amigos, o pessoal do movimento social, sabe, todo mundo junto fazendo a coisa acontecer, e alguns professores muito especiais, muito importantes na minha vida.
[00:49:06]
P/1 – E quando você diz que teve que se reabilitar, você acredita que a família também teve que passar por esse processo?
[00:49:19]
R – Então, é uma falha grande dos serviços de reabilitação, a família não é envolvida no processo. Então a família fica a parte, né, não acompanha, é que assim, minha mãe é uma pessoa especialíssima, porque ela foi junto, acompanhou, mas porque ela tava aberta pra isso. As pessoas... as famílias não eram envolvidas no processo de reabilitação. Então você se reabilitava e a sua família fica lá, com aquele baita ponto de interrogação na cara tipo “oi?”, né, e aí a tendência de ter uma tutela, de ter um cuidado opressor é muito maior, né.
[00:50:16]
P/1 – E como foi esse período que você começou a namorar?
[00:50:22]
R – Não, eu já tinha namorados antes! Eu sempre fui uma pessoa afetivamente bastante ativa, digamos assim, desde 15 anos eu já tinha os meus namoradinhos. Esse meu namorado é que foi a pessoa com quem eu fiquei 6 anos, foi uma pessoa muito importante. Eu conheci o Ricardo, quando foi... foi no dia 08 de junho de 1990, eu tinha uma amiga que era “mucho loca”, e ela conhecia um cara, e tava saindo com esse cara, ela falou “Naira, esse meu amigo tem um amigo que é a tua cara. É nerd, tu adora nerd, o cara é nerd, fez faculdade na UNICAMP...” / “Ta bom né, deve ser um xarope o cara”, né. Aí a gente se conheceu e começamos a sair e ficamos 6 anos, assim, uma família maravilhosa, ele morava com os pais e dois irmãos (então 3 filhos, né 3 meninos), e ele morava em São Paulo, tinha acabo de se formar, morava em São Paulo, ainda numa república e tinha começado a trabalhar naquela época. Ele tinha um Voyage, e era tão engrado porque o encosto do passageiro tava quebrado, só tinha o banco, não tinha o encosto, e a gente saía aí ele me deixava dirigir, ele me levava para dirigir. Então a gente ia lá pra avenida portuária, que é a avenida do porto aqui de Santos, né, na época era bem deserto, e eu dirigia o carro dele, que era o único jeito, eu adorava, achava muito legal dirigir, mas não enxergava nada, ele deixava eu dirigir, aí ele ia do lado, né, falando o que eu tinha que fazer, me ensinando, aí ele “pode ir reto”, e eu “...” (risos). Era muito legal. E foi um relacionamento super saudável e super maluco também, porque no meio do caminho eu arrumei outros namorados, aí a gente separava, eu namorava com o outro, voltava, foram 6 anos.
[00:52:42]
P/1 – E Naira, qual foi a sua primeira experiência profissional?
[00:52:47]
R – Profissional? No dia da minha formatura... Mentira, antes de eu me formar, no último ano de faculdade, tinha um menino, cego, ele tinha 9 anos, ele tava no terceiro ano do ensino fundamental, e ele tinha trocas na escrita, só que ele escrevia em braile, e aí a diretora da escola, que era dessa mesma instituição onde eu fiz reabilitação, era uma outra diretora agora, né, sabia que eu tava no último ano de fonoaudiologia, perguntou se eu não queria tentar avaliar, ver. Então a primeira pessoa que eu atendi foi esse menino, acho que o nome dele era Adriano – nossa, era mesmo, Adriano –, e ele tinha trocas na escrita, mas da ordem fonoaudiológica mesmo, sabe, dificuldades de aprendizagem. Aí eu comecei a fazer um trabalho com ele, foi super legal, nossa, foi muito bom. E ele melhorou bem, bem, conseguiu, né, seguir lá com os estudos. Aí depois eu me formei. No dia da minha formatura eu recebi uma proposta de emprego duma diretora de uma instituição que atendia crianças com paralisia cerebral aqui de Santos – eu tinha feito estágio lá – aí eu me tornei fonoaudióloga dessa instituição. Éramos três fonos. Foi uma experiência muito interessante, muito, mas eu era muito insegura. A gente tinha crianças muito graves, que convulsionavam muito, às vezes eu ficava um pouco com receio, mas foi uma experiência muito legal. E aí eu atuava em consultório também, comecei a atuar em consultório, um pouco com fono escolar, e aí eu fui chamada pra trabalhar definitivamente no Lar das Moças Cegas, que foi essa instituição com crianças com deficiência visual e deficiências múltiplas, que tinham questões de falha de linguagem. Aí a gente instalou lá, criou, né, o primeiro serviço de intervenção precoce pra criança com deficiência visual, que foi antes, inclusive, de outras instituições terem esse serviço, nós tivemos. Começamos a trabalhar com isso. Éramos eu, como fonoaudióloga, tinha duas pedagogas, uma educadora física e uma psicóloga. Foi muito legal também.
[00:55:25]
P/1 – Como foi essa experiência? Lembra de alguma história marcante?
[00:55:27]
R – Ai, tem várias histórias. Várias histórias. Era muito bom. Eu atendi um menino que chegou lá... a gente atendeu um menino que chegou lá com um ano e dez meses, eu acho, e ele tinha um diagnóstico de cegueira. A gente atendia muito junto, que a gente fazia estimulação visual, de linguagem tal. E ai a pedagoga começou a olhar e falou “Naira, esse menino enxerga alguma coisa”, porque a gente fazia testes de contraste, e ele virava, ele ia pro lado da luz, tal, e a gente começou a fazer uma estimulação visual, e aí foi descoberto que ele tinha baixa visão, ele não era cego. E aí comecei a fazer um trabalho com ele, de desenvolvimento de linguagem, dos aparatos comunicacionais, né, não só de fala, mas campo semântico, e aí ele teve alta com quatro anos e meio, já com resíduo visual muito importante, falando tudo, e aí foi direto pra educação infantil regular. Alguns anos atrás (faz cinco anos) eu encontrei esse menino – isso já era acho que foi 94, 95, eu dei alta pra ele acho que foi 97, por aí – eu encontrei com ele acho que foi em 2012, 2011, ele já grande, acho que ele tinha 18, 19 anos, sei lá, já terminando o Ensino Médio. E aí ainda ficaram tirando sarro da minha cara “você que ensinou esse moleque a falar? Agora ele não para mais!”. Isso foi um caso muito legal. Eu tive um outro caso que foi a primeira vez que eu sofri preconceito, foi engraçado. Chegou uma mãe com um menininho lá – ele tinha 4 anos e meio, cinco anos – pra avaliação de fono. Aí eu tava na sala, arrumando a sala, e falaram “fulano chegou”, não lembro o nome dele... Wilson era o nome do menino. Aí eu fui lá, eu falei “quem é o Wilson?”, ela “aqui, meu filho”, a mãe, né. Eu falei “tubo bom? Eu sou Naira, sou a fono” / “você é a fono que vai atender meu filho?”, eu falei “sou” / “mas você é cega” / “sou. Mas ele também não é?” / “ele é. Mas você...”, e eu fiquei assim, né, falei “vamos lá na sala conversar?”, aí a mulher acabou comigo, disse que o filho dela não ia ser atendido por uma cega, que não sei que, ..., aí eu fiz o atendimento, ela nunca mais voltou, assim, comigo, né, voltou pra outras coisas mas comigo ela não quis voltar. Coincidentemente, quando eu era presidente, eu fui presidente do Conselho de Direitos da Pessoa com Deficiência de dezembro de 2011 até 2015, aí um dia chega lá uma demanda de uma mulher que tava em situação de rua, tinha tido uma síndrome chamada Guillain-barré, que teve comprometimento motor, que tinha um filho cego e com característica de autismo, os dois tavam em situação de rua, e ela tava tentando ir pro abrigo, uma situação terrível. Bom, quando eu chego, quem era? Era essa mulher com o filho já adulto. Aí ela falou “você não é a Naira, que trabalhou não sei aonde...”, eu falei “sou, e você é a ‘fulana’, mãe do Wilson, né”, ela “sou”. Eu não tinha esquecido dela. Aí eu falei “bom, agora você vai ter que me engolir, nega, porque agora sou eu que to aqui, né”, aí ela me pediu desculpa, e aí foi uma situação terrível, acho que ela já faleceu, inclusive, foi uma coisa bem ruim a vida deles, sabe. Então tem coisas super marcantes, assim, que aconteceram. Eu atendi uma menininha, ela tinha dois anos e meio, tinha tido um tumor de região frontal no cérebro e ficou cega, a mãe super protetora, era uma bonequinha de trança. Aí eu fiz, trabalhei com estimulação de fala, aí depois... hoje ela faz faculdade de jornalismo, é uma menina super arrojada, artista. Então tem essas histórias, né. Eu levei a primeira vez, eu já era profissional – não, eu era profissional? Não lembro... acho que já – eu fazia parte de um movimento chamado Movimento de Vida Independente, aí nós fomos pro Rio de Janeiro, foi em 94, num encontro nacional dos Centros de Vida Independente, e foi quando eu conheci o Dosvox, que foi o primeiro programa, né, brasileiro, de softwer de voz, de síntese de voz pra computador. E eu comprei dois kits, um pra mim – esse meu namorado tinha me dado um computador, que ele comprou de um amigo nosso – e aí eu trouxe um kit pra mim e um kit pra instituição, pra instalar. Aí a gente instalou, aprendeu a usar, e logo depois chegou lá pra se reabilitar um rapaz que era policial militar e foi sequestrado, num sequestro relâmpago, tal, ele tava fazendo segurança armada de um banqueiro e aí teve um sequestro relâmpago, ele entrou num embate com os bandidos, tomou um tiro, ficou cego. E ele chegou lá, todo mal, não sei que, e a gente apresentou o computador, o Dosvox, eu que ensinei ele a usar computador, e aí tinha uma professora que acabou se habilitando pra dar aula de informática, e ele acabou casando com essa professora, hoje ele dá aula de informática e tira mó sarro da minha cara porque eu parei lá, né, lá no Dosvox de 94,95, que eu com tecnologia sou péssima. Foram coisas muito legais que aconteceram nessa fase. Eu adorava, adorava. A gente inventou muita moda lá, muita coisa legal.
[01:01:56]
P/1 – Nessa época você atuava com crianças? Atendia crianças?
[01:02:01]
R – Isso, com crianças.
[01:02:07]
P/1 – E como foi, assim, você chegou a atender outras pessoas um pouco maiores ou sempre foi criança?
[01:02:11]
R – Não, não. É assim, nessa época eu atendia crianças, aí lá mesmo, como eles tinham curso de telefonia, tinham coral, tinham outras coisas, eu comecei a atender os adultos que faziam esses cursos, pra trabalhar oratória, né, algumas coisas assim. Só que aí eu tinha consultório, também, então eu atendia adulto, eu trabalhava muito com gagueira. Então eu atendi vários adultos, muito. Aliás na época eu dava preferência pra adulto, adulto e adolescente. Criança eu sempre tive... acho que eu tinha mais dificuldade, é que lá na instituição, não sei, pra mim falava muito perto de mim, assim, essa relação. Aí depois eu prestei concurso público pro estado, pra trabalhar no hospital público. Eu prestei dois concursos na mesma época, eu fazia muitos concursos, mas nessa época eu prestei dois concursos públicos, um aqui em Santos pro estado, que é um hospital público, e no município de Bertioga. Eu passei nos dois, mas eu tava gravida, tava tendo meu primeiro filho, já nessa época, e aí eu optei por ficar no hospital que era aqui em Santos, perto da minha casa, e aí eu fui trabalhar com todo tipo de pessoa, né. Criança, adulto, família, enfim.
[01:03:43]
P/1 – E me conta desse filho!
[01:03:47]
R – São meus filhos! Eu tenho dois. O Heitor, que nasceu em 1998, cinco de junho de 98, ele tem 22 anos. E depois em 2001 veio o Lucas, dia 27 de agosto de 2001, tem 19 anos. Hoje os dois moram em Buenos Aires, o Heitor faz faculdade de Medicina na UBA, na Universidade de Buenos Aires, o Lucas foi pra lá em março, mas no dia seguinte deu lockdow, e ele nunca mais saiu de casa, então a mesma coisa que ele tivesse aqui, ou em São Paulo, ou em qualquer outro lugar, porque ele quase não saiu de casa até agora. Ele foi pra trabalhar, ele trabalha com produção musical, né, e pra trabalhar, pra seguir o rumo dele aí na música, na Escola de Artes lá. E os meus filhos foram a maior conquista da minha vida, eu acho. Se tem uma coisa que eu sempre quis foi ser mãe, né, desde muito nova eu tinha a maternidade como algo que era do meu desejo, da minha busca, da minha escolha de vida. E eu realizei isso em 98. Foi muito bom.
[01:05:10]
P/1: O que que significou se tornar mãe? O que a maternidade representa pra você?
[01:05:16]
R – Ah, representa a minha vida. Não tem outra... o melhor investimento que eu fiz na minha vida foi a maternidade. Se eu não tivesse feito mais nada, mas só tivesse sido mãe do Heitor e do Lucas, pra mim já é a maior realização. Foi uma entrada definitiva na vida adulta, você ter aquele bebê no teu braço e nunca mais ser sozinha, nunca mais pensar só pra você, né, isso pra mim é... desde o momento que o Heitor veio pra minha barriga e eu gerei ele aqui dentro, eu sito que eu nunca mais vou ser sozinha, né, e que eles são a minha parte de contribuição pra esse mundo.
[01:06:19]
P/1 – E eles são frutos do relacionamento com o Ricardo, se eu não me engano, ou não?
[01:06:25]
R – Não. Eu morei com o pai deles, né, é que eu não fui casada oficialmente, então eu falo que eu sou solteira porque oficialmente eu sou solteira mesmo. Mas a gente morou junto, teve um casamento meio religioso, tal, mas a gente viveu junto acho que uns seis anos, eu e o pai deles, que não era esse meu primeiro namorado, que o Ricardo a gente se separou em 96, aí no ano seguinte eu conheci o pai deles e daí já fiquei grávida, e aí a gente foi morar junto, né. Não vou te falar assim... não foi o grande amor da minha vida, mas tem gente que entra na vida da gente por um propósito, né. É interessante que depois eu descobri que o Ricardo, esse meu primeiro namorado, meu namorado anterior, não podia ter filhos. Então talvez tenha sido isso, né, eu me relacionei com o pai dos meus filhos, né, pra que eles pudessem vir. E aí logo depois que... o Heitor tinha cinco anos e meio, o Lucas tinha dois anos e meio, a gente se separou. Mas é isso, aí a gente viveu juntos, no primeiro ano de vida dos meninos ele foi um parceirão, um paizão, né, enquanto ele morava com os meninos ele era um pai importante, foi uma figura muito importante pros meninos. E é muito bom amamentar, né, eu amamentei os dois, o Heitor eu amamentei até um ano e oito meses, o Lucas eu amamentei até um ano e dois. Foi muito bom.
[01:08:13]
P/1 – E como foi a gestação? Você pensava no parto? Fez acompanhamento?
[01:08:24]
R – Então, a gestação do Heitor, né, vamo pra do Heitor. Eu passei muito mal, nos primeiros quatro meses eu passei muito mal, só vomitava, eu tinha acompanhamento do meu médico, era médico assistente, mesmo, então assim, eu tinha muitas contrações, eu tinha muito pra mim que eu queria fazer parto normal, eu sempre quis ter parto normal, né. Mas quando chegou na 36ª, 37ª por aí, semanas, eu tinha contrações, mas aí meu colo do útero totalmente fechado, e aí a gente foi, né, esperando, tanto que ele nasceu de 41 semanas, o Heitor, de cesariana, aí não deu certo fazer o parto normal. Agora, interessante que uma semana, uns dez dias antes d’ele nascer, eu tinha muita contração e fui pro hospital, fui pra maternidade, né, aí as enfermeiras, parteiras, vieram, bom, elas devem ter feito uns cinco, seis exames de toque em mim. E isso é uma questão, né, porque eu falava uma coisa, elas não acreditavam, né, como se eu não tivesse capacidade pra entender o que tava acontecendo com o meu corpo. E aí elas queriam antecipar o parto “não, mas tem que fazer o parto hoje”, eu falei “mas não tá na hora d’ele nascer”, né, liga pro meu médico. Eu sei que elas me deixaram o dia inteiro lá, porque elas não me liberaram enquanto meu médico não chegou, o meu médico ficou puto porque elas tinha feito um monte de manipulação, né, no colo do útero, já tinham feito a tricotomia, pro bebê nascer, ele falou “não, esse bebê não vai nascer, faltam duas semanas (uma semana, sei lá), não vai nascer agora, não ta pronto”. Daí ele falou “elas fizeram isso porque tavam com medo, de achar que você não pode se cuidar em casa sozinha”, né. Sozinha não, porque eu não tava sozinha, mas era isso. E aí ainda demorou mais um tempão, acho que foi dez ou quinze dias, ainda, pra ele nascer, e quando chegou na hora d’ele nascer, nada de contração, esperamos. Aí quando chegou no final da semana ele falou “ah, Naira, vamo fazer cesariana porque eu não vou esperar o final de semana”. Aí fui, eu cheguei atrasada no parto, porque eu tinha que internar de manhã nove horas, isso foi no dia que eu tinha que assinar a minha nomeação no Estado. E eram dois hospitais, um do lado do outro, o particular, que era onde eu ia ter o bebê, e o do estado, onde eu fui assinar minha nomeação. Aí eu fui, falei pro médico “olha, primeiro vou passar lá pra assinar a nomeação, depois eu vou pro parto”. Isso é inusitado, a gestante... Aí ele falou “não, faz uma procuração, alguém fica lá pra assinar, eu só preciso de você pra fazer o parto”. Eu sei que eu cheguei uma hora e meia atrasada, pra fazer o parto, mas assinei minha nomeação. Aí foi muito interessante, foi supertranquilo o parto, só que o bebê já nasceu fazendo xixi, cabeludo, com unha grande, já mais um pouquinho já passava mais do tempo, né. O neonatologista que fez a sala de parto também eu tinha escolhido, já tinha conversado com ele, então eu fui preparando, sabe, mas porque eu tenho algum recurso, né, tinha convenio, eu fui preparando todo terreno. Ele não saiu do meu lado, o Heitor, desde que ele nasceu, ele já veio pro meu braço, ele só saiu pra limpar, pesar, aquelas coisas todas, e depois já veio pro meu braço e ficou o tempo todo comigo. Depois com o Lucas já foi uma gestação mais tranquila, eu engordei mais na gestação do Lucas, mas eu já tava mais segura, eu tive uma pneumonia no último mês, mas também foi uma coisa que não foi grave. Aí também ele não quis esperar mais, porque deu 40 semanas, nada de dilatação, nada de nada, e aí eu fiz cesariana também do Lucas. Foi uma cesariana também mega tranquila. Meus partos foram muito tranquilos, muito festejados, sabe, não teve susto, foi tudo muito tranquilo. Do Heitor eu sofri um pouco mais depois porque ele chorava muito, muito, muito, gente, como aquele menino chorava! Eu só tinha cabeça e peito, né, emagreci 20 quilos depois do parto do Heitor. Ele era muito chorão. Ficou três meses chorando e... acho que assim, mãe de primeira viagem, eu não sabia exatamente o que fazer, e eu ficava muito nervosa. Mas do Lucas não, do Lucas ao contrário, ele só dormia. Eu tinha que acordar ele pra mamar. E eu fui seguindo. E é isso, tinha uma rede de apoio, né.
[01:14:04]
P/1 – E Nara, voltando um pouco, antes da sua gravidez, mais jovem, assim, você conversava com amigas, ou com a sua mãe sobre essa questão da prevenção (seja de gravidez ou de doenças sexualmente transmissíveis)? Você chegou a tomar anticoncepcional?
[01:14:26]
R – Ah, sim, sim. Até uma vez, com o Ricardo, a gente usava preservativo sempre, né, eu não queria engravidar de jeito nenhum, então sempre usando preservativo, pra não engravidar, por conta de doença. Eu tenho hipotireoidismo, né, e aí o médico nunca recomendava eu tomar mais hormônio, né, eu tomar contraceptivo, era um saco isso. Então era bem no manual mesmo, no preservativo, tabelinha. E eu sempre conversei com minhas amigas, eu tinha o acompanhamento no meu ginecologista, no meu endócrino. Então, sempre tentei me preservar desse jeito, as vezes arriscava bastante, né, tinha situações de algum risco, mas sempre fui muito sortuda. Só aconteceu quando tinha que acontecer mesmo. Nenhuma das duas gestações foi planejada, né, mas ok, eu já tinha 28 anos, já trabalhava, talvez tivesse no momento. Mas eu tinha bastante orientação, sim.
[01:15:47]
P/1 – E aí depois da gravidez como foi conciliar essa rotina de trabalhar, se ser mãe, de ter uma casa, meu, muitas coisas
[01:16:03]
R – É, então, no momento da gravidez do Heitor, foi tudo muito novo, né, então e fiquei ainda cinco meses e meio com ele antes de trabalhar, né, aí com cinco mês e meio eu tive que assumir de fato, tomar posse, né no trabalho do Estado. Foi muito ruim, eu tive uma condição meio de depressão pós-parto, foi muito difícil, eu chorava muito porque tinha que deixar ele numa escolinha. Ou então no começo eu levava ele, não pro hospital, mas pra instituição, que daí eu tinha dois empregos, até o final do primeiro ano, né, assim, eu tive dois empregos. Aí eu pedi demissão de um, fiquei só no outro, mas era bem difícil, assim, eu sofri, eu sofri bastante. E o Heitor ficava muito doente, ele tinha infecção de ouvido direto, aí ele tinha um monte de coisa, que aí ele foi pra escolinha, eu tinha uma alimentação pra ele toda mais regrada, assim, foi um desastre. Ele ficava muito doentinho, muito muito. Foi bem sofrido, viu, nossa, o primeiro ano de vida do Heitor foi muito sofrido.
[01:17:29]
P/1 – E como você descobriu se hipotireoidismo? Você teve que tomar alguns cuidados? Toma até hoje...
[01:17:37]
R - Então, quando eu era adolescente, naquela época que eu falei que eu tava começando a perder a visão, tal, a minha mãe começou a buscar tratamentos, e indicaram pra ela um hospital em Belo Horizonte, uma equipe. E aí como a retinose é genética, eles faziam uma série de exames, porque a retinose pigmentar geralmente faz parte de uma síndrome, né, de um conjunto de sintomas, de questões aí, de condições de saúde. Aí fui diagnosticado um hipotireoidismo grave, que eles chamam de hipotireoidismo juvenil, que é quando a glândula não cresce, ela não funciona mais. Isso acontece na adolescência. Então eu tomo medicação desde os meus 16 anos, pra tireoide. Tive na gestação que fazer um acompanhamento muito rigoroso, muito rigoroso mesmo, assim... Mas eu cuido até hoje, né, e eu sei, assim, quando a tireoide ta desregulada porque eu tenho os sintomas: cabelo que cai, eu fico muito mais cansada, eu tenho algumas questões de saúde, eu incho toda aqui no pescoço. Então é uma doença crônica que eu vou ter que cuidar pro resto da vida, né.
[01:19:10]
P/1 – Eu queria saber, depois que você começou a tomar o remédio, quando você tava sem remédio, quais eram as transformações no corpo, assim, essas questões que você tem?
[01:19:23]
R – To pensando. Eu acho que assim, não tem... porque o remédio da tireoide ele não tem muito efeito, né, o que tem é quando ele para de fazer efeito, quando ele tá, né... que ne agora, eu tinha engordado muito, e não era só por conta da tireoide, mas eu tava com 83 quilos, tava com um monte de outras... porque aí o não funcionamento da tireoide acarreta uma série de outras questões, então de pâncreas, de fígado, colesterol, uma série de outras questões. E aí você tem que regular, mas aí assim, não é só medicação. Você tem que fazer atividade física regularmente, ter uma alimentação mais planejada – coisa que eu nunca tive, tá – agora eu to sendo obrigada a fazer um replanejamento alimentar, mas eu nunca fiz, nunca tinha feito, e eu acho que eu tenho uma oscilação muito, né, de estado emocional. Hoje, acho que por conta de estar aproximando da menopausa, né, fica mais intenso. Mas é isso, a medicação em si não traz nenhuma outra mudança no corpo, assim, que eu possa te falar de pronto, não lembro.
[01:21:03]
P/1 – E Naira, como foi esse momento que você começou a trabalhar no hospital público?
[1:21:09]
R – Então, eu fui pessimamente recepcionada pela chefe da fonoaudiologia lá, eu fui chegando perto dela pra conhece-la, ela fala pra outra "“uta, a gente tanto sufoco pra fazer um concurso, e vem isso aí”, ‘isso aí’ sou eu, era eu. E a promessa que ela fez é que eu ia ficar lá no fundo do ambulatório, lá largada, porque ela não queria dar conta de uma pessoa como eu pra trabalhar lá. Que eu não ia fazer nada do que tinha que fazer, mesmo, que ela queria, então que eu ficasse lá no ambulatório sem fazer nada, pra não encher o saco dela, era mais ou menos assim. Então foi assim que eu fui recepcionada no meu primeiro dia de trabalho pela minha chefe. O começo foi bem difícil, né, então, tinham preconceito, só que assim, tinha o Programa de Aprimoramento Profissional, e o Programa de Aperfeiçoamento profissional era como se fosse uma especialização, né, em fonoaudiologia hospitalar, mas não tinha o título de especialização, era aprimoramento mesmo. E aí eu comecei a supervisionar as alunas do aprimoramento, e aí foi começando a fazer sentido, sabe, fazer muitas coisas lá, e a gente começou a trabalhar interdisciplinarmente com o pessoal da Psicologia, da Terapia Ocupacional, Físio e do Serviço Social. A gente trouxe o estágio pra dentro do hospital, e essa minha chefe não queria, e aí eu acabei virando chefe dela, e aí foi um baque, assim. Fiz coisas muito legais lá, mas foi muito difícil, é um lugar que pra você desenvolver qualquer tipo de trabalho, você tem um trabalho enorme pra poder fazer o trabalho, sabe, não tem subsídio, você não tem parceiro, você não tem nada, não tem vontade de que se faça, não tinha, né. Eu ainda peguei a época de um diretor muito legal, o cara era um crutuco, assim, bravão, mas era um cara que escutava e que queria outras coisas. Então a gente fez alguns seminários lá, a gente fez uma educação permanente bem legal lá, pra região inteira, porque o hospital é regional lá, mas assim, você tem que ir tirando leite de pedra, né, mas o começo foi bem traumático, foi bem difícil.
[01:23:53]
P/1 – E você lembra de algumas histórias marcantes ou de pacientes ou suas?
[01:24:01]
R – Ah, eu tenho, assim, por exemplo, tem um menino que eu fui atender uma vez – ai, era muito engraçado aquele menino – meu, ele subia nos moveis, ele quase destruía a sala, mas não porque ele era bravo, ele era tão levado, ele punha a cadeirinha – aquelas mesinhas de criança, sabe, com as cadeirinhas – ele punha a cadeirinha em cima da mesa, aí punha uma em cima da outra, queria subir na cadeira, aí depois caía, aí depois não sei que, e os pais desesperados, “olha, ele é um menino muito inteligente, mas ele é isso, ele não para nem um minuto, ele não tem limite, ...”, e foi um puta investimento que a gente fez no cuidado da família, acho que foi a primeira vez que eu fiz atendimento de família, assim, sabe, primeira vez que a gente foi do início ao fim no cuidado da família. A gente fez um cuidado conjunto (Serviço Social, Fono, Psicologia), da família e do menino. E aí, assim, a professora da escola... ele tinha quatro anos e meio, eu lembro, ele tinha livro da escola, na educação infantil, aí eu consegui convencer a mãe a colocar numa escola pública de educação infantil, entrei em contato com a professora, coordenadora, e ela falava “mas Naira, não dá pra dar um remedinho pra ele”, a coordenadora da escola, “uma bandinha só”, a mulher ligava a noite na minha casa “não aguento mais o moleque”, porque ele fugia da classe pra ir pra sala das histórias, porque tinha uma sala de contação de histórias, só que tinha muita fantasia. E ele tirava as fantasias, punha a fantasia e ia lá pra cima da árvore. Falei “gente, as tira essas crianças da sala de aula”, tal, bom, eu sei que aí ele teve alta, quando ele teve alta ele já tava alfabetizado, ele ficou uns dois anos com a gente. Depois um dia encontrei com a mãe dele lá, ele tava já na quinta série, ela falou “Naira, deixa eu te contar do Eduardo. Ele tá ótimo, ótimo. Um menino ótimo, que estuda, que faz, que...” Foi muito legal, assim, mas nessa época a mae dava comida na boca, pra ele ficar quieto ela dava tudo que ele queria, sabe, tinha umas coisas assim. Essa história foi muito legal. A gente fez um seminário: Primeiro Seminário de Reabilitação da Baixada Santista, aí a gente convidou pessoas da região inteira dos serviços, e a gente falou desde os diagnósticos, da neonatologia – porque esse hospital que eu trabalhava, trabalho ainda mas to afastada, é hospital Guilherme Álvaro, era um hospital iniciativa Amigo da Criança, que trabalhava com aleitamento materno, referência em gestação de risco – então os neonatologistas, neuro, foi muito legal, a gente fez uma feira, uma exposição, e o encerramento a gente fez no saguão, no hall do ambulatório, pra todo mundo que tava passando assistir, um balé cadeira de rodas, que foi lindíssimo, lindíssimo. Esse foi um auge, assim, foi muito legal fazer aquilo. A gente fez dois desses, um em 2003 e um em 2005, foi muito bom, assim. E é isso.
[01:27:39]
P/1 – E você saiu desse hospital? Ou você continua até hoje?
[01:27:43]
R – Não, eu to lá, eu to há 22 anos, só que que que acontece, como hoje eu sou gestora no município, eu consegui porque tem a sessão de funcionários SUS à SUS, né, que quando é do SUS, eu posso vir sem ônus, então eu faço minha carga inteira na prefeitura, né, o Estado me paga um período e a prefeitura me paga outro, pra eu poder ter dedicação exclusiva pra prefeitura, pro município, né. Mas isso é esse ano, até março desse ano eu ainda tava... março não, acho que até junho desse ano eu ainda tava lá no hospital, mas já não mais como fono, porque desde 2010 eu não consigo mais atuar como fonoaudióloga lá, e aí eu tava atuando na educação permanente, e agora mais recentemente eu tava trabalhando como assistente técnico da diretoria de apoio pra implantação dos projetos terapêuticos singulares lá, né. Mas aí eu agora to só na prefeitura, mas to com os dois vínculos, né, mas presto serviço na prefeitura só.
[01:29:00]
P/1 – E por que que mudou, assim, foi escolha sua?
[01:29:03]
R – Não, porque o que que acontece, em 2005... em 2003 eu me separei, né, do pai dos meus filhos, vim morar com a minha mãe. E aí, sem grana, na mó situação difícil, com duas crianças pequenas, eu recebi uma proposta de ir fazer uma consultoria em São Paulo, numa organização não governamental lá, numa OSC, chamada Instituto Paradigma. E, pô, era uma grana boa, só que eu não ia conseguir trabalhar nos dois lugares. E aí eu consegui fazer um acordo com meu chefe, meu diretor daqui, pra ele me emprestar pralgum espaço de lá, né, pra algum hospital, algum lugar de lá, porque daí eu ficava só em São Paulo. Aí ele me cedeu pra Faculdade de Saúde Pública, da USP, pro ambulatório que tem lá, aí eu fui morar em São Paulo. Fiquei ainda um ano subindo e descendo todo dia, e depois eu fui morar lá com meus filhos, em São Paulo. E aí foi quando eu já fui dar aula. Então eu trabalhava no ambulatório de saúde pública, dava aula numa faculdade, no Centro Universitário Santana, na zona norte, e trabalhava com projetos sociais, né, de direitos humanos, no campo da pesquisa. E aí em 2010 quando eu resolvi voltar pra Santos, que eu fui reassumir meu cargo no Guilherme Álvaro, no hospital, já tinha mudado o diretor. E aí esse diretor tinha acabado com o ambulatório de fono, com o serviço de fono, e eu não tinha onde trabalhar. E aí a diretora que tava na época na minha área, falava só pra eu assinar o ponto e ir embora, não precisava ficar lá. Aí eu adoeci, tive que acionar sindicato pra eu poder trabalhar, e aí onde eu consegui trabalhar foi no desenvolvimento de projetos dentro do Recursos Humanos. E foi lá que eu fiquei, lá que eles me acolheram, e aí por isso... E agora, quando eu resolvi vir pro município de vez, aí é uma outra diretora, eu fui conversar com a diretora que tá lá, ela nunca soube dessa situação, né, que a gente tinha uma fonoaudióloga no hospital que não podia atuar, ficou indignada, me convidou pra ser assistente técnica dela, e eu não quis, aí fiquei um tempo de assistente técnica (isso é só nome, tá, porque é a mesma coisa, não tem cargo, nada, só função mesmo) da diretoria de apoio, que cuida das áreas não médicas, pra implantação do projeto terapêutico singular, e aí agora to só na saúde mental de Santos, mas com os dois vínculos, né.
[00:32:02]
P/1 – E antes da gente entrar pra eu saber mais detalhes, como que foi essa mudança de cidade? O que que tudo isso implica pra você, assim, de se reambientar, que você veio com seus filhos...
[00:32:22]
R – Então, foi uma loucura, né, porque eu queria ganhar dinheiro, precisava de dinheiro. E queria outras coisas pra minha vida também. Então subia e descia todo dia, isso era uma loucura que daqui a pouco meus filhos já não iam nem me conhecer, porque eles nem me viam praticamente durante semana, né, minha mãe que cuidava deles, então era festinha de escola, reunião de escola, tudo que era durante semana ela que fazia. E eu sentia muita falta de estar com eles, né. E, meu, vou te falar, esse povo que sobe de fretado todo dia é campeão, porque era desgastante demais, demais, demais. E aí eu tinha uns amigos que moravam em São Paulo, eu ficava muito na casa delas, e vagou uma casa, casa mesmo, né, do lado, grudada, muro com muro. Eu falei “quer saber de uma coisa, vou vir morar aqui”. E aí em dois meses eu resolvi tudo, reformei a casa, aluguei a casa e fui. De mala e cuia com as crianças, com todo mundo. Matriculei em escola. A minha funcionária aqui de Santos, que trabalhava comigo aqui em Santos, foi comigo, foi morar em São Paulo, que ela também na época não tinha família aqui, então foi morar em São Paulo, que me facilitava. Que eu trabalhava das seis da manhã à meia noite, né, às onze da noite, chegava em casa meia noite, meia noite e meia. Mas alguns dias a tarde eu não trabalhava, então ficava um pouco com os meninos, tinha uma outra dinâmica, né. E aí foi uma coisa muito bacana, eu tive um monte de experiência profissional legal, experiência de vida, amigos, meus filhos, né, cresceram e a gente podia passear, ia pra Paulista de fim de semana, parque... Mas também foi sofrido, né. A solidão de São Paulo, os apertos de grana, que quando apertava... São Paulo é uma cidade cara pra você ter um ritmo de trabalho como o que eu tinha e ter que dar conta das crianças, né, porque aí você tem que bancar uma serie de coisas financeiramente porque você não ta em casa, né. E aí teve um momento que começou a não dar mesmo, né, eu perdi algumas aulas, eu tinha perdido um projeto, então tava mais difícil mesmo, de dinheiro, eu já não tinha mais a minha funcionaria, então tinha que contar com algumas outras pessoas, e aí tinha alguns momentos, algumas horas, assim, do dia, que as vezes eles ficavam sozinhos. E aí esse período de chuva em São Paulo, um dia eu cheguei em casa, o Heitor falou
“mamãe, eu não tenho medo de ficar em casa sozinho, mas eu tenho medo que um dia você não volte”. Meu, no dia seguinte, isso era uma segunda-feira, na terça de manhã eu fui dar aula e entreguei a minha carta de demissão, falei “chega, to indo embora, vou embora, não dá. Pro meu filho passar por isso não vale mais a pena”. Aí entreguei a casa, vendi tudo que tinha dentro da minha casa, porque daí eu vim morar com a minha mãe de novo, vendi tudo que tinha na minha casa. Lá vim eu com os dois, embora de novo. E começamos tudo de novo. Isso faz dez anos.
[01:35:56]
P/1 – E como foi esse recomeço?
[01:36:01]
R – Difícil. Foi difícil, porque assim, eu voltei só com o emprego do Estado, que é um salário baixíssimo baixíssimo, e aí assim, ou eu pagava aluguel, ou eu pagava escola pra eles. Aí decidi pagar escola e tive que morar com a minha mãe. E assim, é uma outra vida, né. Foram cinco anos que a gente ficou fora, aí volta, morar com ela, ela já tava com a vida dela esquematizada. Foi bem difícil, bem difícil. Justamente quando o Heitor começou a entrar na adolescência, então... Mas logo depois, aí eu assumi a presidência do conselho da pessoa com deficiência, aí comecei a dar uns cursos fora, aí fui me reerguendo, e hoje tá aí. Eu olho pra trás, eu nem acho que foi tão difícil mais, né. Hoje eles tão aí, adultos, e é vida que segue, né.
[01:37:14]
P/1 – E como você começou a trabalhar com saúde mental?
[01:37:20]
R – Ah, então, eu sempre, desde sempre, né, trabalhei com saúde, com pessoas com deficiência, a minha área de militância também foi essa. Só que tinha uma coisa... eu lembro que em 1990, 91, tinha um congresso de saúde coletiva aqui em Santos, e tinha acabado de fechar a casa de saúde Anchieta. E eu sempre convivi com esses projetos de saúde mental por conta daquele centro de reabilitação que eu falei lá, antes, que era tudo junto. E aí numa dessas rodas de conversa do Congresso de Saúde Coletiva, entra um cara, chamado Jacaré, ele tinha sido paciente do Anchieta, tinha saído do Anchieta, e tava como usuário de CAPS, que chamava CINAPS, né, e aí ele entrou lá e começou a falar um monte de coisa, que “nós temo direito, direito à vida, direito à cidade, direito à isso, àquilo”, eu falei “mas esse cara é louco? Esse cara não tava no Anchieta, tal...”, e eu comecei a dar atenção pra isso, e esse cara nunca saiu da minha cabeça, mesmo porque em todas as conferencias, todos os espaços de participação ele tava. E eu lembro que eu fazia uma dupla com ele as vezes, né, pra quebrar o pau, pra ir pra cima nas conferencias. A loucura sempre me fascinou, sabe, eu sempre fui um pouco encantada com a loucura. Em 2009 eu fui pra Espanha a trabalho, fui pra Conferencia de Salamanca de Educação, em Salamanca. Mas eu fui primeiro pra Madri, sozinha. E aí eu fui visitar o museu do Prado, o museu do prado é um museu suntuosíssimo, né, e que tem milhares, centenas de obras lá, você não conhece o museu do Prado num dia só, ele é muito grande. Mas eu tinha um dia, uma manhã na verdade pra conhecer, falei “vou fazer o máximo que eu conseguir”. E lá tem os audioguias, né, então são aparelhos, que você digita, tecla lá o número da obra, e ele vai descrever a obra inteira pra você. E as obras que mais me fascinaram foram as obras de um pintor espanhol chamado Velasques, Dom Diego Velasques – século XVII, se não me engano, XVI ou XVII – e ele fez, foi o primeiro pintor expressionista, era um pintor retratista da família real espanhola, mas ele era muito ousado o Velasques, então ele trazia pra linha de frente dos quadros dele, dos retratos, quem não aparecia, os proibidos de aparecer. Então ele trazia as crianças, ele trazia as amas, né (que cuidavam das crianças, as empregadas), e ele tem uma série de quadros, são sete figuras, chamados Los Bufones, que eram os bobos da corte. E quem eram os bobos da corte, né, eram os loucos, os chamados idiotas, né, as pessoas com deficiência intelectual, figuras muito estranhas, que tavam lá, que eram vistos como videntes, magos, e pessoas que animavam a corte. E eu fiquei alucinada por aqueles quadros, né, pelos bufões do Velasques. Isso também nunca saiu da minha cabeça, tanto que os bufões foram as imagens da minha dissertação de mestrado, né, a primeira imagem da minha apresentação, da minha defesa do mestrado foi o Velasques, né, o quadro do Velasques. E aí isso sempre foi uma coisa que me fascinou. Em 2013, eu fui... eu já tava como representante dos conselhos municipais no CONAD, que é o Conselho Nacional de Direitos da Pessoa com Deficiência, e eu fui convidada pra trabalhar na secretaria de saúde de Santos como coordenadora do grupo condutor municipal da rede de cuidados da pessoa com deficiência, pra criar essa lógica dos fluxos da atenção à pessoa com deficiência do SUS, e pra montar o centro especializado em reabilitação no SUS, o plano municipal de atenção à pessoa com deficiência, tal, e aí eu vim trabalhar na prefeitura, eu não era concursada ainda. E eu trabalhava, assim, minha mesa era de frente com a da coordenação de saúde mental. Então eu comecei a ter muito contato com a saúde mental, muito, muito, conversávamos muito, não com a coordenadora porque ela era péssima, mas com o pessoal mesmo da saúde mental, a gente começou a fazer trabalhos integrados, e começou a me chamar atenção. Em 2016, eu já tinha rompido com muita coisa, eu ainda tava na saúde trabalhando com isso, mas mudaria a gestão e nós tínhamos tido um problema. A gente tinha conseguido habilitar o serviço de reabilitação, só que tinha tido... eu tinha meio que sido jogada pra escanteio, porque o município tinha aprovado uma lei – que primeiro nós vetamos, conseguimos que o prefeito vetasse, depois foi aprovada – pra montar uma clínica escola pra pessoas com autismo, que é nada mais nada menos que um hospício de autistas. E aí eu briguei muito, eu representei muito a secretaria de saúde nas brigas, né, nas audiências públicas, só que daí no final das contas o prefeito resolveu voltar atrás e aprovar a lei da clínica escola de autistas, e eu como coordenadora do grupo da rede de cuidados da pessoa com deficiência deveria criar e conduzir um grupo de trabalho pra construção dessa clinica escola. E eu rejeitei, falei que não ia, porque eu tinha uma história, eu tenho uma história, né, que eu não ia fazer isso com a minha vida, com a história que eu tinha construído, e tampouco com as pessoas com as quais eu tinha me relacionado a vida inteira e lutado ao lado delas pra gente ter o cuidado e liberdade. E aí eu fui meio congelada, né, fui meio deixada de escanteio. Quando saiu minha nomeação na prefeitura, era pra eu ir trabalhar na reabilitação, só que eu já tinha tido, né, a essa altura, eu sabia que o serviço não ia ser nada daquilo que a gente tinha planejado, e aí eu pedi pra ir pra saúde mental. Dia 13 de fevereiro de 2017 eu tomei posse num CAPS infanto juvenil aqui em Santos. E aí começou essa fase da minha vida que é mais louca que não sei o que, e eu amo, descobri que é o que eu quero fazer pro resto da vida: trabalhar com saúde mental.
[01:44:43]
P/1 – Como foi esse mergulho?
[01:44:47]
R – (risos) Muito louco, assim, muito... parece que eu sempre tive ali, sabe?! Sabe quando parece que você foi forjada a vida inteira pra isso? Eu me sinto muito à vontade. E eu cheguei numa equipe de um povo muito legal, a chefe da equipe era minha amiga, assim, eu falei “ó, Ana, eu to indo trabalhar contigo mas eu não sei nada, hein”, ela “vamo lá, vamo pra cima deles, não sei que...”. E uma galera muito legal, trabalhar com criança e adolescente, e foi uma delícia. É muito aprendizado, muito aprendizado, todos os dias é muito aprendizado, todos os dias, né. Só que, assim, acho que no primeiro semestre eu fui com muita voracidade, e aí eu comecei a denunciar um pouco as coisas perversas, sabe, que acontecia com as crianças. Então a gente foi uma época, primeiro semestre de 2017, que a gente teve muita criança, muito adolescente, criança mesmo (que eu tive uma criança de oito anos que teve essa situação) que eram retiradas da escola pela polícia. Crianças com transtorno, crianças com questões. Um aluno surdo que foi levado pra polícia porque ele falava em libras e a diretora não entendia nada, e aí ele fez um sinal, como se fosse de arma, e ela achou que ele ia matar ela, e chamou a polícia... e aí eu comecei a denunciar, né, só que aí eu fui transferida, tirada desse cargo, e fui levada prum outro serviço, que era um ambulatório, lugar horroroso, que eu odiava trabalhar naquele lugar. Não tinha demanda, eu ficava a maior parte do tempo sem fazer nada. E aí no final de 2017 teve um processo seletivo pra gestão. De verdade, quando eu pra saúde mental, a minha intenção não era trabalhar na gestão, eu queria aprender muito, queria estar muito na ponta, mão na massa... Mas aí eu tava nessa situação, nesse ambulatório horroroso, não tinha perspectiva de sair de lá, eu já tinha tentado sair de lá, porque aí eu falei “ah, eu vou fazer qualquer negócio da minha vida, mas não quero ficar nesse lugar”. Tinha conseguido uma vaga pra trabalhar no Comitê de Diversidade Sexual aqui do município, em outra secretaria, mas fui vetada (risos), eu fui tentando, manja, quando você vai tentando qualquer negócio?! E aí eu fui fazer o processo seletivo pra gestão. Então você tem que escrever uma carta, né, sobre o que você acha da rede de saúde mental de Santos, eu escrevi tudo que eu achava de verdade, enviei, mandei meu currículo e fui pra entrevista. Eu comecei a entrevista falando que eu estava ali pra denunciar a situação da saúde mental, a coordenadora de saúde mental era uma moça jovem, que tinha vindo de São Paulo, ela tinha trabalhado na supervisão do De Braços Abertos, com o Haddad, aí com a mudança, né, do governo, com a entrada truculenta do Dória ela veio embora. Então era uma pessoa que eu sabia que tinha um outro olhar. E o médico, que era o cara que tinha me tirado de onde eu tava pra me jogar no ambulatório estava nesse processo seletivo. E aí eu detonei, acabei! Falei “olha, eu não to aqui pra ser gestora, eu to aqui pra falar isso, isso, isso e pra falar ‘meu, me deixa trabalhar, me deixa ir pra ponta’”. E aí eu fui sabatinada, eles fizeram tanta pergunta, tanta pergunta, pergunta de método, de estratégia em saúde mental, eu fui falando, falando, falando, passei em primeiro lugar na porra do processo seletivo! Pra minha tragédia, que não era isso que eu queria, mas eles não me devolveram o outro cargo, onde eu queria. Eu passei, e aí eles vieram com a proposta, essa coordenadora vaio com a proposta, e o chefe do departamento, de eu assumir a chefia desse CAPS que eu to agora, que é um CAPS 24 horas, que foi formado por um termo de ajustamento de conduta entre o ministério público e a prefeitura. Era uma equipe que não queria que aquilo se tornasse CAPS, era uma equipe perversa, que o chefe anterior (o gestor anterior) tinha tido uma crise de pânico no meio de uma reunião de equipe, porque ele já tava num nível de stress elevado, ele abandonou a reunião, falou que ia no banheiro e nunca mais voltou. A equipe já tava há dois meses sem chefe, sem gestor. E aí vai a bonita lá, né, eu falei “olha, vocês sabem que que vocês tão fazendo? Vocês sabem quem eu sou? Eu sou militante de esquerda (o governo aqui é Tucano, né PSDB), sou filiada ao Partido dos Trabalhadores, eu sou fonoaudióloga (que não é uma área originaria da saúde mental), eu sou uma pessoa cega. É esta pessoa que vocês tão colocando a frente desta equipe. É isso que vocês querem?” O único compromisso que eu tive que assumir era de não postar nada contra o prefeito nas redes sociais, não ficar batendo no prefeito nas redes sociais, eu falei “ah, tá bom, é fácil, eu faço de outro jeito”. E to lá até hoje, vou fazer três anos.
[01:50:26]
P/1 – Naira, eu queria saber quais foram os desafios... assim, eu já percebi que você é batalhadora e topa de tudo pra fazer o negócio acontecer. Eu queria saber quais foram os desafios que você teve que enfrentar nessa nova área de saúde mental.
[01:50:54]
R – Num primeiro momento, né, quando eu entrei como fono, eu acho que o grande desafio foi suportar a dor do outro. A gente lida com situações muito limite, é limite da dor humana, do sofrimento humano, é com violência, com pobreza extrema, com exclusão, com racismo, com machismo, é, capacitismo, com várias... todos os tipos de preconceitos, eu acho que na saúde mental eu coloco muito em pratica tudo que eu fui construindo em termos de conceito de vida, de humanidade, sabe, dentro duma perspectiva do direito humano, então eu acho que isso é que me encanta. Mas acho que num primeiro momento foi suportar a dor, né, conseguir lidar com a dor do outro, e como a dor sendo do outro, mas estar junto. Sem trazer a dor pra mim, o que é muito difícil, né. Nessa fase da gestão, eu falo que eu atendo dez psicóticos, mas eu não faço uma reunião de equipe, né, como... assim, de maneira confortável, sabe. São as pessoas, as pessoas, a relação com as pessoas, o preconceito, as pessoas no acreditarem no que tão fazendo, acharem que de fato o trabalho com a saúde mental é um trabalho de padronização de comportamentos... Eu tive uma psicóloga que trabalhava comigo, logo no segundo mês que eu tava lá, ela falava pra mim assim: “vou te dar um recado, meu bem, autoridade não se cria por aqui, viu, fica esperta”, então era esse o nível, né. Tinha um psicólogo que antes d’ele sair da unidade, ele falou pra mim que eu não tinha nenhuma qualificação pra ser chefe dele, quem era eu, mas o que nós temos hoje é que eu sou sua chefe e você é funcionário dessa unidade, e a porta ali, ó, tá aberta, você pode retirar, porque aqui você não trabalha mais”, né, e aí transferi ele de unidade. Eu tive essa possibilidade de trocar a equipe, né, mas eu trabalhei com pessoas muito perversas nesse começo, e se elas eram assim comigo, imagina o que elas pensavam dos meninos e meninas e daquelas famílias. Eu tive uma adolescente que se enforcou na unidade, e que depois morreu, 15 dias depois. Eu acho que foi uma situação limite pra mim. Dali muita gente achou que eu não fosse passar, como gestora, né, mas a gente conseguiu sobreviver a essa tragédia, e ressignificamos muito do nosso cuidado, principalmente com relação a pensamento suicida, né, de adolescente. Hoje a gente não deixa passar nada, né, a gente não fica pra pensar “peraí, o cara falou que vai se matar, peraí que eu vou pensar...”, não. A gente não pensa, a gente só reage a isso hoje, né. A minha equipe é muito jovem de maneira geral, então é uma delícia trabalhar com essa molecada, com essa moçada. E eu acho que meu desafio, meu maior desafio é a relação com as pessoas, é viver nessa berlinda das crises de confiança que alguns trabalhadores têm em relação à minha gestão, e aí é isso, por eu ser uma pessoa cega, por eu ser uma pessoa que não venho da saúde mental, né, po eu ser quem eu sou, sei lá o que. As pessoas de fato desqualificam muito o que eu faço, muitas vezes, e aí eu as vezes tenho que dar uma de doida. Eu tenho adoecido bastante, né, mas quando eu chego lá, piso na unidade, e vejo aquela molecada, e vejo o que ta rolando, e vejo as pessoas, e posso atuar, isso muda tudo. Muda tudo mesmo [Dá licença que eu to tomando um café, ta, gente, essa hora é a hora do cafezinho e eu to tomando aqui, tá gente?!]. Ah, e a gestão pública, né, que é o sucateamento dos serviços do SUS, né, isso... esses retrocessos nas políticas de saúde, principalmente saúde mental, internações compulsórias de adolescentes com uso de substancia. Eu milito na área da redução de danos, da área antiproibicionista, do campo antiproibicionista, né, então a gente tenta atuar muito no cuidado sem controle, mas as políticas públicas e os retrocessos não nos deixam, e até parte da equipe que não concorda com isso, e acha tudo isso uma grande besteira, enfim.
[01:56:25]
P/1 – Naira, você acha que você já sofreu preconceito por ser mulher e trabalhar / ocupar um cargo de liderança?
[00:56:36]
R – Olha, na saúde tem uma questão. Principalmente na saúde mental existem muitas mulheres na gestão, né. Agora assim, nós temos aqui, por exemplo, uma administração muito machista, os maiores cargos são de homens, né, quem tá sempre acima são os homens, né. Então assim, a Secretaria de Saúde é composta na sua maioria por homens. Eu acho que sim, por exemplo no começo, quando mudou a gestão pra essa gestão atual, eu era coordenadora do grupo condutor, eu tinha todo o material ainda, e eu fui completamente desqualificada porque eles escutavam a um homem, era um outro cara, um psicólogo, tal, e eu falei “bom...”. E as vezes essa coisa da... não é nem um assedio, eu não sei nem te falar, mas não é exatamente um assedio, mas de te desqualificar um pouco nessa coisa “mulher, bonita”, ou mulher não sei o que, né, umas coisas assim um pouco... de tirar um pouco a credibilidade da mulher nesse campo, mas eu me imponho demais, eu me imponho demais, as vezes até demais, né. Eu aprendi um pouco, aí... hoje eu to tentando, eu tenho me trabalhado um pouco pra não ir tão pra cima, mas eu sempre fui pro ataque antes de ser atacada, eu sempre tive muito essa postura, né, eu vou pra cima mesmo. Então é... essa coisa, né, de você chegar pra discutir com o chefe e o seu chefe vir te abraçar, eles não fazem isso entre homens, né, mas aí o chefe vem “ah, olha como eu to ‘cheroso’, olha não sei o que”, sabe. Então esse tipo de postura eu acho que isso é machismo. Agora por ser cega a coisa piora muito, mas isso inclusive na equipe, dentro da equipe. Eu tenho uma colega de trabalho, uma pessoa que trabalha comigo (ela não é má pessoa, não), que sempre que eu vou entrar – porque eu sou chefe da sessão mas eu atendo também, né, eu faço meus atendimentos) – sempre que eu vou entrar num atendimento ela vira pra mim e fala “mas você vai atender sozinha?”, aí sempre que eu falo “vou, mas seja bem vinda, né”. Ela nunca vai. Aí sexta-feira passada ela se ferrou, porque eu ia fazer um acolhimento de uma menina, um caso grave, tal, “você vai fazer sozinha?”, e aí ela entrou comigo no atendimento essa moça, né, e ai fui atendendo, era uma menina, um caso muito muito grave – esse ta sendo um grande desafio esse atendimento, esse cuidado – aí na hora, assim, quando a menina... ela teve uma hora que ela virou pra mim e falou assim – a menina, né, uma adolescente – “vocês vão fazer alguma coisa pra tirar esses pensamentos de mim?”, eu falei “que pensamentos?” / “de morrer”. Aí acende a luz vermelha em mim já, né, falou isso... Aí eu comecei já a conversar com ela, já sugeri d’ela ficar, á fui conduzindo a coisa, né, e aí fiquei lá com a menina, tal. Aí hoje essa moça que entrou comigo falou “pô, Naira, eu entrei lá só como apoio, né, você acabou conduzindo o negócio, agora a menina tá aqui...”. Deixei ela meio sem saída, né, porque ela quis entrar comigo pra saber como eu atendia, lógico, e com certeza que era pra saber ser eu era capaz de fazer aquele atendimento do começo ao fim, né, e de ter um atendimento coerente, porque existe esse questionamento, né, tem profissionais lá que dizem que eu não posso atender, enfim, tem uma críticas lá que acontecem. E é interessante isso, porque as pessoas vão me testando, né, vão querendo entrar, assim... que nem essa coisa de querer entrar no meu atendimento, “entra, tá sempre aberto, as portas tão sempre abertas”, mas não é pra compor, é simplesmente pra ver como é que eu atendo. É engraçado isso.
[02:02:13]
P/1 – E como você cuida da sua saúde, seja física ou mental, por toda essa carga?
[02:02:29]
R – Bom, eu sou uma pessoa que eu nunca fui muito de cuidar da minha saúde, né, mas eu sempre gostei de fazer atividade física, então... eu sou de épocas, né, eu pedalava, aí eu jogava capoeira, aí eu dançava jazz, aí eu sempre fui fazendo umas coisas assim. Aí esse ano, assim, de uns dois anos pra cá, eu resolvi fazer treino funcional mesmo, academia, yoga, não sei que, e aí eu comecei a sentir necessidade esse ano de fazer um cuidado de verdade de mim, né. Principalmente porque esse ano eu to sem meus filhos, e aí fica um vazio do caramba, né, na vida da gente. Então eu retomei meu processo de terapia, de psicoterapia, que é muito importante, eu acho que todo mundo que trabalha com gente precisa disso. Eu comecei a fazer uma reeducação alimentar pra emagrecer e pra melhorar minha saúde, porque eu já tava com meus exames com risco grave pra doença cardiovascular, então to fazendo uma super dieta, um replanejamento mesmo de toda minha alimentação, então eliminando o máximo, né, diminuindo muito carboidrato, as farinhas brancas, aquelas coisas todas, né, pra melhorar um pouco. Comecei a – isso tudo agora, tá, esse ano – comecei a investir mais na coisa da dança circular, que é uma coisa que eu amo, que a gente tem feito, eu tenho uma amiga que é bailarina e é focalizadora de dança circular, e a gente a construir uns trabalhos no campo da saúde mental, a gente levou um trabalho, uma proposta de dança circular na saúde mental pra Uruguai em 2018 no encontro latino-americano de direitos humanos de saúde mental. Foi muito legal. E a partir daí a gente começou a fazer algumas coisas mais de circularidade na rede, e agora estou fazendo, né, me tornei dançante. Então é assim que eu cuido da minha saúde mental. E com meu cachorro, né, com a minha mãe. É assim que eu cuido da minha saúde mental e da minha saúde física. Tento, né, pelo menos.
[02:05:09]
P/1 – E como você tem sentido com todos esses fatores novos na sua vida?
[02:05:17]
R – Olha, eu vou te falar que, assim, eu to numa fase bastante adoecida, emocionalmente mesmo, sabe, meu ambiente de trabalho ta bem difícil, esse final de gestação municipal tá muito ruim pra nós, a ameaça da privatização ta me fazendo sofrer demais, então eu to muito adoecida, né, emocionalmente, tem dias que eu choro muito, que eu não quero ir. Eu não sei nem de onde eu tiro força as vezes. Eu faço parte da ABRASM, que é a Associação Brasileira de Saúde Mental, e a gente tá construindo o quinto Fórum de Direitos Humanos de Saúde Mental, que vai ser ano que vem em Ouro Preto, e isso é uma coisa que me dá um gás, sabe, trabalhar nisso. To apoiando um colega aí, um camarada do PCdoB numa campanha pra vereador. Então essas coisas vão me tirando o foco do trabalho e vão me dando outras preocupações, né, coisa de quem não tem o que fazer. Algo que eu ainda não consegui fazer é me cuidar espiritualmente, de fato, que é uma coisa que eu quero. Eu comecei, tentei há um tempo atrás, mas aí, né, não tinha tempo, tal, isso demanda um investimento de tempo mesmo, né, aí não consegui, mas meu próximo passo é cuidado espiritual. E é isso, eu acho que eu to tentando suportar esse final de gestão, né, to meio me arrastando, e tentando ser mais resistente do que inventiva, sabe, porque agora nós não temos mais espaço, nós ainda não temos espaço novamente pra inventividade, tem que ser resistência ainda. E acho que é isso que me... não poder avançar, não poder criar, isso é que me adoece um pouco.
[02:07:35]
P/1 – E, Naira, o que a área da saúde... qual a importância que ela tem na sua vida? Que lugar ela ocupa? Que que ela representa? [pausa] Pensando na sua deficiência visual, pensando em todo seu trabalho ao logo da sua vida, pensando na sua militância, naqueles movimentos políticos efervescentes, jovem, que que tudo isso significa pra você?
[02:08:32]
R – Olha, eu vou te falar que no campo político, o SUS, o Sistema Único de Saúde é a maior conquista da democracia brasileira. É o maior bem público desse país. É ele que garante que as pessoas tenham minimamente a possibilidade de atuar, de desempenhar seus papeis sociais, individuais e coletivos. Então é uma preciosidade que a gente precisa cuidar. No campo pessoal, eu acho que eu negligenciei muito a minha saúde durante muito tempo, né, negligenciei muito mesmo. Hoje eu to retomando, então eu tenho várias consequências disso, né, hoje eu tenho que retomar, aos 50 anos, retomar a minha alimentação mais adequada, uma atividade física mais regular. E aí a gente sabe, né, que o corpo não responde mais tanto, né, como antes. Eu acho que... é isso, meus níveis de stress foram altíssimos, então eu acho que eu tenho algumas consequências por conta disso, eu tenho muita ansiedade, né, transtorno de ansiedade mesmo, trato isso. Então quando negligencia, eu brinco com o pessoal mais jovem que trabalha comigo, eu falo assim “gente, vocês que são mais jovens, não negligenciem nem a saúde física nem a saúde mental, porque um dia a vida cobra, sabe, e aí quando chegar lá na frente você vai entender do que eu to falando, que é isso, você tem que correr atrás do prejuízo, né, você tem que cuidar de coisas que você não cuidou antes, e aí é sofrido pra caramba, né, muito sofrido”. Porque é mais difícil você eliminar dez quilos do que você não ganhar dez quilos. E aí, eliminar dez quilos não significa que você queira ser magra, mas que você precisa estar saudável, né, o meu índice de gordura no meu corpo em maio era de 48% da minha constituição corporal, com risco gravíssimo de doença cardiovascular, aos 50 anos. Então, o infarto aos 50 anos tem uma chance muito maior de matar do que aos 70, né, então isso é sério, né. Só que é mais sofrido agora. E cuidar das nossas caixinhas, sabe, as caixas de pandora que a gente guarda dentro da gente, emocionalmente, que um dia elas começam a sair. Quando começa a vazar, gente, não adianta, não adianta você querer tampar, lá, segurar, porque vai ter que sair. Então acho que... o cuidado, pensar a saúde como equilíbrio biopsicossocial é o que faz sentido mesmo, porque é o que sustenta a vida, né, sem esse equilíbrio... e é obvio que o equilíbrio não é perene nem permanente, né, porque a vida é dinâmica, então hora você vive funcionalmente, hora você vive a sua incapacidade diante das situações de vida, mas... (pausa técnica) Então, quando a gente fala da saúde como o equilíbrio biopsicossocial, eu acho que é o que faz sentido, é o que dá sustentação pra que a gente consiga resistir, né, e seguir. Quando você ao longo da sua vida vai negligenciando qualquer aspecto da vida, qualquer aspecto, né, o seu corpo, a sua mente, a sua espiritualidade, as suas relações, seus afetos, um dia a vida vai cobrar, né, de algum jeito. Vai cobrar porque a gente é multidimensional, e quando a gente vai fechando, abafando as nossas questões, as nossas experiências dentro de uma caixinha, um dia a caixinha vai vazar, e aí você não consegue mais abrir, só que é muito mais sofrido você cuidar disso depois, né, isso a gente vai aprendendo com a maturidade. Então acho que é fundamental a gente procurar, buscar a multidimensionalidade da vida, a circularidade, os encontros, eu acho que a vida se dá nos encontros mesmo, né, e a saúde se dá no encontro. No encontro da gente com a gente mesmo, no encontro da gente com o outro, da gente com o mundo, e eu acho que é o que nos dá sustentação mesmo.
[02:15:01]
P/1 – E como você trata, assim, sua ansiedade? Como você tem tratado?
[02:15:21]
R – Bom, eu tomo medicação, né, eu tomo um ansiolítico, já faz três anos, desde a época que eu tive que ser transferida pra esse ambulatório, que aí eu adoeci muito. Eu faço a minha psicoterapia, e eu danço. Eu danço. Faço minha dança circular. E eu, quando eu posso eu corro também. Eu gosto de correr. Então são os jeitos que eu encontro pra cuidar disso.
[02:16:04]
P/1 – Naira, que que você acha que tem faltado em relação a políticas públicas? Só um pouco mais de atenção ou profissionais mais adequados e afim de trabalhar relacionado na área de saúde?
[02:16:26}
R – Olha, nós temos aí várias coisas, né. Então primeiro é isso que eu falei, do sistema único de saúde que é o nosso bem mais precioso, é a maior conquista da democracia brasileira. Eu acho que o SUS tem que ser mais bem cuidado. A gente precisa ter políticas públicas de garantia de direitos, né, entender, o que é público não é concessão, não é favor, é direito da população, porque é pago pela população. A gente entendendo isso, a gente consegue pensar na formulação de políticas públicas de valorização do serviço público, de valorização do trabalhador, né, então os trabalhadores da saúde hoje estão bastante cansados, mal remunerados, com sobrecarga de trabalho. Então você tem profissionais de enfermagem que vira plantão 36 horas, o que não é recomendado, o que não é legalmente possível, mas as pessoas precisam ganhar dinheiro, né. Então uma pessoa que ta trabalhando 36 horas direto, não vai ter qualidade de cuidado, né. Eu acho que precisa de investimento, né. Eu acho que o Brasil é um pais extremamente desigual e preconceituoso. Então quando você pensa na população negra; na população pobre; nas mulheres negras; nas mulheres negras, pobres e com deficiência; nas mães negras, pobres, com filhos com deficiência, essas pessoas são completamente excluídas, inclusive no serviço de saúde, né. A notificação, por exemplo, de violência contra mulheres negras, contra pessoas com deficiência, ela é quase zero. Porque ninguém nem notifica isso muitas vezes. Eu acho que falta distribuição de renda, falta comida pras pessoas. Nós tamo vivendo um caos social, e político, e de valores, éticos, né, no nosso país. Quando você tem pessoas que defendem que a população tem que ter armas pra se defender e que falam que as escolas não precisam existir, que universidade pública é campo de doutrinação comunista, e fecham salas de aula, não tem salvação pra esse tipo de coisa. A salvação é o povo, né, é a transformação pelo povo, né. Quando a gente tem uma população inteira oprimida pelo poder econômico, a única saída é a conscientização dos oprimidos, pra romper, pra ensinar os opressores que você não precisa oprimir, né, pra romper com essa lógica opressora. Falta comida, falta distribuição de renda, falta saneamento básico. Eu vivo numa cidade, Santos, o litoral paulista, que é um dos maiores PIBs do estado, o índice de desenvolvimento humano altíssimo, mas é a cidade da América Latina com a maior favela sobre palafita, são 20.000 pessoas morando em barracos sobre o mangue, né, é isso, é disso que eu to falando. É dessa tamanha desigualdade. Uma cidade que a orla da praia é linda mas quem mora lá nas palafitas não tem acesso, não pode nem pegar o ônibus – que custa quase cinco reais – pra chegar na praia, né. Então eu acho que o que falta é uma concepção de humano que esteja de fato pautada em valores éticos, em valores de afeto, de garantia de direitos, que direito humano é pra todos os humanos, né. Quando a gente fala que é pra todos, é pra todos mesmo, sem exceção. E acho que nós que somos trabalhadores da saúde estamos cansados, desgastados, desacreditados, e é muito difícil ouvir dos gestores públicos que a saída pra saúde num município como o nosso – que é Santos, um município de 420 mil habitantes, com PIB altíssimo – a saída é privatizar a saúde. Isso desqualifica totalmente o nosso trabalho. A equipe que eu trabalho... eu faço gestão de uma equipe que, no mínimo, as pessoas têm mestrado. Eu não tenho ninguém sem qualificação lá dentro. E todo mundo fez mestrado, especialização com recurso próprio, né. Então o que eu acho que falta é ética, é garantia de direitos, é comida, é dignidade, acho que é isso.
[02:22:01]
P/1 – E como que o coronavirus e essa pandemia maluca afetou a sua vida, seja profissional, seja pessoal, nas suas rotinas de cuidado?
[02:22:18]
R – Olha, o coronavirus virou a minha vida de pernas pro ar. Primeiro que eu não pude parar, né, nosso trabalho é um trabalho de linha de frente, a gente não pode parar. No primeiro mês eu tive sintomas, já afastei 14 dias, eu nuca vou saber se eu tive – quer dizer, talvez eu saiba se tiver algum exame que de fato detecte isso – porque o meu exame não saiu, saiu 40 dias depois, e resultado inconclusivo porque a amostra foi corrompida, mas eu fiquei com sintomas, tomei medicação, azetromicina, enfim. Essa necropolítica que a gente vive no país, ela é muito complicada, porque ela faz com que também parte da população não acredite que isso tá acontecendo. Então eu tive que mudar as minhas rotinas, né, eu não ando mais a pé na rua, porque a gente fica muito exposto, eu ponho a mão nas coisas, eu posso esbarrar, então o quanto menos eu puder ter contato ou estar exposta à outras situações, melhor. Então eu pego o taxi ou carro por aplicativo pra ir trabalhar e voltar do trabalho. Assim, as minhas relações pessoais, estão quase que... a maior parte das relações restritas à internet, porque quase não encontro as pessoas, e é isso. Assim, essa angustia dos meus filhos tarem forem, e arem vivendo tudo isso lá longe, né, essa apreensão que a gente fica, minha mãe tem 80 anos, mora comigo e, por exemplo, hoje a gente tá aguardando o resultado do exame dela, a gente fez o exame ontem, porque a minha sobrinha tá com covid e ela teve contato com meu irmão que mora com a minha sobrinha, então o médico dela pediu pra fazer o exame, a gente fez o exame. Então é sempre assim, né, parece que a gente tá sempre sob tensão, cada vez que eu ligo a TV e vejo que tem 153.000 mortos nesse país, e aí as vezes quando eu vou correr na praia, eu vou tipo oito horas da manhã, super cedinho de fim de semana, aí quando eu to saindo da praia, a praia lotada de gente, com cooler, com cadeira, eu falo “gente, as pessoas não tão entendendo o que tá acontecendo”, né. Então é um ano que a gente tá vivendo com níveis de stress acima do possível. E fora o índice de tentativas de suicídio dos adolescentes que a gente tem recebido – a gente tem recebido de duas, três ideações de suicídio por semana no CAPS, isso é muito, né, é um número muito elevado – por uma total falta de perspectiva, né, e pelo discurso de morte que tá alastrado no país, e você liga a TV e o presidente tá abraçando as pessoas na rua, e aí você muda de canal, você vê as pessoas morrendo no hospital, por essa infecção. Então é muito esquizofrênico, né, o que tá acontecendo. São várias camadas, né, então tá sendo bem difícil mesmo.
[02:26:01]
P/1 – E como é seu dia-a-dia?
[02:26:05]
R – Bom, depende, né. Então normalmente eu acordo entre seis e meia e sete horas da manhã. Segunda, quarta e sexta eu faço um treino funcional online, né, aí tomo café, tomo banho e vou pro trabalho. Volto no final do dia ou depende do dia. Tem dias que eu consigo chegar em casa cinco e meia, seis horas, tem dia que eu chego em casa oito e meia, nove horas da noite, depende do dia de trabalho. Às quartas-feiras eu vou pra dança à noite. Quinta-feira no fim da tarde eu faço minha terapia. Então cada dia eu tenho uma coisa pra fazer, e é isso. E eu fico em casa.
[02:27:09]
P/1 – E que que você gosta de fazer nas suas horas de lazer?
[02:27:12]
R – Bom, em tempos não pandêmicos, eu amo praia, eu amo sair com meus amigos pra ir pro boteco, eu gosto de música, eu gosto de passear, passear. Qualquer prazer me diverte, sabe, um pouco. Gosto de viajar. Essa semana eu vou viajar, porque meu irmão tem casa na Ilha Bela, eu vou pra lá com duas amigas, vou tirar uns dias, né, essa semana, pra ficar pra lá. Que é o que eu gosto de fazer. As vezes eu, agora, né, que to na pandemia, tal, eu fiz uma conta na Amazon Kindon pra baixar uns livros, eu leio livros. Ou então eu fico simplesmente as vezes fazedo nada, as vezes é muito importante também você ficar no ócio absoluto, sabe, durmo, acordo, essas coisas assim, sem... as vezes é muito importante fazer nada.
[02:28:22]
P/1 – Você comentou que ainda não entrou na menopausa, mas você pensa sobre isso? Você vai ao médico, faz exames? Isso já é um assunto que faz parte da sua vida?
[02:28:37]
R – Então, pelos meus exames eu ainda não to na menopausa, né, meus exames hormonais, só que eu já to sentindo, eu não to na menopausa, mas eu to no climatério, que é quando você começa já a sentir os efeitos, então a tensão pré-menstrual piora, a menstruação super desregulada. Mas assim, confesso que faz dois anos que eu não vou no ginecologista, eu faço meus exames de hormônio ou com psiquiatra, qualquer medico que eu vou, endócrino, qualquer medico que eu vou eu faço meus exames, eu já vou... mas é isso. Até hoje de manhã eu fiz uma listinha das minhas demandas agora pra novembro, uma delas é ir na consulta do meu ginecologista, pra fazer os exames, né, mamografia, tudo isso. Mamografia eu faço, né, todo ano, mas não... assim, eu não sou uma pessoa de frequentar regularmente o consultório médico. Então eu... mas é uma preocupação que eu tenho, eu tenho bastante preocupação com isso, até por conta das mudanças hormonais, eu sinto uma mudança na pele, sinto a pele ressecada, eu tenho muitas sardas, então as manchas, né, as sardas já se juntando, as manchas de sol, essas coisas assim que você vai percebendo o envelhecimento, assim, né. E principalmente alteração pré-menstrual e do ciclo menstrual, isso é um saco, mas to aí aguardando o que vai acontecer.
[02:30:22]
P/1 – E Naira, quais são seus maiores sonhos?
[02:30:25]
R – Sonhos? Eu acho que do campo pessoal, pra mim, Naira, Naira, mulher, né, meu sonho é poder sair de Santos, morar no Nordeste e trabalhar numa comunidade, num lugar assim onde eu... trabalhar numa universidade, eu quero muito seguir carreira acadêmica dentro de uma universidade pública, mas isso eu tenho que ir construindo, eu tenho que ir pro doutorado – eu parei, né, meu projeto de doutorado por conta de entrar na gestão do CAPS – eu tenho que investir nisso, acho que ano que vem é o ano que eu vou começar a investir nisso, porque aí o meu plano é aposentar do estado e poder prestar um concurso pruma universidade federal (enquanto elas existem, né), no Ceará, na Bahia, Paraíba, são os três estados pra onde eu iria. No campo familiar é ver meus filhos felizes, realizados, com uma vida que faça sentido pra eles. E ter minha mãe comigo por mais muitos anos. Acho que é isso. E do ponto de vista coletivo, é ver um país comandado por trabalhadores, e pelo povo de verdade. Morar num lugar onde as pessoas não precisem pedir licença pra existir, elas só existam porque elas são quem elas são.
[02:32:44]
P/1 – Você gostaria de acrescentar alguma coisa, contar alguma história, falar sobre alguma coisa que eu não tenha instigado?
[02:32:55]
R – É... eu acho que como essa história é pro Museu da Pessoa, e eu não sei, daqui alguns anos, né, alguém vai ouvir, eu acho que o que é importante, eu quero muito deixar como legado pras gerações e gerações e gerações, que estão aí, que é possível, sabe, é possível um mundo diferente, eu acho que eu trago na minha história, na minha história de vida, e que eu fui construindo, e que não fui eu, né, eu fui parte de uma construção que é muito maior que eu, que a liberdade é nosso maior bem, né. Pra eu estar falando com vocês aqui hoje, muitos morreram antes de nós, muitos foram torturados em porões pra gente poder tá aqui falando o que a gente pensa, né, pra vocês poderem estar divulgando nos canais do Museu da Pessoa tantas histórias diferentes. Eu acho que a gente precisa resistir, resistir, resistir, resistir. E nunca perder a indignação e nem o sonho. Pepe Mujica, que pra mim é um dos maiores líderes que a gente tem hoje, que renunciou ao senado, ele diz que o que ele tem pra dizer pra juventude é isso: “nunca desacreditem, nunca deixem de acreditar, e sempre, né, recomece, sempre lute de novo”. E eu acho que é isso. A gente não pode deixar de acreditar. Eu acho que as nossas lutas elas são recompensadas na medida que a gente segue, né, a gente segue com brilho no olho, com tesão por fazer o que a gente faz, e pelas gentes, né, todas as gentes. Então eu acho que se eu posso deixar alguma mensagem disso tudo que a gente conversou, dessa história, é isso: o mundo tem lugar pra todas as gentes, pra todas as pessoas. A gente não precisa brigar por isso e nem oprimir ninguém por isso.
[02:35:42]
P/1 – Eu queria fazer mais duas últimas perguntas, pode ser?
[02:35:46]
R – Pode.
[02:35:47]
P/1 – Primeiro, eu queria saber o que que você acha da proposta de mulheres serem convidadas a contar sua história de vida e falarem sobre a saúde da mulher através de um projeto de memória?
[02:36:04]
R – Gente, eu acho fantástico. Eu vou confessar pra vocês que eu fiquei meio assim, eu falei “gente, como assim, né?” Mas aí eu fui ver, estudar, eu trabalho com narrativa, minha dissertação de mestrado foi com método de história oral. Um dos meus projetos pro Fórum de Direitos Humanos em Saúde Mental é um varal ne narrativas. E eu acho que é isso, a nossa vida traz a nossa marca, né, e eu acho que as mulheres precisam mostrar suas marcas, as marcas do que a gente viveu, do que a gente vive, e do quanto a gente precisa se olhar, né, eu acho fundamental, eu acho lindo.
[02:36:58]
P/1 – E o que você achou de ter participado dessa entrevista de ter contado a sua história pra gente?
[02:37:03]
R – Gente, eu to me achando o máximo! Virar parte de museu era o que me faltava (risos)! Eu achei muito incrível. Foi bem diferente do que eu pensava, mas foi muito legal, assim, ir retomando, ir revivendo, porque quando a gente vai contando a história a gente vai revivendo ela, né, vai lembrando. Eu senti o gosto do bolo da minha vó, sabe. Acho que é muito bom, e é isso, né, é a nossa história que a gente deixa pro mundo, né. E aí, tá lançado, como uma garrafa ao mar, né, quando a gente põe um bilhete na garrafa e lança no mar, tá lançada a história. E que tantas outras mulheres tenham essa oportunidade, né, mulheres comuns, sabe, porque a gente tem mania de ler as biografias das grandes mulheres, que são grandes mesmo, mas as mulheres comuns têm histórias tão bonitas, que vale a pena. E eu to muito feliz.
[02:38:16]
P/1 – Naira, eu não sei nem como te agradecer, assim, foi um presente ouvir você contando sua história. É muito importante, foi muito gostoso, eu me diverti muito, ri muito, me arrepiei, foi muito gostoso. Obrigada por passar a tarde com a gente. Brigada por dividir tudo isso. Assim que a história tiver no site eu te mando.
[02:38:47]
R – Ai, me manda, eu quero ver como é que ficou depois. Não sei se eu vou te paciência pra escutar tudo, mas... Eu quero assim, de verdade que o que eu falei hoje à tarde aqui faça sentido, pra vocês, né, e pra outras pessoas que possam se interessar e ouvir. E eu quero estudar mais esse método, porque eu achei bem legal, e eu quero fazer isso aí que você tá fazendo (risos). Gostei muito!
[02:39:20]
P/1 – Meu, é muito gostoso. E, assim, o museu tem várias vertentes, dá pra estudar bastante, sabe, uma tecnologia associada à memória, tem muita gente que faz trabalhos com essa temática. É só entrar em contato que eu vou adorar te...
[02:39:48]
R – Ah, então ótimo. Eu vou entrar em contato com vocês e eu quero saber mais porque a minha dissertação, a minha pesquisa de mercado, eu trabalhei com história oral, né. E eu amo história oral, inclusive eu trabalho com adolescentes muito com escrita de narrativas, né, porque o jeito que a gente se revê, gente, é o jeito que a gente se olha de novo.
[02:40:16]
P/2 – Tem cursos de formação também, Naira. Você pode ficar ligada no site, sempre tem aviso, no Instagram. E tem um método, eu acho que tá disponibilizado... precisa ver se tá no site, que chama Psicologia Social da Memória, né.
[02:40:51]
R – Muito legal, muito bom, curti muito!
[02:40:54]
P/2 – E como você imaginava que seria?
[02:40:57]
R – Na verdade, é assim, né, gente, a gente vai se habituando um pouco com o que as pessoas querem ouvir da gente, né, então eu pensei assim “elas devem falar assim: ‘conta como é que foi sua vida, como é que você ficou cega...”, aí quando vocês começam a perguntar onde eu nasci, como era minha casa, como é que era a escola, eu “hein? Oi?” (risos), aí eu fui lá pra minha casa, eu fui viajando no negócio! Muito legal, muito interessante.
[02:41:42]
P/1 – E Naira, eu acho que eu devia ter feito isso antes, mas queria me apresentar, não sei como faz isso, você me ensina. Eu sou a Luiza, eu sou branca, eu tenho cabelo castanho claro acima do ombro, três dedos acima do ombro, mas isso é novo, porque eu que cortei meu cabelo essa semana. E to de blusa preta e eu acho que é isso.
[02:42:10]
R – Essa técnica, essa coisa da autodescrição, é uma jogada de acessibilidade porque quando a gente, principalmente agora, com essa coisa do online, tudo é online, tudo é digital, é live pra cá, live pra lá, ela dá uma possibilidade de ampliação, sabe, até da imagem, das possibilidades de reconhecimento daquele sujeito pras pessoas cegas. É muito legal. É a mesma coisa que descrição da imagem, né, então você faz um card, um banner, põe lá: descrição da imagem e fala o que ta na imagem. Mas é simples, é só você falar como você tá, quem é você, sabe, como você se vê, pro outro poder te enxergar de outro jeito, né. É uma coisa interessante. Eu vou te falar que no começo eu achava uma bobagem, né, porque eu sou uma pessoa que eu acabei ficando muito desprendida dessa coisa da imagem, né, raramente alguém vai me ver perguntando “como é que você é, que cor é teu cabelo, que cor é tua pele”, eu não... tenho a menor... não tem relevância de fato pra mim. Mas eu entendo que é gerar possibilidade das pessoas de saberem, né, como que as pessoas são. Eu acho interessante. Agora eu to entendendo melhor, antes eu também não achava, eu não achava nada... mas é que pra mim geralmente não faz sentido, né. Mas pra maioria das pessoas faz.
[02:44:02]
P/1 – Sim, total. É isso! Naira, muito obrigada, mesmo!
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